UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE CENTRO DE COMUNICAÇÃO E LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS THAIS MILENA BARBOSA CARAPIÁ OS NÃO LIMITES ENTRE A VERACIDADE E A FICCIONALIDADE NA OBRA LA AVENTURA DE MIGUEL LITTÍN CLANDESTINO EN CHILE, DE GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ São Paulo 2020 UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE CENTRO DE COMUNICAÇÃO E LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS THAIS MILENA BARBOSA CARAPIÁ OS NÃO LIMITES ENTRE A VERACIDADE E A FICCIONALIDADE NA OBRA LA AVENTURA DE MIGUEL LITTÍN CLANDESTINO EN CHILE, DE GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie como requisito para a obtenção do título de Mestre em Letras. ORIENTADORA: Profa. Dra. Ana Lúcia Trevisan São Paulo 2020 C261n Carapiá, Thais Milena Barbosa. Os não limites entre a veracidade e a ficcionalidade na obra La aventura de Miguel Littín Clandestino em Chile, de Gabriel García Márquez/ Thais Milena Barbosa Carapiá. 122 f. : il. ; 30 cm Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2020. Orientadora: Ana Lúcia Trevisan. Referências bibliográficas: f. 119-122. 1. Veracidade. 2. Ficcionalidade. 3. Gabriel García Márquez. 4. Miguel Littín. I. Trevisan, Ana Lúcia, orientadora. II. Título. CDD 863 Bibliotecária Responsável: Aline Amarante Pereira - CRB 8/9549 Folha de Identificação da Agência de Financiamento Autor: Thais Milena Barbosa Carapiá Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras Título do Trabalho: Os não limites entre a veracidade e a ficcionalidade na obra La aventura de Miguel Littín clandestino en Chile, de Gabriel García Márquez O presente trabalho foi realizado com o apoio de 1: CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo Instituto Presbiteriano Mackenzie/Isenção integral de Mensalidades e Taxas MACKPESQUISA - Fundo Mackenzie de Pesquisa Empresa/Indústria: Outro: 1 Observação: caso tenha usufruído mais de um apoio ou benefício, selecione-os. Ao André, Incentivador incansável. Aos meus pais, Apoiadores incondicionais. Agradecimentos Meus agradecimentos vão, em primeiro lugar, à professora Dra. Ana Lúcia Trevisan, por ter me apresentado ao universo encantador de Gabriel García Márquez, ainda em 2012, pela orientação segura, pela generosidade, pelo suporte, pelo encorajamento e sabedoria em cada etapa deste trabalho. Agradeço aos colegas e professores do programa de Pós-Gradução em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, pelas inspiradoras interlocuções ao longo das disciplinas cursadas. Em especial, agradeço aos professores com quem cursei disciplinas: Dra. Diana Luz Pessoa de Barros, Dra. Maria Lucia Marcondes Carvalho Vasconcelos, Dra. Aurora Gedra Ruiz Alvarez, Dra. Maria Helena de Moura Neves, Dra. Regina Pires de Brito, Dr. Albino Chacón Gutiérrez, Dra. Maria Luiza Guarnieri Atik. Às minhas companheiras de pesquisa, Ana Carolina Varella, Camila Marson e Eliza Souza, gratidão pela amizade, pelas tão sábias partilhas e apoio mútuo. À professora Dra. Vera Lucia Harabagi Hanna, agradeço por ter me acolhido em seu grupo de pesquisa. Aos componentes da banca, Profª. Drª. Joana de Fátima Rodrigues e Prof. Dr. Cristhiano Motta Aguiar, pelas excelentes contribuições para este trabalho. Ao meu marido, André, toda a minha gratidão. Além de sempre me encorajar e confiar em mim, agracia-me com provas diárias de companheirismo. Muita gratidão aos meus pais, Rudmar e Darly, apesar de não haver palavras para agradecer tanta dedicação e investimento ao longo de todos esses anos de minha formação. À minha irmã, pelos almoços desestressantes e descontraídos. Agradeço à CAPES, pela bolsa outorgada para o desenvolvimento deste trabalho. Sem esse financiamento, muito dificilmente esta pesquisa teria sido realizada. Agradeço, também, à Gerência de Responsabilidade Social e Filantropia do Instituto Presbiteriano Mackenzie, pela complementação à bolsa de estudo. Finalmente, a Deus, minha eterna gratidão! O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Esses que-fazeres se encontram um no corpo do outro. Enquanto ensino continuo buscando, reprocurando. Ensino porque busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso para constatar, constatando, intervenho, intervindo educo e me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade. Paulo Freire, Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa RESUMO O presente estudo propõe-se a examinar, como objetivo geral, a maneira como foi construído o texto que compõe La aventura de Miguel Littín clandestino en Chile, a fim de se refletir sobre as margens que separam e, ao mesmo tempo, aproximam os relatos implícitos a esta obra de Gabriel García Márquez. A narrativa surge com base em registros comprometidos com a veracidade e também com a ficcionalidade, observando-se, assim, um enredo composto a partir da materialização do cruzamento de diferentes gêneros – documentário, ata, entrevista, reportagem e romance, o que garante a singularidade da obra, subvertendo definições simplificadas. Como objetivo específico, verifica-se de que forma a historicidade e a identidade latino-americana conduzem um eixo narrativo, contribuindo e influenciando nas estratégias adotadas na construção da narrativa que compõe essa obra do escritor e jornalista colombiano. Como resultado, reconhece-se uma proposta narrativa que une conteúdo e forma com o intuito de apontar um caminho reflexivo a respeito das múltiplas formas de compreender e formular a realidade. Palavras-chave: Veracidade. Ficcionalidade. Gabriel García Márquez. Miguel Littín. RESUMEN El presente estudio se propone examinar, como objetivo general, la manera como se construye el texto que compone La aventura de Miguel Littín clandestino en Chile, a fin de reflexionar sobre los márgenes que separan y al mismo tiempo aproximan los relatos implícitos a esta obra de Gabriel García Márquez. La narrativa surge con base en registros comprometidos con la veracidad y también con la ficcionalidad, observándose, así, un enredo compuesto a partir de la materialización del cruce de diferentes géneros - documental, acta, entrevista, reportaje y novela, lo que garantiza la singularidad de la obra, subvirtiendo definiciones simplificadas. Como objetivo específico, se verifica de qué forma la historicidad y la identidad latinoamericana conducen un eje narrativo, contribuyendo e influenciando en las estrategias adoptadas en la construcción de la narrativa que compone esa obra del escritor y periodista colombiano. Como resultado, se reconoce una propuesta narrativa que une contenido y forma con el propósito de apuntar un camino reflexivo acerca de las múltiples formas de comprender y formular la realidad. Palabras-clave: Veracidad. Ficcionalidad. Gabriel García Márquez. Miguel Littín. SUMÁRIO Introdução ............................................................................................................... 10 Capítulo 1 – Gabriel García Márquez: a escrita jornalística e a escrita ficcional ...... 14 Capítulo 2 – Discurso histórico e discurso literário: diálogos possíveis .................... 20 Capítulo 3 – Jornalismo literário: o encontro entre a literatura e o jornalismo ................................................................................................................................... 39 3.1. New Journalism ....................................................................................... 49 3.2. América Latina ......................................................................................... 55 3.3. O papel social da literatura ....................................................................... 57 Capítulo 4 – Análise de La aventura de Miguel Littin clandestino en Chile .............. 61 4.1. Gabriel García Márquez: a apresentação da obra ................................... 61 4.2. O personagem Miguel Littín clandestino no Chile .................................... 65 4.3. No centro das nostalgias de Miguel Littín ................................................. 73 4.4. Os que ficaram também são exilados ...................................................... 78 4.5. Os cinco pontos cardeais de Santiago ..................................................... 86 4.6. Um homem em chamas em frente à Catedral .......................................... 91 4.7. Dois mortos que nunca morrem: Allende e Neruda ................................. 95 4.8. A polícia à espreita: o cerco começa a fechar-se ..................................... 98 4.9. Atenção: há um general disposto a contar tudo ...................................... 105 4.10. Miguel Littín não é reconhecido nem por sua própria mãe ................... 110 Considerações finais ............................................................................................ 116 Introdução Gabriel García Márquez, jornalista e escritor colombiano, alcançou grande notoriedade e consagrou-se como um dos melhores escritores de ficção da América Latina, tendo sido ganhador do prêmio Nobel de Literatura de 1982 pelo conjunto de sua obra, incluindo Cien años de soledad, sua magnus opus. Contudo, o autor iniciou sua carreira como jornalista, tendo trabalhado para diversos meios de comunicação, entre eles os jornais colombianos El Universo, El Heraldo e El Espectador, além de também ter escrito para as revistas Momento e Venezuela Gráfica, e para a agência cubana de notícias Prensa Latina. Dentro de sua vasta bibliografia figura La aventura de Miguel Littín clandestino en Chile. Publicada em 1986, a obra, segundo García Márquez (2003), consiste em uma reportagem, criada a partir do interesse do próprio jornalista pela história por trás do feito do cineasta chileno Miguel Littín, que, mesmo figurando entre os cinco mil exilados absolutamente proibidos de regressar à sua terra, depois de quase doze anos de exílio, retorna, clandestinamente, ao Chile, no início de 1985, a fim de registrar a realidade de seu país sob a ditadura militar de Augusto Pinochet. Pelo método de investigação e pelo caráter do material, esta é uma reportagem. Mas é mais: é a reconstrução emocional de uma aventura cuja finalidade última era sem dúvida muito mais profunda e comovedora que o propósito original e bem sucedido de fazer um filme superando os riscos do poder militar. O próprio Littín disse: “Este não é o ato mais heróico da minha vida, é o mais digno”. Assim é, e creio que esta é a sua grandeza (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 6)1. Com uma aparência completamente modificada, tanto no estilo de se vestir quanto na maneira de falar, além de documentos falsos e a ajuda e a proteção de organizações democráticas que atuavam na clandestinidade, Littín conseguiu percorrer o território chileno de ponta a ponta – inclusive dentro do Palácio de La Moneda, sede presidencial. Graças à cobertura de três equipes de cinema europeias, 1 “Por el método de la investigación y el carácter del material, este es un reportaje. Pero es más: la reconstitución emocional de una aventura cuya finalidad última era sin duda mucho más entrañable y conmovedora que el propósito original y bien logrado de hacer una película burlando los riesgos del poder militar. El propio Littín lo ha dicho: “Este no es el acto más heroico de mi vida, sino el más digno”. Así es, y creo que esa es su grandeza” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 9). 10 que haviam entrado no país ao mesmo tempo que ele, e outras seis equipes juvenis da resistência interna, foi possível a filmagem de uma película de mais de sete mil metros, que resultou em um filme de quatro horas para a televisão e outro de duas horas para o cinema, denominado Acta general de Chile. Gabriel García Márquez, ao saber da aventura de Miguel Littín, propôs-lhe que a história acerca da produção do documentário fosse contada em livro. Quando Miguel Littín me contou em Madri o que tinha feito, e como tinha feito, pensei que por trás de seu filme havia outro filme sem ter sido feito e que corria o risco de ficar inédito. Foi assim que ele aceitou submeter-se a um interrogatório exaustivo de quase uma semana, cuja versão gravada durava dezoito horas. Ali, ficou completa a aventura humana, com todas as suas implicações profissionais e políticas, que tornei a contar condensada nestes dez capítulos (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 5)2. Assim, a entrevista de Littín a García Márquez resultou em seiscentas páginas de narrativa, que tiveram de ser editadas a menos de cento e cinquenta e divididas em dez capítulos, constituindo La aventura de Miguel Littín clandestino en Chile: un reportaje. A América Latina, nos anos 1960, deparou-se com a popularização da literatura de García Márquez, que se tornou conhecida internacionalmente, alcançando seu auge em 1967, com a publicação de Cien años de soledad. Mas, diferentemente das tendências realista e naturalista predominantes no período, os escritores latino- americanos adotaram um estilo diferente que melhor se adequava à realidade extraordinária e singular com a qual se deparavam. Lançando mão de recursos provenientes do imaginário e do mítico, estabelecia-se a “realidade” latino-americana de colônia de exploração, construída desde as narrativas dos exploradores, durante o século XVI. Tal “realidade” é composta por imagens, que, apesar de não existirem de forma concreta, representam seu simulacro e têm considerável poder de resistência ao tempo e à circulação pelo espaço, devido à força e à qualidade dos sentimentos que a acompanharam à época em que se estabeleceram (CHIAMPI, 1977, p. 69). 2 “Hace unos seis meses, cuando Miguel Littín me contó en Madrid lo que había hecho, y cómo lo había hecho, pensé que detrás de su película había otra película sin hacer que corría el riesgo de quedarse inédita. Fue así como aceptó someterse a un interrogatorio agotador de casi una semana, cuya versión magnetofónica duraba dieciocho horas. Allí quedó completa la aventura humana, con todas sus implicaciones profesionales y políticas, que yo he vuelto a contar condensada en esta serie de diez capítulos” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 8). 11 Diante do exposto, o presente estudo propõe-se a examinar, como objetivo geral, a maneira como foi construído o texto que compõe La aventura de Miguel Littín clandestino en Chile, a fim de se refletir sobre as margens que separam e, ao mesmo tempo, aproximam os relatos implícitos a esta obra. A narrativa elaborada por Gabriel García Márquez surge com base em registros comprometidos com a veracidade e também com a ficcionalidade, observando-se, assim, um enredo composto a partir da materialização do cruzamento de diferentes gêneros – documentário, ata, entrevista, reportagem e romance, o que garante a singularidade da obra, subvertendo definições simplificadas. Como objetivo específico, verifica-se de que forma a historicidade e a identidade latino-americana conduzem um eixo narrativo, contribuindo e influenciando nas estratégias adotadas na construção da narrativa que compõe essa obra do escritor e jornalista colombiano. Assim, o estudo norteia-se a partir da seguinte pergunta-problema: de que forma um texto que estabelece diálogo entre diferentes gêneros elabora, também, uma crítica ao discurso jornalístico, que pretende estabelecer os limites da construção de uma “verdade dos fatos”? Tem-se como hipótese de que a obra em questão se apoia em fatos e é construída com recursos narrativos provenientes de diferentes gêneros, trazendo como reflexão uma forma diferente de se fazer jornalismo, atribuindo à prática elementos literários com o intuito de expressar não só a realidade do público, mas, também, de envolvê-lo, a fim de atender às suas necessidades. Considerando que o cruzamento entre os gêneros se dá de maneira intencional, investiga-se o que o autor- escritor pretende com a adoção dessa estratégia. O estudo se justifica pela importância de se aprofundar no estudo da obra jornalística de García Márquez, principalmente no que se refere a esta obra, que retrata um momento bastante crítico da história latino-americana – a ditadura chilena de Augusto Pinochet (1973-1990). Além disso, dada sua originalidade, resultante da hibridização de gêneros, apresenta uma proposta singular de construção textual. Considerando que há entre o discurso jornalístico e o historiográfico aproximações, porque ambos se baseiam em fatos, serão adotados, como referenciais teóricos, a obra Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura, escrita pelo historiador Hayden White (1994), em especial seu ensaio “O texto histórico como artefato literário”, assim como Literatura e história na América Latina, 12 organizado por Ligia Chiappini e Flávio Wolf de Aguiar, principalmente o ensaio “Lógica das diferenças e política das semelhanças: da literatura que parece história ou antropologia e vice-versa”, do semiólogo e professor de literatura Walter Mignolo (1993). Com o intuito de se realizar uma análise sociocrítica do corpus, o trabalho fundamenta-se em Marc Angenot (2010; 2015), em especial seu ensaio “¿Qué puede la literatura? Sociocrítica literaria y crítica del discurso social”. Partindo-se do pressuposto de que La aventura de Miguel Littín clandestino en Chile representa a narrativa de um fato, ampara-se no conceito de jornalismo literário desenvolvido por Edvaldo Pereira Lima (2009; 2010), a partir de seus livros Páginas ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura e Jornalismo literário para iniciantes. Ademais, fundamenta-se análise, ainda, em Antonio Candido (2006), lançando-se mão de sua obra Literatura e Sociedade. Dessa forma, no primeiro capítulo, “Gabriel García Márquez: a escrita jornalística e a escrita ficcional”, apresenta-se a relação de Gabriel García Márquez com o jornalismo e a literatura, tanto em sua vida quanto em sua obra. O segundo capítulo, “Discurso histórico e discurso literário: diálogos possíveis”, por sua vez, explicita os fundamentos teóricos da presente dissertação, calcados nas ideias de White (1994), Mignolo (1993) e Angenot (2010; 2015). Intitulado “Jornalismo literário: o encontro entre a literatura e o jornalismo”, o terceiro capítulo disserta sobre as origens do jornalismo literário, o New Journalism e a América Latina frente a este estilo jornalístico, além do papel social desempenhado pela literatura. O quarto capítulo, “Análise de La aventura de Miguel Littin clandestino en Chile”, compreende a análise do corpus desta dissertação, amparada pelas teorias até então expressas. Por fim, apresentam-se as considerações finais a respeito de toda a pesquisa realizada e dos pontos mais significativos da dissertação. 13 Capítulo 1 – Gabriel García Márquez: a escrita jornalística e a escrita ficcional Gabriel José de la Concordia García Márquez nasceu em 6 de março de 1927, na cidade de Aracataca, na Colômbia. Filho de Luisa Santiaga Márquez e do telegrafista Gabriel Eligio García, viveu a infância na casa dos avós maternos, D. Tranquilina Iguarán e o Coronel Nicolás Ricardo Márquez Mejía. Cercado de adultos, na casa dos avós, o pequeno Gabriel ouvia constantemente as histórias deles, o que representou seu primeiro contato com a literatura. Para sua avó, D. Tranquilina, “não havia uma fronteira muito definida entre os mortos e os vivos. Referia-se a coisas fantásticas como ordinários acontecimentos cotidianos”, que atormentavam o menino durante a noite (APULEYO MENDOZA, apud GARCÍA MÁRQUEZ, 2007, p.8). Contava-me os fatos mais atrozes sem se comover, como se fosse uma coisa que acabasse de ver. Descobri que essa maneira imperturbável e essa riqueza de imagens era o que mais contribuía para a verossimilhança das suas histórias. Usando o mesmo método da minha avó, escrevi Cem Anos de Solidão (GARCÍA MÁRQUEZ, 2007, p.33). O avô, coronel, veterano de guerras, contava ao menino episódios de todas as guerras das quais tinha participado. O que, segundo García Márquez (2007), influenciou-o na concepção de seus mais importantes personagens masculinos. Porém, atribui a sua decisão de ser escritor a A Metamorfose, de Franz Kafka, que, segundo ele, contava coisas, em alemão, da mesma maneira que sua avó. Foi a partir dessa leitura, realizada por meio de um livro emprestado por um colega, à época em que estudava Direito na Universidade Nacional de Bogotá, que pôde compreender que existiam outras possibilidades na literatura, “além das racionalistas e muito acadêmicas” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2007, p. 33). Hoje se lembra como chegou à pobre pensão de estudantes onde morava, no centro da cidade, com aquele livro que um colega acabava de lhe emprestar. Tirou o paletó e os sapatos, deitou-se na cama, abriu o livro e leu: “Quando Gregor Samsa acordou certa manhã, após um sono intranquilo, viu-se em sua cama transformado num monstruoso inseto”. Gabriel fechou o livro, tremendo. “Merda”, pensou, “então se pode fazer isso”. No dia seguinte escreveu seu primeiro conto. E se esqueceu dos estudos (APULEYO MENDOZA, apud GARCÍA MÁRQUEZ, 2007, p.46). 14 Pouco tempo depois, publicou seu primeiro conto, La tercera resignación, no jornal El Espectador, em 1947. No entanto, a imersão de García Márquez no jornalismo se daria na colonial cidade de Cartagena das Índias. Depois da série de ataques sangrentos que se iniciaram em 9 de abril de 1948 e que culminaram com a morte do jurista, escritor, político e candidato à presidência Jorge Eliécer Gaitán, eventos esses que ficaram conhecidos como El Bogotazo, a universidade em que estudava foi fechada indefinidamente e a pensão onde morava foi incendiada, fazendo-o se transferir para a Universidade de Cartagena. Naquela cidade, aventurou- se no cargo de aprendiz na redação do jornal El Universal. O primeiro ano de experiência na redação do periódico progressista, sob a chefia de Clemente Zabala, que comentava, revisava e corrigia seus textos, tornou-se marcante para García Márquez. A respeito de seus primeiros trabalhos no jornal: Zabala la leyó y lo tachó todo, y fue escribiéndola él entre las líneas tachadas. En la segunda noticia volvió a repetir la misma operación. Las dos se publicaron sin firma, y yo pasé días estudiando por qué cambió cada cosa por otra, y cómo las escribió él. Después ya me fue tachando menos frases, hasta que un día ya no tachó más, y se supone que desde aquel momento yo ya era periodista (GRIJELMO, 1998). Após esse período de experiência, Zabala nomeou o jovem, então com 21 anos, responsável pela coluna diária Punto y Aparte, da qual se ocupou por um ano e oito meses, tratando dos mais diversos assuntos. Logo nessa primeira empreitada jornalística, García Márquez não se limitou à coluna, atuando também como comentarista anônimo e repórter, redigindo para a seção de Comentários e para a página dos editoriais, além de editar a página de notícias internacionais. A demanda por temas interessantes obrigava o então jornalista a manter-se sempre bem informado, não apenas acerca do universo colombiano, mas também em relação aos acontecimentos internacionais, contribuindo para o aumento de seu interesse pela notícia. A partir dos recortes que fazia acerca dos acontecimentos mundiais, García Márquez mantinha um acervo que o ajudava muito quando da necessidade emergencial de escrita. Percebe-se que a redação do jornal El Universal foi uma escola de jornalismo para García Márquez, lugar onde pôde desenvolver um estilo próprio, redigir dentro dos padrões jornalísticos, além de atender às questões de clareza da informação, síntese, coesão, coerência, de forma a podar seus excessos literários ou poéticos. 15 Dessa forma, não tardou para que se decidisse por abandonar definitivamente o curso de Direito, já que, segundo seu amigo Plínio Apuleyo Mendoza, “a poesia continuava sendo o que mais lhe interessava na vida. Em vez de códigos, lia versos” (APULEYO MENDOZA, apud GARCÍA MÁRQUEZ, 2007, p. 45). Reconhecido por sua experiência no El Universal, García Márquez foi convidado a se transferir para o jornal El Heraldo, na cidade de Barranquilla, onde ficou encarregado pela coluna La Jirafa, a partir de 5 de janeiro de 1950, assinando-a com o pseudônimo de Septimus, inspirado no personagem homônimo de Virginia Woolf, no romance Mrs. Dalloway. Essa oportunidade foi especialmente importante em sua trajetória jornalística, considerando que, à época, o periódico representava o segundo maior jornal colombiano. Além disso, García Márquez dividia-se entre a coluna de opinião e outras funções no jornal, como a de titulador e editor de determinadas seções. Diante de uma rotina de trabalho tão farta, o agora jornalista teve de desenvolver um ritmo de escrita para idealizar, elaborar e compor um texto que abordasse algum assunto em voga numa linguagem menos informativa, mas mais despojada, instigante e envolvente, o que foi fundamental, principalmente, para que se tornasse um hábil cronista. Na redação do El Heraldo, García Márquez convivia com redatores e colaboradores, em sua maioria, intelectuais e escritores liberais progressistas, com os quais convivia dentro e fora da redação, como aquele que mantinha junto ao grupo de Cartagena, devido a identificação e interesses partilhados, tais como a amizade, a paixão pela cidade, a literatura e o jornalismo (PELAYO, 2001, 5-6). Este grupo, do qual García Márquez fez parte por volta dos anos 1950, é hoje objeto de estudo de especialistas em literatura latino-americana, principalmente nas universidades da Europa e dos Estados Unidos. “Para eles, García Márquez surge dessa pitoresca família literária, chamada “o grupo de Barranquilla”” (APULEYO MENDOZA, apud GARCÍA MÁRQUEZ, 2007, p. 48). Em 1950, esse grupo criou o semanário Crónica, que duraria 14 meses, sob a direção de Alfonso Fuenmayor. A publicação apresentava um caráter híbrido, o que possibilitava ao leitor encontrar textos de diferentes estilos sobre variados assuntos e permitiu a García Márquez a prática da reportagem, um de seus maiores anseios ao ingressar no jornalismo, enquanto revezava-se entre o cargo de redator-chefe da publicação e suas funções no El Heraldo. 16 Contudo, diante do insucesso de Crónica, García Márquez regressou a Cartagena, a fim de recobrar suas atividades no jornal El Universal, sem, no entanto, deixar de colaborar com o periódico de Barranquilla, El Heraldo. Porém, em ambas as publicações, suas produções não eram assinadas. Esgotado e insatisfeito com sua rotina profissional, o jornalista, no fim de 1951, afastou-se das redações, rumando para o interior colombiano, com o intuito de vender livros pelas ruas. [...] había aceptado convertirme en vendedor de libros a plazos en la provincia de Padilla, desde Valledupar hasta La Guajira. Mi ganancia era el anticipo en efectivo del veinte por ciento, que debía alcanzarme para vivir sin angustias después de pagar mis gastos, incluido el hotel. [...] La leyenda es que fue planeado como una expedición mítica en busca de mis raíces en la tierra de mis mayores, con el mismo itinerario romántico de mi madre llevada por la suy a para ponerla a salvo del telegrafista de Aracataca. La verdad es que el mío no fue uno sino dos viajes muy breves y atolondrados. En el segundo sólo volví a los pueblos en torno de Valledupar. Una vez allí, por supuesto, tenía previsto seguir hasta el cabo de la Vela con el mismo itinerario de mi madre enamorada, pero sólo llegué a Manaure de la Sierra, a La Paz y a Villanueva, a unas pocas leguas de Valledupar (GARCÍA MÁRQUEZ, 2002, p. 301). Recuperadas as energias, García Márquez retorna ao jornalismo, em fevereiro de 1952, às páginas de El Heraldo, novamente sob a identidade de Septimus, e com “o desejo sempre adiado de escrever reportagens” (SALDÍVAR, 2000, 245). As experiências vividas em suas viagens, assim como o conhecimento acerca do assassinato do amigo Cayetano Gentile Chimento, em 22 de janeiro de 1951, na cidade colombiana de Sucre, que resultariam em Crónica de una muerte anunciada, cujo livro seria publicado 30 anos depois do ocorrido, em 1981. Para a composição da obra, García Márquez lança mão de relatos dos participantes e das testemunhas do drama, além das declarações realizadas em juízo, cuidadosamente examinados durante seu processo de investigação anterior à escrita (DE MARTINEZ, 1981, p. 71). Segundo declaração do escritor ao Diario 16, periódico espanhol, à época da publicação: “Por primera vez conseguí una confluencia perfecta entre el periodismo y la literatura, por eso se llama Crónica de una muerte anunciada” (DE MARTINEZ, 1981, p. 71). Depois de retornar ao El Heraldo, García Márquez fez uma rápida passagem pelo mais novo jornal colombiano da época, El Nacional, onde arcou com a responsabilidade do cargo de chefe de redação da edição vespertina do periódico, 17 tendo como companheiro o jornalista Álvaro Cepeda Samudio, responsável pela edição matutina. Porém, após um curto e desagradável período, ambos deixaram a publicação. Anos mais tarde, García Márquez definiria a experiência: Fue una aventura mortal. [...] Los pocos números que lograron salir fueron el resultado de un acto heroico, pero nunca se supo de quién. A la hora de entrar en prensa las planchas estaban empasteladas. Desaparecía el material urgente, y los buenos enloquecíamos de rabia. No recuerdo una vez en que el diario saliera a tiempo y sin remiendos, por los demonios agazapados que teníamos en los talleres. Nunca se supo qué pasó. La explicación que prevaleció fue quizás la menos perversa: algunos veteranos anquilosados no pudieron tolerar el régimen renovador y se confabularon con sus almas gemelas hasta que consiguieron desbaratar la empresa (GARCÍA MÁRQUEZ, 2002, p. 306-307). Em janeiro de 1954, o diário bogotano El Espectador recebeu novamente García Márquez, mas, diferentemente de cinco anos antes, agora como um de seus redatores titulares. Entre as grandes reportagens desse período está La verdad sobre mi aventura, líder em repercussão e popularidade, sobre Luis Alejandro Velasco, o único marinheiro sobrevivente do acidente que envolveu o destroier da marinha de guerra colombiana Arc Caldas, ocorrido devido a uma suposta tormenta no mar do Caribe, em fevereiro de 1955, segundo as primeiras notícias sobre o ocorrido. Velasco, até alcançar a costa colombiana, passou dez dias à deriva numa balsa salva-vidas. O governo do ditador Gustavo Rojas Pinilla (1953-1957), que menos de um ano antes metralhara dez estudantes durante manifestações pacíficas, apresentou o marinheiro como herói e escondeu as causas do acidente: excesso de peso por contrabando (GILARD, 1982, p. 57). Passado um tempo depois da proibição da marinha colombiana ao marinheiro de falar à imprensa, de tornar-se uma celebridade e fazer alguns comerciais de relógios e sapatos, o sobrevivente foi à redação de El Espectador contar sua versão do naufrágio. García Márquez decidiu entrevistá-lo em 20 sessões, cada uma com seis horas de duração (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p.9). Para Vargas Llosa (1971), a série de reportagens compostas por 14 textos publicados no El Espectador, e que resultou no livro Relato de un náufrago, publicado em 1970, apresentou para o público um relato “verosímil y conmovedor, sin ser nunca patético ni demagógico, por la eficacia del lenguaje, que aunque esencialmente informativo, tiene una limpieza y una seguridad” (VARGAS LLOSA, 1971, p. 40). Essa série de reportagens escrita a partir dos depoimentos de Velasco ao 18 jornalista rendeu um suplemento especial ao jornal no ano de 1955, foi publicado em forma de livro em 1970 e ocupou espaço de destaque na produção jornalística de García Márquez. Para Saldívar (1997), “Relato de un náufrago alcanzó el punto paradigmático: una magistral síntesis de periodismo y literatura, de investigación de la realidad y comunicación de la misma mediante cánones estéticos perdurables” (SALDÍVAR, 1997, p. 318). Entretanto, ao mesmo tempo em que esse trabalho promoveu notoriedade e reconhecimento a García Márquez, tornou público, apesar de não ter sido reconhecida como uma denúncia formal, que o destroier não cumpria às exigências de sobrevivência e transportava ilegalmente mercadoria no convés com o conhecimento da marinha colombiana, desagradando o ditador Rojas Pinilla, bastante adepto de ações antidemocráticas, em particular contra a imprensa (GILARD, 1982, p. 61). Apesar das especulações à época, acredita-se que, temendo represálias do governo, tanto ao repórter quanto à empresa, o jornal El Espectador decidiu enviar García Márquez à Europa como correspondente internacional. 19 Capítulo 2 – Discurso histórico e discurso literário: diálogos possíveis Levando-se em conta que a obra La aventura de Miguel Littín clandestino en Chile resulta do cruzamento de muitos gêneros – documentário, ata, entrevista, reportagem e romance –, e por considerar que há entre o discurso jornalístico e o historiográfico aproximações, porque ambos se baseiam em fatos, serão adotados, como referenciais teóricos, a obra Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura, escrita pelo historiador Hayden White (1994), em especial seu ensaio “O texto histórico como artefato literário”, assim como Literatura e história na América Latina, organizado por Ligia Chiappini e Flávio Wolf de Aguiar, principalmente o ensaio “Lógica das diferenças e política das semelhanças: da literatura que parece história ou antropologia e vice-versa”, do semiólogo e professor de literatura Walter Mignolo (1993). Para se realizar uma análise sociocrítica do corpus, o trabalho fundamenta-se em Marc Angenot (2010; 2015), mais especificamente em seu ensaio “¿Qué puede la literatura? Sociocrítica literaria y crítica del discurso social”. White (1994) inicia seu ensaio abordando as dificuldades de se obter uma história objetiva de uma disciplina erudita, devido, primeiramente, às diferentes linhas teóricas dos profissionais, o que acaba por tornar os discursos por vezes tendenciosos. A fim de se evitar arbitrariedades, o historiador propõe que seja imposto certo distanciamento, além de que se reflita acerca das seguintes questões: Qual é a estrutura de uma consciência peculiarmente histórica? Qual é o status epistemológico das explicações históricas, quando comparadas a outros tipos de explicações que poderiam ser oferecidos para esclarecer a matéria de que se ocupam comumente os historiadores? Quais são as formas possíveis de representação histórica e quais as suas bases? Que autoridade podem os relatos históricos reivindicar como contribuições a um conhecimento seguro da realidade geral e às ciências humanas em particular? (WHITE, 1994, p. 98, grifos do autor). Nos últimos vinte e cinco anos do século XX, muitos filósofos se debruçaram sobre essas questões. Segundo White (1994, p. 98), Há, porém, um problema que nem os filósofos nem os historiadores encararam com muita seriedade e ao qual os teóricos da literatura só têm 20 concedido uma atenção momentânea. Essa questão diz respeito ao status da narrativa histórica, considerada exclusivamente como um artefato verbal que pretende ser um modelo de estruturas e processos há muito decorridos e, portanto, não sujeitos a controles experimentais ou observacionais (WHITE, 1994, p. 98, grifo do autor). O historiador não diz, com isso, que historiadores e filósofos não se deram conta da “natureza essencialmente provisória e contingente das representações históricas”, tampouco “que os teóricos da literatura nunca estudaram a estrutura das narrativas históricas” (WHITE, 1994, p. 98, grifos do autor). O que White (1994, p. 98.) afirma é que [...] de um modo geral houve uma relutância em considerar as narrativas históricas como aquilo que elas manifestamente são: ficções verbais cujos conteúdos são tanto inventados quanto descobertos e cujas formas têm mais em comum com os seus equivalentes na literatura do que com os seus correspondentes nas ciências (WHITE, 1994, p. 98, grifos do autor). White (1994, p. 99) ressalta, ainda, que a fusão entre a consciência mítica e a histórica pode ofender alguns historiadores e perturbar aqueles teóricos literários que creem em “uma oposição radical da história à ficção ou do fato à fantasia”. Porém, salienta que o historiador deve ser avaliado pela veracidade do que diz, pela adequação verbal de seu modelo exterior, seja esse modelo composto por ações humanas do passado, seja de sua própria reflexão, enquanto historiador, acerca dessas ações. Baseando-se nos estudos de Herman Northrop Frye, White (1994, p. 99-100) afirma que: [...] a história (ou pelo menos a “história convencional”) pertence à categoria da “escrita discursiva”, de modo que, quando o elemento ficcional – ou a estrutura mítica do enredo – está presente nela de maneira óbvia, deixa de ser inteiramente história para tornar-se um gênero bastardo, produto de uma união profana, embora inatural, entre a história e a poesia (WHITE, 1994, p. 99-100, grifos do autor) Para que se alcance seu efeito explicativo, as histórias são construídas por meio de uma operação que White (1994, p.100) denomina de “urdidura de enredo” – “codificação dos fatos contidos na crônica em forma de componentes de tipos específicos de estruturas de enredo, precisamente da maneira como Frye sugeriu ser o caso das “ficções” em geral”. 21 De acordo com o historiador, filósofo e ensaísta britânico Robin George Collingwood, o historiador é um contador de histórias cuja sensibilidade histórica se manifesta na capacidade de compor, a partir de uma série de fatos não processados, ou seja, sem sentido, uma história plausível. Para tanto, Collingwood propunha que os historiadores deveriam lançar mão do que ele chamava “imaginação construtiva”, que seriam as possíveis formas que os diferentes tipos de situações humanas podem assumir, dados os testemunhos disponíveis e as propriedades formais (WHITE, 1994, p. 100). No entanto, os acontecimentos não constituem sozinhos uma história. White (1994, p.100) ressalta que Collingwood deixou de considerar que Os acontecimentos são convertidos em estória pela supressão ou subordinação de alguns deles e pelo realce de outros, por caracterização, repetição do motivo, variação do tom e do ponto de vista, estratégias descritivas alternativas e assim por diante – em suma, por todas as técnicas que normalmente se espera encontrar na urdidura do enredo de um romance ou de uma peça (WHITE, 1994, p. 100, grifo do autor). Nesse sentido, White (1994, p. 101) considera os acontecimentos históricos, enquanto elementos potenciais de uma história, como neutros. O que vai tornar uma história, de acordo com as categorias de Frye, trágica, cômica, romântica ou irônica, é a decisão do historiador ao ordenar a estrutura do enredo, a fim de tornar a história o mais inteligível possível. Segundo ele, “o importante é que a maioria das sequências históricas pode ser contada de inúmeras maneiras diferentes, de modo a fornecer interpretações diferentes daqueles eventos e a dotá-los de sentidos diferentes” (WHITE, 1994, p. 101). Então, como explicar tantas representações plausíveis para um mesmo conjunto substancial de eventos? Por meio da concepção dos fatos pelos historiadores e por seus respectivos públicos. A esse respeito, Collingwood constatou que uma tragédia jamais poderia ser explicada a quem já não estivesse familiarizado com situações consideradas tipicamente “trágicas” em determinada cultura, no caso em questão, a ocidental (WHITE, 1994, p. 101). Para White (1994, p. 102), “as situações históricas não são inerentemente trágicas, cômicas ou românticas”. Podem até ser, de fato, mas podem ser urdidas de outra forma. Segundo o autor, 22 Tudo o que o historiador necessita fazer para transformar uma situação trágica numa cômica é alterar o seu ponto de vista ou mudar o escopo de suas percepções. Em todo caso, só pensamos nas situações como trágicas ou cômicas porque tais conceitos fazem parte de nossa herança cultural em geral e literária em particular. O modo como uma determinada situação histórica deve ser configurada depende da sutileza com que o historiador harmoniza a estrutura específica de enredo com o conjunto de acontecimentos históricos aos quais deseja conferir um sentido particular. Trata-se essencialmente de uma operação literária, vale dizer, criadora de ficção. E chamá-la assim não deprecia de forma alguma o status das narrativas históricas como fornecedoras de um tipo de conhecimento (WHITE, 1994, p. 102, grifos do autor). O sentido de um conjunto de acontecimentos pode se dar de diferentes formas. Segundo White (1994, p. 102), uma dessas formas seria “subordinar os eventos às leis causais”, com o intuito de que pareçam assumir “efeitos de forças mecânicas”, tal como se dá, segundo o historiador, a explicação científica. Outra forma seria a de codificar um conjunto de acontecimentos “em função de categorias culturalmente fornecidas”, considerando conceitos enigmáticos, crenças e histórias populares. O intuito de se adotar tais codificações é, de acordo com o autor, “tornar familiar o não-familiar”, tal como, em geral, a historiografia se constitui, uma vez que os “dados” sempre são, num primeiro momento, estranhos ou exóticos, “simplesmente em virtude de estarem distantes de nós no tempo e de se originarem num modo de vida diferente do nosso” (WHITE, 1994, p. 102). O historiador, como membro de uma determinada cultura, no sentido de coletividade, partilha com seu público “noções gerais das formas que as situações humanas significativas devem assumir”, considerando as particularidades do grupo ao qual pertence (WHITE, 1994, p. 102). O leitor, no processo de acompanhar o relato desses eventos pelo historiador, chega pouco a pouco a compreender que a estória que está lendo é de um tipo, e não de outro: romance, tragédia, comédia, sátira, epopeia ou o que quer que seja. E, depois de perceber a classe ou tipo a que pertence a estória que está lendo, ele experimenta o efeito de ter os eventos da estória explicados para ele. A essa altura, ele não apenas acompanhou com êxito a estória; ele captou o seu ponto principal, entendeu-a. A estranheza, mistério ou exotismo original dos eventos se dispersa e eles assumem um aspecto familiar, não em seus detalhes, mas suas funções de elementos de um tipo familiar de configuração (WHITE, 1994, p. 103, grifos do autor). Quando os eventos históricos são transmitidos a partir de categorias conhecidas, como romance, tragédia, comédia, sátira, epopeia, eles se tornam significativos para o leitor. Assim, ainda segundo o historiador: 23 [...] os acontecimentos perdem seu caráter traumático ao serem removidos da estrutura de enredo em que ocupam um lugar predominante e inseridos em outra na qual tenham uma função subordinada ou simplesmente banal como elementos de uma vida partilhada com os demais seres humanos (WHITE, 1994 p. 104). No que tange à estrutura formal, White (1994, p. 105) define a narrativa histórica não só como “uma reprodução dos acontecimentos nela relatados, mas também um complexo de símbolos que nos fornece direções para encontrar um ícone da estrutura desses acontecimentos em nossa tradição literária” (WHITE, 1994, p. 105, grifos do autor). Para tanto, o autor recorre às distinções entre signo, símbolo e ícone desenvolvidas por Charles Sanders Pierce dentro de sua filosofia da linguagem, com o intuito de apoiar na compreensão do “que é fictício em todas as representações supostamente realistas do mundo e o que é realista em todas as representações manifestamente fictícias” (WHITE, 1994, p. 105). Valendo-se da noção de sistema de signos que Frye adota para a poesia ou para as filosofias da história, White (1994, p. 105) afirma que a narrativa histórica aponta simultaneamente para duas direções: para os acontecimentos descritos na narrativa e para o tipo de estória ou mythos que o historiador escolheu para servir como ícone da estrutura dos acontecimentos (WHITE, 1994, p. 105). O ícone a que White (1994, p. 105) se refere representa uma estrutura de enredo comum, presente na descrição dos eventos que compõem a narrativa histórica, com o intuito de aproximar do leitor os acontecimentos relatados, de forma a dotar de sentido aquilo que não lhe é familiar. A utilização desse recurso aproxima as narrativas históricas das literárias, quando as últimas buscam aproximar-se do real as suas representações. “Desta forma, numa longa e ilustre tradição crítica que tentou determinar o que é “real” e o que é “imaginado” no romance, a história serviu como um tipo de arquétipo do polo “realista” de representação” (WHITE, 1994, p. 105). Por outro lado, o historiador afirma que, para que se produza uma obra-prima da história, é preciso lançar mão de recursos literários em sua forma, no caso, a ficcionalidade. Porém, quem melhor aborda este tema é Walter Mignolo, do qual lança-se mão aqui de um de seus inúmeros trabalhos, o ensaio “Lógica das diferenças e política das semelhanças: da literatura que parece história ou antropologia, e vice- 24 versa”, em que aborda, ao contrário de White, ficção não como sinônimo de literatura, mas como “um conhecimento compartilhado e heterogêneo entre aqueles que produzem e interpretam os discursos” (MIGNOLO, 1993, p. 116). O ensaio de Mignolo tem início com um panorama cronológico em que pontua as diferentes concepções de história e literatura tidas ao longo do tempo. Na Grécia antiga, o conceito de “literatura” era desconhecido, assim, a diferença residia entre poesia e história, estabelecida por Aristóteles, em termos de imitação (mímesis) (MIGNOLO, 1993, p. 116-117). A diferença entre a poesia e a história, na tradição ocidental, residiu no conceito de imitação de ações humanas. A história, por sua vez, que em grego antigo (istoreo) significou fundamentalmente “informe de testemunhas oculares”, em latim foi traduzido como história e passou a ser concebida nos termos da definição ciceroniana (“testemunhas dos tempos, luz da memória, mestra da vida...”). Quando o conceito de “poesia”, empregado para designar o produto das atividades verbais baseadas no conceito de imitação, foi substituído pelo de “literatura”, produziu-se uma mudança paralela na noção de “estética”. [...] O conceito de “literatura” adquiriu, assim, um sentido restrito, caracterizado por expressões tais como “imitação”, “discurso escrito”, “beleza”, e fez parte de uma mudança mais ampla, na qual a noção de “arte” deixou de significar “atividades reguladas por um fim” [...], para passar a significar um tipo de atividades semióticas e os produtos dessas atividades (MIGNOLO, 1993, p. 117). À medida que o registro da literatura e da história foi evoluindo, a primeira passou a integrar o sistema das “artes”, enquanto a segunda, o sistema das “ciências”, “não como um saber enciclopédico acumulado e coerentemente organizado (concepção retórica), mas sim como um saber adquirido por meio do exame crítico da documentação ou da busca de “leis” do mundo humano (concepção científica da história)” (MIGNOLO, 1993, p. 117). Para analisar a história separada das demais ciências humanas, Mignolo (1993) alude aos estudos de Foucault, que “leva em conta tanto a transformação da concepção do acontecer e do devir (história), como a transformação dos marcos discursivos que a afetam enquanto discurso científico (historiografia)” (FOUCAULT, 1969, apud MIGNOLO, 1993, p. 118). Tais transformações refletiram em percursos distintos sobre a história e a historiografia: 1. a concepção do devir articulada, por exemplo, em Comte, em Hegel, em Marx e nos rastros que o pensamento de Darwin foi deixando nas ciências humanas; 2. as tensões entre a historiografia como arte e como ciência em fins do XIX (Menéndez y Pelayo, 1883; Benedetto Croce, 1919; Cian, 1896) e sua continuidade nas tensões entre a historiografia como ciência 25 explanativa – à maneira da literatura (White, 1978) (MIGNOLO, 1993, p. 118). Porém, antes de se aprofundar no ponto de tensão entre a historiografia e sua semelhança com a literatura, Mignolo (1993), partindo do pressuposto de que a história existe muito antes da concepção de ciências humanas e de que exerce função de memória, mito, forma de transmissão, exemplo, veículo de tradição, consciência crítica, procura inverter a perspectiva tradicional ocidental, que considera a “origem” da história com a “origem” da escritura alfabética (FOUCAULT, 1969, apud MIGNOLO, 1993, p. 118). O próprio conceito de istoreo, em grego, “informe de testemunhas oculares ou transmitido por testemunhas oculares”, não justifica a defesa de que a “origem” da história advém das civilizações com complexos sistemas de escrita. Segundo Mignolo (1993), a noção de que civilizações ágrafas são povos sem história é uma imposição ocidental, assim como em relação à “poesia” e à “literatura”. No entanto, para simplificar esta discussão, o autor deixa de considerar “o fato de que a “literatura” implica escritura alfabética, e que “literatura oral” é uma imposição ocidental sobre tipologias discursivas independentes delas” (MIGNOLO, 1993, p. 119). Ao retomar a distinção feita por Aristóteles entre “poesia” e “história”, que assumiu a primeira como sendo “imitação de ações humanas”, enquanto a segunda, “ações humanas ocorridas”, Mignolo (1993) ressalta que o filósofo grego não a fez tendo como base as convenções de veracidade e de ficcionalidade, que só se forjam possivelmente a partir do século XVIII. Aliás, salienta o semiólogo, ainda no século XVII encontra-se “ficção” como sinônimo de “mentira”. Porém, como se sabe, mentira “consiste em empregar a linguagem para fazer com que o interlocutor acredite que o enunciante se enquadra na convenção de veracidade, quando este sabe que não está” (MIGNOLO, 1993, p. 122). Ao passo que ficção, por sua vez, consiste no emprego de linguagem e propósito pré-estabelecidos entre os interlocutores, ou seja, há o conhecimento mútuo “das regras do jogo” (MIGNOLO, 1993, p. 122). Ao adotar convenção, Mignolo (1993) entende: Definição 1: convenção. Há uma convenção C numa comunidade Cm, sempre que todo membro M, de Cm, ao realizar a ação A, realize-a e espere que os outros membros de Cm, envolvidos em A, reajam de acordo com a convenção C, porque C é de conhecimento mútuo entre os membros de Cm para realizar A (MIGNOLO, 1993, p. 122). 26 No emprego da linguagem, adotada nos diferentes gêneros textuais, como proposto por Bakhtin (1992), “é possível pensar que tais distinções existem em diferentes culturas e que “ficção” é a maneira regional de conceituá-la no Ocidente” (MIGNOLO, 1993, p. 122-123). Nesse sentido, o semiólogo apresenta duas convenções essenciais aos conceitos de “literatura” e “história”, as de veracidade e de ficcionalidade, as quais define da seguinte forma: Definição 2: convenção de veracidade. A linguagem é empregada segundo a convenção de veracidade V, quando todo membro M, de uma comunidade linguística Cm, ao desempenhar uma ação linguística Al, espera que os outros membros de Cm, envolvidos em Al, reajam de acordo com V e a aceitem: primeiro, que o falante se compromete com o “dito” pelo discurso e que assume a instância de enunciação que o sustenta (por isso, o falante pode mentir ou estar exposto à desconfiança do ouvinte); e segundo, que o enunciante espera que seu discurso seja interpretado mediante uma relação “extencional” com os objetos, entidades e acontecimentos dos quais fala (por isso, o falante fica exposto ao erro). Definição 3: convenção de ficcionalidade. A linguagem é empregada segundo a convenção de ficcionalidade F, quando todo membro M, de uma comunidade linguística Cm, ao desempenhar uma ação linguística Al, espera que os outros membros de Cm, envolvidos em Al, reajam de acordo com F e a aceitem: primeiro, que o falante não se compromete com o “dito” pelo discurso (por isso, o falante não está exposto à mentira); e, segundo, não espera que seu discurso seja interpretado mediante uma relação “extencional” com os objetos, entidades e acontecimentos dos quais fala (por isso, o enunciante não está exposto ao erro) (MIGNOLO, 1993, p. 123). Mignolo (1993) sustenta a hipótese de que, tanto em literatura quanto em historiografia, emprega-se a linguagem (seja como enunciante, ouvinte ou leitor) conforme determinadas normas impostas pela comunidade literária ou historiográfica. Dessa maneira, pensar em literatura e ficção como sinônimos seria um erro, apesar de ter havido, sobretudo a partir do século XVII, uma tendência a considerar como literatura discursos e condutas linguísticas que se enquadravam na convenção de ficcionalidade (MIGNOLO, 1993, p. 123). Tanto esta lógica não é aplicável que muitas obras são tidas como literárias sem que se enquadrem na convenção de ficcionalidade, ou invoquem-na, como O Diário de Anne Frank, apenas para citar um exemplo. Entretanto, a norma, ao contrário da convenção, demanda um componente deontológico, pressupondo, assim, critérios mais rígidos que a determinem. Assim, a fim de enquadrar os discursos nas normas de uma e outra práticas discursivas, a comunidade historiográfica e literária exerce uma função de controle (FOUCAULT, 27 1973, apud Mignolo, 1993, p. 124). Definição 4: normas historiográficas e literárias. A linguagem é empregada de acordo com as normas historiográficas (NH), ou literárias (NL), sempre que todo membro de uma comunidade especializada (científica ou artística) CmE, ao realizar uma ação linguística, espere que os outros membros de CmE, assim como também todo membro da comunidade linguística Cm que conhece a língua e as normas, reaja de acordo com a NL ou a NH e aceite: que o escritor ou historiador opera dentro do contexto x de historiografia, ou y de literatura, ou se opõe a eles de uma maneira que é incompreensível, porque, ao opor-se, invoca-as (MIGNOLO, 1993, p. 124). Mignolo (1993) salienta que empregar a linguagem segundo as normas literárias não necessariamente enquadra o discurso na convenção de ficcionalidade. Para tanto, lança mão de dois exemplos: a autobiografia de um historiador, ou de uma pessoa que exerceu importantes cargos políticos, e a autobiografia de um pintor, ou de alguém dedicado à dança ou cinema. Segundo o semiólogo, o primeiro exemplo, poderia se enquadrar com maior “naturalidade” às normas historiográficas, enquanto o segundo, às literárias (Mignolo, 1993, p. 124). Vemos, assim, que a questão “literatura/história” não pode ser resolvida com critérios de homogeneidade, mas sim, que é necessário contemplar a heterogeneidade que outorga a mobilidade dos níveis cognitivo e pragmático, a variada relação entre convenções e normas (MIGNOLO, 1993, p. 124-125). Entretanto, percebe-se uma mobilidade das fronteiras entre história, literatura e antropologia, ou como White (1978, apud MIGNOLO, 1993, p. 127) postula, a política das semelhanças: “as similaridades entre a história e a literatura, por um lado, e a história e a ficção, por outro”. Conforme discutido no início deste capítulo, o relato historiográfico configura-se como “uma ficção verbal cujo conteúdo tem mais em comum com a literatura do que com as ciências” (1978, apud MIGNOLO, 1993, p. 127). A fim de tornar mais evidente como opera tal política das semelhanças, Mignolo (1993) traz como exemplo o “testemunho”, gênero híbrido produzido desde princípios de 1950 na América Latina. “Romance-testemunho”, “literatura-testemunho”, “discurso-testemunho”, são algumas das variadas expressões sintomáticas do difuso das fronteiras entre a ficção, a história, a antropologia e a literatura (ao menos) nesse conjunto ou família de textos. Há certas características que permitem agrupar 28 subconjuntos relativamente bem diferenciados; por exemplo, o caso dos relatos orais de uma pessoa iletrada ou que, apesar de letrada, não tem uma posição social para fazer com que seu relato chegue à imprensa ou circule como livro ou literatura (MIGNOLO, 1993, p. 128). Nesse sentido, Mignolo apresenta como exemplo Me Llamo Rigoberta Menchú y así me Nació la Conciencia, resultado “de uma conversa entre Rigoberta Menchú, mulher da comunidade maia-quichê, politicamente ativa na defesa dos direitos humanos, e Elizabeth Burgos-Debray, antropóloga venezuelana que reside (e já residia no momento da conversa, em 1980), em Paris há muitos anos” (MIGNOLO, 1993, p. 128). Diante das características dadas, este relato poderia pertencer a qual categoria: literatura, antropologia, história ou ficção? Segundo Mignolo (1993), remete a quase todas, exceto ficção, ainda que não seja nenhuma delas. Entretanto, fazem-se necessários considerar alguns aspectos vigentes na produção e interpretação deste discurso: 1. O relato oral que Menchú concede a Debray invoca a convenção de veracidade, uma vez que vai ao encontro do que estava e está comprometida Menchú, de dar voz aos membros de sua comunidade, de informar sobre a opressão que sofreram e sofrem, e de conseguir a adesão da audiência à sua causa (MIGNOLO, 1993, p. 129). De acordo com Mignolo (1993), ela emprega em seu relato estratégias de dramatização dos acontecimentos narrados a fim de atingir os efeitos desejados, sem fugir, no entanto, da convenção de veracidade. 2. A antropóloga, Burgos-Debray, por sua vez, seguindo uma tradição presente desde o início dos anos cinquenta entre os antropólogos na América Latina, compõe em primeira pessoa a partir dos relatos orais que lhes foram feitos (MIGNOLO, 1993, p. 130). 3. O relato oral concedido por Menchú a Burgos-Debray pode ser considerado um registro histórico, uma vez que remete ao passado e invoca a convenção de veracidade. Porém, devido ao fato de Menchú não pertencer à academia, não tendo, assim, propriamente autoridade para produzir registros históricos, suas recordações e seu passado precisam ser transmitidos a profissionais da área para que se torne de fato história (MIGNOLO, 1993, p. 130-131). Assim, a partir do relato escrito por Burgos-Debray, antropóloga, o relato oral de Menchú torna-se um registro histórico. Outro exemplo citado por Mignolo é o romance El Hablador, do escritor peruano Mário Vargas Llosa, que relaciona literatura, antropologia e ficção. A obra, publicada em 1987, é narrada por um narrador anônimo, que se encontra em Florença e de lá 29 conta diferentes capítulos de sua amizade com um estudante de etnologia nos tempos da universidade, Saul Zuratas, apelidado “Mascarita”. O que os aproxima é o interesse comum pela cultura Machiguenga, grupo étnico nômade composto que vive disperso pela selva amazônica peruana. O relato invoca como marcos discursivos a literatura e o romance. No entanto, ao contrário da expectativa de manter ligações com a convenção de ficcionalidade (ainda que isso não seja necessariamente uma regra), El Hablador acaba, por determinados momentos, rompendo com ela. Enquanto o romance moderno construiu-se sobre o pressuposto da ficcionalidade, a qual, entre outras coisas, permitiu distinguir o autor do narrador (Kayser, 1958; Martinez-Bonati, 1960, 1981; Mignolo, 1981), em El Hablador, essas fronteiras tendem a desaparecer e o narrador é uma instância independente do autor, ao mesmo tempo que são incluídos dados suficientes para que o leitor estabeleça correlações entre as características do narrador e a biografia do autor (MIGNOLO, 1993, p. 131). As fugas com a convenção de ficcionalidade, segundo Mignolo (1993), compreendem a “existência” de instâncias documentadas que antecedem a escrita do romance, como os Michiguengas, e a característica do romance como gênero discursivo capaz de imitar qualquer tipo de discurso imaginável (BAKHTIN, 1997, 371). Um dos discursos imitados por El Hablador é o discurso antropológico, daí que o romance estabeleça uma fronteira difusa entre literatura e antropologia, mas a partir da perspectiva oposta à apresentada no caso da literatura- testemunhos. A diferença fundamental parece residir nas convenções de ficcionalidade e de veracidade, e nas consequências discursivas que acarreta o fato de se apelar para uma ou outra. A imitação de tipos discursivos, por exemplo, implica a convenção de ficcionalidade, já que o discurso imitado é pronunciado por uma instância discursiva e por um papel social que não correspondem ao do autor da imitação. Na imitação suspende-se a relação de correferencialidade entre o papel social da pessoa que enuncia e a instância discursiva que cria, segundo o gênero e a situação na qual enuncia (MIGNOLO, 1981, apud MIGNOLO, 1993, p. 131-132). Entre Respiración Artificial (1980), de Ricardo Piglia; Perros del Paraíso (1983), de Abel Posse; El Arpa y la Sombra (1979), de Alejo Carpentier, e tantos outros, Mignolo (1993) destaca Yo, El Supremo, publicado em 1974 pelo paraguaio Augusto Roa Bastos, devido à semelhança com El Hablador no tocante “às convenções e normas invocadas e às fronteiras difusas entre a literatura e a história” (MIGNOLO, 1993, p. 132). Considerado um dos 100 melhores romances em castelhano pelo 30 periódico El Mundo3, foi publicado quando Roa ainda estava exilado em Buenos Aires e destaca-se por sua construção narrativa que mescla elementos históricos e fictícios. Narrado em primeira pessoa, a partir da perspectiva do protagonista “El Supremo”, como era conhecido o advogado, revolucionário e ditador da República do Paraguai, José Gaspar Rodríguez de Francia, que governou primeiro em triunvirato, em 1811, em consulado, a partir de 1813, e como magistratura unipessoal, de 1816 até sua morte, que se deu em 1840. Segundo Mignolo (1993), Yo, El Supremo foi difícil de ser classificado pelos críticos, que ficavam se perguntando se estariam diante de um romance, de uma autobiografia ou de uma obra de história. Porém, o semiólogo destaca “que, ao identificar um relato como romance, automaticamente inscrevemo-lo na literatura” (MIGNOLO, 1993, p. 132). Para além disso, o contexto e os marcos discursivos da obra descartam a possibilidade de configurar entre história ou autobiografia, restando como possibilidades literatura e romance. Assim, como ressalta Mignolo (1993), a exemplo de El Hablador, Yo, El Supremo implica a convenção de ficcionalidade e a imitação, mas, ao contrário do primeiro, que imita o discurso antropológico, o segundo imita (ou ficcionaliza) o discurso historiográfico, mas não é história. Por fim, Mignolo (1993) distingue a “verdade na ficção”. É preciso salientar que ficcional não implica a mentira. O enquadramento na convenção de ficcionalidade apresenta as regras do jogo de forma aberta e, portanto, isenta das condições impostas pela convenção de veracidade. No entanto, quando no romance (que implica a convenção de ficcionalidade) imita-se o discurso antropológico ou historiográfico (que implica a convenção de veracidade), estamos diante de um duplo discurso: o ficcionalmente verdadeiro do autor (porque, ao enquadrar-se na convenção de ficcionalidade, não mente) e o verdadeiramente ficcional do discurso historiográfico ou antropológico imitado (porque, ao invocar a convenção de veracidade, está exposto ao erro e há a possibilidade da mentira) (Mignolo, 1981; Pittarello, 1986). Dessa maneira, a questão da verdade na ficção se apresenta quando se imita um discurso cuja própria natureza implica o enquadramento na convenção de veracidade (MIGNOLO, 1993, p. 132-133, grifos do autor). A partir das questões apresentadas, Mignolo (1993) propõe, ao final, três conclusões acerca da política da semelhança. 3 Informações disponíveis em https://www.elmundo.es/elmundolibro/2001/01/13/anticuario/979503106.html. Acesso em: 06 jun. 2019. 31 1. Resulta das teorias que o semiólogo expõe de Hayden White sobre a política da semelhança entre a literatura, a ficção e a história (sobre a qual detalhamos amplamente no início deste capítulo), resultando num projeto em oposição às normas historiográficas como pertencentes às “ciências duras”. 2. Refere-se aos discursos- testemunho, que fazem uso do mesmo recurso presente nas formas literárias consideradas “cultas”, aquelas derivadas das formas discursivas impostas pelos processos colonizadores, relacionando a literatura e a história, porém, como forma de se oporem a elas, na medida em que dão voz aos personagens que a colonização silenciou. 3. Trata do romance contemporâneo e a crítica que este faz ao discurso historiográfico e antropológico ao imitá-lo, no tocante à forma de representação da história ou de comunidades marginalizadas, como busca de correção ou de enfrentamento (MIGNOLO, 1993, p. 133). Em suma, o que Mignolo (1993) propõe é uma reflexão acerca de normas e convenções que guiem o emprego na linguagem, distinguindo entre seus tipos (romance, autobiografia, relato-testemunho, relato histórico, informe antropológico, etc.) e configurações discursivas (literatura, história, antropologia). Ademais, suas distinções entre convenções e normas e entre tipos e configurações discursivas visam a contribuir com a análise e interpretação de obras fronteiriças entre literatura e história, além das motivações daqueles que se dedicam a esse desafio. Concentra-se nessa perspectiva dos “desvios” estilísticos também a sociocrítica literária. A partir das considerações de Marc Angenot (2015), em seu ensaio “¿Qué puede la literatura? Sociocrítica literaria y crítica del discurso social”, depreende-se a interdependência entre a forma do texto, o texto em si e o discurso social, que, de acordo com o crítico literário, não se dá como uma mera retransmissão inalterada do caráter social do discurso em circulação, uma vez que a forma textual não é estéril (ANGENOT, 2015, p. 266). Cabe destacar que Angenot assume como discurso social: Discurso social: tudo o que se diz e se escreve em um estado de sociedade, tudo o que se imprime, tudo o que se fala publicamente ou se representa hoje nos meios eletrônicos. Tudo o que se narra e se argumenta, se se considera que narrar e argumentar dois grandes modos de se colocar em discurso (ANGENOT, 2010, p. 21)4. 4 Tradução desta autora. Texto original: “El discurso social: todo lo que se dice y se escribe en un estado de sociedad, todo lo que se imprime, todo lo que se habla públicamente o se representa hoy en los medios electrónicos.Todo lo que se narra y argumenta, si se considera que narrar y argumentarson los dos grandes modos de puesta en discurso”. 32 Desenvolvendo-se a partir dos pressupostos teóricos formulados por Claude Duchet, a sociocrítica, como praticada na escola de Montreal, liderada por Régine Robin e Marc Angenot, compreende o texto literário “como o espaço de intercessão e de transformação de diferentes fragmentos discursivos”5. Sob esta perspectiva, a literatura é também aquilo que se omite, assim, os não ditos passam a ser significativos. Nesse sentido, o foco de investigação da sociocrítica de Duchet é o mise- en-texte, que seria a materialização do discurso social em forma de texto (ANGENOT, 2015, p. 266). Esta perspectiva tem buscado pensar a sociogênese do texto como dispositivo de absorção seletiva de fragmentos do discurso social, tendo como produto o que Angenot (2015) denomina de “trabalho do texto”, que compreende um fora e um dentro. “Lo que el texto supone, en él y antes que él, para ser recibido por su lector como el “ya-ahí” del mundo en el que se recorta el espacio novelesco…” (DUCHET, 316, apud ANGENOT, 2015, p. 266). Ou seja, o produto de um texto compõe-se de sua forma, o que ele carrega em si (seu interior) e o seu exterior (o discurso social), à semelhança de um palimpsesto, já abundantemente raspado e reescrito. Por una parte, el texto literario está inmerso en el discurso social, las condiciones mismas de legibilidad jamás le son inmanentes –y esto lo priva aparentemente de autonomía–. Sin embargo, la atención sociocrítica está consagrada a poner de relieve lo que constituye la particularidad del texto como tal, a poner en evidencia los procedimientos de transformación del discurso en texto. Extraído del discurso social, producido según “códigos” sociales, el texto puede ciertamente vehiculizar la opinión, lo aceptable, los prejuicios, pero puede también transgredir, desplazar, confrontar irónicamente, exceder la aceptabilidad establecida. En el primer caso, el texto se asegura una legibilidad inmediata, pero no es sino un componente de la producción de opinión (ANGENOT, 2015, p. 266). Angenot (2015) aponta para o fato de o texto literário estar imerso em um discurso social e carregar consigo fragmentos dele, o que o impede de ter sua legibilidade autônoma. Assim, destaca o crítico, cabe à sociocrítica destacar de que forma se constitui a particularidade do texto, com especial atenção aos 5 Zilá Bernd: s.v. “Sociocrítica”, E-Dicionário de Termos Literários (EDTL), coord. de Carlos Ceia, ISBN: 989-20-0088-9, , consultado em 28-03-2019. 33 procedimentos utilizados para transformar o discurso em texto (ANGENOT, 2015, p. 266). Segundo ele, apesar de extraído do discurso social e ser produzido conforme determinados “códigos” sociais, o texto pode ir ao encontro ou não das opiniões vigentes. “En cambio, los textos que alteran y desplazan la opinión hegemónica son los que registran ambigüedad – lo que los vuelve difícilmente legibles en lo inmediato pero les asegura “otra” legibilidad potencia, más o menos durable” (ANGENOT, 2015, p. 266-267). Nesse sentido, a sociocrítica, inspirando-se nos estudos concebidos por Mikhail Bakhtin e seu Círculo, pretende ir além nessas contínuas recuperações de que são formados os textos. Assim, para Angenot (2015), a literatura é um conhecimento de segundo grau, que chega depois a um universo social repleto de palavras, debates, regras linguísticas e retóricas, ideologias e doutrinas que têm a pretensão de servir para algo, de dar a conhecer e a guiar os seres, conferindo sentido, significado e direção aos seus atos no mundo. El ser de la literatura, entonces, está en el trabajo que realiza sobre el discurso social y no en ofrecer a su manera –además del periodismo, la filosofía, la propaganda, las doctrinas y la ciencia– procesos verbales sobre el “mundo” o sobre el “alma”. Tenemos que concebir a la literatura como un suplemento del discurso social, su momento es un después, lo que puede hacer de ella, en efecto, un aguafiestas (ANGENOT, 2015, p. 267, grifos do autor). Diante desta tese, Angenot (2015) afasta qualquer relação atemporal e essencialista que se atribua à produção estética uma função permanente e de eficácia, que a torne peça dos discursos de esquematização assertiva do mundo, identidade e poder. Para que alguns textos possam ser declarados “literários”, segundo os critérios apresentados por Angenot (2015), é necessário que várias características sejam levadas em conta, mas, principalmente, a relação entre o discurso social ali propagado, o discurso da hegemonia dominante, sua divisão de trabalho, sua topografia e seus dispositivos intertextuais específicos. “Dicho de otro modo, el efecto “literatura” sólo puede ser juzgado y medido en relación con el sistema discursivo global en el cual se engendra” (ANGENOT, 2015, p. 267). Sendo assim, as particularidades e as possibilidades da literatura estão diretamente relacionadas à conjuntura sociodiscursiva. Ou seja, a repercussão, o alcance e a sedução de uma obra literária só é possível dentro de uma determinada 34 realidade sociodiscursiva. La literatura sólo puede hacer algo y conocer manipulando el discurso social en un momento dado bajo la presión de lo que las imposiciones, las disgregaciones, también las resistencias del discurso social vuelven posible, por vía directa e indirecta; y el literato corre el riesgo –en todo momento y como cualquier hijo de vecino– de dejarse llevar por señuelos sugestivos, por simulacros de lo inaudito que comúnmente saturan el mercado cultural moderno (ANGENOT, 2015, p. 267). A literatura, a fim de se estabelecer como tal e envolver o público, manipula o discurso social dentro das possibilidades do aceitável em determinada conjuntura, incorrendo, como é próprio dela, em resistências diretas ou indiretas às ideias vigentes. Entretanto, alerta Angenot (2015), alguns escritores têm se deixado levar por “iscas sugestivas” e “simulacros do inédito”, a fim de conquistarem o mercado, sem, no entanto, constituírem fórmulas (re)novadoras. Diante das ideias expostas, Angenot (2015) propõe o estudo do fazer literário a partir de uma teoria e uma crítica histórica do discurso social. Para o crítico, os discursos sociais não estão justapostos uns nos outros em “gêneros” independentes, nem são aleatórios ou específicos de situações de comunicação, mas um sistema complexo interativo, em que operam fortes tendências hegemônicas e estabelecem- se trocas (ANGENOT, 2015, p. 269). Es al discurso social en la complejidad cacofónica de sus lenguajes, de sus esquemas, cognitivos, de sus migraciones temáticas, que primero se aplican las metodologías de los estudios literarios, –“despojadas” de lo que tienen de fetichista y de formalista– y no es sino en el discurso social global que pueden reconciliarse –con un cierto grado de objetivación y capacidad de demostración– las tres etapas tradicionales de la descripción, la interpretación y la evaluación de los textos, de las obras, de los géneros y los discursos que coexisten e interfieren en una determinada cultura (ANGENOT, 2015, p. 269). Segundo Angenot (2015), o texto literário resulta do registro do discurso social e de seu trabalho. Entretanto, este trabalho é, de acordo com o crítico, sempre problemático, pois envolve muitas estratégias, divergentes em uma mesma sociedade quanto a seus meios e funções (ANGENOT, 2015, p. 269). Além disso, ressalta Angenot (2015), o discurso social manifesta-se como um dispositivo complexo, repleto de enigmas, dilemas e questionamentos. Para o crítico literário (2015), não é possível abordar o domínio das Letras e as 35 funções interdiscursivas de um texto sem uma teoria e uma prática de análise do discurso. A defesa a tal proposta vem como resposta à pergunta que intitula o ensaio: “¿Qué puede la literatura?”. El trabajo de la literatura como práctica que viene a reconducir y a reproducir, a desarticular y recomponer –aunque desconectados de su razón de ser funcional– los discursos sociales, puede ser, en efecto, en una enumeración somera, de naturaleza muy diversa en sus objetivos y sus resultados: contribuir a la producción social de lo sublime, establecer o fortalecer un aparato de conmemoración y de legitimación de edificación y de enseñanza (en la medida en que lo que los modernos denominan literatura conserva cuasi–funciones remanentes, legados de sus usos antiguos) o bien práctica lúdica e irónica, organización polifónica, empresa deliberada de opacamiento, neología en el sentido radical del término, es decir, tentativa de puesta en lenguaje de los indecibles sociales, etc. (ANGENOT, 2015, p. 270, grifos do autor). Como uma prática discursiva que vem depois de todas as outras, a literatura é o discurso que, presente no mundo, toma e trabalha as palavras, depois de que outros discursos as tenham dito, “sobre todo los discursos de certeza e identidad; ella es quien parece tener el poder de escucharlos, de repercutir sus ecos y de plantearles cuestionamientos al confrontarlos” (ANGENOT, 2015, p. 271). Justamente pelo fato de chegar depois, a literatura acaba por perder sua funcionalidade prática. Assim, Angenot (2015) define o romance moderno como um trabalho de colagem, composto por efeitos dialógicos, ambiguidades semânticas, polissemia e polifonia, com o intuito de refletir ou registrar justamente a cacofonia do discurso social global, formada por vozes discordantes, legitimidades indizíveis, temáticas distintas e concorrentes. Esses recursos utilizados pela literatura acabam por resultar nos traços que compõe o discurso social e marcam a sociedade e suas “vozes”, na medida em que “se esfuerzan por conocer el mundo y fijarlo en lenguajes, argumentos y relatos” (ANGENOT, 2015, p. 271). Angenot (2015) distingue textos literários de não literários conforme sua inteligibilidade do mundo, ou seja, daquilo que é conhecido como real para uma determinada sociedade. No entanto, o crítico ressalta que a literatura é “polissêmica”, que não alcança uma conclusão ou propõe uma advertência, mas sim reflete fragmentos do discurso social de forma confusa e enigmática, devido a obscuridade que o compõe (ANGENOT, 2015, p. 272). As grandes ideologias, que integra o que Angenot (2015) denomina de discurso 36 social total, são colagens heterogêneas, que não apresentam nem “lógica nem rigor próprios”, e constituem-se de produções setoriais repletas de enfrentamentos, agitações e antagonismos. Segundo o crítico, a literatura moderna surge justamente com o intuito de desnudar tais tensões, não com a intensão de expor o falso ou com a pretensão de provar algo, mas para propor uma reflexão frente à multiplicidade de sentidos, inconsequências e contradições, sem, no entanto, fazê-lo com o propósito de expor uma crítica (ANGENOT, 2015, p. 274). Angenot (2015) ainda relata que, ao longo dos séculos XIX e XX, a literatura, tanto como massa de textos quanto como campo de produção sociologicamente circunscrito e objetivo, reconduziu esteticamente os tópicos dominantes, reiterando o já dito e propagado na ordem social, mas sob uma nova roupagem, aparentando criatividade e originalidade. Dessa forma, confirma a afirmação do crítico de a literatura, em certo grau, ser parte integrante da ordem hegemônica. Para Angenot (2015): La innovación cultural es manifiesta e inmediatamente reconocida porque es ilusoria, porque asombra todo siendo muy inteligible, es decir, preparada sutilmente en el mercado de las ideas y de la cultura. O bien la innovación es torpe y parcial –torpe: entiendo que va tanteando para franquearse el camino en la red socio-discursiva– para dar el tono de otro lenguaje que lo heterodoxo y lo heterónomo no se formulan sino al precio de mucha ceguera ante el potencial de la nueva lógica y apoyándose muy frecuentemente sobre preconceptos, normas admitidas del ya-ahí (ANGENOT, 2015, p. 275, grifos do autor). Recorrendo às análises de Claude Duchet, Angenot (2015) afirma que o texto literário não é autônomo e soberano, pois está sujeito às pressões do discurso hegemônico no qual está imerso. Dessa maneira, o crítico propõe que a crítica literária mostre de que forma a textualização literária está “a serviço do discurso social” (ANGENOT, 2015, p. 275). De sus mitos, de sus preconceptos, de sus lenguajes y de sus axiologías, y además que por una tarea ciega que el texto disuelve o ironiza, subsisten numerosos pasajes donde el texto más nuevo reconduce la doxa, vuelve a tejer las tramas de evidencia aparentes y juega con esas “paradojas” que se mueven como lugares comunes. A una buena parte de los fragmentos de intrepidez y valentía de las obras modernas se les podría aplicar el verso de Corbière “Veía demasiado, y ver es una ceguera” (ANGENOT, 2015, p. 275, grifos do autor). 37 Doxa, termo ao qual o autor se refere, designa opinião dominante, senso comum. O trecho revela que, apesar desse eterno recontar, do trazer depois, do dizer o já dito, a literatura não é óbvia, uma vez que acaba por representar um “espelho deformante” (ANGENOT, 2015, p. 276). Por fim, Angenot (2015) conclui seu ensaio afirmando que a sociocrítica, a partir do desenvolvimento de sua reflexão teórica, tem contribuído para afastar o paradigma sociológico simplista, segundo o qual o social é uma imposição simbólica aparte, em especial literariamente, que dispensa consideração objetiva de análise. Para o crítico, o social, como objeto de reflexão sociológica e historiográfica, é possível de “instituir”, de ser “novo”, “criativo”, “inovador”, na medida em que emerge e resiste. 38 Capítulo 3 – Jornalismo literário: o encontro entre a literatura e o jornalismo Marc Angenot (2015) define o fazer literário em sintonia com o discurso social, refletindo como os discursos, que são imanentes à sociedade, são incorporados pela literatura em um momento posterior à sua enunciação. Nesse sentido, cabe pensar sobre os mecanismos de construção dos discursos sociais presentes no livro- reportagem, como Gabriel García Márquez define ser La aventura de Miguel Littín clandestino en Chile. O livro-reportagem, a sua maneira, também é uma extensão da notícia, publicado após o evento noticiado; esse intervalo permite uma elaboração discursiva mais ampla e reflexiva. Para tanto, recorre-se a Edvaldo Pereira Lima (2009; 2010), referência em jornalismo literário no Brasil, mais especificamente a suas obras Páginas ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura e Jornalismo literário para iniciantes. Na escrita, o que melhor define o encontro entre literatura e jornalismo é, segundo Lima (2009; 2010), o jornalismo literário, que, utilizando-se de recursos literários, representa um jornalismo com mais profundidade, tanto em termos informativos quanto humanos. A partir de tal combinação, o conteúdo transcende, envolvendo os leitores a partir da reflexão sobre o mundo e a relação dos seres humanos com ele, de modo a ampliar o espectro de significados aparentes a partir da mera reprodução dos fatos. As origens desse modelo jornalístico reportam ao século XVIII, com o escritor e jornalista inglês Daniel Dafoe, mais conhecido por sua obra de ficção Robinson Crusoé, publicada em 1719. Entretanto, foi com a publicação, em 1722, de Um diário do ano da Peste que Dafoe abre os precedentes do que viria a ser chamado de jornalismo literário. Esta obra consiste em uma reportagem acerca da epidemia de peste bubônica que dizimou cerca de 100 mil vidas em Londres, no ano de 1665. O pioneirismo do escritor e jornalista inglês deve-se à mescla entre reportagem e ficção, por meio do que Lima (2010) chama de cena, em que o autor, ao invés de contar indiretamente o que aconteceu, mostra, colocando o leitor dentro do acontecimento (LIMA, 2010, p. 16). A ficção fica por conta da criação de personagens, uma vez que Dafoe ainda era criança quando dos fatos retratados no livro. Além disso, o pioneirismo de Dafoe inclui o fato de que à época da produção 39 de Um diário do ano da Peste imperava o movimento literário romântico, cujos textos eram repletos de subjetivismo e os personagens idealizados. A transição para o realismo se daria um pouco mais tarde, no século XIX, com personagens comuns que vivem problemas típicos do cotidiano da época em suas determinadas localidades, na maioria das vezes, tratavam-se de obras que denunciavam as mazelas reais do período. O francês Gustave Flaubert (1821-1880) inaugura o movimento em 1857, com a publicação de Madame Bovary, obra que tem como protagonista a jovem iludida Emma. O que se destaca nas obras literárias, ao contrário do que seria considerado anos mais tarde jornalismo literário, é a verossimilhança, que consiste na busca pela representação da realidade objetiva, sem, no entanto, sê-la de fato. Ao passo que o jornalismo literário, segundo Lima (2010), é “prisioneiro da realidade”, podendo trabalhar somente com elementos concretos. Escrever com estilo sobre a vida real é uma arte. Um tipo diferente de arte, exigindo muita habilidade. Por isso a necessidade de dominar soluções narrativas que dão certo, nascidas no próprio jornalismo ou importadas da literatura (LIMA, 2010, p. 20). Uma técnica desenvolvida por ficcionistas e que posteriormente seria assimilada pelos adeptos do jornalismo literário é, de acordo com Lima (2010), chamada símbolos do status de vida. Proveniente da escola literária conhecida como realismo social, este recurso narrativo consiste em produzir histórias ficcionais inspirando-se em situações sociais reais (LIMA, 2010, p. 21). Entre os adeptos desse procedimento estão, na Europa, o inglês Charles Dickens (1812-1870) e o francês Honoré de Balzac (1799-1850). Em seu livro Oliver Twist, lançado em três volumes entre 1937 e 1939, Dickens retrata as duras condições de vida de gente comum, como as crianças trabalhadoras da classe operária inglesa, a exemplo do personagem principal que dá nome à obra. Balzac, por sua vez, destacou-se por sua obra ficcional, principalmente seu conjunto intitulado Comédia Humana, mas também se dedicou à não ficção, com destaque para Os Jornalistas, escrito em 1843, composto por dois textos – Monografia da imprensa parisiense e Os salões literário – em que critica de forma contundente e impetuosa a imprensa do século XIX. 40 Nos Estados Unidos, destaca-se Mark Twain, autor do clássico de ficção Aventuras de Tom Sawyer, publicado em 1876. Após a guerra civil estadunidense, Twain viaja para Marrocos, França, Itália, Grécia, Rússia, além de lugares bíblicos, produzindo uma série de relatos para jornais de Nova York e São Francisco, publicados em 1869 em livro intitulado The Innocents Abroad. Segundo Lima (2010, p. 119), seu trabalho de não ficção influenciou novas gerações de escritores, principalmente na origem de produções jornalístico-literárias de viagem nas primeiras décadas do século XX. É importante salientar que o jornalismo, até meados do século XIX, não se configurava como um meio de comunicação de massa, uma vez que apenas as elites e os intelectuais liam jornais. A sociedade passava por profundas transformações, na medida em que as cidades cresciam, o capitalismo se expandia e estabelecia-se como sistema econômico dominante. Intensificava-se o desenvolvimento industrial, assim como a produção e o consumo de bens e a urbanização. Dentro desse contexto, na Europa, mais especificamente na Inglaterra e na França, e nos Estados Unidos, o jornalismo ganha novos contornos e os empresários de comunicação deparam-se com a oportunidade de expandir seus negócios. Para tanto, necessitava-se ampliar o número de leitores, de forma não só a atender às elites, mas também às camadas populares (LIMA, 2010, p. 49). Diante disso, o produto deveria se adequar às especificidades desse novo público, tendo de ser vendido a um preço significativamente menor e escrito com uma linguagem mais simples, considerando o baixo nível de escolaridade. Como consequência, a fim de atender às demandas cada vez maiores por informações e diante da impossibilidade de jornais e revistas darem conta sozinhos de cobrirem todos os acontecimentos, surgiram as agências de notícias. Estas, com o desafio de oferecer informações a um público tão diverso, também tiveram de adotar uma linguagem mais simples (LIMA, 2010, p. 50). Outro fato que contribuiu para a simplificação dos textos jornalísticos foram as coberturas de guerra. Os jornais enviavam seus correspondentes in loco com o intuito de relatarem os acontecimentos, que deveriam ser transmitidos com rapidez às redações, para então serem noticiados. Valeram-se então do primeiro sistema de telecomunicação moderno, o 41 telégrafo. Consistia na transmissão elétrica de mensagens codificadas através de uma rede interligada por postes e fios suspensos. O repórter escrevia seu relato e esse, traduzido para o código Morse, corria rapidamente por impulsos elétricos centenas ou milhares de quilômetros, até chegar às mãos dos editores que, nos jornais, convertiam o material em reportagem publicada (LIMA, 2010, p. 51). O custo para a transmissão de conteúdos por telégrafo era alto, fazendo com que os textos fossem bastante curtos. Assim, eram transmitidas apenas as informações mais importantes acerca do acontecimento, que compreendiam ao o quê, quem, onde, quando e por quê. “Nasceu assim o que passou a ser chamado de lide. Vem da palavra lead. Significa liderar. E quem ou o que lidera vai na frente” (LIMA, 2010, p. 53). O lide resolveu um problema dos correspondentes de guerra, ganhando popularidade nos meios jornalísticos. Depois, caiu como luva na graça das agências de notícias e dos primeiros jornais de grandes tiragens nos grandes centros urbanos norte-americanos que precisavam conquistar a massa de novos habitantes de escolaridade precária e inglês deficiente. Passou a ser o mantra, o suprassumo da bandeira jornalística pelo texto simplificado e direto. Tornou-se símbolo desse ideal, espalhando-se pelo mundo. Foi uma alavanca visível do modelo de jornalismo que passou a dominar as redações, ponta de lança da escola de prática do sumário” (LIMA, 2010, p. 53, grifos do autor). Para Lima (2010), sumário consiste numa prática do jornalismo convencional de resumir as principais informações, a fim de contar, de forma simplificada, indireta e “quase sempre impessoal” um acontecimento (LIMA, 2010, p. 14). Entretanto, alguns jornalistas deram-se conta de que este modelo de jornalismo não era capaz de transmitir as emoções e as experiências pelas quais passavam nas trincheiras. Apesar de o lide concentrar as principais informações, o que se passa numa guerra, por exemplo, ultrapassa o mero relato de fatos. Tudo bem que o lide concentra os fatos principais, transmite informação. Mas uma guerra não é só fatos frios, objetivos, nem só números. Uma guerra também é carnificina, caos, terror, loucura, dor, morte, destruição, muito sofrimento. Guerra é uma coisa cruel, nojenta. Como repórter, se passo adiante apenas os fatos secos, estou de certo modo traindo a verdade contextual das coisas, entregando ao meu leitor um retrato muito pobre da realidade. Estou reduzindo coisas complexas a uma simplificação demasiadamente pobre. Por conseguinte, comunico, de fato, apenas fragmentos do que presenciei (LIMA, 2010, p. 53-54). Assim, para transmitir ao público parte das emoções vividas na realidade de 42 uma guerra, lançando-o para a experiência em relato, alguns jornalistas “rebeldes do modelo convencional” começaram a se aventurar nas possibilidades que o texto literário é capaz de oferecer (LIMA, 2010, p. 54). Entre eles está o jornalista irlandês William Howard Russel, considerado o primeiro correspondente de guerra da história da imprensa e um dos primeiros a levar a sua vivência a um outro nível de relato. Entre 1853 e 1856, Russel cobriu a guerra da Criméia para o jornal inglês The Times e foi enviado pelo mesmo veículo como correspondente à Guerra Civil dos Estados Unidos (1861-1865). Dedicou 13 meses aos Estados Unidos em conflito, circulando igualmente tanto pelos gabinetes do poder em Washington quanto pelos cômodos de escravos nas fazendas do sul, ouvindo tanto os generais quanto os soldados rasos. Não se contentava, pois, com o discurso oficial. Queria mostrar os diversos lados de uma mesma questão (LIMA, 2010, p. 55). Para tanto, Howard Russel adotou o diário como formato narrativo a seu texto, sendo publicado em 1863 sob o título My diary North and South, com o intuito de colocar de maneira intimista “o leitor no centro da ação” (LIMA, 2010, p. 55). Além dele, outros jornalistas recorreram aos recursos literários para transmitir suas experiências de guerra. Um deles foi George W. Smalley, correspondente do jornal The New York Tribune e o primeiro a narrar a Batalha de Antietam, também conhecida como Batalha de Shapsburg, primeiro confronto armado da guerra civil norte- americana, ocorrido em 17 de setembro de 1862. “Disfarçado de ajudante de ordem de um dos generais, o repórter driblou uma condição da época – os correspondentes eram proibidos de acompanhar as tropas até as linhas de frente” (LIMA, 2010, p. 56). Entretanto, a maioria dos correspondentes de guerra não tinha o privilégio de cobrir o conflito na linha de frente. Dessa forma, grande parte deles saía à procura de informações, recorrendo, muitas vezes, a depoimentos de testemunhas, a fim de reconstituir os acontecimentos. Como exemplo, pode-se destacar o poeta Walt Withman, que serviu como voluntário em um hospital de Washington durante a guerra civil, o que lhe possibilitou reconstituir uma batalha a partir do relato de soldados feridos. E então os campos de feridos – Oh, Céus, que cena é esta? –, é isso de fato a humanidade –, esses açougueiros cambaleantes? Há vários deles. Lá estão, deitados, numa área aberta na mata, de 200 a 300 infelizes – os 43 gemidos e os gritos –, o cheiro de sangue misturado com o perfume fresco da noite, a grama, as árvores, o açougue! Suas mães, suas irmãs não podem vê-los – não imaginam, e nunca imaginaram essas coisas. Um homem é atingido por uma granada no braço e na perna – ambos amputados –, ali estão jogados os membros rejeitados. Alguns têm as pernas decepadas – outros, balas no peito –, alguns, feridas horrendas no rosto e na cabeça, todos mutilados, doentes, partidos, destripados (WHITMAN, apud LIMA, 2010, p. 57). A ausência do repórter quando os acontecimentos se sucedem não o impede de reconstruí-los em um momento posterior. No entanto, deve fazê-lo “com critério e rigor, pesquisando, ouvindo, cruzando informações” (LIMA, 2010, p. 59). Lima (2010) salienta que a atenção do jornalista aos fatos e às informações essenciais não pode, contudo, limitar-se ao factual, pois isto prejudicaria uma perspectiva mais ampla acerca do evento. Deste modo, o autor ressalta a necessidade de o profissional de jornalismo “cultivar tanto um olhar local – enxergar aquilo que é particular na história que tem para contar –, mergulhando fundo no assunto, quanto se afastar depois, para ver a mesma situação sob um foco mais amplo” (LIMA, 2010, p. 59). Esta seria, segundo o autor, a arte do jornalismo literário, a de “evidenciar relações”. A experiência jornalística fomentada pela guerra civil norte-americana despertou um novo olhar sobre o texto, tanto no público leitor quanto nos editores e proprietários de jornais. Esta nova forma assemelhava-se ao ato de contar histórias, adotando recursos literários para a construção de narrativas factuais: “retratos humanos e sociais da complexa sociedade moderna que se formava na América do Norte” (LIMA, 2010, p. 60). O jornalismo literário, enquanto estilo, tornou-se mais regular e volumoso ao longo da década de 1890, em grande parte pelo aumento da migração de escritores de ficção às redações de jornal, prática bastante comum no mundo todo ao longo do século XIX. De fato, o encontro entre literatura e jornalismo confunde-se até os primeiros anos do século XX, seja como meio de subsistência dos próprios escritores-jornalistas, seja como meio de se desenvolverem enquanto profissionais. Nesse sentido, cabe destaque a diversos escritores e jornalistas brasileiros que se dedicaram tanto ao jornalismo quanto à literatura, a exemplo de Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882), Gonçalves Dias (1823-1864), José de Alencar (1829-1877), Manuel Antônio de Almeida (1830-1861) e Machado de Assis (1839-1908). 44 No caso brasileiro, por exemplo, Machado de Assis começa a vida profissional como aprendiz de tipógrafo e revisor de jornal, enquanto em paralelo vai edificando a carreira de escritor com seus primeiros versos e novelas. E não apenas ele. A partir de 1850 e até o final do século XIX, apenas, para citar um marco temporal, trabalharam em jornal escritores como Manuel Antônio de Almeida – autor de Memórias de um sargento de milícias –, no Correio Mercantil (do Rio de Janeiro), José de Alencar – que chegou a redator-chefe do Diário do Rio de Janeiro –, Gonçalves Dias, Joaquim Manuel de Macedo – ambos na Revista Popular – e tantos outros de menor projeção pública (LIMA, 2009, p. 174). Na última década do século XIX, o jornalismo ganha status de comunicação de massa, como resultado da ascensão, naquele mesmo período, “da sociedade de massa, urbanizada” (LIMA, 2010, p. 82). De acordo com Lima (2010), esta mudança interfere na multiplicação das tiragens dos grandes jornais, acompanhando o aumento acelerado da população nos grandes centros urbanos, principalmente nos Estados Unidos. Tal relação, assim como a forma que o jornalismo literário se apropria de determinados elementos/recursos, aproxima o jornalismo da sociologia, influenciando diretamente nas construções narrativas do jornalismo literário. Para exemplificar, o escritor, jornalista e professor universitário aponta que o jornalismo moderno incorporou a característica da ciência de buscar a compreensão da realidade a partir dos cinco sentidos humanos, de forma a buscar “elucidar a relação de causa e efeito que se estabelece entre agentes de uma ação e sua consequência” (LIMA, 2010, p.80). A este encadeamento de ideias que resultam em uma estreita relação de causa e efeito dá-se o nome de determinismo. No Brasil, os primeiros anos de República foram marcados por um episódio lamentável que ficou conhecido como Guerra de Canudos ou Campanha de Canudos, cujos confrontos ocorreram entre 1896 e 1897. Em Canudos, interior do sertão baiano, Antonio Conselheiro liderava uma comunidade, unida pela fé em que seriam poupados dos suplícios causados pelo clima e da exclusão econômica e social que os afetava, visto que a região se caracterizava por latifúndios improdutivos, secas cíclicas e, consequentemente, desemprego. Diante da força desse grupo, os grandes latifundiários da região, descontentes, passaram a pressionar a recém-instaurada República, que, temendo perda de posição e força, viram-se compelidos a combaterem Antonio Conselheiro e seus pobres seguidores. 45 Movido muito mais por razões místicas do que por ideologia política, o que Conselheiro parecia querer era autonomia política e econômica para seu arraial de camponeses em Canudos. O sonho foi combatido primeiro por tropas da polícia e depois do Exército, surpreendentemente rechaçadas ferozmente pelos adeptos de Conselheiro. A cada nova investida as forças do governo aumentavam seu poderio bélico, gerando, em vais e vens, a maior e mais sangrenta guerra civil da história brasileira. Podem ter morrido entre 15.000 e 30.000 pessoas no conflito, entre civis e militares, dependendo das fontes estatísticas – nada precisas – da época. Para a última expedição contra Canudos em 1897, que aniquilaria de vez Conselheiro e sua gente, incluindo mulheres e crianças, o Exército mandou uma tropa de seis mil soldados, após três vexatórias derrotas anteriores (LIMA, 2010, p. 65-66). Junto à tropa da última expedição foram enviados correspondentes de oito grandes jornais brasileiros, dentre os quais estava Euclides da Cunha (1866-1909), pelo jornal O Estado de S. Paulo, à época, A província de São Paulo. Ao contrário dos demais, o jornalista, escritor e engenheiro militar ultrapassava a superficialidade. Seus textos tinham dramaticidade e autoria. Em lugar de limitar-se aos fatos, procurava compreender as linhas subterrâneas de forças que tinham moldado o episódio de Canudos. Queria compreender a psicologia dos sertanejos, os seguidores de Conselheiro, procurando estabelecer uma ligação determinante entre seu temperamento e as condições geográficas do local. É de Euclides da Cunha uma frase até hoje utilizada quando alguém quer se referir à personalidade dos nordestinos do sertão: “O sertanejo é antes de tudo um forte” (LIMA, 2010, p. 66, grifos desta autora). É importante lembrar que as ideias de Euclides da Cunha eram bastante ligadas à filosofia positivista e à escola naturalista, tanto na ciência quanto na literatura, e que o jornalista e escritor sustentava uma visão determinista da sociedade. Dessa forma, Euclides estabelece ser o sertanejo fruto do ambiente geográfico e de sua formação. Assim, dadas as impossibilidades do meio, o povo sertanejo estaria fadado ao retrocesso. Ademais, o jornalista e escritor ressalta que a miscigenação e o hibridismo racial dos quais derivariam os sertanejos condicionava- os a determinados comportamentos impulsivos. Entretanto, cabe destacar que tanto em seus textos publicados no jornal à época do conflito quanto em Os sertões, livro publicado em 1902, ou seja, cinco anos depois do confronto final e da derrota dos sertanejos e dizimação de Canudos, Euclides da Cunha é implacável quanto à sua perplexidade diante do massacre praticado pelo exército republicano na cidade e revela o abandono do sertão nordestino. 46 Enquanto os demais correspondentes limitavam-se a acompanhar a tropa, ouvindo apenas seus comandantes e os líderes republicanos que apoiavam a expedição militar, Euclides foi aos poucos abandonando a visão oficial do episódio, passando a pesquisar por conta própria, a observar muito, a interagir com os sertanejos, produzindo uma narrativa realista que colocava em perspectiva um contexto ambiental, histórico, político e social, tudo apoiado por personagens tragicamente reais. Os leitores do jornal não sabiam então, mas estavam testemunhando a primeira manifestação do jornalismo literário no Brasil, nessa versão primitiva, mas importante historicamente pelo seu pioneirismo (LIMA, 2010, p. 66-67). Na imprensa, a virada para 1900 marcou o declínio do folhetim6, considerado por alguns pesquisadores como o primeiro encontro entre literatura e jornalismo, e a ascensão, em um primeiro momento, das colunas, até o posterior e paulatino fortalecimento da reportagem. Nessa perspectiva, vale-se dos estudos de Nelson Werneck Sodré (1999), em especial sua obra História da imprensa no Brasil, nos quais se aprofunda nos processos de desenvolvimento da imprensa no país, como o contexto de mudança pelo qual passa o jornalismo no período de transição entre os séculos XIX e XX. Dessa forma, Sodré (1999) atribui tais mudanças ao fortalecimento das relações capitalistas e, consequentemente, às necessidades de atender a um público mais amplo, composto principalmente por pessoas com baixo ou nenhum domínio de leitura. Tais alterações serão introduzidas lentamente, mas acentuam-se sempre: a tendência ao declínio do folhetim, substituído pelo colunismo e, pouco a pouco, pela reportagem; a tendência para a entrevista, substituindo o simples artigo político; a tendência para o predomínio da informação sobre a doutrinação; o aparecimento de temas antes tratados como secundários, avultando agora, e ocupando espaço cada vez maior, os policiais com destaque, mas também os esportivos e até os mundanos. Aos homens de letras, a imprensa impõe, agora, que escrevam menos colaborações assinadas sobre assuntos de interesse restrito do que o esforço para se colocarem em condições de redigir objetivamente reportagens, entrevistas, notícias (SODRÉ, 1999, p. 296-297). Nesse contexto, como destaca Lima (2010), desponta no cenário cultural João Paulo Alberto Coelho Barreto “como o primeiro jornalista de tempo integral no Brasil”. 6 O termo folhetim, traduzido para o português, remete, inicialmente, ao termo francês feuilleton, nome dado ao espaço reservado, na imprensa francesa do século XIX, geralmente o rodapé da primeira página, a escritos destinados a entretenimento, tais como críticas de obras de artes, crônicas, resenhas de teatro, comentários sobre acontecimentos mundanos, piadas, entre outros assuntos. 47 Contratado em 1903 pelo jornal Gazeta de Notícias, assina seus textos produzidos de forma até então desconhecida pelos cariocas sob o pseudônimo de João do Rio. O que o destaca dos colegas de redação contemporâneos a ele é o seu interesse pelas transformações que se sucediam na então metrópole da República brasileira – Rio de Janeiro – e seus efeitos sobre o comportamento social. Para tanto, adota comportamento distinto ao dos demais jornalistas de redação da época: “sai às ruas, entrevista, toma notas, faz enquetes – pesquisas de opinião primitivas –, descobre e revela aos leitores os múltiplos retratos de uma sociedade que ainda não conhece sua face coletiva” (LIMA, 2010, p. 72). João do Rio destaca-se por suas reportagens, que saem, primeiramente, em série nas páginas da Gazeta de Notícias e, posteriormente, em livros. O jornalista alcança notoriedade pela sensibilidade de escrever acerca de temáticas bastante originais que envolvem o público leitor, “tornando João do Rio o primeiro escritor de não ficção popular do Brasil” (LIMA, 2010, p. 73). João do Rio tem a sensibilidade para captar, escondidos por trás dos fatos, os quadros sociais mais amplos que surgem das situações que investiga nas ruas. Tal qual um jornalista literário de hoje, seu mergulho na realidade tira do cotidiano o que é efêmero, dando-lhe sobrevida, uma durabilidade prolongada que eterniza um momento, registra com arte um instante histórico, ultrapassa o tempo. Como faz isso centrado em figuras humanas, o que lemos hoje, de algo tão distante no tempo, parece-nos vivo, quase atual (LIMA, 2010, p. 73-74). Tais características podem ser percebidas no seguinte trecho da série “As Religiões no Rio”: A religião? Um misterioso sentimento, misto de terror e de esperança, a simbolização lúgubre ou alegre de um poder que não temos e almejamos ter, o desconhecido avassalador, o equívoco, o medo, a perversidade. O Rio, como todas as cidades nestes tempos de irreverência, tem em cada rua um templo e em cada homem uma crença diversa. Ao ler os grandes diários, imagina a gente que está num país essencialmente católico, onde alguns matemáticos são positivistas. Entretanto, a cidade pulula de religiões. Basta parar em qualquer esquina, interrogar. A diversidade dos cultos espantar-vos-á. São swendeborgeanos, pagãos literários, fisiólatras, defensores de dogmas exóticos, autores de reformas da Vida, reveladores do Futuro, amantes do Diabo, bebedores de sangue, descendentes da rainha de Sabá, judeus, cismáticos, espíritas, babalaôs de Lagos, mulheres que respeitam o oceano, todos os cultos, todas as crenças, todas as forças do Susto. Quem através da calma do semblante lhes adivinhará as tragédias da alma? Quem no seu andar tranqüilo de homens sem paixões irá descobrir os reveladores de ritos novos, os mágicos, os 48 nevrópatas, os delirantes, os possuídos de Satanás, os mistagogos da Morte, do Mar e do Arco-Íris? Quem poderá perceber, ao conversar com estas criaturas, a luta fratricida por causa da interpretação da Bíblia, a luta que faz mil religiões à espera de Jesus, cuja reaparição está marcada para qualquer destes dias, e à espera do Anti-Cristo, que talvez ande por aí? Quem imaginará cavalheiros distintos em intimidade com as almas desencarnadas, quem desvendará a conversa com os anjos nas chombergas fétidas? Eles vão por aí, papas, profetas, crentes e reveladores, orgulhosos cada um do seu culto, o único que é a Verdade. Falai-lhes boamente, sem a tenção de agredi-los, e eles se confessarão - por que só uma coisa é impossível ao homem: enganar o seu semelhante, na fé. Foi o que fiz na reportagem a que a Gazeta de Notícias emprestou uma tão larga hospitalidade e um tão grande ruído; foi este o meu esforço: levantar um pouco o mistério das crenças nesta cidade Não é um trabalho completo. Longe disso. Cada uma dessas religiões daria farta messe para um volume de revelações. Eu apenas entrevi a bondade, o mal e o bizarro dos cultos, mas tão convencido e com tal desejo de ser exato que bem pode servir de epígrafe a este livro a frase de Montaigne: Cecy est un livre de bonne foy (RIO). 3.1. New Journalism Entretanto, dadas as demandas da imprensa comercial, os principais jornais, na década de 1920, já haviam aderido, em sua maioria, ao jornalismo convencional, privilegiando o “texto noticioso, objetivo e frio” (LIMA, 2010, p. 91). Segundo Lima (2010), as narrativas mais elaboradas, contadas como histórias, a exemplo das produções de João do Rio, passaram a ter espaço em revistas, além de publicações de pouco prestígio e baixas tiragens. O ofício do jornalismo literário, que tinha começado a se esboçar com a cobertura de guerras, principalmente, já havia passado por uma segunda fase de maturação, na qual os lugares das histórias tinham se deslocado dos campos de batalha para a complexa realidade sócio-cultural-econômica das grandes metrópoles em rápida expansão. Um novo período de guerras – a civil de Zapata e Pancho Villa no México, a bolchevique na Rússia, resultando na formação da União Soviética, a I Guerra Mundial –, nas duas primeiras décadas do século XX, já tinha acontecido, revelando três extraordinários jornalistas literários da nova geração, John Reed, John dos Passos e Ernest Hemingway (LIMA, 2010, p. 91-92). O jornalista norte-americano John Reed (1887-1920) alcançou notoriedade em seus relatos de guerra realizados como correspondente da revista inglesa The Metropolitan. Destacam-se suas coberturas da Revolução Mexicana de 1910, que resultou no livro México Rebelde (1910), da Primeira Guerra Mundial europeia, publicada em livro em 1914 com o título Guerra do Balcãs, e, em especial, da Revolução Russa de 1917, com qual se consagrou ao publicar Dez dias que abalaram 49 o mundo (1919). Segundo Monica Martinez (2009, p. 76), “Reed provavelmente teria continuado a escrever de sua forma comprometida e apaixonada não tivesse morrido de tifo aos 33 anos”. Após a Primeira Guerra Mundial, outros autores norte-americanos destacaram- se pelo estilo de escrita que seria denominado jornalismo literário anos depois, como John Steinbeck, William Faulkner, Ernest Hemingway e John dos Passos. Entretanto, segundo Lima (2010), distingue-se das experiências anteriores as medidas adotadas pela revista estadunidense The New Yorker entre os anos finais da década de 1910 até os anos 1930, de modo a revolucionar “a literatura da realidade”, transpondo-a a um nível superior de qualidade. Entre elas está o empenho do criador da publicação, Harold Ross, “em formar uma equipe de jornalistas literários, trazendo- os dos jornais diários” (LIMA, 2010, p. 92). Para tanto, o escritor, jornalista e professor universitário ressalta que tais profissionais eram bem remunerados e dedicavam-se integralmente a escrever, de forma autônoma, tanto em relação a tempo e espaço quanto à extensão de seus textos, ao contrário do praticado nas redações de jornais. Ademais, a redação da revista dispunha de um excelente trabalho de edição, o qual contava com minuciosa revisão, passível de adequações e aprimoramentos, sem, contudo, trazer prejuízos à originalidade e autoria dos textos. [...] a revista inova radicalmente criando um departamento de conferência de informações factuais. Os textos entregues pelos autores passam por um duríssimo crivo de conferência de fatos. [...]. Jornalismo literário tem bom texto, mas não deixa de ser jornalismo [...] O compromisso com a verdade factual é importante. O respeito aos fatos traz credibilidade e essa qualidade é o maior tesouro da literatura da realidade (LIMA, 2010, p. 93). Essas características proporcionaram, salienta Lima (2010), consistência às produções da revista The New Yorker e permitiram que se tornassem exemplo de inovação jornalística e referência no mundo todo, na medida em que desenvolveu um formato narrativo particular: o perfil. Não que este gênero tenha sido criado na The New Yorker, contudo, o que se pode afirmar é que as revistas, de maneira geral, tornaram-se espaço propício para este formato textual até então incipiente. Lima (2010) define perfil como histórias centradas em pessoas, independente de serem famosas ou não, com o intuito de retratá-las em sua realidade complexa e singular, mais do que meramente representantes de um grupo, mas como seres 50 humanos únicos. O perfil faz um trabalho intuitivamente psicológico de retratar a pessoa sob um jorro de luz completo, capaz de iluminar tanto seus atos externos, no mundo que conhecemos, quanto seus conteúdos internos, da psique, desconhecidos por nós. São conteúdos trazidos à consciência, que nos ajudam a compreendê-la mais completamente, como ser humano inteiro (LIMA, 2010, p. 94). Muitos foram os jornalistas que se enveredaram pelo gênero, mas alguns merecem especial destaque, como Lillian Ross (1918-2017), Truman Capote (1924- 1984) e Gay Talese (1932-). Ross ingressou na The New Yorker quando tinha 27 anos de idade, quando mulheres não eram contratadas para trabalhar em redações. A oportunidade surgiu, de acordo com Meireles (2017), por conta da Segunda Guerra Mundial, tanto devido a ida de homens para servir militarmente quanto para cobrir o que se passava nas trincheiras. Entre seus textos que se tornaram clássicos do jornalismo, está o perfil que compôs do escritor Ernest Hemingway, publicado em 1950 (MEIRELES, 2017). Capote, por sua vez, ingressou na revista aos 17 anos, tendo produzido uma grande diversidade de textos, dentre os quais a reportagem- perfil do ator Marlon Brando, intitulada “O duque em seus domínios”. O texto foi produzido sob encomenda da The New Yorker, à época em que Brando estava no Japão para filmar Sayonara. Segundo a lenda, perpetrada pelo próprio autor, Capote conseguia gravar – mentalmente – 94% das conversas que tinha e, por isso, jamais usava gravador ou bloco de notas. Essa estratégia, misturada aos drinques que tomaram, deixou Brando à vontade para falar abertamente de si mesmo. O relato, minucioso e performático, se debruça até mesmo sobre o sotaque da equipe japonesa designada para mimar Brando. Aos poucos, o ator vai se deixando enlaçar pela amizade de Capote. Dos bastidores das filmagens, rapidamente, a dupla conversa sobre o trauma de Brando com [o] alcoolismo da mãe, sobre as dificuldades de ser um astro e a antipatia que sentia por James Dean, a quem chamou de doente e recomendou seu analista. [...] Quando “O Duque em Seu Domínio” foi publicado em novembro de 1957, Brando ficou furioso com seu entrevistador. Acusou-o de ter sido desonesto e ter se aproveitado de sua hospitalidade. Capote não desmentiu, mas afirmou que nada do que escrevera era mentira (SILVA, 2018). Quanto a Gay Talese, este alcançou seu auge com o icônico perfil sobre Frank Sinatra, sem, no entanto, ter conseguido entrevistá-lo de fato, intitulado “Frank Sinatra 51 está resfriado”, publicado pela revista Esquire em abril de 1966. À época, o trabalho de Talese já havia alcançado certa repercussão devido às suas contribuições como repórter no jornal The New York Times. O perfil fora encomendado pela Esquire como seu primeiro trabalho para a publicação, o qual o jornalista resistiu em aceitar, visto que Sinatra não era adepto de bom contato com a imprensa, além de temer “ser confundido com um repórter de celebridades” (MOSER, 2016). Mas quando o assessor de Sinatra, Jim Mahoney, garantiu que o cantor aceitaria uma entrevista, Talese superou as dúvidas e voou para Los Angeles. Chegou no domingo, 31 de outubro. Alugou um carro, se hospedou no luxuoso hotel Berverly Wilshire, preparado para encontrar Sinatra na manhã seguinte. Na hora marcada, Mahoney disse a Talese que Sinatra estava resfriado e que não poderia recebê-lo tão cedo. Talvez nunca. O resto é uma história de cinco décadas (MOSER, 2016). Assim, Talese cercou-se de pessoas que acompanhavam o cotidiano de Sinatra e tratou de entrevistá-las. Dessa forma, compôs o perfil que, mesmo tendo sido escrito há mais de 50 anos, repercute até hoje no meio jornalístico. No prefácio de Fama e anonimato: o lado oculto de celebridades, a fascinante vida de pessoas desconhecidas e um inusitado perfil de Nova York, por um mestre da reportagem, livro publicado em 1973 que reúne as melhores reportagens do jornalista americano, Talese afirma: “Quando estava pesquisando para traçar o perfil de Frank Sinatra, descobri que a cooperação – ou a falta dela – por parte da pessoa a ser retratada não importa muito, desde que o escritor possa acompanhar seus movimentos, ainda que à distância” (TALESE, 2004, p. 13). Desse modo, Lillian Ross, Truman Capote, Gay Talese, além de Tom Wolfe (1930-2018) e outros estadunidenses elevaram as experiências de aproximação entre jornalismo e literatura, passando a denominar-se New Journalism, ou “Novo Jornalismo”. Esta tendência, surgida nos Estados Unidos na década de 1940, alcançou seu auge na mídia norte-americana nos anos 1960. O estilo propõe um enfoque mais imaginativo, à medida que estimula a imaginação do leitor, e lírico à reportagem, dando oportunidade ao jornalista de se inserir na narrativa sem que haja deturpação da realidade do acontecimento. Propunha-se assim, não mais o repórter-técnico, que escrevia segundo padrões estabelecidos, mas o “repórter-escritor”, que explora a sensibilidade por meio de estilo 52 próprio na transmissão da notícia. Tom Wolfe (2000), em seu livro The New Journalism, publicado em 1973, apresenta o manifesto do estilo, apontando suas origens, curiosidades, expoentes e principais características do que caracteriza, em seu prefácio, como “a mais importante literatura escrita na América”. A origem, segundo ele, deu-se de forma despretensiosa, uma vez que não o aplicaram no jornalismo como uma inovação estilística ou com a intenção de transformar o mundo literário, da maneira como aconteceu. Segundo Wolfe (2000), esta expressão foi, antes de tudo, uma forma encontrada para satisfazerem o desejo compartilhado por muitos jornalistas: escrever um grande romance. El objetivo era conseguir empleo en un periódico, permanecer íntegro, pagar el alquiler, conocer «el mundo», acumular «experiencia», tal vez pulir algo del amaneramiento de tu estilo... luego, en un momento, dejar el empleo sin vacilar, decir adiós al periodismo, mudarse a una cabaña en cualquier parte, trabajar día y noche durante seis meses, e iluminar el cielo con el triunfo final. El triunfo final se solía llamar La Novela. [...] Al mismo tiempo todos quienes tomaban parte en el juego pasaban por momentos terriblemente amargos, durante los cuales se les encogía el corazón y se decían: «No haces más que engañarte a ti mismo, chico. Esta no es más que otra de tus tortuosas excusas para postergar la decisión de poner toda la carne en el asador... irte a la cabaña... y escribir tu novela. » ¡Tu Novela! A estas alturas — en parte por causa del propio Nuevo Periodismo — resulta difícil explicar lo que significaba para el Sueño Americano la idea de escribir una novela en los años cuarenta, los cincuenta, hasta principios de los sesenta. La Novela no era una simple forma literaria. Era un fenómeno psicológico. Era una fiebre cerebral. Figuraba en el glosario de Introducción General al Psicoanálisis, por algún sitio entre Narcisismo y Obsesiones Neuróticas (WOLFE, 2000, p. 7-9). Além disso, o gênero não poderia ser chamado de todo como “novo”, uma vez que já haviam sido praticadas experiências similares, a exemplo dos autores já citados, como os escritores realistas europeus, Honoré de Balzac e Charles Dickens, além dos norte-americanos John Reed e John Hersey. Tanto que Wolfe se refere a essas e outras influências recebidas pelos jornalistas adeptos desse estilo: Si se sigue de cerca el progreso del Nuevo Periodismo a lo largo de los años sesenta, se observará un hecho interesante. Se observará que los periodistas aprenden las técnicas del realismo — particularmente las que se encuentran en Fielding, Smollet, Balzac, Dickens y Gogol — a base de improvisación. A base de tanteo, de «instinto» más que de teoría, los periodistas comenzaron a descubrir los procedimientos que conferían a la novela realista su fuerza única, variadamente conocida como «inmediatez», como «realidad concreta», como «comunicación emotiva», así como su capacidad para «apasionar» o «absorber». Esta fuerza extraordinaria se derivaba 53 principalmente de sólo cuatro procedimientos, según descubrieron. El fundamental era la construcción escena-por-escena, contando la historia saltando de una escena a otra y recurriendo lo menos posible a la mera narración histórica (WOLFE, 2000, p. 47). O jornalista faz também uma observação interessante em relação a Truman Capote e seu In Cold Blood. A obra, traduzida para o português como A Sangue Frio, é resultante de um processo de investigação de cerca de seis anos sobre o brutal assassinato de quatro integrantes de uma família na cidade de Holcomb, oeste do Kansas. La historia contada por Capote de la vida y la muerte de dos vagabundos que exterminaron a una acomodada familia de granjeros de Kansas apareció en forma seriada en The New Yorker en otoño de 1965 y se publicó como libro en febrero de 1966. Causó sensación... y fue un golpe terrible para todos aquéllos que confiaban en que el execrable Nuevo Periodismo o Paraperiodismo se extinguiese por sí solo como una bengala. No se trataba, a fin de cuentas, de algún oscuro periodista, de algún escritor independiente, sino de un novelista de larga reputación... cuya carrera había caído en el marasmo... y que de repente, con este golpe certero, con este giro hacia la abominable nueva forma de periodismo, no sólo había resucitado su prestigio sino que lo había hecho aún mayor que antes... y se había convertido en una celebridad de la más sorprendente magnitud en el negocio (WOLFE, 2000, p. 39). De acordo com Wolfe (2000), Capote dedicou cinco anos para a reconstrução da história e realizando entrevistas com os assassinos, já condenados e presos, “todo eso, un trabajo muy meticuloso e impressionante” (WOLFE, 2000, p. 39). Diante do exposto, nota-se que o Novo Jornalismo não concedia espaço apenas a anônimos desconhecidos, mas a personagens de interesse público, além de temas nem sempre considerados importantes aos grandes veículos. Quanto ao seu desenvolvimento, enquanto estilo e tendência, divide opiniões entre os estudiosos do assunto. Para Felipe Pena (2006), em seu livro Jornalismo literário, a insatisfação de muitos profissionais da imprensa norte-americana, na década de 1960, com a rigidez da objetividade que deveria apresentar o texto jornalístico propiciou o desenvolvimento do Novo Jornalismo. Já para Victor Necchi (2009), em seu ensaio A (im)pertinência da denominação “jornalismo literário”, o período que compreendeu ao desenvolvimento do Novo Jornalismo era propenso ao questionamento e à ruptura, como resultado da Segunda Guerra Mundial, que assolou diversos países e culminou com a morte de milhões de pessoas entre 1939 e 1945. 54 Dessa forma, por volta da década de 1950, a contracultura tomava força. Questionavam-se as instituições, as sociedades, os governos, as formas de pensar. Os hippies pregavam paz, amor e sexo livres. Todo esse ideário se refletiu no jornalismo, fazendo com que se percebesse a possibilidade de fazer mais. Assim, retomou-se a ideia do quão fundamental é a arte de contar boas histórias e a possibilidade de fazê-la por meio da prática jornalística. 3.2. América Latina Antes de Tom Wolfe proclamar o New Journalism como opção criadora proveniente do entrecruzamento das narrativas informativa e ficcional, Gabriel García Márquez já praticava um modo ousado de se fazer jornalismo, como sugere Maria Aparecida da Silva em seu ensaio Sobre realidades e realismos em Gabriel García Márquez: alguns contrapontos dissonantes. Publicadas por El Espectador em agosto e setembro 1954 e março de 1955, respectivamente, três matérias mereceram do já então premiado contista uma atenção destacada: o deslizamento de Antioquia (Balance Y Reconstrucción De La Catástrofe De Antioquia), a marcha de protesto em Quibdó (El Chocó Que Colombia Desconoce) e a história do náufrago sobrevivente Luis Alejandro Velasco (La Verdad Sobre Mi Aventura) (SILVA, 2006, p. 148). Gabriel García Márquez, assim como Ángel Asturias, Julio Cortázar, Octavio Paz, Juan Carlos Onetti e Tomás Eloy Martínez, transita entre o universo da ficção e do jornalismo, além de escritor representativo da narrativa latino-americana dos anos 1960, destina espaço significativo para a prática jornalística em sua produção literária. A respeito disso, Joana Fátima Rodrigues (2005), em sua dissertação de mestrado Literatura e Jornalismo em Gabriel García Márquez: uma leitura de crônicas, afirma ser: Legado de seus antecessores hispano-americanos que, no século XIX, aproveitaram a extensão da imprensa para promover mudanças estéticas e linguísticas em suas escrituras, “aguçando suas armas literárias, para ir explorando e definindo a natureza do discurso literário em contraste com o discurso jornalístico”, o jornalismo contagiou o escritor em sua juventude universitária (RODRIGUES, 2005, p. 8). 55 Heloiza Golbspan Herscovitz (2004) aponta, em seu ensaio O Jornalismo Mágico de Gabriel García Márquez, no trabalho narrativo de García Márquez, características híbridas, contemplando tanto a presença de elementos jornalísticos quanto literários, de forma a envolver, de maneira bastante peculiar, o real e o imaginário, o mito e a história, o jornalismo e a literatura. Ressalta-se, porém, que, apesar de utilizar recursos tanto jornalísticos quanto literários, o trabalho de García Márquez, apresenta poucas semelhanças com o jornalismo literário norte-americano, o New Journalism (HERSCOVITZ, 2004, p. 191). A América Latina, no período áureo do New Journalism, anos 1960, deparou- se com a popularização da literatura de García Márquez, que se tornou conhecida internacionalmente, alcançando seu auge em 1967, com a publicação de Cem Anos de Solidão. Mas, diferentemente das tendências que percorriam o primeiro mundo, os escritores latino-americanos adotaram um estilo diferente que melhor se adequasse à “realidade extraordinária, singular” com a qual se deparavam (HERSCOVITZ, 2004, p. 177). Esta “realidade” latino-americana, de colônia de exploração, construída desde as narrativas dos exploradores, durante o século XVI, é apresentada a partir de recursos provenientes do imaginário e do mítico. De acordo com Irlemar Chiampi (1977), essa “realidade” é composta por imagens, que, apesar de não serem reais, representam seu simulacro e têm considerável poder de resistência ao tempo e à circulação pelo espaço, dadas a força e a qualidade dos sentimentos que acompanharam o momento em que foram fixadas. Pode-se perceber que as construções narrativas desenvolvidas pelos norte- americanos adeptos do New Journalism propõem uma parcialidade maior por parte do jornalista, que, por vezes, insere-se na narrativa. Como exemplo, pode-se citar A sangue frio, publicado em 1966 por Truman Capote. A obra, narrada na voz do jornalista, é resultante de um processo de investigação de cerca de cinco anos sobre o brutal assassinato de quatro integrantes de uma família na cidade de Holcomb, oeste do Kansas. Diferentemente dos norte-americanos, García Márquez costuma dar voz aos personagens dos acontecimentos que relata, como no caso de Luis Alejandro Velasco, em Relato de un náufrago, e de Miguel Littín, na obra aqui em análise La aventura de Miguel Littín clandestino en Chile. Tanto que Dasso Saldívar (2000), em Gabriel García Márquez: uma biografia, ressalta ter García Márquez afirmado, inclusive, que “há livros que não são de quem os escreve, mas sim de quem os sofre” 56 (GARCÍA MÁQUEZ, apud SALDÍVAR, 2000, p. 278). Dessa forma, o autor, jornalista, coloca-se como materializador do relato, sem, contudo, emitir juízo de valor. Para além da sua contribuição material, García Márquez, preocupado em estimular a vocação, a ética e a boa narração no jornalismo, sobre os mais variados aspectos, junto com seu irmão, Jaime García Márquez, então diretor do Canal Regional de Televisión del Caribe colombiano (Telecaribe), e o jornalista Jaime Abello Banfi, fundaram a Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano, em Cartagena das Índias, Colômbia, em outubro de 1994. O trabalho de planejamento da fundação foi realizado por um grupo dirigido pelo jornalista e romancista argentino Tomás Eloy Martinez, que definiu o enfoque da programação das primeiras oficinas de jornalismo. Em 2012, a fundação passou a se chamar FNPI - Fundación Gabriel García Márquez para el Nuevo Periodismo Iberoamericano. Após a morte do jornalista e escritor, em 17 de abril de 2014, Mercedes Barcha, que fora casada com García Márquez durante 56 anos, assumiu a presidência da FNPI. No ano de 2017, a fundação criou o Centro Gabo, com o intuito de promover o legado pessoal e profissional do jornalista e escritor colombiano. Atualmente, desde agosto de 2019, a fundação foi renomeada mais uma vez, passando a se chamar Fundación Gabo, com o objetivo de potencializar suas iniciativas, projetos e atividades em torno da figura de seu fundador7. 3.3. O papel social da literatura Edvaldo Pereira Lima (2009; 2010) salienta, conforme apresentado no item anterior, que o jornalismo literário, não obstante fazer uso de recursos provenientes da literatura, possui compromisso com o factual, ou seja, com as informações que compõem um determinado acontecimento. Considerando que os acontecimentos ocorrem no âmbito social e, no jornalismo literário, constroem-se a partir de mecanismos literários, vale-se das ideias de Antonio Candido (2006), em especial das apresentadas em seu livro Literatura e Sociedade, a fim de se refletir acerca do papel social da literatura. Nesta obra, Candido (2006) afere de que maneira a realidade social acaba por compor a estrutura literária de forma integrante, “a ponto de ela poder 7 Informações disponíveis em https://fundaciongabo.org/es/institucion/acerca-de-la-fundacion-gabo. Acesso em: 29 out. 2019. 57 ser estudada em si mesma; e como só o conhecimento desta estrutura permite compreender a função que a obra exerce” (CANDIDO, 2006, p. 9). Se em uma época valorizava-se uma obra por sua verossimilhança, em outra, passou-se a analisar posicionamento oposto. Entretanto, Candido (2006, p.13) ressalta que já se chegou à conclusão de que, a fim de uma interpretação dialeticamente íntegra, é preciso levar-se em conta “os aspectos da realidade” e “as operações formais”, fundindo, assim, texto e contexto (CANDIDO, 2006, p.13). Percebe-se, dessa forma, [...] que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos necessários do processo interpretativo. Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno (CANDIDO, 2006, p.14). Para tanto, Candido toma como exemplo o romance Senhora, de José de Alencar. Como obra representativa do romantismo brasileiro, possui, como o próprio crítico literário aponta, dimensões sociais evidentes: “referências a lugares, modas, usos; manifestações de atitudes de grupo ou de classe; expressão de um conceito de vida entre burguês e patriarcal” (CANDIDO, 2006, p.16). Entretanto, o caráter sociológico de um estudo vai além de tais características. No caso do livro que Candido (2006) aponta como exemplo, já repousa sobre a temática que perpassa a obra fortes questões sociais que são necessárias de ser indicadas e compreendidas, para que haja uma satisfatória interpretação. Trata-se da compra de um marido; e teremos dado um passo adiante se refletirmos que essa compra tem um sentido social simbólico, pois é ao mesmo tempo representação e desmascaramento de costumes vigentes na época, como o casamento por dinheiro. Ao inventar a situação crua do esposo que se vende em contrato, mediante pagamento estipulado, o romancista desnuda as raízes da relação, isto é, faz uma análise socialmente radical, reduzindo o ato ao seu aspecto essencial de compra e venda. Mas, ao vermos isto, ainda não estamos nas camadas mais fundas da análise, — o que só ocorre quando este traço social constatado é visto funcionando para formar a estrutura do livro (CANDIDO, 2006, p.16). Ao longo da trama, os cônjuges vivenciam as consequências, individuais e para ambos, como caracteriza Candido (2006), desta “longa e complicada transação”: o 58 marido, Fernando, por ter se submetido a vender-se; a esposa, Aurélia, que, por vingança e em posse de dinheiro, reduz o esposo a objeto possuído. As imagens construídas pela obra representam a deterioração das relações humanas devido a motivos econômicos até a recuperação do amor, conforme o esperado no fim dos livros deste período literário. De acordo com Candido (2006), o livro se ordena em torno do duelo entre Aurélia e Fernando, que representa “a transposição, no plano da estrutura do livro, do mecanismo da compra e venda” (CANDIDO, 2006, p. 16). Ademais, completa o crítico: [...] neste caso de relações que deveriam pautar-se por uma exigência moral mais alta, a compra e venda funciona como verdadeira conspurcação. Esta não é afirmada abstratamente pelo romancista, nem apenas ilustrada com exemplos, mas sugerida na própria composição do todo e das partes, na maneira por que organiza a matéria, a fim de lhe dar uma certa expressividade (CANDIDO, 2006, p. 16). A partir desta análise, pode-se afirmar, segundo Candido (2006, p. 16), que o elemento social deve ser considerado não exteriormente, como referência capaz de reconhecer a expressão de um período e sociedade determinados; tampouco como enquadramento histórico; mas sim como condição da própria produção artística. Neste caso, saímos dos aspectos periféricos da sociologia, ou da história sociologicamente orientada, para chegar a uma interpretação estética que assimilou a dimensão social como fator de arte. Quando isto se dá, ocorre o paradoxo assinalado inicialmente: o externo se torna interno e a crítica deixa de ser sociológica, para ser apenas crítica. O elemento social se torna um dos muitos que interferem na economia do livro, ao lado dos psicológicos, religiosos, linguísticos e outros. Neste nível de análise, em que a estrutura constitui o ponto de referência, as divisões pouco importam, pois tudo se transforma, para o crítico, em fermento orgânico de que resultou a diversidade coesa do todo (CANDIDO, 2006, p. 17). Candido (2006) salienta, por fim, a liberdade do crítico para destacar, durante sua análise, o elemento de sua preferência, sob a condição de o utilizar como componente de estruturação da obra. Ademais, o autor ressalta o quanto a crítica moderna avançou nesse sentido, superando a tendência do que ele chamou de “sociologismo crítico”, que, diferentemente de uma orientação sociológica possível e legítima, tende a generalizar as explicações utilizando-se dos fatores sociais. No texto de Gabriel García Márquez, observa-se, na composição híbrida da obra, que enlaça diferentes gêneros discursivos, uma reflexão sobre o fazer poético 59 e, também, o fazer documental, seja historiográfico ou jornalístico. A leitura do texto expõe o leitor a um enredo de aventuras, ao mesmo tempo que elabora uma crítica social do período histórico chileno. A figura histórica de Miguel Littín e o personagem Littín, que surge na narrativa de García Márquez, compõem um mosaico discursivo que remete às estratégias possíveis de composição da realidade. Logo, pensando-se no período representado na obra, observa-se um viés crítico que surge na elaboração estética do texto – a realidade, também, é composta por fragmentos de discursos, por construções que rearticulam as verdades, por enredos que criam um mundo ilusório, mas, muitas vezes, postulado como real. 60 Capítulo 4 – Análise de La aventura de Miguel Littín clandestino en Chile El exilio es la cesación del contacto con un follaje y de una raigambre con el aire y la tierra connaturales; es como el brusco final de un amor, es como una muerte inconcebiblemente horrible porque es una muerte que se sigue viviendo conscientemente. Júlio Cortázar 4.1. Gabriel García Márquez: a apresentação da obra Antes de dar início à saga de Miguel Littín, há uma introdução, assinada por Gabriel García Márquez, que conta “a história por trás da história”, ou seja, suas motivações, enquanto autor, de reproduzir a “aventura”, que poderia continuar desconhecida pelo público, caso o cineasta chileno não lhe concedesse uma entrevista com os detalhes da filmagem do documentário, produzido em condições bastante adversas, uma vez que Littín figurava entre os cinco mil exilados absolutamente proibidos de retornar à sua terra, à época da ditadura de Augusto Pinochet (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 7). Mais que isso, neste momento, García Márquez estabelece um pacto de leitura da obra com o leitor. Concebe-se neste espaço os não limites entre a veracidade, proveniente dos registros de Miguel Littín, por meio da série documental Acta general de Chile, de suas notas e da entrevista concedida a García Márquez, ao mesmo tempo em que são expostas as fronteiras da ficção, a partir da confissão, por parte do próprio escritor, de sua impossibilidade de isentar-se no momento de sua escrita. O estilo do texto final é meu, é claro, pois a voz de um escritor não é intercambiável, e menos ainda quando ele teve de comprimir quase seiscentas páginas em menos de cento e cinquenta. Em todo caso, procurei na medida do possível conservar os modismos chilenos da narração original, e respeitar sempre o pensamento do narrador, que nem sempre coincide com o meu (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 5-6)8. 8 Tradução desta autora. Texto original: “El estilo del texto final es mío, desde luego, pues la voz de un escritor no es intercambiable, y menos cuando ha tenido que comprimir casi seiscientas páginas en menos de ciento cincuenta. Sin embargo, he procurado en muchos casos conservar los modismos chilenos del relato original, y respetar en todos el pensamiento del narrador, que no siempre coincide con el mío” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 8). 61 Em La aventura de Miguel Littín clandestino en Chile, García Márquez descreve um “evento histórico”, que consiste nas experiências vividas por Littín no Chile. Tal “aventura humana” é recontada, de forma condensada, como o próprio escritor diz em sua introdução, a partir do acesso ao documentário, das notas e da memória de Littín, resgatada pela entrevista (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 8). Desse modo, o texto final é resultado do cruzamento de gêneros discursivos. Utiliza-se aqui a noção de gênero proveniente dos estudos de Bakhtin (1992) e, em especial, da retomada desses estudos por Fiorin (2005 e 2006) e por Barros (2009 e 2010). Dessa forma, define-se “gênero discursivo como uma organização relativamente estável em três aspectos: na temática, na forma e no estilo” (BARROS, 2010, p. 255). García Márquez, ao final de sua introdução, explica tratar-se de uma reportagem, na medida em que adota método de investigação e utiliza-se de materiais próprios desse gênero textual por excelência jornalístico. Ademais, como até aqui exposto, pode-se depreender tal postura como forma de conceder a Littín representatividade de sua palavra publicamente, assegurando-lhe espaço para exprimir-se e manifestar-se dentro do discurso social. No entanto, a obra não se resume, segundo García Márquez, a uma mera reportagem: Mas é mais: é a reconstrução emocional de uma aventura cuja finalidade última era sem dúvida muito mais profunda e comovente que o propósito original e bem sucedido de fazer um filme driblando os riscos do poder militar. O próprio Littín disse: “Este não é o ato mais heroico da minha vida, é o mais digno”. Assim é, e creio que esta é a sua grandeza (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 6)9. Diante do que propõe García Márquez, percebe-se, apesar de definir La aventura de Miguel Littín clandestino en Chile como reportagem, uma estruturação narrativa bastante intencionada à persuasão, dada a proposta de se conceder um caráter emocional à “aventura”. Pode-se compreender tal proposta como uma tentativa de se distanciar do jornalismo em voga à época, década de 1980, atrelado a uma estrutura mais técnica, calcada nos princípios da organização capitalista e da 9 “Pero es más: la reconstitución emocional de una aventura cuya finalidad última era sin duda mucho más entrañable y conmovedora que el propósito original y bien logrado de hacer una película burlando los riesgos del poder militar. El propio Littín lo ha dicho: “Este no es el acto más heroico de mi vida, sino el más digno”. Así es, y creo que esa es su grandeza” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 9). 62 ideologia liberal, praticado pela imprensa norte-americana, em que a objetividade e as isenções são privilegiadas (SODRÉ, 2009, p. 13). Em contrapartida, nota-se uma aproximação do modelo europeu de jornalismo, mais voltado às demandas sociais, dedicado aos conceitos de “honestidade” e “lealdade”, em lugar da “objetividade”, que atribui uma hierarquização menos rígida às informações e adota um caráter mais opinativo e analítico nas produções. Para além desses distanciamentos e aproximações, o jornalista e escritor, tendo alcançado maior notoriedade nesta última profissão, como alguém que domina a língua e seus recursos, não realizou escolhas despropositais. Nesse sentido, convém aprofundar-se no cruzamento de gêneros do qual deriva La aventura de Miguel Littín: o documentário, que recebe o nome de Acta general de Chile, remetendo, assim, ao gênero textual ata, e entrevista. O gênero documentário compreende a uma produção fílmica que explora temas relacionados à realidade, lançando mão de recursos não-ficcionais. Trata-se de um gênero por si mesmo híbrido, uma vez que requer de outros tantos gêneros para sua composição, como roteiros e entrevistas. A ata, por sua vez, define-se como um registro escrito sobre todos os acontecimentos e assuntos debatidos durante uma reunião ou assembleia formal. Configura-se como um gênero típico da esfera das atividades institucionais, com a função de registrar os argumentos e decisões durante as reuniões. Com relação à entrevista, esta pertence ao gênero jornalístico e pode servir, a grosso modo, de matéria-prima à reportagem, na medida em que se constitui como forma de coletar dados, podendo se dar de diferentes maneiras e com propósitos distintos, a partir de perguntas e respostas entre duas ou mais pessoas, tanto entrevistados quanto entrevistadores. La aventura de Miguel Littín deriva, assim, do cruzamento desses três gêneros, resultando num texto final híbrido, que García Márquez define ora como reportagem, ora mais do que isso. A reportagem, no que lhe concerne, afirma-se, segundo Sodré e Ferrari (1986), “como o lugar por excelência da narração jornalística”, ou seja, espaço em que se encontram personagens, ação dramática e descrições de ambiente capazes de despertar interesse humano. Compreende, portanto, uma extensão da notícia. Os autores apontam como principais características de uma reportagem: “a) 63 predominância da forma narrativa; b) humanização do relato; c) texto de natureza impressionista; d) objetividade dos fatos narrados” (SODRÉ; FERRARI, 1986, p. XX) Cabe salientar que García Márquez, caro às causas sociais, identifica-se com a história de Miguel Littín. Assim como fez em Relato de un náufrago, série de reportagens escrita a partir dos depoimentos do marinheiro Luis Alejandro Velasco, único sobrevivente do acidente que envolveu o destroier da marinha de guerra colombiana Arc Caldas, no ano de 1955, publicado em forma de livro em 1970, García Márquez dá voz a Littín, personagem do acontecimento, adotando, dessa forma, a primeira pessoa do singular. Mais que isso, García Márquez anuncia o seu estilo, que já vinha sendo praticado décadas antes, e, dessa forma, constrói a narrativa factual de Littín: recorrendo aos materiais a que teve acesso – documentário, notas e entrevista. Por outro lado, defronta-se com o desafio de narrar fatos nos quais não estava presente. Assim, lança mão do que Edvaldo Lima (2010) chamou de “evidenciar relações”, ao procurar, “na medida do possível, conservar os modismos chilenos da narração original, e respeitar sempre o pensamento do narrador, que nem sempre coincide com o” dele (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 8). Além disso, García Márquez adota uma perspectiva narrativa que estabelece efeitos de sentido que compõem a trajetória de uma aventura. Na medida em que a leitura está pautada por elementos que estruturam a narrativa, como a cronologia, definição de aspectos psicológicos dos personagens, tensões e clímax, o leitor é introduzido ao relato de García Márquez, cuja dinâmica é de uma narrativa de aventura. Utiliza-se, assim, de recursos provenientes da literatura para construir um relato jornalístico, praticando, dessa maneira, como exposto em capítulo anterior, o que ficou conhecido como jornalismo literário. Assim, o texto final de García Márquez estabelece um todo autônomo de sentido, por meio de recursos tanto jornalísticos: reconstituição dos acontecimentos por meio de fontes próprias desses gêneros; quanto de recursos próprios de uma narrativa literária: a cronologia do enredo, a composição dos personagens, as rupturas e o clímax do enredo. Nesta dualidade é possível identificar as construções do discurso social, tal qual é destacado nos estudos de Marc Angenot (2010). Segundo Angenot (2015, p. 266), há uma interdependência entre a forma do texto, o texto em si e o discurso social, que 64 ultrapassa a mera retransmissão inalterada do caráter social do discurso em circulação, uma vez que a forma textual não é estéril. Assim, adotando-se uma perspectiva sociocrítica, evidencia-se particularidades na construção textual que transformam a forma como se dá conta do discurso social no texto, ou seja, segundo Claude Duchet, criador desta linha teórica, do mise-en-texte. Tal perspectiva pode ser percebida na fala de Miguel Littín, incorporada por García Márquez nessa introdução, na qual é latente o quão marcante para ele foram as experiências do golpe militar no Chile, realizado em 11 de setembro de 1973, e seu consequente exílio, tanto que lhes serviram de motivação para o seu retorno clandestino e produção de Acta general de Chile, série de documentários coproduzida pela Televisión Española, em 1986. Devido à sua participação política, como integrante da Unidade Popular, coalizão de partidos de esquerda do Chile que apoiou a candidatura de Salvador Allende, eleito em 1970 e morto durante a tomada do governo pelos militares, Littín foi obrigado a se exilar na Espanha, assim como outros chilenos sob a mesma condição. Para além disso, baseando-se no que Angenot (2015) diz a respeito da literatura, na esteira dos estudos de Bakhtin e da sociocrítica, é possível defender que os textos, de maneira geral, são concebidos e recebidos dentro de um universo social saturado de palavras, debates, funções linguísticas e retóricas, ideologias e doutrinas com a pretensão de serem úteis, de fazerem conhecer, de maneira a conferir sentido (significado e direção) aos atos no mundo (ANGENOT, 2015, p. 267). Fala-se aqui em ideologias com o sentido de conjunto de ideias, concepções, opiniões, valores que proporcionam uma determinada concepção de mundo. Nesse sentido, por tudo o exposto acerca da figura histórica de Miguel Littín e da construção do personagem Miguel Littín, elaborado pelo texto de Gabriel García Márquez, é possível identificar tonalidade que marca tanto os ideais revolucionários, como a revolta e o ressentimento com o período ditatorial estabelecido no Chile. 4.2. O personagem Miguel Littín clandestino no Chile Partindo para a análise do enredo desenvolvido por Gabriel García Márquez em La aventura de Miguel Littín clandestino en Chile, cabe destacar a importância da esfera temporal, ou seja, a cronologia com que se sucedem os acontecimentos, de 65 forma a balizar a narrativa. Num primeiro momento, esta cronologia pode ser observada no exame dos títulos dos dez capítulos em que se divide o enredo: 1. Clandestino en Chile; 2. Primera desilusión: el explendor de la ciudad; 3. También los que se quedaron son exiliados; 4. Los cinco puntos cardinales de Santiago; 5. Un hombre en llamas frente la Catedral; 6. Dos muertos que nunca mueren: Allende y Neruda; 7. La policía en acecho: el círculo empieza a cerrarse; 8. Atención: hay un general dispuesto a contarlo todo; 9. Ni mi madre me reconoce; 10. Final feliz con la ayuda de la policía. Como personagem desta cronologia está Miguel Littín, criado por García Márquez, a partir e segundo o qual a história é contada. Enquanto personagem, seu discurso, que compõe o texto, ao qual Angenot (2015) nomeia de forma, revela os discursos da sociedade, de um “eu” coletivo, fragmentado, que vive o exílio por meio da aventura narrada por García Márquez. A fim de facilitar essa ideia de condensação de discursos sociais num personagem, pode-se fazer uma analogia com Fabiano, personagem criado por Graciliano Ramos em Vidas Secas (1938), que emana, através da construção ficcional, o discurso social do sujeito oprimido, sem voz, incapaz de se manifestar. A esse respeito, Antonio Candido (2006) atualiza o estudo da relação entre obra e condicionamento social. Se num primeiro momento o valor deste vínculo entre obra e ambiente era dimensionado por quanto uma obra expressava ou não determinado aspecto da realidade, num segundo, passou-se a dar importância às estruturas formais em detrimento do conteúdo, cujo elemento social era descartado como critério de compreensão. Porém, Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas; e que só a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos necessários do processo interpretativo. Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno (CANDIDO, 2006, p. 13-14, grifos do autor). Nesse sentido, o Littín de García Márquez condensa a opressão do sujeito na condição de exilado, imanente na trajetória de aventura narrada em La aventura de Miguel Littín clandestino en Chile. 66 A narrativa se inicia com a aterrissagem do voo de Littín, proveniente de Assunção, no Paraguai, no aeroporto de Santiago do Chile. Sob uma aura de suspense policial, o narrador descreve a situação: Eu, Miguel Littín, filho de Hernán e Cristina, diretor de cinema e um dos cinco mil chilenos absolutamente proibidos de regressar, estava de novo em meu país depois de doze anos de exílio, embora ainda exilado dentro de mim mesmo: levava uma identidade falsa, um passaporte falso e até uma esposa falsa. Minha cara e minha aparência estavam tão modificadas pela roupa e pela maquiagem, que nem minha própria mãe me reconheceria em plena luz, alguns dias mais tarde (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 7)10. O trecho compreende à apresentação de Littín: primeiro sua genealogia – “filho de Hernán e Cristina”, depois sua ocupação – “diretor de cinema” – e sua condição e situação – “um dos cinco mil chilenos absolutamente proibidos de regressar, estava de novo em meu país depois de doze anos de exílio, embora ainda exilado dentro de mim mesmo”. Porém, destaca-se a condição de exilado dentro de si mesmo, destituído de sua própria identidade para assumir uma personalidade falsa, ressaltada pela repetição da palavra “falsa”. Esta questão identitária, logo de início, já se mostra bastante significativa. Ao mesmo tempo em que Littín se vê obrigado a mudar de personalidade, a fim de proteger-se, depara-se com a dificuldade de se ajustar às características desta nova identidade: um uruguaio de negócios, o que o obrigou a mudar completamente, tanto no estilo de se vestir quanto na maneira de falar, e, principalmente, evitar rir. A única coisa que devia evitar era rir, pois meu riso é tão característico que teria me delatado apesar de meu disfarce. Tanto que o responsável por minha mudança me advertiu com todo o dramatismo de que foi capaz: “Se você der uma risada, morre”. Porém, uma cara de tijolo, incapaz de um sorriso, não seria nada estranha num tubarão internacional dos grandes negócios (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 13)11. 10 “Yo, Miguel Littín, hijo de Hernán y Cristina, director de cine y uno de los cinco mil chilenos con prohibición absoluta de regresar, estaba de nuevo en mi país después de doce años de exilio, aunque todavía exiliado dentro de mí mismo: llevaba una identidad falsa, un pasaporte falso, y hasta una esposa falsa. Mi cara y mi apariencia estaban tan cambiadas por la ropa y el maquillaje, que ni mi propia madre había de reconocerme a plena luz unos días después” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 11). 11 “Lo único que debía evitar era reírme, pues mi risa es tan característica que me habría delatado a pesar del disfraz. Tanto, que el responsable de mi cambio me advirtió con todo el dramatismo de que fue capaz: “Si te ríes te mueres”. Sin embargo, una cara de ladrillo incapaz de una sonrisa no sería nada raro en un tiburón internacional de los grandes negócios” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 20). 67 Sua transformação em outro deu-se com a ajuda de “dois psicólogos e um maquiador de cinema, sob a direção de um especialista em operações especiais clandestinas, destacado lá do Chile” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 10)12. No entanto, sua marca característica, o riso, maior expressão da alegria e de sua essência, este não seria possível de ser “maquiado” e deveria ser, sob pena de morte, escondido por ele mesmo. Para além das mudanças físicas, que consistiram em tirar a barba, acentuar a calvície proeminente, tingir os cabelos, depilar as sobrancelhas e a adoção de óculos de grau, estava entre suas maiores dificuldades a mudança no estilo de se vestir, principalmente para alguém tão arraigado às suas ideias e modo de vida. Porque era ali que tinha que assumir a fundo a minha mudança de classe. Em vez das calças jeans que usava quase sempre, e de meus blusões de caçador, tinha que usar e me acostumar a usar roupas de tecido inglês de grandes marcas européias, sapatos de camurça, gravatas italianas de flores pintadas. Em vez de meu sotaque de chileno rural, rápido e atormentado, tinha que aprender uma cadência de uruguaio rico, que era a nacionalidade mais conveniente para minha nova identidade. Tinha que aprender a rir de um modo menos característico que o meu, tinha que aprender a caminhar devagar, a usar as mãos para ser mais convincente no diálogo. Enfim, tinha que deixar de ser um diretor de cinema, pobre e inconformado como tinha sido sempre, para transformar-me no que menos gostaria de ser neste mundo: um burguês satisfeito. Ou como dizemos no Chile: um momio. (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p.12)13. Percebe-se, assim, o surgimento de um personagem cindido entre o revolucionário do passado, que se vê obrigado ao exílio após um golpe governamental contrário ao seu posicionamento político, o cineasta chileno exilado, e a identidade que foi compelido a assumir para retornar à terra natal. Apesar dessa cisão interior, Littín, enquanto personagem criado por García Márquez, apresenta-se como um grande revolucionário, apegado a seus ideais, justamente os quais o motivaram a 12 “Dos psicólogos y un maquillista de cine, bajo la dirección de un experto en operaciones especiales clandestinas, destacado desde el interior de Chile” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 16). 13 “Porque era allí donde tenía que asumir a fondo mi cambio de clase. En vez de los pantalones de vaquero que usaba casi siempre, y de mis chamarras de cazador, tenía que usar y acostumbrarme a usar vestidos enteros de paño inglés de grandes marcas europeas, camisas hechas sobre medida, zapatos de ante, corbatas italianas de flores pintadas. En vez de mi acento de chileno rural, rápido y atormentado, tenía que aprender una cadencia de uruguayo rico, que era la nacionalidad más conveniente para mi nueva identidad. Tenía que aprender a reír de un modo menos característico que el mío, tenía que aprender a caminar despacio, usar las manos para ser más convincente en el diálogo. En fin, tenía que dejar de ser un director de cine, pobre e inconforme como lo había sido siempre, para convertirme en lo que menos quisiera ser en este mundo: un burgués satisfecho. O como decimos en Chile: un momio” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p.18, grifos do autor). 68 avançar em seu desejo de denunciar a realidade em que vivia o Chile sob a ditadura de Pinochet. O personagem Littín, ao ser descrito com esses elementos, constrói um paralelo com as polarizações históricas – os processos das lutas de classes, que foram ideais expressos por Miguel Littín enquanto “sujeito histórico”. No caso, há dubiedade entre o cineasta chileno inconformado e o uruguaio burguês satisfeito, o momio. Nosso propósito era muito simples no papel, mas na prática significava um grande risco: tratava-se de filmar um documentário clandestino sobre a realidade no Chile depois de doze anos de ditadura militar. A ideia era um sonho que dava voltas em minha cabeça há muito tempo, porque a imagem do país tinha-se perdido para mim nos nevoeiros da nostalgia, e para um homem de cinema não há modo mais certeiro de recuperar a pátria perdida que voltar a filmá-la por dentro. Este sonho fêz-se mais sufocante quando o governo chileno começou a publicar listas de exilados aos quais seria permitido o retorno, e não encontrei meu nome em nenhuma (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p.8)14. A fim de sustentar esta nova identidade de uruguaio rico, Littín “ganhou” uma esposa falsa, Elena, “uma militante da resistência chilena, jovem e muito atraente, designada pela sua organização para manter as comunicações com a rede clandestina interna, determinar os lugares apropriados para os encontros, avaliar a operação, marcar os encontros, velar pela nossa segurança” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 7)15, além de uma casa, localizada no 16º Distrito de Paris, que em nada se parecia com a sua própria. Lá, enquanto “se transformava em outro”, aprendia a viver com Elena e a desenvolver uma memória afetiva dentro daquela mansão, com o intuito de “evitar contradições futuras” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 19). Neste momento, instaura-se a memória como um elo identitário importante, que percorrerá toda a narrativa. Fala-se aqui em memória, segundo Jaques Le Goff, enquanto “propriedade 14 “Nuestro propósito era muy sencillo sobre el papel, pero en la práctica implicaba un gran riesgo: se trataba de filmar un documental clandestino sobre la realidad de Chile después de doce años de dictadura militar. La idea era un sueño que me daba vueltas en la cabeza desde hacía mucho tiempo, porque la imagen del país se me había perdido en las nieblas de la nostalgia, y para un hombre de cine no hay un modo más certero de recuperar la patria perdida que volver a filmarla por dentro. Este sueño se hizo más apremiante cuando el gobierno chileno empezó a publicar listas de exiliados a los que se les permitía volver, y no encontré mi nombre en ninguna” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p.13). 15 “[…] una militante de la resistencia chilena, joven y muy atractiva, designada por su organización para mantener las comunicaciones con la red clandestina interior, establecer los contactos secretos, determinar los lugares apropiados para los encuentros, valorar la situación operativa, concertar las citas, velar por nuestra seguridad” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 12). 69 de conservar certas informações, [...] [ao] conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas” (LE GOFF, 1990, p. 424). Para o personagem, Elena representa a censura, uma vez que fora orientada a manter Littín “na linha”, para sua própria segurança, função não muito bem aceita por ele. Findada a “aventura”, Littín reconheceria que o motivo de ser muitas vezes injusto com ela devia-se ao fato de, inconscientemente, relacioná-la a sua identidade falsa, contra a qual manteve forte resistência, ainda que fosse uma condição de vida ou morte (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 19). Quando chegou ao Chile, o único objeto que remetia à sua antiga identidade era um exemplar meio amarrotado de Los Pasos Perdidos, do romancista, ensaísta e músico cubano Alejo Carpentier, que carregava fazia quinze anos a todas a suas viagens com o intuito de combater seu medo incontrolável de viajar de avião (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 25). Este livro de Carpentier, publicado em 1953, é narrado por um dos personagens, um musicólogo cubano anônimo, que deixa sua vida entre a Europa e os Estados Unidos, país onde reside, para desbravar a selva latino-americana em busca de instrumentos indígenas para um museu estadunidense. A essência desta obra reside no confronto entre a cidade e a selva, o mundo civilizado e o mundo da barbárie, que emerge a partir de uma narrativa aventuresca sobre a busca de origens. Segundo Eduardo G. González (1972), o protagonista “se vê em uma situação que lhe tira de si mesmo, de sua habitual alienação, e lhe coloca frente a frente com seu passado e com o que este tem de iluminador para o resto de sua vida”16 (GONZÁLEZ, 1972, p. 585). Assim, o sujeito, por meio dessas experiências que lhe trazem a sua origem, descobre-se. Comparando a saga do musicólogo cubano com a de Miguel Littín, percebe-se semelhanças, na medida em que Littín, já tendo construído uma vida no exílio, particularmente na Europa, retorna sob a justificativa de retratar o Chile sob a ditadura, porém, como se mostra ao longo da narrativa, para ele próprio o sentido dessa “aventura” foi muito além desse mote. Não parece ter sido mera coincidência que Littín levasse Los pasos perdidos a tiracolo durante suas viagens, levando-se a crer que o personagem de Alejo Carpentier teria lhe servido de inspiração. 16 Tradução desta autora. Texto original: “El individuo se ve en una situación que le saca de si mismo, de su habitual enajenación, y le pone cara a cara con su pasado, y con lo que este tiene de iluminador para el resto de su vida”. 70 Na passagem pelo aeroporto de Santiago, Littín temia que sua identidade falsa fosse descoberta e que não conseguisse chegar ao hotel antes do toque de recolher. Ao contrário do que esperava, e da tensão tramada pela narrativa, sem grandes sobressaltos, Littín e Elena pegaram o táxi rumo ao hotel em que se hospedariam nos primeiros dias. No caminho, porém, foi tal a sua decepção, num primeiro momento, ao não se deparar com o horror que esperava. Santiago, ao contrário do que me contavam no exílio, aparecia como uma cidade radiante, com seus veneráveis monumentos iluminados e muita ordem e limpeza nas ruas. Os instrumentos de repressão eram menos visíveis do que em Paris ou Nova York. A interminável Alameda Bernardo O'Higgins abria-se frente aos nossos olhos como uma corrente de luz, vinda lá da histórica Estação Central, construída pelo mesmo Gustavo Eiffel que fez a torre de Paris. Até as putinhas sonolentas na calçada oposta eram menos indigentes e tristes que em outros tempos. De repente, do mesmo lado em que eu viajava, apareceu o Palácio de La Moneda, como um fantasma indesejado. Na última vez que eu o tinha visto, era uma carcaça coberta de cinzas. Agora, restaurado e outra vez em uso, parecia uma mansão de sonho no fundo de um jardim francês (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 22-23)17 Nesse ponto, Littín depara-se com uma inversão da aventura, em que passado e presente se apresentam de formas contrárias e muito diversas. No passado, a memória resgata a cidade de Santiago desordenada, o Palácio de La Moneda como “uma carcaça coberta de cinzas”, ao passo que o presente cintila uma cidade exuberante, “com seus veneráveis monumentos iluminados e muita ordem e limpeza nas ruas” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 23). O Palácio de La Moneda, sede do poder presidencial, o “fantasma indesejado” de Littín e símbolo da opressão iniciada em 11 de setembro de 1973, durante seu retorno lhe parece com “uma mansão de sonho no fundo de um jardim francês” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 23). A Alameda Bernardo O'Higgins, a Estação Central, “construída pelo mesmo Gustavo Eiffel que fez a torre de Paris”, e o Palácio de La Moneda representam, 17 “Santiago, al contrario de lo que nos contaban en el exilio, se mostraba como una ciudad radiante, con sus venerables monumentos iluminados y mucho orden y limpieza en las calles. Los instrumentos de la represión eran menos visibles que en París o Nueva York. La interminable alameda Bernardo O’Higgins se abría ante nuestros ojos como un torrente de luz, desde la histórica Estación Central, construida por el mismo Gustave Eiffel que hizo la torre de París. Inclusive las putitas trasnochadas en la acera opuesta eran menos indigentes y tristes que en otros tiempos. De pronto, del mismo lado en que yo viajaba, apareció el Palacio de la Moneda como un fantasma indeseado. La última vez que lo había visto era un cascarón cubierto de cenizas. Ahora, restaurado y otra vez en uso, parecía una mansión de ensueño al fondo de un jardín francés” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 33). 71 segundo Albino Chacón Gutiérrez, os “monumentos da micro-história identitária da cotidianidade do país”18 (GUTIÉRREZ, 2011, p. 15). Littín, diante desses monumentos em estado tão diferente do que havia imaginado, tanto em relação à época do golpe quanto ao período de exílio, quando lhe contavam sobre a cidade, fica perplexo e desiste de “olhar e admirar o esplendor material com que a ditadura tratava de apagar o rastro sangrento de mais de quarenta mil mortos, dois mil desaparecidos e um milhão de exilados” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 23). Assim, volta sua atenção à subjetividade das pessoas pelo caminho. Ninguém falava, ninguém olhava em nenhuma direção definida, ninguém gesticulava nem sorria, ninguém fazia o menor gesto que delatasse seu estado de espírito dentro dos casacos escuros, como se todos estivessem sozinhos numa cidade desconhecida. Eram rostos brancos que não revelavam nada, nem mesmo medo. Então começou a mudar meu estado de alma, e não pude resistir à tentação de sair do táxi para me perder na multidão. Elena me fez todas as advertências razoáveis, mas nem tantas nem tão explícitas como gostaria, com medo de ser ouvida pelo motorista. Preso de uma emoção irresistível, fiz o táxi parar e desci batendo a porta (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 23-24)19. Ao não encontrar respostas nas expressões das pessoas que avistava ao longo do caminho percorrido dentro do táxi, Littín, em aparente surto, lança-se para fora do automóvel. Após percorrer cerca de cem metros, “indiferente à iminência do toque de recolher”, consegue recuperar sua cidade, perdida entre o passado, a memória, os anos de exílio e o presente. Nota-se, nesse momento, uma ânsia, por parte de Littín, de se sentir novamente em sua Santiago. A consciência do risco de ser flagrado e a volta à realidade do momento em que vivia só aconteceram quando se deparou com carabineros (policiais militares chilenos). Porém, notando a tensão e a ansiedade com que vigiavam os transeuntes, e a impressão de que temiam mais que do ele próprio, Littín consolou-se. Nesse momento, a construção do personagem impetuoso emoldura o efeito aventureiro. Ele 18 Tradução desta autora. Texto original: “monumentos de la microhistoria identitaria de la cotidianidad del país” (grifos do autor). 19 “Nadie hablaba, nadie miraba en ninguna dirección definida, nadie gesticulaba ni sonreía, nadie hacía el menor gesto que delatara su estado de ánimo dentro de los abrigos oscuros, como si todos estuvieran solos en una ciudad desconocida. Eran rostros en blanco que no revelaban nada. Ni siquiera miedo. Entonces empezó a cambiar mi estado de ánimo, y no pude resistir la tentación de abandonar el taxi para perderme entre la muchedumbre. Elena me hizo toda clase de advertencias razonables, pero no tantas ni tan explícitas como hubiera querido, por temor de que la oyera el chofer. Presa de una emoción irresistible, hice parar el taxi y me bajé con un portazo” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 35). 72 rompe com o estabelecido, sai do script proposto e, ao enfrentar o risco, surge uma tensão na narrativa, que conduz o leitor firmemente pelos sentimentos antagônicos do personagem Littín. 4.3. No centro das nostalgias de Miguel Littín Ao passar por lugares que remetiam à sua história pessoal, como o edifício do antigo Canal de Televisão e o Departamento de Audiovisuais, onde havia iniciado sua carreira no cinema e a Escola de Teatro, onde fez, aos dezessete anos, um exame de admissão que foi definitivo em sua vida, Littín cai em nostalgia. Ao passar pelo Cine City, muitas emoções vieram-lhe à tona, ao ouvir uma pessoa cantando “Yo pisaré las calles nuevamente”, de Pablo Milanés. Passei pelo Cine City, onde vi pela primeira vez as obras-primas que até hoje me exaltam a vocação, e entre elas a menos esquecível de todas: Hiroshima, mon amour. De repente, alguém passou cantando a célebre canção de Pablo Milanés: Yo pisaré las calles nuevamente, de lo que fue Santiago ensangrentado. Era uma casualidade grande demais para ser suportada sem que eu sentisse um nó na garganta. Tremendo até os ossos esqueci a hora, esqueci minha identidade, minha condição clandestina, e por um instante voltei a ser eu mesmo e ninguém mais em minha cidade recuperada, e tive que resistir ao impulso irracional de me identificar gritando meu nome com todas as forças da minha voz, e enfrentar quem quer que fosse pelo direito de estar na minha casa (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 25)20. O trecho evidencia a transformação do registro histórico na memória do personagem a partir da confluência de discursos. Percebe-se a ressonância do discurso do “eu”, do Littín personagem, na “palavra do outro”, composição de Pablo Milanés, comprovando que nenhum texto se estabelece como uma obra individual, produto de um único sujeito e independente de um tempo e de um espaço. Nesse sentido, considerando os estudos de Bakhtin e Volochínov (1997), pode-se conceituar como dialogismo, enquanto que pela sociocrítica como manifestações dos discursos 20 “Pasé por el cine City, donde había visto por primera vez las obras maestras que todavía me exaltan la vocación, y entre ellas la menos olvidable de todas: Hiroshima, mon amour. De pronto, alguien pasó cantando la célebre canción de Pablo Milanés: Yo pisaré las calles nuevamente de lo que fue Santiago ensangrentado. Era una casualidad demasiado grande para soportarla sin sentir un nudo en la garganta. Estremecido hasta los huesos, me olvidé de la hora, me olvidé de mi identidad, de mi condición clandestina, y por un instante volví a ser yo mismo y nadie más en mi ciudad recuperada, y tuve que resistir el impulso irracional de identificarme gritando mi nombre con todas las fuerzas de mi voz, y enfrentarme a quien fuera por el derecho de estar en mi casa” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 37). 73 sociais. No texto de García Márquez, a presença da voz do cantor e compositor Pablo Milanés é retomada a partir do depoimento de Miguel Littín. A ideia da “palavra do outro” ganha ainda mais expressão, na medida em que García Márquez elege do longo depoimento de Littín este momento, fazendo-se perceber, com isso, a interação de três sujeitos – García Márquez, Littín e Pablo Milanés. Das questões acima expostas, pode-se depreender que os textos, na realidade, constituem-se de um constante processo de troca de conhecimentos e de valores que pressupõe um diálogo constante entre o eu e os outros, entre os valores do eu e os valores dos outros. Assim, a linguagem não pode se dissociar da vida social, uma vez que os valores se constroem dentro da vida em sociedade. A construção da narrativa de García Márquez remonta o depoimento de Littín, que, por sua vez, recortou de suas memórias o momento em que ouve a canção. A canção é introduzida por García Márquez e estabelece uma construção dialógica entre os discursos sociais disseminados, na qual o aspecto ideológico, imanente ao momento histórico, é retomado em diferentes níveis. Três sujeitos, três momentos históricos, que se unem nesta retomada da canção por García Márquez. Observa-se no texto de Gabriel García Márquez a intertextualidade externa ou explícita, visto que, segundo Fiorin (2003, p. 30), ele cita confirmando o texto citado: “De pronto, alguien pasó cantando la célebre canción de Pablo Milanés: Yo pisaré las calles nuevamente de lo que fue Santiago ensangrentado” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 37). Há também outro processo de relação intertextual presente: a estilização. Para Fiorin (2003, p. 31), este processo se caracteriza pela “reprodução do conjunto dos procedimentos do “discurso de outrem”, isto é, do estilo de outrem”. Como estilos o linguista define “o conjunto das recorrências formais tanto no plano da expressão quanto no plano do conteúdo (manifestado, é claro) que produzem um efeito de sentido de individualização” (DENIS BERTRAND, 1985 apud FIORIN, 2003, p. 31). Com o intuito de melhor esclarecer os processos, segue a letra da canção Yo pisaré las calles nuevamente, do cantor e compositor cubano Pablo Milanés, composta em cinco de outubro de 1974 (MILANÉS, 1976). Yo pisaré las calles nuevamente 74 de lo que fue Santiago ensangrentada, y en una hermosa plaza liberada me detendré a llorar por los ausentes. Yo vendré del desierto calcinante y saldré de los bosques y los lagos, y evocaré en un cerro de Santiago a mis hermanos que murieron antes. Yo unido al que hizo mucho y poco al que quiere la patria liberada dispararé las primeras balas más temprano que tarde, sin reposo. Retornarán los libros, las canciones que quemaron las manos asesinas. Renacerá mi pueblo de su ruina y pagarán su culpa los traidores. Un niño jugará en una alameda y cantará con sus amigos nuevos, y ese canto será el canto del suelo a una vida segada en La Moneda. Yo pisaré las calles nuevamente de lo que fue Santiago ensangrentada, y en una hermosa plaza liberada me detendré a llorar por los ausentes. Analisando-se o plano da expressão, é possível perceber o uso de pronomes (oblíquos, possessivos e reto) pertencentes à primeira pessoa do singular no texto de García Márquez (2003, p. 37, grifos desta autora): [...] me olvidé de la hora, me olvidé de mi identidad, de mi condición clandestina, y por un instante volví a ser yo mismo y nadie más en mi ciudad recuperada, y tuve que resistir el impulso irracional de identificarme gritando mi nombre con todas las fuerzas de mi voz, y enfrentarme a quien fuera por el derecho de estar en mi casa. Tal utilização dos pronomes em primeira pessoa se dá como forma de correspondência à presença desse mesmo recurso na canção de Pablo Milanés: “Yo pisaré las calles nuevamente/ [...] me detendré a llorar por los ausentes./ Yo vendré del desierto calcinante/ [...] a mis hermanos que murieron antes./ Yo unido al que hizo mucho y poco/ [...] Renacerá mi pueblo de su ruina/ [...] Yo pisaré las calles nuevamente” (MILANÉS, 1976, grifos desta autora). No plano do conteúdo, a estilização é adotada no texto de García Márquez a fim de defender as ideias contidas não só no discurso de Littín, mas também na canção 75 de Pablo Milanés, propondo continuidade ao discurso um do outro. Dessa forma, conforme Fiorin (2003, p.32), tem-se a estilização contratual, uma vez que García Márquez junta-se à voz de Pablo Milanés, com o intuito de reforçar as ideias do último. Assim, dá-se, ainda segundo Fiorin (2003, p.32), outro processo: a interdiscursividade, que se caracteriza pela incorporação de “percursos temáticos e/ou percursos figurativos, temas e/ou figuras de um discurso em outro”. Para o linguista, a “interdiscursividade não implica a intertextualidade, embora o contrário seja verdadeiro, pois, ao se referir a um texto, o enunciador se refere, também, ao discurso que ele manifesta” (FIORIN, 2003, p.35). Nesse sentido, as obras se orientam em torno de um mesmo contexto. A canção “Yo pisaré las calles nuevamente” teve letra e música compostas, em cinco de outubro de 1974, pelo cubano Pablo Milanés, um dos criadores do movimento musical nueva trova cubana, cuja influência foi a revolução castrista, à mesma época em que despontaram a nueva canción chilena, uruguaia e argentina, além das canções de protesto brasileiras. As canções desse cantor e compositor apresentam, de forma geral, um forte compromisso político e social, principalmente com a história recente da América Latina. “Yo pisaré las calles nuevamente” refere-se ao golpe militar chileno, encabeçado por Augusto Pinochet, em 11 de setembro de 1973, que culminou com a morte do então presidente Salvador Allende, ocorrida no Palácio de La Moneda, residência presidencial chilena. Na canção, o autor prevê dias melhores, após a deposição de Pinochet e o retorno da liberdade: Yo pisaré las calles nuevamente/ de lo que fue Santiago ensangrentada,/ y en una hermosa plaza liberada/ me detendré a llorar por los ausentes./ [...] Retornarán los libros, las canciones/ que quemaron las manos asesinas./ Renacerá mi pueblo de su ruina/ y pagarán su culpa los traidores. [...] (MILANÉS, 1976). Percebe-se, diante do exposto, que o recurso da intertextualidade explícita – citação e estilização – e da interdiscursividade proporcionam ao texto de Gabriel García Márquez, a partir do personagem Littín, uma grande força discursiva, na medida em que evoca a emoção do autor, do escritor, do cantor e, também, do receptor destes textos. Depois de tantas emoções, Littín chega, chorando, ao hotel onde se hospedaria com Elena. No quarto, quando viu Littín, Elena o repreendeu, dizendo-lhe como 76 pudera, diante da situação em que estavam, expor-se a tamanho risco e de forma gratuita, andando pelas ruas, sozinho, com a proximidade do toque de recolher. Littín, contrariado por Elena estar cumprindo com o seu papel de cuidar de sua segurança, sai do quarto, batendo a porta, a procura da equipe italiana dentro do mesmo hotel. Após encontrá-la, retorna ao quarto em que Elena já dormia. O silêncio absoluto da cidade, provocado pelo toque de recolher, impedia Littín de dormir, fazendo-o recordar do que ocorrera doze anos antes, quando o edifício da Chile Films, lugar onde trabalhava, foi cercado pelo exército e ele feito refém. Porém, valendo-se de bastante esperteza, Ely, sua verdadeira esposa, conseguiu confundir os soldados, dizendo-lhes que Littín estava ali por engano, apenas para apresentar uma queixa por seu automóvel ter sido destroçado a pauladas por seus vizinhos. O tenente me olhou perplexo. – Como é que você pode ser tão babaca para reclamar alguma coisa neste momento? – exclamou. – Saia daqui voando. Saí em disparada, certo de que iam atirar em mim pelas costas sob o eterno pretexto da Lei de Fuga. Mas não foi nada disso. Ely, a quem um amigo tinha dito que haviam me fuzilado na frente da Chile Films, viera buscar o cadáver. Em várias casas da rua estavam hasteando bandeiras, que era o código combinado para que os militares reconhecessem seus partidários. Por outro lado, já tínhamos sido denunciados por uma vizinha que conhecia nossa relação com o governo, minha participação entusiástica na campanha presidencial de Allende, as reuniões que eram feitas em minha casa enquanto o golpe militar ia se tornando iminente. Por tudo isso, não voltamos para casa. Passamos um mês mudando de um lugar a outro, com as três crianças e as coisas mais indispensáveis, fugindo da morte que nos pisava os calcanhares, até que o cerco se tornou tão asfixiante que nos meteu à força no túnel do exílio (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 30-31)21. Constata-se em Ely um senso um tanto quanto materno de proteção para com Littín, porque, como numa reação mista de desespero e instinto, ela vai atrás dele, morto ou vivo, e acaba lhe salvando. A partir desse momento, continuar no Chile 21 “El teniente me miró perplejo. -¿Cómo puede ser tan huevón para reclamar nada en este momento? –exclamó–. ¡Mándese a volar! Eché a correr, convencido de que me iban a disparar por la espalda con el eterno pretexto de la ley de fuga. Pero no fue así. La Ely, a quien un amigo le había dicho que me habían fusilado frente a Chile Films, venía a recoger el cadáver. En varias casas de la calle estaban izando banderas, que era la clave acordada para que los militares reconocieran a sus partidarios. Por otra parte, ya habíamos sido denunciados por una vecina que conocía nuestra relación con el gobierno, mi participación entusiasta en la campaña presidencial de Allende, las reuniones que se hacían en mi casa mientras el golpe militar iba haciéndose inminente. De modo que no volvimos a casa, sino que pasamos un mes cambiándonos de un lugar a otro, con los tres niños y las cosas más indispensables, huyendo de la muerte que nos pisaba los talones, hasta que el cerco se hizo tan asfixiante que nos metió a la fuerza por el túnel del exilio” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 45). 77 passou a ser cada vez mais perigoso e inviável, tendo em vista que Littín havia tido uma “participação entusiástica na campanha presidencial de Allende”, o que, logicamente, colocava ele e sua família na mira dos partidários do golpe. Assim, por uma questão de sobrevivência, Littín e sua esposa decidem exilar-se na Europa. 4.4. Os que ficaram também são exilados O terceiro capítulo, intitulado “También los que se quedaron son exiliados – Tres degolados tumban a um general”, apresenta características bastante particulares do estilo de Gabriel García Márquez. Nele, à maneira como tratou das informações em Relato de un náufrago (1970) e Crónica de una muerte anunciada (1981), relata, em tom de denúncia e na voz do personagem Littín, três assassinatos que ocorreram poucos meses antes da chegada clandestina do cineasta ao Chile. O relato se inicia com a descrição do espaço: La Plaza de Armas, kilómetro cero de Santiago e conjunto histórico-arquitetônico, situada a poucas quadras do hotel onde Littín estava hospedado até aquele momento. O Littín personagem, no texto de García Márquez, ressalta ser maior a vigilância nesse ponto da cidade, devido à localização da sede da Vicaría de la Solidariedad, “um grande bastião contra a ditadura auspiciado pelo cardeal Silva Henríquez e com o apoio não apenas dos católicos, mas de todos os que lutam pelo retorno da democracia no Chile” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 35)22. De fato, esta instituição, pertencente à Igreja Católica, foi criada em 1976, graças à solicitação do arcebispo Raúl Silva Henríquez ao papa Paulo VI. Mesmo sob forte pressão contrária do regime militar, a Vicaría de la Solidariedad ajudava os mais prejudicados pela repressão, oferecendo assistência legal e judicial aos casos de prisão política, assassinatos e desaparecimentos, além de custodiar e documentar as atrocidades cometidas23. Dessa forma, Gabriel García Márquez utiliza seu texto como meio de veicular essas informações, tal como o jornalismo, trazendo- as, através da fala de seu personagem Littín, ao leitor. 22 “[…] un gran bastión contra la dictadura auspiciado por el cardenal Silva Henríquez y con el apoyo no sólo de los católicos sino de todos los que luchan por el retorno de la democracia en Chile” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 51). 23 Informações disponíveis em https://ww3.museodelamemoria.cl/Informate/vicaria-de-la-solidaridad-el- organismo-que-presto-asistencia-a-las-victimas-de-la-dictadura/. Acesso em: 29 mai. 2019 78 Ali encontram refúgio e amparo humanitário os perseguidos de todas as cores, e é uma via rápida para ajudar quem precisa, com a certeza de que essa ajuda chegará onde deve chegar, especialmente aos presos políticos e suas famílias. Também dali são denunciadas as torturas e incentivadas as campanhas pelos desaparecidos, e contra todo tipo de injustiça (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 35-36)24. Explicados a função e o papel desempenhados pela instituição, Littín, por García Márquez, relata os três assassinatos que sucederam pouco antes da chegada clandestina do cineasta. Entre eles o de José Manuel Parada, sociólogo e funcionário da Vicária, “preso na presença de seus filhos pequenos em frente da escola onde estudavam, enquanto o trânsito era cortado pela polícia três quarteirões ao redor e todo o bairro era controlado por helicópteros militares” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 36)25. Com poucas horas de diferença, os outros dois foram sequestrados em diferentes lugares da cidade. Um deles, Manuel Guerrero, era dirigente da Associação Sindical de Educação no Chile e o outro, Santiago Nattino, um conhecido desenhista gráfico, “de quem não se sabia, até aquele momento, que tivesse militância ativa” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 36)26. No meio do estupor nacional, os três cadáveres degolados e com marcas de sevícia selvagem apareceram no dia 2 de março de 1985, num caminho solitário perto do aeroporto internacional de Santiago. O general César Mendoza Durán, comandante dos carabineros e membro da Junta do Governo, declarou à imprensa que o crime era o resultado das lutas internas dos comunistas, dirigidos por Moscou. Mas a reação nacional desfez a calúnia e o general Mendoza Durán, apontado pela opinião pública como o promotor da matança, teve que abandonar o governo. A partir de então, o nome da Rua Puente, uma das quatro que saem da Plaza de Armas, foi apagado da placa por mãos desconhecidas, e em seu lugar foi posto o nome com que agora ela é conhecida: Rua José Manuel Parada (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 36)27. 24 “Allí encuentran refugio y amparo humanitario los perseguidos de todos los colores, y es una vía expedita para dar ayuda a quienes la necesiten, con la seguridad de que llegará a donde debe llegar, en especial a los presos políticos y sus familias. También desde allí se denuncian las torturas y se fomentan campañas por los desaparecidos y por toda clase de injusticias” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 51). 25 “[…] aprehendido en presencia de sus pequeños hijos frente a la escuela donde éstos estudiaban, mientras el tránsito estaba suspendido por la policía tres cuadras a la redonda y todo el sector era controlado desde helicópteros militares” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 52). 26 “[…] de quien no se sabía hasta entonces que tuviera una militancia activa” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 52). 27 “En medio del estupor nacional, los tres cadáveres degollados y con huellas de una sevicia salvaje aparecieron el 2 de marzo de 1985, en un camino solitario cerca del aeropuerto internacional de Santiago. El general César Mendoza Durán, comandante del cuerpo de carabineros y miembro de la Junta de Gobierno, declaró a la prensa que el triple crimen era el resultado de pugnas internas de los comunistas, dirigidos desde Moscú. Pero la reacción nacional desbarató el infundio y el general Mendoza Durán, señalado por la opinión pública como el promotor de la matanza, tuvo que abandonar 79 A tentativa primeira do governo foi a de menosprezar a capacidade de discernimento da população chilena diante das mortes, apontando-as como resultado de lutas internas dos comunistas, dirigidos por Moscou. Depois de ter vindo à tona que o general César Mendoza Durán foi o responsável pelas mortes, ele teve de abandonar o governo. No entanto, ao contrário do que o governo esperava, persistiu por mais tempo entre os chilenos, como denuncia Littín: “O mal-estar daquele drama selvagem ainda estava no ar na manhã em que Franquie e eu chegamos como dois transeuntes a mais na Plaza de Armas” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 37)28. Conforme haviam combinado, Grazia, chefe da equipe de filmagem italiana, e sua equipe aguardavam Littín no lugar planejado. Assim que as três equipes de filmagem perceberam sua chegada, Littín assumiu a direção do filme. Nem ela nem eu devíamos buscar no momento nenhum detalhe que tornasse evidente o regime repressivo latente nas ruas. Naquela manhã tratava-se apenas de procurar a atmosfera de um dia qualquer, com ênfase especial ao comportamento das pessoas, que continuavam parecendo para mim, tal como o percebi na noite anterior, muito menos comunicativas que em outros tempos. Andavam mais depressa, quase que sem se interessar pelo que acontecia enquanto caminhavam, e mesmo quem conversava tinha um ar sigiloso e não acentuava as palavras com as mãos, como eu lembrava que faziam os chilenos de antes, e como continuam fazendo os do exílio (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 37)29. Naquele momento, Littín centra suas preocupações no quanto o cidadão chileno havia mudado o seu comportamento ao longo desses anos em que esteve no exílio. Com o intuito de captar conversas que deveriam lhe servir para a organização não daquela parte da filmagem, mas do filme como um todo, o cineasta andava, entre os grupos, portando um gravador em miniatura no bolso da camisa. el gobierno. Desde entonces, el nombre de la calle Puente, una de las cuatro que salen de la Plaza de Armas, fue borrado en la placa por manos desconocidas, y puesto en su lugar el nombre con que se le conoce ahora: calle José Manuel Parada” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 52-53). 28 “El malestar de aquel drama salvaje estaba todavía en el aire la mañana en que Franquie y yo llegamos como dos transeúntes más a la Plaza de Armas” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 53). 29 “Ni ella ni yo debíamos buscar por el momento ningún detalle que hiciera evidente el régimen represivo latente en las calles. Aquella mañana se trataba sólo de captar la atmósfera de un día cualquiera, con un énfasis especial en el comportamiento de la gente, que seguía pareciéndome, tal como lo percibí la noche anterior, mucho menos comunicativa que en otros tiempos. Andaban más de prisa, sin interesarse apenas por lo que sucedía a su paso, y aun los que conversaban lo hacían con un aire sigiloso y sin acentuar sus palabras con las manos, como yo creía recordar que lo hacían los chilenos de antaño, y como seguían haciéndolo los del exilio” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 53-54). 80 A fim de tomar notas, Littín sentou-se ao lado de uma senhora em um dos bancos da praça. Como sempre esqueço a caderneta de anotações, escrevia no verso das caixinhas de “Gitane”, os célebres cigarros franceses, dos quais tinha comprado uma boa provisão em Paris. Fiz assim ao longo da rodagem do filme, e embora não tenha sido com este propósito que conservei as caixinhas, as anotações me serviram como um diário de bordo para reconstruir neste livro os pormenores da viagem (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 37-38)30. Neste trecho, há a referência de uma das fontes utilizadas por García Márquez para a reconstrução da história vivida por Miguel Littín: as anotações de Littín feitas no verso de caixinhas de cigarro. Ou seja, García Márquez utilizou-se de todo arcabouço de informações à sua disposição para que fosse possível a reconstituição dos acontecimentos presentes em La aventura de Miguel Littín clandestino en Chile, sem, contudo, prescindir de seu estilo. A senhora ao lado de quem Littín se sentou poderia ser uma mera figurante. No entanto, “sem reagir de nenhum modo aos pombos que davam voltas sobre nossas cabeças e bicavam as pontas de nossos sapatos” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 38)31, examinava-o da cabeça aos pés. Fingindo ler o jornal, notei que me examinava da cabeça aos pés, sem dúvida porque minhas roupas eram menos comuns das de quem costumava andar pela praça naquela hora. Sorri para ela, que me perguntou de onde eu era. Então liguei o gravador com uma pressão imperceptível sobre o bolso da camisa. - Uruguaio - disse. - Ah - disse ela. - Quero parabenizá-lo pela sorte que vocês têm (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 38)32. 30 “Como siempre olvido la libreta de apuntes, tomaba mis notas en el revés de las cajetillas de Gitane, los célebres cigarrillos franceses, de los cuales había comprado una buena provisión en París. Así lo hice a lo largo de la filmación, y aunque no fue con ese propósito que conservé las cajetillas, las notas me sirvieron como un diario de navegación para reconstituir en este libro los pormenores del viaje” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 54). 31 “[...] sin inmutarse por las palomas que revoloteaban sobre nuestras cabezas y nos picoteaban los bordes de los zapatos” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 55). 32 Tradução desta autora. Texto original: Fingiendo leer el periódico, noté que me examinaba de pies a cabeza, sin duda porque mis ropas eran menos corrientes que las de quienes solían andar a aquellas horas por la plaza. Le sonreí, y ella me preguntó de dónde era. Entonces puse en marcha la grabadora con una presión imperceptible sobre el bolsillo de la camisa. - Uruguayo - le dije. - Ah -dijo ella -. Le felicito por la suerte que tienen ustedes (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 55). 81 A transeunte parabenizava-o pelo fim da ditadura uruguaia e o retorno do sistema eleitoral, do qual a senhora falava de maneira nostálgica, porém, sem ser explícita quanto à sua situação. O que Littín conseguiu foi que ela falasse, sem reservas, sobre a falta de liberdades individuais e do drama do desemprego que assolava o Chile. Num certo momento me mostrou os bancos de desempregados, palhaços, músicos, travestis, cada vez mais numerosos. - Olhe para essa gente - disse ela. - Passam dias inteiros esperando ajuda, porque não têm trabalho. Existe fome em nosso país. Deixei-a falar. Depois iniciei a segunda caminhada na praça, quando calculei que já tinha passado meia hora da primeira, e então Grazia mandou o cinegrafista me filmar sem se aproximar de mim, e tomando cuidado para não ser muito evidente para os carabineros (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 38- 39)33. Vendedores de rua sempre haviam existido no Chile, mas Littín não se lembrava de tantos como naquele momento. Vendia-se de tudo e os vendedores, além de numerosos, caracterizavam-se por ser diferentes entre si, revelando um “drama social” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 56). Ao lado de um médico desempregado, um engenheiro fracassado ou uma senhora com ares de marquesa que entregam por qualquer preço suas roupas de tempos melhores, há meninos sem pais oferecendo coisas roubadas ou mulheres humildes tratando de vender pães feitos em casa. Mas a maioria desses profissionais em desgraça renunciou a tudo, menos à dignidade. Atrás das barracas de bugigangas continuam vestidos como em seus prósperos escritórios de antes (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 39)34. Enquanto Littín caminhava por entre as pessoas gravando fragmentos de diálogos que poderiam servir para ilustrar as imagens depois, o cinegrafista filmava o ambiente da praça. Grazia, seguindo as instruções de Littín, já havia iniciado as 33 “A un cierto momento me mostró los escaños de desempleados, los payasos, los músicos, los travestis, cada vez más numerosos. -Mire esa gente -me dijo-. Pasan días enteros esperando ayuda, porque no tienen trabajo. Hay hambre en nuestro país. La dejé hablar. Luego inicié el segundo recorrido de la plaza cuando calculé que había pasado media hora desde el primero, y entonces Grazia dio al camarógrafo la orden de filmar sin acercarse a mí, y cuidando de no ser muy evidente para los carabineros” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 56). 34 “Al lado de un médico cesante, de un ingeniero venido a menos o de una señora con aires de marquesa que rematan por cualquier precio sus ropas de mejores tiempos, hay niños sin padres ofreciendo cosas robadas o mujeres humildes tratando de vender panes amasados. Pero la mayoría de esos profesionales en desgracia ha renunciado a todo, menos a la dignidad. Detrás de los puestos de baratijas siguen vestidos como en sus prósperas oficinas de antaño” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 56-57). 82 tomadas nos edifícios mais altos, para, por fim, filmar os carabineros. “Queríamos captar a tensão de seus rostos, muito mais notável à medida que aumentava a animação na praça, conforme se aproximava do meio-dia” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1987, p. 39)35. No entanto, os carabineros notaram a movimentação da câmara e, sentindo-se observados, exigiram de Grazia a licença para filmar ali. Assim que ela mostrou a eles a licença, deram-se por satisfeitos. Um deles, no entanto, pediu a Grazia para que não os filmasse, ao que ela replicou que tal proibição não figurava na licença e, enquanto italiana, não estava apta a aceitar ordens de qualquer um. Alguns dias depois, Littín decide almoçar sozinho e passar por alguns lugares que remetiam ao tempo em que Ely e ele ainda eram namorados. Sentei-me num banco para ler os jornais do dia, mas passava as linhas sem vê-las, porque era tão grande a emoção que sentia por estar sentado ali naquela diáfana manhã outonal, que não podia me concentrar. De repente soou o distante disparo de canhão que marca o meio-dia em Santiago, os pombos voaram espantados, e os carrilhões da Catedral soltaram no ar as notas da canção mais comovente de Violeta Parra: Gracias a la Vida. Era mais do que eu podia suportar. Pensei em Violeta, pensei em suas fomes e suas noites sem teto em Paris, pensei em sua dignidade a toda prova, pensei que sempre houve um sistema que a negou, que nunca sentiu suas canções e desprezou sua rebeldia (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 42)36. A exemplo da recuperação da canção de Pablo Milanés, a partir da canção “Yo pisaré las calles nuevamente”, mais uma vez, o trecho evidencia a transformação do registro histórico na memória do personagem a partir da confluência de discursos. Desta vez, no trecho em análise, mais do que a canção, retoma-se Violeta Parra e toda a sua representatividade histórica. Nascida em uma numerosa família em San Fabián de Alico, no sul do Chile, em 1917, Violeta del Carmen Parra Sandoval foi uma compositora, cantora, artista plástica e ceramista, considerada a mais importante folclorista e fundadora da música 35 “Queríamos captar la tensión de sus rostros, mucho más notable a medida que aumentaba la animación de la plaza por la proximidad del mediodía” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 57). 36 “Me senté en un escaño a leer los periódicos del día, pero pasaba las líneas sin verlas, porque era tan grande la emoción que sentía de estar sentado allí en aquella diáfana mañana otoñal, que no podía concentrarme. De pronto sonó el cañonazo distante de las doce, las palomas volaron espantadas, y los carillones de la Catedral soltaron al aire las notas de la canción más conmovedora de Violeta Parra: Gracias a la Vida. Era más de lo que podía soportar. Pensé en Violeta, pensé en sus hambres y sus noches sin techo de París, pensé en su dignidad a toda prueba, pensé que siempre hubo un sistema que la negó, que nunca sintió sus canciones y se burló de su rebeldia” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 61). 83 popular de seu país (MERTEN, 2017). Segundo Merten (2017), a atração de Violeta pelas raízes chilenas veio do irmão Roberto, folclorista, assim como ela influenciaria depois seus próprios filhos, Ángel e Isabel, a também tornarem-se músicos como a mãe. Desde muito jovem a música esteve presente em sua vida e na dos irmãos, participando do sustento da família. Violeta iniciou-se na política ao se casar, em 1939, com Luis Cereceda, um ativista comunista. Com ele participou da campanha para eleger Gabriel González Videla presidente do Chile em 1944. Em 1948, separou-se do marido e, naquele mesmo ano, gravou o primeiro disco com a irmã, Hilda – “Las hermanas Parra” (MERTEN, 2017). Encorajada por seu outro irmão, Nicanor, no início dos anos 1950, Violeta começa a aprofundar seus estudos na autêntica música chilena. Para tanto, percorreu o país pesquisando, compondo e cantando, tendo como base o folclore. Nesse período, aprendeu a tocar guitarrón, instrumento tradicional chileno, e descobriu a cerâmica e a pintura (MERTEN, 2017). No início dos anos 1960, já consagrada como artista, voltou à Europa, onde conheceu e apaixonou-se por Gilbert Favre, antropólogo e clarinetista suíço com quem foi viver na Suíça. Mudaram-se depois para o Chile, onde Violeta fundou sua “La Peña de los Parra”, espaço em que se iniciou a carreira de seus filhos Ángel e Isabel. Além da raiz chilena, Merten (2017) destaca a absorção de elementos musicais da Bolívia e da Venezuela à música de Violeta, que é reconhecida como a mãe da Nova Canção Chilena. Em 1967, morreu “por suas próprias mãos”, suicidando-se com um tiro na cabeça (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 42)37. Durante a ditadura militar de Augusto Pinochet, a memória de Violeta Parra, suas canções e seus filhos sofreram represálias e perseguições por representarem a liberdade e a esperança por novos dias. Assim, García Márquez, ao destacar Violeta Parra e sua canção Gracias a la Vida do longo depoimento de Miguel Littín, retoma muitos sujeitos e momentos históricos que se confluem no momento narrativo em que se encontra o cineasta. 84 Ainda ansioso pela nostalgia que o consumia, Littín decidiu ir almoçar em uma pensão, localizada na parte alta da cidade. O lugar parecia o mesmo, se não fosse pela ausência de clientes, assim como de funcionários, que demoram quase uma hora para servi-lo. Estava a ponto de terminar quando entrou um casal que eu não via desde que Ely e eu éramos clientes assíduos. Ele se chamava Ernesto, e era mais conhecido por Neto, e ela se chamava Elvira. Tinham um comércio sombrio a poucos quarteirões dali, onde vendiam imagens e medalhas de santos, terços, relicários e ornamentos fúnebres. Mas não se pareciam com o seu negócio, pois eram gozadores e engenhosos, e alguns sábados de tempo bom costumávamos ficar ali até muito tarde bebendo vinho e jogando cartas. Ao vê-los entrar de mãos dadas, como sempre, não apenas me surpreendeu sua fidelidade ao mesmo lugar depois de tantas transformações no mundo, como dois namorados tardios, entusiastas e ágeis, agora me pareciam dois anciãos gordos e melancólicos. Foi como um espelho onde vi de repente minha própria velhice (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 42-43)38. Protegido pela personalidade de uruguaio rico, não foi reconhecido pelo antigo casal de amigos, que almoçou próximo a mesa em que estava, apesar dos ocasionais olhares curiosos. No entanto, sem a menor suspeita de que algum dia tínhamos sido felizes na mesma mesa. Só naquele momento tive consciência de como eram longos e devastadores os anos de exílio. E não apenas para os que fomos embora, como supunha até então, mas também para eles: os que ficaram (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 43)39. Esta oportunidade fez com que Littín pudesse refletir mais profundamente sobre aqueles que ficaram, as mudanças em suas vidas, o exílio daqueles que ficaram. 38 “Estaba a punto de terminar cuando entró una pareja que no veía desde que la Ely y yo éramos clientes asiduos. El se llamaba Ernesto, más conocido como Neto, y ella se llamaba Elvira. Tenían un negocio sombrío a pocas cuadras de allí, en el cual vendían estampas y medallas de santos, camándulas y relicarios, ornamentos fúnebres. Pero no se parecían a su negocio, pues eran de genio burlón e ingenio fácil, y algunos sábados de buen tiempo solíamos quedarnos allí hasta muy tarde bebiendo vino y jugando a las barajas. Al verlos entrar cogidos de la mano, como siempre, no sólo me sorprendió su fidelidad al mismo sitio después de tantos cambios en el mundo, sino que me impresionó cuánto habían envejecido. No los recordaba como un matrimonio convencional, sino más bien como dos novios tardíos, entusiastas y ágiles, y ahora me parecieron dos ancianos gordos y mustios. Fue como un espejo en el que vi de pronto mi propia vejez” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 62). 39 “[...] sin la menor sospecha de que alguna vez habíamos sido felices en la misma mesa. Sólo en aquel momento tuve conciencia de cuán largos y devastadores eran los años del exilio. Y no sólo para los que nos fuimos, como lo creía hasta entonces, sino también para ellos: los que se quedaron” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 62-63). 85 4.5. Os cinco pontos cardeais de Santiago O sistema de filmagem com as equipes europeias foi tão eficiente que Santiago foi filmada de norte a sul em cinco dias. Quanto às pessoas a serem entrevistadas, tanto dirigentes clandestinos quanto aqueles que atuavam na legalidalidade, ficaram a cargo de Elena. Eu, por meu lado, tinha me resignado a não ser eu mesmo. Era um sacrifício duro para mim, sabendo que havia tantos parentes e amigos que queria ver - começando por meus pais – e tantos instantes da minha juventude que desejava reviver. Mas estavam num mundo proibido, pelo menos enquanto terminávamos o filme, de maneira que torci o pescoço dos afetos e assumi a condição estranha de exilado dentro de meu próprio país, que é a forma mais amarga de exílio (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 45)40. Mesmo diante de sua resistência à necessidade de delegar funções em prol da segurança de todos, Littín percebeu ter sido esta a melhor alternativa, uma vez que tal atitude fez com que nada de ruim se passasse a nenhum de seus colaboradores durante as filmagens do documentário. Mesmo assim, um dos responsáveis pela operação me disse bem humorado quando já estávamos fora do Chile: - Nunca, desde que o mundo é mundo, foram violadas tantas vezes e de forma tão perigosa tantas normas de segurança (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 45-46)41. Um dos mecanismos encontrados por eles para não levantar suspeitas era não ficar por muito tempo hospedados no mesmo hotel. Era preciso ter em conta também que, de acordo com o número de estrelas que o local de hospedagem apresentava, os serviços da ditadura lhes reservavam determinada atenção. Por exemplo, os hotéis cinco estrelas tornavam-se suspeitos devido ao frequente movimento de estrangeiros, 40 “Yo, por mi parte, me había resignado a no ser yo. Era un sacrificio duro para mí, sabiendo que había tantos parientes y amigos que quería ver -empezando por mis padres- y tantos instantes de mi juventud que deseaba revivir. Pero estaban en un mundo vedado, por lo menos mientras terminábamos la película, de modo que les torcí el cuello a los afectos y asumí la condición extraña de exiliado dentro de mi propio país, que es la forma más amarga del exilio” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 65). 41 “ Sin embargo, uno de los responsables de la operación me dijo de buen humor cuando ya estábamos fuera de Chile: - Nunca, desde que el mundo es mundo, se habían violado tantas veces y en forma tan peligrosa tantas normas de seguridade” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 66). 86 enquanto os de segunda categoria, por serem mais baratos, recebiam maior atenção em nas entradas e saídas dos hóspedes. Portanto o mais seguro era mudar-nos a cada dois ou três dias sem preocupar-nos com as estrelas, mas sem repetir nunca um hotel, pois tenho a superstição de que sempre me dou mal se retorno a um lugar onde corri algum risco. Esta crença surgiu em mim no dia 11 de setembro de 1973, enquanto a aviação bombardeava o Palácio de la Moneda e a confusão se apoderava da cidade. Eu tinha conseguido escapar sem problemas dos escritórios da Chile Films, onde tinha ido tentar resistir ao golpe com meus companheiros de sempre, e depois de levar em meu automóvel até o Parque Florestal um grupo de amigos que tinham motivos para temer por suas vidas, cometi o grave erro de regressar. Salvei-me por milagre, como já contei (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 46)42. Após a terceira mudança, Elena e Littín decidiram, além da mudança de hotéis, ocuparem quartos separados e assumirem novas personalidades, uma vez que o casamento fictício apresentava dificuldades. “Às vezes me registrava como gerente e ela como secretária, e às vezes como se não nos conhecêssemos” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 46)43. Na segunda semana, enquanto Elena cuidava das entrevistas com dirigentes legais e clandestinos e a autorização oficial para filmar no interior do Palácio de la Moneda ainda não havia sido entregue, Littín decidiu seguir com Franquie para o interior, começando por Concepción. Tal como estava previsto, aproveitaríamos aquela sexta-feira filmando ali mesmo nas ruas – e comigo aparecendo - para que os órgãos da ditadura não pudessem negar depois que eu tinha dirigido o filme dentro do Chile. Fizemos isso em cinco pontos característicos de Santiago: o exterior de La Moneda, o Parque Florestal, as pontes do rio Mapocho, o Monte de San Cristóbal e a igreja de San Francisco. Grazia tinha se encarregado de localizá-los e estudar o deslocamento da câmara nos dias anteriores, para não perder nenhum minuto, pois estava decidido que só dedicaríamos duas horas a cada lugar, ou seja, dez horas no total. Eu chegaria uns quinze minutos depois da equipe, e sem falar com nenhum de seus integrantes devia me incorporar à vida do lugar, fazendo algumas indicações de direção já 42 “Así que lo más seguro era mudarnos cada dos o tres días sin preocuparnos por las estrellas, pero sin repetir nunca un hotel, pues tengo la superstición de que siempre me va mal si regreso a un sitio donde he corrido un riesgo. Esta creencia se afincó en mí el 11 de setiembre de 1973, mientras la aviación bombardeaba La Moneda y la confusión se apoderaba de la ciudad. Yo había logrado escapar sin molestias de las oficinas de Chile Films, a donde había acudido para tratar de resistir al golpe con mis compañeros de siempre, y después de llevar en mi automóvil hasta el Parque Forestal a un grupo de amigos que tenían motivos para temer por sus vidas, cometí el grave error de regresar. Me salvé de milagro, como ya lo he contado” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 67). 43 “A veces me inscribía yo como gerente y ella como secretaria, y a veces como si no nos conociéramos” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 68). 87 combinadas com Grazia (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 48-49)44. A partir deste trecho, García Márquez concede a Littín espaço para descrever cada ponto de Santiago. Ele começa pela destruição do Palácio de la Moneda pelo bombardeio de 11 de setembro de 1973 e sua ocupação pela ditadura depois de uma grande reforma. Depois, chega ao Parque Florestal. O Parque Florestal exigiu menos tempo que o previsto, porque ao vê-lo de novo compreendi que meu interesse por ele era na verdade subjetivo. Na realidade, é um lugar muito bonito e um ponto característico de Santiago, principalmente sob os ventos de folhas amarelas daquela sexta-feira sonolenta. Mas o que mais me atraía era a procura de minhas nostalgias. Ali estava a Faculdade de Belas Artes, em cujas escadarias montei minha primeira peça de teatro, nem bem havia chegado de minha cidade. Mais tarde, sendo já um diretor de cinema desabrochando, tinha que atravessar o parque quase todos os dias para voltar para casa, e a luz de suas árvores frondosas ao entardecer ficou para sempre, em mim, misturada à lembrança de meus primeiros filmes. Não havia muito mais para dizer. Bastou-nos estabelecer uma curta caminhada minha através das árvores que se despojavam de suas folhas com um sussurro de chuva, e continuei caminhando até o centro comercial, onde Franquie me esperava (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 50-51)45. No entanto, quando menos esperava, Littín depara-se com uma figura conhecida e a possibilidade de ter ameaçado o seu segredo, além da segurança dos envolvidos. Na minha frente, caminhando na minha direção, vi uma mulher distinta, com um vestido de linho creme de duas peças, sem sobretudo, quase como que no verão, e que eu só reconheci quando estava a menos de três metros. Era 44 “Tal como estaba previsto, aquel viernes íbamos a aprovecharlo filmándome a mí mismo en las calles para que los servicios de la dictadura no pudieran negar después que fui yo quien había dirigido la película dentro de Chile. Lo hicimos en cinco puntos característicos de Santiago: el exterior de La Moneda, el Parque Forestal, los puentes del Mapocho, el Cerro de San Cristóbal y la Iglesia de San Francisco. Grazia se había ocupado de localizarlos y estudiar los emplazamientos de cámara desde los días anteriores para no perder ni un minuto, pues estaba resuelto que sólo dedicáramos dos horas a cada sitio, o sea diez horas en total. Yo llegaría unos quince minutos después del equipo, y sin hablar con ninguno de sus miembros debía incorporarme a la vida del lugar, haciendo algunas indicaciones de dirección ya acordadas con Grazia” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 70-71). 45 “El Parque Forestal nos llevó menos tiempo del previsto, porque al verlo de nuevo comprendí que mi interés por él era más bien subjetivo. En realidad, es un lugar muy bello y un sitio característico de Santiago, sobre todo bajo los vientos de hojas amarillas de aquel viernes sedante. Pero lo que más me atraía era la búsqueda de mis nostalgias. Allí estaba la Facultad de Bellas Artes, en cuyas escalinatas presenté mi primera pieza de teatro, apenas llegado de mi pueblo. Más tarde, siendo ya un director de cine en ciernes, tenía que atravesar el parque casi todos los días para volver a casa, y la luz de sus frondas al atardecer se me quedó enredada para siempre con el recuerdo de mis primeras películas. No había mucho más que decir. Nos bastó con establecer una corta caminata mía por entre los árboles que se despojaban de sus hojas con un susurro de lluvia, y seguí caminando hasta el centro comercial, donde Franquie me esperaba” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 74). 88 Leo, minha sogra. Tínhamos estado juntos seis meses antes na Espanha, e além do que ela me conhecia tanto, que era impossível que não me identificasse a tão curta distância. Pensei em dar a volta, mas então recordei que tinham me advertido para controlar esse impulso natural, pois muitos clandestinos que passaram de frente sem problemas, foram reconhecidos pelas costas. Tinha bastante confiança em minha sogra para não me alarmar se me descobrisse, mas ela não estava sozinha. Ia de braços dados com uma irmã, a tia Mina, que também me conhecia, e iam conversando em voz baixa, quase cochichando. Tampouco isso teria me preocupado se as circunstâncias fossem diferentes, mas temia a surpresa de ambas. Não teria sido estranho se disparassem gritos de plena emoção no meio da rua: “Miguel, filhote, você entrou, que maravilha!” ou qualquer coisa parecida. Além disso, era perigoso para elas saber do segredo de que eu estava clandestino no Chile (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 51-52)46. Apesar do risco, a experiência não passou de um susto. Sua sogra o olhou sem o notar, mas ele a escutou dizer “Os filhos dão mais problemas quando grandes” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 52)47. O encontro relatado é bastante inusitado e essa frase solta a respeito dos problemas dos “filhos grandes” eleva o efeito de dramaticidade já explícita nesse momento da trajetória de Littín. É possível pensar que esse breve comentário seja mais um elemento que compõe o quadro narrativo de García Márquez. Na sequência desse evento, o cineasta ficou tão perturbado que demorou a se recompor, fazendo-o perceber o quanto seus dias estavam sendo tranquilos até então. Assim, recomposto, seguiu, conforme combinado, ao encontro de Frankie para as filmagens nas pontes do rio Mapocho. Neste trecho da narrativa, García Márquez traz, na voz de Miguel Littín, informações acerca do rio e da população que vive em seus arredores. Nos meses seguintes ao golpe militar, o rio Mapocho ficou conhecido no mundo inteiro pelos cadáveres maltratados que suas águas arrastavam, depois dos assaltos noturnos das patrulhas militares aos bairros marginais: as famosas poblaciones de Santiago. Mas há alguns anos, e durante o ano inteiro, o drama do Mapocho são as turbas famélicas que disputam com os 46 “Frente a mí, caminando hacia mí, vi una mujer distinguida, con un vestido de dril crema de dos piezas, sin abrigo, casi como en verano, a la que sólo reconocí cuando estaba a menos de tres metros. Era Leo, mi suegra. Nos habíamos visto hacía apenas seis meses en España, y además me conocía tanto, que era imposible que no me identificara a tan corta distancia. Pensé volverme, pero entonces recordé que me habían advertido controlar ese impulso natural, pues muchos clandestinos que han pasado de frente sin problemas, han sido reconocidos de espaldas. Tenía bastante confianza en mi suegra para no alarmarme porque me descubriera, pero no iba sola. Llevaba del brazo a una hermana suya, la tía Mina, que también me conocía, y con la cual iba conversando en voz muy baja, casi cuchicheando. Tampoco esto me habría preocupado si las circunstancias hubieran sido distintas, pero le temía a la sorpresa de ambas. No hubiera sido raro que se pusieran a gritar de emoción en plena calle: “¡Miguel, mi hijito, entraste, qué maravilla!”. Cualquier cosa así. Además, era peligroso para ellas conocer el secreto de que yo estaba clandestino en Chile” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 75-76). 47 “Los hijos dan más problemas cuando están grandes” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 76). 89 cães e os urubus as sobras de comida atiradas ao curso do rio nos mercados populares (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 53)48. Poblaciones são comunidades carentes, que, como salienta o trecho em análise, pioraram com a tomada do governo pelos militares, aumentando a situação de precariedade das pessoas que ali viviam. Preocupada na aparência imediata de prosperidade nacional, a Junta Militar, desnacionalizou as instituições que Salvador Allende havia nacionalizado e diminuiu as restrições às importações. Ademais, dada a cumplicidade com os Estados Unidos e outros organismos internacionais, o Chile conseguiu facilidades de crédito. A dívida externa do Chile, que no último ano de Allende era de quatro bilhões de dólares, agora é de quase vinte e três bilhões. Basta dar um passeio pelos mercados populares do rio Mapocho para ver qual foi o custo social desses dezenove bilhões de dólares de desperdício. O milagre militar fez muito mais ricos uns poucos ricos, e fez muito mais pobres o resto dos chilenos (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 53)49. Evidencia-se, dessa forma, em tom de denúncia, o descaso com a população menos favorecida e o aumento da desigualdade social ao longo dos anos em que Littín esteve distante do Chile. Ainda na região do rio Mapocho, Littín faz mais algumas observações, principalmente ao observar a movimentação na ponte Recoleta. Durante o dia, a ponte sobre o rio serve de caminho para os enterros; enquanto à noite, quando não há toque de recolher, é caminho obrigatório para os clubes de tango e dança. A atenção de Littín voltou-se naquele momento, em especial, à juventude que o cercava. A música que se ouve a todo volume por todo lado - até nos ônibus blindados dos carabineros, que a escutam sem saber o que escutam -, são as canções 48 “En los meses siguientes al golpe militar, el río Mapocho se conoció en el mundo entero por los cadáveres maltratados que arrastraban sus aguas, después de los asaltos nocturnos de las patrullas militares a los barrios marginales: las famosas poblaciones de Santiago. Pero desde hace unos años, y durante todo el año, el drama del Mapocho son las turbas hambrientas que se disputan con los perros y los buitres los desperdicios de comer, arrojados al cauce desde los mercados populares” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 77). 49 “La deuda externa de Chile, que en el último año de Allende era de cuatro mil millones de dólares, ahora es de casi veintitrés mil millones. Basta un paseo por los mercados populares del río Mapocho para ver cuál ha sido el costo social de esos diecinueve mil millones de dólares de despilfarro. Pues el milagro militar ha hecho mucho más ricos a muy pocos ricos, y ha hecho mucho más pobres al resto de los chilenos” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 78). 90 dos cubanos Silvio Rodríguez e Pablo Milanés. As crianças que estavam na escola primária nos anos de Salvador Allende, são agora os comandantes da resistência. Isto foi para mim uma comprovação reveladora e ao mesmo tempo inquietante, e pela primeira vez me perguntei se na verdade serviria para alguma coisa minha safra de nostalgia (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 55)50. Pela primeira vez, Littín deu-se conta de que, apesar do domínio militar e de suas condutas atrozes, os anos haviam passado no Chile e que uma geração toda havia crescido sem ter tido a referência de uma forma de regime político diferente, como ocorrera com ele próprio. Diante da incerteza levantada por suas observações, decidiu desaparecer com Franquie por três dias. Pediu para que este avisasse Elena, mesmo que isso fosse contra as normas estabelecidas, visto que ela deveria saber, a todo tempo, seu paradeiro, uma vez que era responsável por sua segurança. As canções emblemáticas e os cantores que foram icônicos na luta pela liberdade configuram uma esfera simbólica na obra, contribuindo para moldar a figura de Littín, personagem que surge com sua cultura e suas paixões. 4.6. Um homem em chamas em frente à Catedral Para Littín, diante de suas condições, não havia meio mais seguro de viajar pelo Chile senão por trem. No entanto, seu companheiro Franquie não estava tão seguro disso, pois conhecia como era forte a vigilância nos trens. Mas eu alegava que por isso mesmo são mais seguros. Nenhum policial vai imaginar que um clandestino suba em um trem vigiado. Franquie, ao contrário, achava que a polícia sabe que os clandestinos viajam em trens, porque pensam que os lugares mais seguros são os mais vigiados. Achava, além disso, que um publicitário rico, com uma longa experiência e grandes negócios na Europa, está disposto a viajar nos estupendos trens europeus, mas não nos pobres trens do interior do Chile. Entretanto, foi convencido por meu argumento de que o avião para Concepción não é o mais recomendável para atender um compromisso ou um plano de trabalho, porque nunca se sabe se a neblina permitirá que ele aterrisse. A verdade, cá para nós, é que eu teria preferido o trem de qualquer jeito, por causa de meu medo incurável 50 “La música que se oye a todo volumen por todas partes -hasta en los autobuses blindados de los carabineros que la oyen sin saber lo que oyen-, son las canciones de los cubanos Silvio Rodríguez y Pablo Milanés. Los niños que estaban en la escuela primaria en los años de Salvador Allende, son ahora los comandantes de la resistencia. Esto fue para mí una comprobación reveladora, y al mismo tiempo inquietante, y por primera vez me pregunté si en realidad serviría para algo mi cosecha de nostalgias” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 81). 91 de avião (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 57)51. Por fim, depois de oito horas de viagem, chegaram a Concepción. No entanto, era preciso encontrar um lugar para barbearem-se e manterem seus disfarces, principalmente em uma cidade como Concepción, palco de grandes lutas sociais. Ali nasceu o movimento estudantil dos anos sessenta, ali Salvador Allende encontrou o apoio decisivo para sua eleição, foi ali que o presidente Gabriel González Videla iniciou a repressão sangrenta de 1946, pouco antes de fundar o campo de concentração de Piságua, onde foi treinado nas artes do terror e da morte um jovem oficial chamado Augusto Pinochet (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 59)52. Quando os personagens se deslocam para o centro da cidade, García Márquez denuncia, por meio do discurso de Miguel Littín, mais atrocidades cometidas pelo regime militar. Observa-se que as aventuras de Littín comungam com as denúncias sociais, marcas de uma forma de jornalismo. Dois anos antes, Sebastian Acevedo, um humilde mineiro de carvão, depois de muito tentar que alguma autoridade intercedesse por seus filhos que vinham sendo torturados após terem sido detidos por porte ilegal de armas, acabou ateando fogo contra seu próprio corpo em frente à catedral. Viveu ainda sete horas, lúcido e sem dor. A comoção pública foi tão radical que a polícia viu-se obrigada a permitir que sua filha o visitasse no hospital antes que ele morresse. Mas os médicos não quiseram que ela o visse em seu estado de horror, e só lhe permitiram falar com o pai através de um interfone. “Como posso saber se você é Candelária?”, perguntou Sebastián Acevedo ao ouvir sua voz. Ela lhe disse então o diminutivo carinhoso com o qual a chamava quando ela era menina. Os dois irmãos foram tirados das câmaras de tortura, tal como o pai mártir tinha exigido com sua vida, e postos à disposição dos tribunais ordinários. Desde então, os habitantes de 51 “Pero yo alegaba que por lo mismo son más seguros. A ningún policía se le ocurre que un clandestino suba en un tren. vigilado. Franquie, al contrario, creía que la policía sabe que la gente clandestina viaja en los trenes, porque piensa que los lugares más seguros son los más vigilados. Creía además que un publicista rico, con una larga experiencia y grandes negocios en Europa, está dispuesto a viajar en los estupendos trenes europeos, pero no en los pobres trenes de la provincia chilena. Sin embargo, lo convenció mi argumento de que el avión de Concepción no es el más recomendable para cumplir una cita o un plan de trabajo, porque nunca se sabe si la niebla le permitirá aterrizar. La verdad, entre nosotros, es que yo hubiera preferido el tren de todos modos, por mi miedo incurable al avión” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 84). 52 “Allí nació el movimiento estudiantil de los años sesenta, allí encontró Salvador Allende un apoyo decisivo para su elección, fue allí donde el presidente Gabriel González Videla inició las represiones sangrientas de 1946, poco antes de fundar el campo de concentración de Pisagua, donde se entrenó en las artes del terror y la muerte un joven oficial llamado Augusto Pinochet” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 86). 92 Concepción têm também um nome secreto para o lugar do sacrifício: praça Sebastián Acevedo (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 60)53. Em busca de um lugar onde pudesse se barbear, Littín percorreu diversos salões de cabelereiro que se diziam unissex, ou seja, que ofereciam serviços tanto para homens quanto para mulheres. No entanto, todas as vezes que lhes dizia “Quiero rasurarme”, respondiam-lhe que não ofereciam ali tal serviço. Assim, já irritado, perguntou a um menino se não havia por ali um salão de cabelereiros só para homens, como antigamente. Chegando lá, já se sentiu mais familiarizado. O odor do lugar lhe remetia ao de sua infância. - Quisiera rasurarme - disse. Os dois - e o cliente - me olharam surpreendidos. O ancião da escovinha me perguntou o que sem dúvida estavam pensando os três: - De onde o senhor é? - Chileno - disse, sem pensar, e me apressei em corrigir -: mas sou uruguaio. Eles não notaram que a correção era pior que o erro, mas me fizeram perceber que no Chile não se dizia rasurar há muitos anos. Para barbear, dizia-se afeitar. Talvez por isso nas barbearias de jovens unissex não entenderam meu idioma fora de uso, de chileno velho. Nesta, em compensação, se animaram com a chegada de alguém que falava como em seus bons tempos, e o barbeiro que estava livre me sentou na poltrona, colocou-me um lençol no pescoço, à antiga, e abriu uma navalha enferrujada (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 62)54. O trecho evidencia o quanto a língua havia mudado ao logo do tempo, a partir da utilização de uma inovação lexical percebida na comparação entre gerações. Depois de finalmente ter conseguido se barbear, seguiram para as minas de 53 “Vivió todavía siete horas, lúcido y sin dolor. La conmoción pública fue tan radical, que la policía se vio forzada a permitir que su hija lo visitara en el hospital antes de morir. Pero los médicos no quisieron que lo viera en su estado de horror, y sólo le permitieron hablar por el citófono. “¿Cómo sé yo que tú eres Candelaria?”, preguntó Sebastián Acevedo al oír la voz. Ella le dijo entonces el diminutivo cariñoso con que él la llamaba cuando era niña. Los dos hermanos fueron sacados de las cámaras de tortura, tal como el padre mártir lo había exigido con su vida, y puestos a disposición de los tribunales ordinarios. Desde entonces, los habitantes de Concepción tienen también un nombre secreto para el lugar del sacrificio: Plaza Sebastián Acevedo” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 87-88). 54 “-Quisiera rasurarme -dije. Tanto ellos como el cliente me miraron sorprendidos. El anciano de la escobilla me preguntó lo que sin duda estaban pensando los tres: -¿De dónde es usted? -Chileno -dije sin pensarlo, y me apresuré a corregir-: pero soy uruguayo. Ellos no notaron que la corrección era peor que el error, sino que me hicieron caer en la cuenta de que en Chile no se decía rasurar desde hacía años, sino afeitar. Tal vez por eso en las peluquerías de jóvenes unisex no entendieron mi idioma en desuso de chileno viejo. En ésta, en cambio, se animaron con la llegada de alguien que hablaba como en sus buenos tiempos, y el peluquero que estaba libre me sentó en el sillón, me puso la sábana en el cuello, a la antigua, y abrió una navaja oxidada” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 90-91). 93 carvão de Lota e Schwager. Porém, chegar ao destino foi mais difícil do que o previsto, devido aos três controles policiais que antecediam sua entrada. No primeiro posto, perguntados sobre o que iriam fazer em Lota e Schwager, o próprio Littín se surpreendeu com sua perspicácia: Disse que tínhamos vindo conhecer o parque, que é um dos mais bonitos da América por causa de suas araucárias anciãs e gigantescas, e também pela raridade de suas tantas estátuas rodeadas de pavões reais agourentos e cisnes de pescoço negro. Nosso propósito era usar o lugar para um filme de publicidade que divulgasse pelo mundo inteiro o prestígio de Araucária, um novo perfume batizado com esse nome em homenagem àquele lugar idílico (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 64)55. No segundo posto policial, tiveram as malas e o carro revistados. No entanto, chamou-lhes a atenção a câmera super-8, que, apesar de não ser profissional, carecia de autorização para filmar nas minas. No fim de uma ladeira estreita, chegaram, meia hora depois, ao terceiro posto de controle, que não exigiu nenhuma formalidade para entrarem no parque. Passamos ali a manhã inteira filmando com a Super-8 os lugares que a equipe iria filmar depois com as devidas autorizações. Desde nossas primeiras rodagens tinha se aproximado de nós um vigia para nos dizer que estavam proibidas até mesmo as fotografias simples. Repetimos para ele a história do filme de publicidade para o mundo inteiro, mas ele se agarrava nas suas ordens. Mesmo assim, ofereceu-se para acompanhar-nos até lá embaixo, onde estavam as minas, para que pedíssemos autorização a seus superiores. - Não vamos filmar mais - disse a ele. - Se quiser, venha com a gente para que fique mais tranqüilo. Aceitou, e voltamos a percorrer o parque com ele. Era jovem e com uma cara muito triste. Franquie mantinha a conversa viva, pois eu preferia falar apenas o indispensável com meu mau sotaque uruguaio. Em certo momento o vigia sentiu vontade de fumar, e demos a ele todos os nossos cigarros. Então nos deixou sozinhos, e continuamos filmando o que achamos necessário. Não só lá em cima, no parque, mas também embaixo, no exterior das minas (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 65)56. 55 “Dije que habíamos venido a conocer el parque, que es uno de los más hermosos de América por sus araucarias ancianas y gigantescas, y también por la rareza de sus tantas estatuas rodeadas de pavos reales aciagos y cisnes de cuello negro. Nuestro propósito era usar el lugar para una película de publicidad que divulgara por el mundo entero el prestigio de Araucaria, un nuevo perfume bautizado con ese nombre en homenaje a aquel lugar idílico” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 94). 56 “Allí pasamos toda la mañana filmando con la super-8 los lugares que el equipo iría a filmar después con los permisos en regla. Desde las primeras tomas se nos había acercado un vigilante para decirnos que estaban prohibidas hasta las fotografías simples. Le repetimos el cuento de la película de publicidad para el mundo entero, pero él se atenía a sus órdenes. Sin embargo, se ofreció para acompañarnos hasta abajo, donde estaban las minas, para que solicitáramos el permiso a sus superiores. -No vamos a filmar más ahora -le dije-. Si quiere acompáñenos para que esté más seguro. Aceptó, y volvimos a recorrer el parque con él. Era joven y con una cara muy triste. Franquie mantenía 94 Por intermédio dessas filmagens, Littín pôde estabelecer pontos, ângulos, lentes e distâncias que lhe interessavam. Ademais, registrou a miséria em que viviam os mineiros e os pescadores da região, que definiu como “uma realidade maniqueísta e quase inverossímil, mas é a realidade” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 65)57. A situação dos mineiros sempre ocupou espaço significativo entre as preocupações políticas chilenas, inclusive para Salvador Allende, para quem também era uma questão emocional. Em 1958, houve ali o que na época ficou sendo conhecida como “a marcha do carvão”, quando os mineiros cruzaram a ponte do Bío-Bío em uma multidão compacta, escura, silenciosa, que ocupou a cidade de Concepción com bandeiras e cartazes, e com uma determinação de luta que pôs o governo em xeque. O episódio foi registrado no filme Banderas del Pueblo, do chileno Sérgio Bravo, e é um dos mais emocionantes documentários do cinema do Chile. Allende estava ali, e creio que foi então que teve a certeza decisiva do apoio de um povo inteiro. Depois, quando foi presidente, uma de suas primeiras viagens foi para dialogar com os mineiros na praça de Lota (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 66)58. Quando já presidente, Allende conversou com os mineiros para ouvir seus interesses e, então, chegar à prometida nacionalização. 4.7. Dois mortos que nunca morrem: Allende e Neruda As poblaciones, localizadas nas maiores cidades do Chile, devido às condições desiguais em relação às demais áreas das cidades, acabou por se caracterizar historicamente em polos ativos capazes de definir eleições durante os períodos democráticos. Dessa maneira, não foi diferente na produção de Acta general de Chile. viva la conversación, pues yo prefería no hablar más de lo indispensable con mi mal acento uruguayo. En cierto momento el vigilante tuvo ganas de fumar, y le dimos todos nuestros cigarrillos. Entonces nos dejó solos, y seguimos filmando cuanto creímos necessário” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 95-96). 57 “[...] una realidad maniquea y casi inverosímil, pero es la realidad” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 96). 58 “En 1958 hubo allí lo que entonces se conoció como “la marcha del carbón”, cuando los mineros cruzaron el puente del Bío-Bío en una muchedumbre compacta, oscura, silenciosa, que se tomó la ciudad de Concepción con banderas y pancartas, y con una determinación de lucha que puso en jaque al gobierno. El episodio fue registrado en la película Banderas del Pueblo, del chileno Sergio Bravo, y es uno de los más emocionantes del cine documental chileno. Allende estaba allí, y creo que fue entonces cuando tuvo la constancia decisiva del apoyo de un pueblo entero. Después, cuando fue presidente, uno de sus primeros viajes fue para dialogar con los mineros en la plaza de Lota” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 97). 95 “Para nós, foram decisivas para estabelecer, em termos de depoimento cinematográfico, qual o estado de ânimo popular em relação à ditadura e até que ponto se conserva viva a memória de Salvador Allende” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 69)59. A importância de Allende para La aventura de Miguel Littín clandestino en Chile supera o apreço de Littín pelo político enquanto pessoa e figura histórica. O próprio Gabriel García Márquez nutria uma grande admiração por Salvador Allende, expressa em texto publicado e assinado por ele à época da morte do presidente chileno La verdadeira muerte de un Presidente. O nome de Salvador Allende é o que mantém o passado e o culto à sua memória alcança um tamanho mítico nas poblaciones. Estas nos interessavam, acima de tudo, para conhecer as condições em que vivem, o grau de consciência frente à ditadura, suas formas imaginativas de luta. Em todas nos responderam com espontaneidade e franqueza, mas sempre em relação à lembrança de Allende. Muitos depoimentos separados pareciam um só: “Sempre votei nele, nunca em outro”. [...] Ao contrário de tantos políticos que só foram vistos nos jornais ou na televisão, ou escutados pelo rádio, Allende fazia política dentro das casas, de casa em casa, em contato direto e cálido com as pessoas, como ele era na realidade: um médico de família (GARCÍA MÁRQUEZ, 1983, p. 70)60. O culto ao presidente morto era tal que em uma das casas por onde Littín passou, atrás do quadro da Virgem, havia o retrato de Allende. Quase nunca dizem seu nome: dizem “O Presidente”. Como se ainda fosse, como se tivesse sido o único, como se estivessem esperando que regresse. Mas o que perdura na memória das poblaciones não é tanto a sua imagem, mas sim a grandeza de seu pensamento humanista. “Não nos importa a casa nem a comida, e sim que nos devolvam a dignidade”, diziam. E mais concretamente: - A única coisa que queremos é o que nos tomaram: voz e voto. (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 71)61. 59 “A nosotros nos resultaron decisivas para establecer en términos de cine testimonial cuál es el estado de ánimo popular en relación con la dictadura, y hasta qué punto se conserva viva la memoria de Salvador Allende” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 102). 60 “El nombre de Salvador Allende es el que sostiene el pasado, y el culto de su memoria alcanza un tamaño mítico en las poblaciones. Estas nos interesaban, ante todo, por conocer las condiciones en que viven, el grado de conciencia frente a la dictadura, sus formas imaginativas de lucha. En todas nos respondieron con espontaneidad y franqueza, pero siempre en relación con el recuerdo de Allende. Muchos testimonios separados parecían uno solo: “Siempre voté por él, nunca por otro”. [...] Al contrario de tantos políticos que sólo han sido vistos en la prensa o en la televisión, o escuchados por la radio, Allende hacía política dentro de las casas, de casa en casa, en contacto directo y cálido con la gente, como lo que era en realidad: un médico de família” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 102-103). 61 “Pues casi nunca dicen el nombre sino que dicen “El Presidente”. Como si lo fuera todavía, como si hubiera sido el único, como si estuvieran esperando que regrese. Pero lo que perdura en la memoria 96 O culto a Allende é ainda maior em Valparaíso, onde nasceu, cresceu e formou- se enquanto político. Foi ali, na casa de um sapateiro anarquista, que leu os primeiros livros teóricos e contraiu para sempre a paixão ensimesmada pelo xadrez. Seu avô, Ramón Allende, foi fundador da primeira escola laica que existiu no Chile e da primeira Loja Maçônica, na qual o próprio Salvador Allende atingiu o grau supremo de Grande Mestre. Sua primeira atuação memorável foi durante os “doze dias socialistas” do já mítico Marmaduque Grove, cujo irmão casou-se com uma irmã de Allende (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 72)62. O lugar onde foi enterrado tornou-se espaço de permanentes peregrinações, assim como a casa marinha da Isla Negra de Pablo Neruda, que recebe casais de namorados, visitantes, turistas e pessoas do mundo inteiro, mantendo viva a memória do poeta chileno. Não por acaso este capítulo é intitulado “Dos muertos que nunca mueren: Allende y Neruda”, pois García Márquez conheceu Neruda à época em que Allende concorria à presidência, em 1970. Depois, uma “das primeiras decisões do vitorioso Allende seria nomear Neruda embaixador do Chile em Paris em 1971” (MARTIN, 2009, p. 362). Um letreiro adverte que a casa está lacrada pela polícia, e que é proibido entrar e tirar fotografias. O carabinero que rondava por ali de tanto em tanto foi ainda mais explícito: “Aqui está proibido tudo”. Como isto a gente já sabia antes de chegar, o cinegrafista italiano levou um equipamento grande, muito visível, para que fosse retirado na barreira dos carabineros, e levou escondido outro equipamento, portátil. Além disso, o grupo foi dividido em três automóveis, com o fim de levar os rolos de filme para Santiago conforme fossem sendo filmados. Assim, se fôssemos surpreendidos, só perderíamos o material que tivéssemos naquele momento. No caso de uma surpresa eles fingiriam não me conhecer, e Franquie e eu seríamos turistas inocentes (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 74)63. de las poblaciones no es tanto su imagen, como la grandeza de su pensamiento humanista. “No nos importa la casa ni la comida, sino que nos devuelvan la dignidad”, decían. Y concretaban: - Lo único que queremos es lo que nos quitaron: voz y voto” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 105). 62 “Fue allí, en casa de un zapatero anarquista, donde leyó los primeros libros teóricos y contrajo para siempre la pasión ensimismada del ajedrez. Su abuelo, Ramón Allende, fue fundador de la primera escuela laica que hubo en Chile, y de la primera Logia Masónica, en la cual el mismo Salvador Allende alcanzó el grado supremo de Gran Maestro. Su primera actuación memorable fue durante “los doce días socialistas” del ya mítico Marmaduque Grove, cuyo hermano se casó con una hermana de Allende” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 106). 63 “Un letrero advierte que la casa está sellada por la policía, y que se prohibe entrar y tomar fotografías. El carabinero que rondaba por allí cada cierto tiempo fue todavía más explícito: “Aquí está prohibido todo”. Como esto lo sabíamos antes de llegar, el camarógrafo italiano llevó un equipo grande muy 97 Por sorte, mesmo estando o pessoal de filmagem bem preparada para todas as proibições de filmagem na região da casa marinha da Isla Negra de Pablo Neruda, nada foi apreendido nem ninguém foi impedido de transitar, pois os carabineros haviam ido almoçar quando a equipe deixou o local. Filmamos tudo, não só o que estava previsto mas muito mais, pois Ugo estava dentro do mar, embriagado pelos tremores, e se metia até a cintura nas ondas que arrebentavam com um estrondo pré-histórico contra as rochas. Arriscava a vida, porque mesmo sem terremotos esse mar indomável o teria arrastado até os rochedos. Mas ninguém podia impedi-lo. Ugo filmava sem parar, sem direção, delirando no visor, e qualquer um que conheça por dentro o ofício do cinema sabe muito bem que é impossível dirigir ou controlar um cinegrafista em transe (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 76)64. Para garantir a preservação do material filmado, era necessário enviá-lo com urgência à Grazia, em Santiago, que partiria com os rolos filmados para a Itália. Com o intuito de garantir segurança e discrição, definiu-se sua viagem seria no dia da chegada do novo cardeal do Chile de Roma, monsenhor Francisco Fresno, para substituir o cardeal aposentado Silva Henríquez, por conta de seus setenta e cinco anos recém completados. Assim, Grazia conseguiu despachar os materiais e embarcar no mesmo avião em que acabava de chegar o cardeal (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 115). 4.8. A polícia à espreita: o cerco começa a fechar-se Enquanto Littín filmava em Concepción e Valparaíso, Elena passava por um período angustiante. Sabendo que o cineasta era um grande adepto do improviso, prolongou o máximo que pôde o alarme de segurança (para até o meio-dia de visible para que fuera retenido en la posta de carabineros, y llevó escondido otro equipo portátil. Además, el grupo fue repartido en tres automóviles, con el fin de llevarse los rollos a Santiago a medida que fueran filmándose, de modo que si éramos sorprendidos sólo perderíamos el material que tuviéramos en ese momento. En caso de una sorpresa ellos fingirían no conocerme, y Franquie y yo seríamos dos turistas inocentes” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 109). 64 “Filmamos todo, no sólo lo que estaba previsto sino mucho más, pues Ugo estaba como embriagado por los temblores dentro del mar, y se metía hasta la cintura en el oleaje que reventaba con un estruendo prehistórico contra las rocas. Arriesgaba la vida, porque aun sin terremotos ese mar indomable lo habría arrastrado hasta los cantiles. Pero nadie podía impedirlo. Ugo filmaba sin parar, sin dirección, delirando en el visor, y todo el que conoce por dentro el oficio del cine sabe muy bien que es imposible dirigir ni controlar a un camarógrafo en trance” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 112-113). 98 segunda-feira), no entanto, haviam marcado para as onze da manhã desse mesmo dia uma importante entrevista secreta com os dirigentes da Frente Patriótica Manuel Rodríguez. “Era, sem dúvida, a mais difícil e perigosa de todas as que tínhamos previsto, e a mais importante” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 79)65. Apesar de ser composta quase que integralmente por membros de uma geração de recém-saídos do primário quando Pinochet chegou ao poder, defendiam a união de todos os setores de oposição, a fim de sua derrubada e, então, retorno da democracia. Seu nome [Frente Patriótica Manuel Rodríguez] veio de um personagem alegórico da independência chilena, em 1810, que parecia ter poderes sobrenaturais para driblar todos os controles, tanto internos quanto externos, e que manteve a comunicação constante entre o exército libertador que operava em Mendoza, no lado argentino, e as forças clandestinas que resistiam dentro do Chile, depois que os patriotas foram derrotados e o poder reconquistado pelos realistas. Muitos elementos das condições de então têm semelhança mais do que notáveis com a situação atual do Chile (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 79-80)66. Entrevistá-los seria um privilégio o qual Littín não poderia perder. Cheguei sozinho a um ponto de ônibus da Rua Providência com a senha de identificação: o jornal El Mercurio do dia e um exemplar da revista Qué Pasa? Não tinha nada mais a fazer, a não ser esperar, até que alguém se aproximasse para perguntar: “O senhor vai para a praia?” Eu devia responder: “Não, vou ao zoológico”. O código me parecia absurdo, porque ninguém pensaria em ir à praia no outono, mas os oficiais de ligação da Frente Patriótica me disseram mais tarde, com toda a razão, que justamente por ser absurdo não havia nenhuma possibilidade de que alguém usasse o código por erro ou casualidade. Dez minutos depois, quando já sentia que minha presença era notória demais num lugar com tanta gente, vi aproximar- se um rapaz de estatura mediana, muito magro, que mancava da perna esquerda e usava uma boina que teria sido suficiente para que eu o identificasse como um conspirador. Dirigiu-se a mim sem dissimular, e eu cortei-lhe o passo antes que me dissesse a senha. - Você não podia ter se disfarçado de outra coisa? - disse eu rindo. - Porque do jeito que você está até eu o reconheci (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 80)67. 65 “Era, sin duda, la más difícil y peligrosa de cuantas habíamos previsto, y la más importante” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 118). 66 “El nombre le viene de un personaje alegórico de la independencia chilena de 1810, que parecía tener poderes sobrenaturales para burlar todos los controles, tanto internos como externos, y mantuvo la comunicación constante entre el ejército libertador que operaba en Mendoza, del lado argentino, y las fuerzas clandestinas que resistían en el interior de Chile, después de que los patriotas fueron derrotados y el poder reconquistado por los realistas. Muchos elementos de las condiciones de entonces tienen semejanzas más que notables con la situación de Chile” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 118). 67 “Llegué solo a un paradero de buses de la calle Providencia con la clave de identificación: El Mercurio de ese día y un ejemplar de la revista ¿Qué Pasa? No tenía nada más qué hacer hasta que alguien se 99 Mal o rapaz se aproximou de Littín, uma caminhonete identificada como sendo de uma padaria parou em frente ao cineasta, que subiu e sentou-se ao lado do motorista. Então demos várias voltas pelo centro da cidade e fomos recolhendo em diferentes pontos os membros da equipe italiana. Mais tarde, deixaram-nos em cinco lugares diferentes, tornaram a deslocar-nos separados em outros automóveis, e, no final, voltaram a reunir-nos e levar-nos em outra caminhonete onde já estavam as câmaras, as luzes e o equipamento de som. Eu não tinha a impressão de estar vivendo uma aventura séria e grave da vida real, mas sim de estar brincando de filme de espionagem. O contato de boina e cara de conspirador tinha desaparecido em uma das tantas voltas e nunca mais o vi. Em seu lugar, apareceu um motorista com pinta de gozador, mas de um rigor inquebrantável. Eu me sentei ao seu lado e o resto da equipe atrás, no compartimento de carga. - Vou levá-los para dar um passeio - ele disse -, para que sintam o cheirinho do mar chileno. Pôs o rádio no volume máximo e começou a dar voltas pela cidade, até eu não saber onde estávamos. Mesmo assim, para ele isso não foi suficiente, e mandou-nos fechar os olhos com um modismo chileno que eu já tinha esquecido: “Buenos chiquillos; ahora van a hacer tutito”. Percebendo que não ligávamos, insistiu de maneira mais direta: - Depressinha, vamos, é só fechar os olhinhos e não os abrir até que eu diga, porque senão a história acaba aqui mesmo (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 81)68. me acercara a preguntarme: “¿Va usted para la playa?”. Yo debía contestar: “No, voy al zoológico”. La clave me parecía absurda, porque a nadie se le ocurriría ir a la playa en otoño, pero los dos oficiales de enlace del Frente Patriótico me dijeron más tarde con toda la razón que justo por ser absurda no había ninguna posibilidad de que alguien la usara por error o por casualidad. A los diez minutos, cuando ya sentía que mi presencia era demasiado notoria en un lugar tan concurrido, vi acercarse a un muchacho de estatura mediana, muy delgado, que cojeaba de la pierna izquierda y llevaba una boina que me hubiera bastado para identificarlo como un conspirador. Se dirigió a mí sin ningún disimulo, y yo le salí al paso antes de que me diera el santo y seña. -¿No podías disfrazarte de otra cosa? -le dije riendo-. Porque así como estás hasta yo te reconocí” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 119). 68 “Entonces dimos varias vueltas por el centro de la ciudad y fuimos recogiendo en distintos puntos a los miembros del equipo italiano. Más tarde nos dejaron a todos en cinco lugares distintos, volvieron a desplazarnos por separado en otros automóviles, y al final volvieron a reunirnos en otra camioneta donde ya estaban las cámaras, las luces y el equipo de sonido. Yo no tenía la impresión de estar viviendo una aventura seria y grave de la vida real, sino jugando a una película de espías. El enlace de la boina y la cara de conspirador había desaparecido en alguna de las tantas vueltas, y nunca más lo vi. En su lugar apareció un conductor de talante bromista, pero de un rigor inquebrantable. Yo me senté a su lado, y el resto del equipo detrás, en el compartimiento de carga. -Los voy a llevar de paseo -nos dijo-, para que sientan el olorcito del mar chileno. Puso la radio a todo volumen y empezó a dar vueltas por la ciudad, hasta que ya no supe dónde estábamos. Sin embargo, a él no le bastó con eso, sino que nos ordenó cerrar los ojos con un modismo chileno que yo había olvidado: “Bueno chiquillos, ahora van a hacer tutito”. En vista de que no hacíamos caso, insistió de un modo más directo: -Apúrenle, pues, no más cierren los ojitos y no los abran hasta que yo les diga, porque si no, hasta ahí va a llegar el cuento” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 120-121). 100 Os italianos tiveram dificuldade para compreender a gíria chilena, e Littín lhes explicando não ficou muito mais fácil. Entretanto, perceberam que o melhor era seguir as orientações literais do cineasta. O enredo, neste momento, revela os meandros de um relato de aventuras e até mesmo constrói as bases de uma narrativa de suspense. Diante da necessidade de ficar com os olhos fechados, Littín deixou-se levar pelos boleros que tocavam na rádio, destacando o quanto o ritmo é representativo do país. A falta da visão e não conseguir identificar onde estava pelos outros sentidos o deixava inquieto. Porém, ao fim de dez boleros, a caminhonete parou e o motorista alertou-os para que continuassem com os olhos fechados. Desceram todos do veículo ainda de olhos fechados, mas de mãos dadas. Quando receberam ordens para abrir os olhos, estavam os cinco dentro de um quarto em frente a um homem jovem, bem vestido, com bigodes postiços tortos. Littín não se conteve e riu do rapaz. - Arrume-se melhor - disse a ele -, desse jeito ninguém acredita no bigode. Também ele deu uma gargalhada e tirou o bigode postiço. - É que eu estava meio apressado - disse. O gelo rompeu-se completamente e todos passamos brincando para outro quarto, onde jazia, em aparente sonolência, um homem muito jovem com a cabeça enfaixada. Só então compreendi que estávamos em um hospital clandestino muito bem conservado e que o ferido era Fernando Larenas Seguel, o homem mais procurado do Chile (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 83)69. Fernando Larenas Seguel era um militante cativo da Frente Patriótica Manuel Rodríguez. Duas semanas antes, quando regressava para sua casa em Santiago dirigindo sei automóvel, foi cercado por quatro homens com fuzis de guerra. Um deles disparou através do vidro, atingindo-lhe o antebraço esquerdo e ferindo-o no crânio. “Quarenta e oito horas depois, quatro oficiais da Frente Manuel Rodríguez o resgataram a tiros da Clínica Nuestra Señora de las Nieves, onde estava em estado de coma sob vigilância policial, e o levaram a um dos quatro hospitais clandestinos do 69 “ -Arréglate mejor -le dije-, que esos bigotes no te los cree nadie. También él soltó una carcajada y se los quitó. -Es que estaba muy apurado -dijo. El hielo se rompió por completo, y todos pasamos bromeando a la otra habitación, donde yacía en aparente sopor un hombre muy joven con la cabeza vendada. Sólo entonces comprendimos que estábamos en un hospital clandestino muy bien equipado, y que el herido era Fernando Larenas Seguel, el hombre más buscado de Chile” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 123-124). 101 movimento” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 84)70. Apesar de estar se recuperando no dia em que o entrevistaram, apresentou domínio suficiente para responder às perguntas da equipe. A alta direção da Frente Patriótica recebeu Littín e sua equipe poucos dias depois do encontro no hospital. Seguindo as mesmas precauções anteriores, o encontro se deu “em uma casa de classe média, alegre e cálida, com uma estonteante coleção de discos dos grandes mestres e uma excelente biblioteca literária” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 84)71. A idéia original era filmá-los encapuçados, mas no final decidimos protegê- los com recursos técnicos de iluminação e enquadramento. O resultado - como se vê no filme - é mais convincente e humano, e, naturalmente, muito menos truculento que as entrevistas tradicionais de dirigentes clandestinos (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 84)72. Assim que terminaram as entrevistas com personalidades públicas e secretas, que necessitavam de maior organização e segurança, Elena e Littín chegaram à conclusão de que seria melhor que ela voltasse às suas atividades na Europa, onde vivia. O cineasta confessaria, depois, que sentiu falta dela, apesar das “tantas horas de amores fingidos e sobressaltos em comum” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 84)73. Preocupado com a eventual impossibilidade de as equipes estrangeiras continuarem no projeto cinematográfico, Littín, com a ajuda da resistência interna, formou uma equipe de jovens cineastas chilenos. Foi um acerto. Esta equipe fez um trabalho tão rápido e com resultados tão bons quanto as outras, melhorado, além do mais, pelo entusiasmo de saber o que faziam, pois sua organização política nos deu a certeza de que não só eram de absoluta confiança como estavam bem treinados para o perigo. No final, quando os estrangeiros não eram suficientes, foi necessário ter mais pessoal para filmar nas poblaciones e essa equipe encarregou-se de criar outras, e estas outras, até que na última semana chegamos a ter seis equipes 70 “Cuarenta y ocho horas después, cuatro oficiales del Frente Manuel Rodríguez lo rescataron a tiros de la Clínica de Nuestra Señora de las Nieves, donde estaba en estado de coma bajo vigilancia policial, y lo llevaron a uno de los cuatro hospitales clandestinos del movimento” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 124). 71 “[...] en una casa de clase media, alegre y cálida, con una abrumadora colección de discos de los grandes maestros y una excelente biblioteca literária” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 125). 72 “La idea original era filmarlos encapuchados, pero al final decidimos protegerlos con recursos técnicos de iluminación y encuadre. El resultado -como se ve en la película- es más convincente y humano, y desde luego mucho menos truculento que las entrevistas tradicionales a dirigentes clandestinos” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 125). 73 “[...] tantas horas de amores fingidos y sobresaltos comunes” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 125). 102 chilenas trabalhando ao mesmo tempo em lugares diferentes. Para mim, elas serviram, além disso, para medir melhor o grau de determinação e a eficácia da geração nova que está empenhada, sem pressa e sem ruído, em libertar o Chile do desastre militar. Apesar da pouca idade, todos têm mais que uma visão do futuro. Têm um passado de façanhas incógnitas e vitórias ocultas, que levam guardado no coração com uma grande modéstia (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 84-85)74. Por fim, uma equipe tornou-se seis, à medida que mais braços foram sendo necessários. Enquanto Littín e a equipe italiana cuidava das entrevistas com a direção da Frente Patriótica, a equipe francesa cobria o norte do país, região histórica na formação dos partidos políticos no Chile, desde Luis Emilio Recabarren, responsável pela criação pela criação do primeiro partido trabalhador no início do século, até Salvador Allende. Nessa zona está uma das minas de cobre mais ricas do mundo, que foi industrializada pelos ingleses no século passado, nos tempos da revolução industrial, e deu origem à nossa classe operária. Dali vem, além disso, o movimento social chileno, sem dúvida o mais importante da América Latina (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 85)75. Para conversarem sobre as filmagens realizadas, o diretor da equipe francesa, Jean-Claude, e Littín não escolheram um lugar fixo para se encontrarem, mas sim a cidade de Santiago naquele outono decisivo. No dia marcado, os dois caminharam pelas ruas, tomaram café, comeram mariscos e beberam cerveja. À noite, como estavam longe do hotel, decidiram entrar no metrô. Eu não o conhecia, pois tinha sido inaugurado pela Junta Militar, embora a construção tenha sido iniciada no governo de Eduardo Frei e continuada no 74 “Fue un acierto. Este equipo hizo un trabajo tan rápido y con tan buenos resultados como el de los otros, mejorado además por el entusiasmo de saber lo que hacían, pues su organización política nos dio seguridades de que no sólo eran de absoluta confianza sino que estaban bien entrenados para el riesgo. Al final, cuando ya los extranjeros no eran suficientes, fue necesario tener más personal para filmar en las poblaciones, y este equipo se ocupó de crear otros, y éstos a otros, hasta el punto de que en la última semana llegamos a tener seis equipos chilenos trabajando al mismo tiempo en distintos lugares. A mí me sirvieron, además, para medir mejor el grado de determinación, y la eficacia de la generación nueva que está empeñada, sin prisa y sin ruido, en liberar a Chile del desastre militar. A pesar de la edad temprana, todos tienen más que una visión del futuro. Tienen ya un pasado de hazañas incógnitas y victorias ocultas, que llevan guardado en el corazón con una gran modéstia” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 126). 75 “En esa zona está una de las minas de cobre más ricas del mundo, que fue industrializada por los ingleses en el siglo pasado al mismo tiempo que la revolución industrial, y esto dio origen a nuestra clase obrera. De allí parte además el movimiento social chileno, sin duda el más importante de América Latina” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 127). 103 governo Allende. Surpreendeu-me sua limpeza e eficácia, além da naturalidade com que meus compatriotas tinham se acostumado a viajar debaixo da terra. Era um mundo que até então eu não tinha descoberto, porque carecíamos de argumentos convincentes para pedir autorização de filmagem. O fato de que tenha sido construído pelos franceses nos deu a ideia de que a equipe de Jean Claude poderia filmá-lo. Estávamos falando nisso quando chegamos à estação Pedro Valdívia e, na escada de saída, tive a impressão concreta de que alguém estava nos vigiando. Era verdade: um policial à paisana nos observava com tanta atenção que seu olhar e o meu se encontraram na metade do caminho (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 86)76. De tanto tê-los observado antes, Littín já estava familiarizado com o comportamento dos policiais civis, mesmo que estivessem à paisana entre a multidão. Vestidos com um casaco azul escuro fora de moda, o cabelo raspado quase a zero, como o dos recrutas, além da maneira peculiar de olhar, uma vez que os chilenos não costumam olhar uns aos outros quando caminham pelas ruas, denunciava-os facilmente. Reconheço que meu erro grave foi olhá-lo, mas havia sido inevitável, porque não foi um ato voluntário, mas sim um impulso inconsciente. Depois, pela mesma força instintiva, olhei primeiro à minha esquerda e, em seguida, à minha direita, e vi outros dois. “Fale-me qualquer coisa”, disse a Jean-Claude, em voz muito baixa. “Fale, mas não gesticule, não olhe, não faça nada”. Ele compreendeu e continuamos caminhando com a naturalidade de dois inocentes, até sairmos à superfície. Era de noite, mas o ar tinha ficado mais morno e mais claro que nos dias anteriores, e havia muita gente que regressava para casa pela Alameda. Então me separei de Jean-Claude (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 87)77. Separados, cada um foi para um lado. Jean-Claude foi para a direita e Littín meteu-se na multidão, onde conseguiu entrar em um táxi rapidamente. Os policiais, 76 “Yo no lo conocía, pues había sido inaugurado por la Junta Militar, aunque la construcción la inició el gobierno de Frei y la continuó el de Allende. Me sorprendió su limpieza y su eficacia, y la naturalidad con que mis compatriotas se habían acostumbrado a viajar por debajo de la tierra. Era un mundo que hasta entonces no había descubierto, porque carecíamos de un argumento convincente para solicitar el permiso de filmación. El hecho de que hubiera sido construido por los franceses, nos dio la idea de que el equipo de Jean-Claude pudiera filmarlo. Estábamos hablando de esto cuando llegamos a la estación Pedro Valdivia, y en la escalera de salida tuve la impresión inequívoca de que alguien nos estaba mirando. Así era: un policía de civil nos observaba con tanta atención, que su mirada y la mía se encontraron a mitad de caminho” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 128). 77 “Reconozco que mi error grave fue mirarlo, pero había sido inevitable, porque no fue un acto voluntario sino un impulso inconsciente. Luego, por la misma fuerza instintiva, miré primero a mi izquierda, y en seguida a mi derecha, y vi a otros dos. “Háblame de cualquier cosa”, le dije a Jean Claude en voz muy baja. “Háblame, pero no gesticules, no mires, no hagas nada”. El comprendió, y seguimos caminando con la naturalidad de los inocentes, hasta que salimos a la superficie. Era ya de noche, pero el aire se había hecho tibio y más claro que los días anteriores, y había mucha gente que regresaba a casa por la Alameda. Entonces me aparté de Jean-Claude” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 129). 104 ao saírem do metrô, não sabiam quem seguir. O cineasta, por sua vez, pegou outros três táxis, para sua maior segurança, só parando no primeiro cinema que viu, único lugar, para ele, onde encontraria segurança e tranquilidade para pensar. 4.9. Atenção: há um general disposto a contar tudo Para além dos contatos mediados por Elena, Littín havia conseguido outros com seus amigos do passado, como os que lhe ajudaram com a formação das equipes chilenas e a liberdade com que se movimentavam dentro das poblaciones. Um desses antigos contatos foi Eloísa, antiga companheira de atividades políticas durante a Universidade, além de ter participado com o cineasta do setor de propaganda da campanha presidencial de Salvador Allende. [...] mandei-lhe pelo correio um papel com uma única linha: "Antonio está aqui e quer vê-la". Era o nome falso com o qual ela me conheceu durante as lutas políticas universitárias e eu confiava que ela lembraria. Foi um cálculo correto. No dia seguinte, à uma em ponto, o tubarão prateado passou cantando pneus pela esquina de Apoquindo, na frente da agência Renault. Eu saltei para dentro, fechei a porta e ela ficou atônita até me reconhecer pelo riso. - Você está louco! - disse. - Que dúvida! – respondi (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 91-92)78. Littín contou a Eloísa sobre as filmagens de Acta general del Chile e pediu sua colaboração, visto que ela, por ser esposa de um industrial conhecido, correria menos riscos. O cineasta acreditava que a amiga de longa data poderia ajudá-lo a encontrar amigos da época em que pertenciam à Unidade Popular. Não só aceitou com grande entusiasmo, como durante três noites me acompanhou a reuniões secretas, em setores da cidade onde era menos perigoso chegar em um automóvel sagrado como o dela. - Ninguém pode acreditar que um BMW 635 seja inimigo da ditadura - disse, encantada (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 92)79. 78 “[...] le mandé por correo un papel con una sola línea: “Antonio está aquí y quiere verte”. Era el nombre falso con que ella me conoció durante las luchas políticas universitarias, y yo confiaba en que lo recordara. Fue un cálculo correcto. Al día siguiente, a la una en punto, el tiburón plateado pasó a vuelta de rueda por la esquina de Apoquindo, frente a la agencia Renault. Yo salté al interior, cerré la puerta, y ella se quedó atónita hasta que me reconoció por la risa. -¡Estás loco! -dijo. -Qué duda te cabe -le dije” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 136-137). 79 “No sólo aceptó con un gran entusiasmo, sino que durante tres noches me acompañó a reuniones 105 O automóvel de Eloísa, realmente, foi capaz de salvar Littín da prisão em uma das reuniões. Já cientes de que a resistência provocaria uma série de blecautes com o intuito de desestabilizar as forças da repressão, ficou combinado que, assim que a luz retornasse, Eloísa e Littín iriam embora, já os demais, sairiam depois separadamente. Assim que se restabeleceu a energia saímos por uma estrada sem calçamento na beira de uma montanha. De repente, numa curva, nos encontramos cara a cara com várias caminhonetes da CNI - a polícia secreta – que formavam uma espécie de túnel nos dois lados do caminho. Os agentes vestidos estavam armados com metralhadoras. Eloísa tratou de frear, mas eu a impedi. - É preciso parar - ela disse. - Continue - eu disse. - Não fique nervosa, vai conversando, vai rindo, e não pare enquanto não mandarem. Eu tenho meus documentos em ordem. Não tinha acabado de dizer isso quando toquei o bolso e meu fígado gelou: eu não tinha a carteira os documentos de identificação. Um dos homens parou no meio do caminho com um braço levantado e Eloísa teve que parar. Ele iluminou nosso rosto com uma lanterna de pilhas, explorou o interior do carro com o facho de luz e nos deixou passar sem pronunciar uma palavra. Eloísa tinha razão: não era possível acreditar na periculosidade de um automóvel como o dela (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 93)80. Passado o tremor do bloqueio de metralhadoras da CNI, Eloísa apresentou Littín à “sua sogra, uma viúva de mais de setenta anos, valente e engenhosa, que superava a solidão consumindo novelas de televisão, quando seu sonho dourado era ser protagonista de aventuras intrépidas da vida real” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 91)81. A ideia da aventura é retomada aqui como referência formal tanto ao secretas, en sectores de la ciudad donde era menos peligroso llegar con un automóvil sagrado como el suyo. -Nadie puede creer que un BMW 635 sea enemigo de la dictadura- dijo encantada” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 137-138). 80 “Tan pronto como se restableció la energía salimos por una carretera sin pavimento al borde de una montaña. De golpe, en una curva, nos encontramos de frente con varias camionetas de la CNI que formaban una especie de túnel a los dos lados del camino. Los agentes de civil estaban armados con metralletas. Eloísa trató de frenar, pero yo se lo impedí. -Es que hay que pararse -dijo ella. -Sigue -le dije yo-. No te pongas nerviosa, sigue conversando, sigue riéndote, y no te pares mientras no te lo ordenen. Yo tengo mis documentos en regla. No acababa de decirlo cuando me toqué el bolsillo, y se me heló el hígado: no tenía la cartera con los papeles de identidad. Uno de los hombres se nos atravesó entonces en el camino con el brazo levantado, y Eloísa tuvo que parar. Nos iluminó la caras ambos con una linterna de pilas, exploró el interior del coche con el haz de luz, y nos dejó pasar sin pronunciar una palabra. Eloísa tenía razón: no era posible creer en la peligrosidad de un automóvil como el suyo” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 138- 139). 81 “[...] su suegra, una viuda de más de setenta años, valiente e ingeniosa, que sobrellevaba la soledad 106 documentário quanto ao livro-reportagem. García Márquez utilizou os sentidos dessa operacionalização do documentário para construir sua narrativa de aventura. Clemencia Isaura, codinome escolhido para ela, quando mais nova, havia sido piloto de planadores no Canadá, além de uma boa marca em saltos de paraquedas, na época, uma ousadia para uma mulher já casada e com filhos. No entanto, quando Littín a conheceu, parecia uma senhora com hábitos ingleses, distanciando-a da personalidade aventureira de outrora. Quando soube que a procurávamos para um assunto clandestino, importante e perigoso, me disse: “Que bom, porque a vida fica tão chata que a gente se veste, se arruma, fica elegante, e não sabe para quê”. Entretanto, a proposta específica de que me ajudasse a localizar cinco pessoas em bairros difíceis da cidade provocou-lhe certa desilusão. - Se pelo menos fosse para jogar bombas! - disse ela (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 94)82. Os cinco homens os quais Littín estava em busca haviam trabalhado com ele antes da Unidade Popular. Nenhum deles foi exilado e continuaram a atuar politicamente nas frentes de resistência, contudo, com identidades diferentes. Os cinco tinham mudado de casa, de ofício e de identidade e eu não tinha nenhuma pista para encontrá-los. Há mais de mil chilenos vivendo assim, trabalhando na resistência com uma identidade diferente da que tiveram até 1973 e o desafio para Clemencia Isaura era encontrar o fio da meada para chegar até o novelo (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 95)83. Clemencia Isaura, depois, confessou a Liitín “que nunca tinha visto na televisão um filme tão emocionante como o que estava vivendo” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 95)84. Após caminhar dias inteiros por bairros periféricos de Santiago durante uma semana, ela encontrou três deles e ofereceu-lhes um jantar. Na ocasião, organizou- moliendo folletines de televisión, cuando su sueño dorado era ser protagonista de aventuras intrépidas de la vida real” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 135). 82 “Cuando supo que la buscábamos para un asunto clandestino, importante y peligroso, me dijo: “Qué bueno, porque aquí la vida es tan aburrida, que uno se viste, se arregla, se pone elegante, y no se sabe para qué”. Sin embargo, la propuesta específica de que me ayudara a localizar cinco personas en barrios difíciles de la ciudad, le causó una cierta desilusión. -¡Si al menos fuera para poner bombas! -dijo” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 140). 83 “Los cinco habían cambiado de casa, de oficio y de identidad, y yo no tenía ninguna pista para encontrarlos. Hay más de un millar de chilenos que viven así, trabajando en la resistencia con una identidad distinta de la que tuvieron hasta 1973, y el desafío para Clemencia Isaura era encontrar el cabo del hilo para llegar hasta el ovillo” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 141). 84 “[...] que nunca había visto en la televisión una película tan emocionante como la que había vivido” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 141). 107 se a primeira equipe chilena e os contatos a serem filmados nas poblaciones. Dada a sua posição social, Eloísa mantinha contato com pessoas de diferentes grupos sociais, entre elas militares de alta patente. Segundo ela, um dos fatores que contribuíram para a permanência de Pinochet no governo foi a retirada de oficiais de sua geração, restando no alto comando oficiais novos, que, no entanto, sempre lhe foram submissos incondicionalmente. Contudo, este também pode ser considerado seu ponto mais vulnerável, uma vez que esses novos oficiais não querem ser responsabilizados pelas atrocidades do regime, inclusive pela morte do presidente Salvador Allende. Tanto que têm intenção de estabelecer um acordo com os civis para que haja um pacífico retorno à democracia. “Frente à minha cara de assombro, Eloísa foi mais longe: pelo menos um general que ela conhecia estava disposto a fazer revelações públicas sobre as profundas fendas internas das Forças Armadas” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 96-97)85. Entretanto, Eloísa não poderia mediar o encontro entre Littín e esse general diretamente, pois viajaria com o marido para a Europa, onde ficariam três meses. Assim, Clemencia Isaura o fez: “Deu-me um joguinho eletrônico de xadrez, muito pequeno, com o qual eu deveria ir a partir do dia seguinte à Igreja de San Francisco, às cinco da tarde” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 97)86. Littín, a princípio, não entendeu o porquê de um joguinho, visto que lhe parecia algo um tanto quanto impróprio para se levar a uma igreja. Porém, lá dentro, muitas pessoas faziam o mesmo. Tinha esperado dois dias seguidos jogando xadrez com meu outro eu uruguaio, quando escutei atrás de mim um sussurro de mulher. Eu estava sentado e ela tinha se ajoelhado atrás de mim, de maneira que me falava quase ao pé do ouvido. - Não olhe nem diga nada - me disse, com voz de confessionário -, aprenda de cor o número de telefone e a senha que vou dar, e só saia da igreja quinze minutos depois de minha saída. Só quando se levantou e se dirigiu ao altar percebi que era uma freira muito jovem e muito bonita (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 97-98)87. 85 “Ante mi cara de asombro, Eloísa fue más lejos: por lo menos un general que ella conocía estaba dispuesto a hacer revelaciones públicas sobre las profundas grietas internas de las Fuerzas Armadas” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 144). 86 “Me dio un tablero electrónico para jugar partidas de ajedrez, muy pequeño, con el cual yo debía ir desde el día siguiente ala Iglesia de San Francisco, a partir de las cinco de la tarde” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 144). 87 “Había esperado dos días seguidos jugando ajedrez con mi otro yo uruguayo, cuando escuché detrás de mí un susurro de mujer. Yo estaba sentado, y ella se había arrodillado en el escaño detrás de mí, de modo que me hablaba casi en el oído. 108 Ansioso, nos dias seguintes, Littín ligou para o número de telefone passado pela freira, por meio do qual obteve a seguinte resposta: “Amanhã” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 98). No entanto, Littín foi surpreendido com uma notícia ruim vinda de Jean-Claude. A partir de um telegrama despachado de Santiago a France Presse e publicado em Paris, “três membros de uma equipe italiana de cinema que trabalhava no Chile em condições suspeitas tinham sido detidos pela polícia quando filmavam sem autorização na población de La Legua” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 98)88. Uma equipe não sabia de que outras equipes também trabalhavam para Littín, no entanto, isso fez com que o diretor da equipe francês, por analogia, temesse seu futuro. O cineasta chileno acalmou Jean-Claude e foi procurar pelos italianos, os quais foram encontrados “sãos e salvos” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 99). Grazia tinha regressado da Europa e já estava incorporada à equipe. Entretanto, Ugo me confirmou que a notícia tinha sido publicada também na Itália, embora a agência italiana o tivesse desmentido. O problema é que a falsa notícia se referia a eles com seus nomes, e tinha sido divulgada com grande rapidez. Isto não é estranho. Santiago sob a ditadura é um enxame de rumores. Eles nascem, reproduzem-se e desvanecem-se com uma profusão assombrosa várias vezes ao dia, mas no fundo têm sempre um fundo de verdade. A notícia sobre os italianos não foi uma exceção. Tanto se falou dela na noite anterior em uma recepção na embaixada italiana que quando os membros da equipe entraram foram recebidos nada menos que pelo chefe da Direção Geral de Comunicações (DINACO), que disse, para ser ouvido por todos os convidados: - Vêem? Aqui estão nossos três prisioneiros (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 99)89. -No mire ni diga nada -me dijo, con voz de confesionario-, apréndase de memoria el número de teléfono y el santo y seña que le voy a dar, y no salga de la iglesia antes de quince minutos después que yo. Sólo cuando se levantó y se dirigió al altar mayor me di cuenta de que era uma monja joven y muy bela” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 145) 88 “[...] tres miembros de un equipo italiano de cine que trabajaba en Chile en condiciones inciertas habían sido detenidos por la policía cuando filmaban sin permiso en la población de La Legua” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 146). 89 “Grazia había regresado de Europa y ya estaba incorporada al equipo. Sin embargo, Ugo me confirmó que el cable se había publicado también en Italia, aunque la agencia italiana lo había desmentido. Lo malo era que la falsa noticia se refería a ellos con sus nombres, y se había divulgado con gran rapidez. Esto no era raro. Santiago bajo la dictadura es un enjambre de rumores. Nacen, se reproducen y se desvanecen con una profusión asombrosa varias veces al día, pero en el fondo tienen siempre un fundamento de verdad. La noticia sobre los italianos no fue una excepción. Tanto se estaba hablando de ella la noche anterior en una recepción de la embajada italiana, que cuando entraron los miembros del equipo fueron recibidos por nadie menos que el Jefe de la Dirección General de Comunicaciones (DINACO), quien dijo para que lo oyeran todos los invitados: -¿Ven? Aquí tienen ustedes a nuestros tres presos” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 147). 109 Grazia, que não sabia da publicação da notícia, pensou que estivessem sendo vigiados. Ao regressarem ao hotel após a festa, pareceu-lhes que seus pertences haviam sido revirados, mas nada lhes faltava. Momento de grande tensão para todos, pois havia motivos para acreditarem que alguém estava sabia de algo e/ou estava descontente com a presença deles ali. Naquela noite, diante do temor que o alarmava, Littín não foi capaz de dormir. Assim, decidiu escrever uma carta ao presidente da Corte Suprema de Justiça denunciando sua “repatriação clandestina”, receando ser capturado. Não foi uma inspiração súbita, e sim o resultado de uma lenta reflexão que ia se fazendo mais sufocante na medida em que o círculo se estreitava. A princípio, eu a concebi como uma única frase dramática, como as mensagens que os náufragos jogam ao mar dentro de uma garrafa. Mas, no momento de escrevê-la, percebi que necessitava dar à minha ação uma justificativa política e humana, porque de certo modo devia expressar o sentimento de milhares e milhares de chilenos que enfrentavam como eu a peste do desterro. Comecei muitas vezes, rasguei muitas folhas de arrependimento, trancado em um sombrio quarto de hotel, que era afinal um quarto de exilado dentro de minha própria terra. Quando terminei, fazia tempo que os sinos das igrejas chamando para a missa tinham triturado o silêncio do toque de recolher, e as primeiras luzes apareciam a duras penas através das brumas daquele outono inesquecível (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 99-100)90. 4.10. Miguel Littín não é reconhecido nem por sua própria mãe À medida que o tempo foi passando, Littín foi sendo menos rígido com sua identidade falsa, esquecendo-se do sotaque uruguaio ao falar, por exemplo, além de maior flexibilidade nos traslados, como excessivas trocas de carros e longos códigos. Entretendo, ainda lhes faltava filmar dentro do Palácio de La Moneda, devido a sucessivos adiamentos da autorização, as filmagens de Puerto Montt e do Vale Central, além da entrevista com o general indicado por Eloísa, ao qual chamavam-no 90 “No fue una inspiración súbita, sino el resultado de una lenta reflexión que iba haciéndose más apremiante a medida que se estrechaba el círculo. Al principio la concebí como una sola frase dramática, como los mensajes que los náufragos tiraban en el mar den tro de una botella. Pero en el momento de escribirla me di cuenta de que necesitaba darle a mi acción una justificación política y humana, porque en cierto modo debía expresar el sentir de miles y miles de chilenos que sobrellevaban como yo la peste del destierro. Empecé muchas veces, rompí muchas hojas de arrepentimiento, encerrado en un sombrío cuarto de hotel que era de todos modos un cuarto de exiliado dentro de mi propia tierra. Cuando terminé, hacía rato que las campanas de las iglesias llamando a misa habían hecho polvo el silencio de la queda, y las primeras luces se asomaban a duras penas a través de las brumas de aquel otoño inolvidable” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 148). 110 de General Eletric. A primeira coisa que fiz foi reorganizar o trabalho das equipes estrangeiras, de modo que pudessem terminar com o mínimo de riscos e o quanto antes, para voltar imediatamente a seus países. Só os italianos permaneceriam em Santiago, para nos acompanhar na filmagem de La Moneda. A equipe francesa voltaria para Paris assim que fosse filmada a “marcha da fome”, anunciada para poucos dias mais tarde. A equipe holandesa me esperava em Puerto Montt, para filmarmos juntos até muito perto do Círculo Polar e abandonar depois o país rumo à Argentina pela passagem fronteiriça de Bariloche. No momento em que saíssem as três equipes, oitenta por cento do filme teria sido feito, e o material estaria bem guardado e sendo revelado em Madri. E tinha cumprido uma tarefa tão eficaz, que quando cheguei à Espanha encontrei o filme pronto para ser montado (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 103)91. Diante dos rumores, Littín decidiu forjar sua saída do Chile, a fim de voltar com maiores cuidados. Antes de sair, telefonou para a revista Análisis, sem se identificar, e concedeu uma extensa entrevista sobre sua passagem clandestina por Santiago à jornalista Patricia Collier. A publicação, que existiu de 1977 a 1993, destacava-se por sua cobertura política e econômica, além de ter sido, durante o período ditatorial, junto à revista Apsi e o jornal Fortín Mapocho, um dos poucos meios de comunicação de oposição ao regime. Depois, acompanhado de Franquie, o cineasta foi de avião para Buenos Aires. Dois dias depois da minha saída, efetivamente, a entrevista foi publicada com minha foto na capa, e com um título que tinha uma gotinha de piada romana: Littín veio, filmou e se foi. Para que tudo fosse ainda mais realista, Clemencia Isaura nos levou - Franquie e eu – ao aeroporto de Pudahuel, dirigindo seu próprio automóvel, e nos despediu com beijos e lágrimas bem teatrais. Foi assim que saímos da maneira mais ostensiva, mas vigiados de perto pelos serviços de segurança da resistência que dariam o alarma se fôssemos presos. Isto nos permitiu saber, em primeiro lugar, que não estávamos fichados no aeroporto, e também nos permitiu deixar um registro de saída, para que, no caso de uma investigação tardia, a polícia acreditasse que tínhamos abandonado o país (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 104)92. 91 “Lo primero que hice fue reorganizar el trabajo de los equipos extranjeros, de modo que pudieran terminar con el mínimo de riesgos lo más pronto posible para volver de inmediato a sus países. Sólo los italianos permanecerían en Santiago, para acompañarnos en la filmación de La Moneda. El francés volvería a París tan pronto como se filmara “la marcha del hambre”, anunciada para los próximos días. El equipo holandés me esperaba en Puerto Montt, para filmar juntos hasta muy cerca del Círculo Polar, y abandonar después el país hacia la Argentina por el paso fronterizo de Bariloche. En el momento en que salieran los tres equipos, el ochenta por ciento de la película estaría hecho, y el material a buen recaudo revelándose en Madrid. La Ely había estado cumpliendo una tarea tan eficaz, que cuando llegué a España encontré la película lista para el montaje” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 152-153). 92 “Dos días después de mi salida, em efecto, la entrevista se publicó con mi foto en la portada, y con un título que tenía una gotita de burla romana: Littín vino, filmó y se fue. Para que todo fuera aún más realista, Clemencia Isaura nos llevó a Franquie y a mí al aeropuerto de 111 De Buenos Aires, Littín voou para Mendoza, a fim de filmar a cordilheira chilena. Com facilidade, o cineasta passou de Mendoza para o Chile por um túnel, cujo controle não é tão severo. De Mendoza segui para Bariloche, outra localidade fronteiriça, mais ao sul. Um barco decrépito, abarrotado de turistas argentinos, uruguaios, brasileiros e de chilenos que regressavam, nos levou dali até a fronteira do Chile, através de uma paisagem polar deslumbrante, com imensos precipícios de gelo e mares tormentosos. O último trecho até Puerto Montt foi em uma barca de vidros quebrados por onde o vento polar se metia com uivos de lobo, e não havia onde se abrigar do frio horroroso, nem nada para comer nem beber: nem café, nem um copo de vinho, nada. Mas meus cálculos foram corretos. Se minha saída do Chile tinha sido registrada pela polícia do aeroporto, para essa polícia não seria fácil imaginar que eu tinha entrado de novo no dia seguinte por um ponto remoto a mil quilômetros de Santiago. Pouco antes de chegar ao posto de controle fronteiriço, um empregado do barco recolheu pelo menos trezentos passaportes, que foram olhados rapidamente, por alto, depressa e sem serem carimbados. Menos os passaportes chilenos, que foram confrontados com a extensa lista dos exilados que não podiam entrar, e que estava pregada na parede, bem na frente dos olhos dos funcionários. Para os outros, e eu entre eles, a passagem da fronteira transcorria sem tropeços, até que dois oficiais que não reconheci como carabineros chilenos por sua roupa polar, mandaram abrir as maletas. Percebi que era uma revista meticulosa mas não me preocupei, porque estava certo de não levar nada que não correspondesse à minha falsa identidade. Só que quando abri minha mala saltaram e rodaram pelo chão as numerosas caixinhas vazias de cigarros “Gitane”, em muitas das quais estavam escritas minhas anotações de filmagem (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 105-106)93. Pudahuel, manejando su propio coche, y nos despidió con besos y lágrimas de buen teatro. Fue así como salimos de la manera más ostensible, pero vigilados de cerca por los servicios de seguridad de la resistencia que darían la voz de alarma si fuéramos detenidos. Esto nos permitió saber, en primer término, que no estábamos fichados en el aeropuerto, y también nos permitió dejar un registro de salida para que, en caso de una investigación tardía, la policía creyera que habíamos abandonado el país” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 154). 93 “De Mendoza seguí a Bariloche, otra localidad fronteriza más al sur. Un barco decrépito abarrotado de turistas argentinos, uruguayos, brasileros, y de chilenos que regresaban, nos llevó desde allí hasta la frontera de Chile, a través de un paisaje polar deslumbrante, con inmensos precipicios de hielo y mares tormentosos. El último tramo hasta Puerto Montt fue en un trasbordador de vidrios rotos por donde se metía con aullidos de lobo el viento polar, y no había dónde guarecerse del frío horroroso, ni nada qué comer ni beber: ni un café, ni un vaso de vino, nada. Pero mis cálculos fueron correctos. Si mi salida de Chile había sido registrada por la policía del aeropuerto, a ésta no le era fácil imaginarse que había entrado de nuevo al día siguiente por un punto remoto a mil kilómetros de Santiago. Poco antes de llegar al puesto de control fronterizo, un empleado del barco recogió no menos de trescientos pasaportes, que apenas fueron mirados por encima, de prisa y sin sellarlos. Salvo los chilenos, que fueron confrontados con la extensa lista de los exiliados que no podían entrar, y que estaba pegada en la pared frente a los ojos de los controladores. Para los otros, y yo entre ellos, el paso de la frontera transcurría sin tropiezos hasta que dos oficiales a los que no reconocí como carabineros chilenos por su atuendo polar, ordenaron abrir las maletas. Me di cuenta de que era una requisa meticulosa, pero no me preocupé, porque estaba seguro de no llevar nada que no correspondiera a mi falsa identidad. Sin embargo, cuando abrí mi maleta saltaron fuera y rodaron por el suelo las numerosas cajetillas vacías de cigarrillos Gitane, en muchas de las cuales estaban escritas 112 Munido de uma boa provisão de caixa de cigarros Gitane, comuns principalmente na França, Littín temia que ao se desfazer delas estivesse deixando pistas para que pudessem encontrá-lo. Pensou em se desfazer daquelas nas quais não havia feito anotações na Argentina, porém, os acontecimentos se deram muito rapidamente. Até que tive de fazê-lo na fronteira sul, e vi com pavor o assombro e a desconfiança dos carabineros quando me apressei a apanhar no chão o rio de caixinhas de cigarro vazias. - Estão vazias - disse eu. Não acreditaram em mim, é claro. Enquanto o mais jovem cuidava dos outros passageiros, o mais velho as abriu uma por uma, examinou-as a torto e a direito, e tratou de decifrar algumas de minhas anotações. Tive então um relâmpago de inspiração. - São uns versinhos que eu às vezes faço - disse. Ele continuou revirando em silêncio, e no final olhou para a minha cara, para ver se decifrava na minha expressão o mistério insondável das caixinhas vazias. - Se quiser, fique com elas - disse eu. - E o que faço com isso? – respondeu. Então me ajudou a colocá-las na mala outra vez e cuidou do passageiro seguinte. Eu fiquei tão confuso que não me ocorreu a ideia de jogá-las no lixo ali mesmo, na frente dos carabineros, e continuei arrastando-as comigo pelo resto da viagem. De regresso a Madri, não deixei que Ely as destruísse. Sentia-me tão ligado a elas, que resolvi guardá-las pelo resto da minha vida, como uma relíquia de tantas experiências duras que a memória poderia ferver em fogo brando nas cozinhas da nostalgia (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 106-107)94. Conforme combinado, a equipe holandesa esperava o cineasta em Puerto mis notas de filmación” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 156). 94 “Hasta que tuve que hacerlo en la frontera del sur, y vi con pavor el asombro y la desconfianza de los carabineros cuando me apresuré a recoger del suelo el reguero de cajetillas. -Están vacías -dije. No me creyeron, por supuesto. Mientras el más joven se ocupaba de otros pasajeros, el mayor abrió las cajetillas una por una, las examinó al derecho y al revés, y trató de descifrar algunas de mis notas. Yo tuve entonces un relámpago de inspiración. -Son versitos que se me ocurren a veces -dije. El siguió escudriñando en silencio, y al final me miró a la cara, para ver si descifraba por mi expresión el misterio insondable de las cajetillas vacías. -Si quiere quédese con ellas -le dije. -¿Y a mí para qué me sirven? -dijo él. Entonces me ayudó a ponerlas otra vez en la maleta y atendió al pasajero siguiente. Yo quedé tan ofuscado, que no se me ocurrió tirar las cajetillas en la basura allí mismo, delante de los carabineros, sino que seguí arrastrándolas conmigo por el resto del viaje. De regreso a Madrid, no dejé que la Ely las destruyera. Me sentía tan ligado a ellas, que resolví guardarlas por el resto de mi vida, como una reliquia de tantas experiencias duras que la memoria pondría a hervir a fuego lento en las cocinas de la nostalgia” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 157-158). 113 Montt. O lugar foi escolhido não apenas por conta de suas belas paisagens, mas, principalmente, devido a sua importância histórica recente. Tinha sido o cenário de uma luta constante. Durante o governo de Eduardo Frei houve ali uma repressão tão brutal que os últimos setores progressistas afastaram-se do governo. A esquerda democrática tomou consciência de que não apenas seu futuro, mas o do país inteiro, estava na unidade, e esse foi o princípio de um rápido e incontrolável processo que culminou com a eleição de Salvador Allende. Terminada a filmagem em Puerto Montt, e com ela todo o programa do sul, a equipe holandesa saiu por Bariloche rumo a Buenos Aires com boa quantidade do material filmado, para deixá-lo com Ely em Madri (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 107)95. Ainda faltava a Littín a filmagem de uma região lhe bastante cara: Vale Central, onde nasceu e viveu até a adolescência. Entretanto, apesar de sua mãe ainda morar na humilde aldeia de Pamilla, o cineasta foi terminantemente advertido sobre os riscos de não só visitar a região como também tentar ver a mãe. Os avisos foram inúteis, pois Littín decidiu ir à casa que era de seu avô grego, Cristo Cucumides, onde vive sua mãe, Cristina Cucumides, e mesma residência onde viveu até a adolescência. Foi construída no ano zero, e ainda conserva o estilo tradicional do campo chileno, com corredores longos, passagens sombrias, quartos labirínticos, cozinhas enormes e, lá longe, o estábulo e os potreiros. O lugar onde está se chama Los Naranjos, e sente-se de verdade um cheiro imóvel de laranja amarga, e há uma cerca de buganvílias e todo tipo de flores luminosas. A emoção de me encontrar ali foi tão intensa, que desci antes que o carro parasse. Entrei pelos corredores desertos, atravessei o pátio em sombras, e a única coisa que saiu para me receber foi um cachorro boboca que se enredou entre as minhas pernas, mas continuei caminhando sem perceber o menor vestígio humano. A cada passo resgatava uma lembrança, alguma hora da tarde, um aroma esquecido. No final de um longo corredor apareci na porta da sala iluminada levemente por uma luz pálida, e ali estava minha mãe (GARCÍA MÁRQUEZ, 1986, p. 111-112)96. 95 “Había sido el escenario de una lucha constante. Durante el gobierno de Eduardo Frei hubo allí una represión tan brutal, que los últimos sectores progresistas se separaron del gobierno. La izquierda democrática tomó conciencia de que no sólo su porvenir sino el de todo el país estaba en la unidad, y ese fue el principio de un proceso rápido e incontenible que culminó con la elección de Salvador Allende Terminada la filmación en Puerto Montt, y con ella todo el programa del sur, el equipo holandés salió por Bariloche hacia Buenos Aires con una buena cantidad de material filmado, para dejárselo a la Ely en Madrid” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 159). 96 “Fue construida en el año cero, y conserva aún el estilo tradicional del campo chileno, con corredores largos, pasadizos sombríos, habitaciones laberínticas, cocinas enormes, y más allá el establo y los potreros. El lugar donde está se llama Los Naranjos, y se siente de veras un olor inmóvil de naranjas agrias, y hay una fronda de bugambilias y toda clase de flores luminosas. La emoción de encontrarme allí fue tan intensa, que me bajé del carro antes de que frenara. Entré por los pasillos desiertos, crucé el patio en tinieblas, y el único que salió a recibirme fue un perro bobalicón 114 Na sala levemente iluminada, a mãe estava acompanhada do irmão, Pablo. Em silencio, ambos olhavam fixamente para um ponto fixo em uma parede vazia. Caminhei até eles sem tentar evitar o ruído, e como não se mexiam, disse: - Bem, mas aqui ninguém cumprimenta ninguém, porra? Então minha mãe se levantou. - Você deve ser um amigo de meus filhos - disse. - Deixe-me abraçá-lo. Tio Pablo não me via desde que fui embora do Chile, doze anos antes, e nem ao menos se moveu em sua poltrona. Minha mãe tinha me visto em Madri em setembro do ano anterior, mas mesmo quando se levantou para me abraçar continuava sem me reconhecer. Agarrei-a pelos braços e sacudi-a tentando tirá-la do estupor. - Mas olhe bem para mim, Cristina - disse, olhando seus olhos -, sou eu. Ela tornou a me olhar com outros olhos mas não conseguiu me identificar. - Não - disse -, não sei quem você é. - Mas como você não me reconhece? - disse, morrendo de rir -, sou teu filho, Miguel. Então tornou a me olhar, e seu rosto se desmanchou com uma palidez mortal. - Ai - disse -, vou desmaiar. Tive que segurá-la para que não caísse, enquanto o tio Pablo se levantava no mesmo estado de comoção. - É a última coisa que eu esperava ver - disse ele -, já posso morrer em paz agora mesmo (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 112-1113)97. O efeito de dramaticidade que emerge do deste trecho que caracteriza o encontro de Littín com sua mãe apresenta diversos sentidos. Entre eles está o favorecimento a empatia do leitor, a comoção, ou seja, o envolvimento. Para além que se me enredó entre las piernas, pero seguí caminando sin percibir el menor vestigio humano. A cada paso rescataba un recuerdo, una hora de la tarde, un olor olvidado. Al final de un largo pasillo me asomé a la puerta de la sala alumbrada apenas por una luz pálida, y allí estaba mi madre” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 165-166). 97 “Caminé hacia ellos sin tratar de no hacer ruido, y en vista de que no se movían, dije: - Bueno, pero aquí no saluda nadie, caray. Entonces mi madre se levantó. - Debes ser un amigo de mis hijos -dijo-. Te doy un abrazo. El tío Pablo no me veía desde que me fui de Chile doce años antes, y no se movió siquiera en el sillón. Mi madre me había visto en septiembre del año anterior en Madrid, pero aun cuando se levantó para abrazarme seguía sin reconocerme. Así que la agarré por los brazos y la sacudí tratando de sacarla del estupor. - Pero mírame bien, Cristina -le dije, mirándola a los ojos-, soy yo. Ella volvió a mirarme con otros ojos pero no pudo identificarme. - No -dijo-, no sé quién eres. - Pero cómo no vas a conocerme -dije, muerto de risa-. Soy tu hijo, Miguel. Entonces volvió a mirarme, y el rostro se le descompuso con una palidez mortal. - Ay -dijo-, voy a desmayarme. Tuve que sostenerla para que no se cayera, mientras el tío Pablo se incorporaba en el mismo estado de conmoción. - Esto es lo último que esperaba ver -dijo-, ya puedo morirme en paz ahora mismo” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 166-167). 115 disso, há uma perspectiva de ápice da narrativa pessoal do personagem, ou seja, o encontro com seu passado, sua essência – o lugar onde cresceu, a mãe e o tio. Os diálogos entre as personagens favorecem o efeito de dramaticidade dado à cena, uma vez que se a situação tivesse sido meramente contada não apresentaria a mesma emoção. Aliás, a utilização dos diálogos destaca-se como um recurso caro às narrativas, ou seja, um elemento essencialmente literário. 116 Considerações finais A história da América Latina está marcada pela intersecção com o literário e com o mítico, como afirma Irlemar Chiampi (1977) em seu ensaio “A imagem da América”, principalmente com o intuito de descobrir as origens e desenvolver meios de identificação para o “ser americano”. Dessa maneira, a literatura tem proposto renovadas formas estéticas, a fim de construir perspectivas da história que melhor traduzam as singularidades latino-americanas. Nesse sentido, a proposição de estéticas que questionam as formulações mais correntes para descrever a totalidade dos feitos e discursos sociais presentes na historiografia é um caminho percorrido por obras de Gabriel García Márquez para refletir sobre o sujeito latino-americano, como é o caso de Relato de un náufrago (1970) e La aventura de Miguel Littín clandestino en Chile (1986), este último objeto de análise desta dissertação. O relato de Littín construído por García Márquez se aproxima de um gesto poético, no sentido de subverter as formas pré-estabelecidas para contar a história e as vicissitudes do continente. Desvela, por meio de uma construção “aventuresca”, uma trajetória de heróis que marcam o continente, figuras que são, ao mesmo tempo, comprometidas com uma causa, mas que não prescindem de atos subversivos, cômicos, irreverentes. Littín apresenta essas facetas dos heróis latino-americanos, com certa perspicácia e ambivalência. Apesar disso, Littín possui um comprometimento com o mais subjetivo, enquanto cidadão, ao mesmo tempo em que representa a estrutura do coletivo, da sociedade em sentido amplo. Será essa uma questão que reflete os “atores” da história latino-americana? Refletir sobre personagens que fazem a História e a maneira com que realizam suas proezas significa pensar sobre as estruturas mais profundas que compõem as representações dos sujeitos latino-americanos. García Márquez, ao destacar a humanidade de Littín, salientando suas ações motivadas por sua subjetividade, resgata sujeitos anônimos que compõem os quadros históricos. Além disso, eleva a subjetividade que está implícita (e silenciada) na ordem dos discursos ditos oficiais, uma vez que as motivações de Littín são não só pessoais, mas também coletivas. O resgate dessa figura histórica, anuncia o resgate de muitos sujeitos que não são representados. Assim, a partir da preocupação em expor a voz 117 dos sujeitos anônimos, que, aliás, compõem a narrativa, o texto de García Márquez multiplica as vozes do relato de Littín para compor o seu mosaico de discursos. Dessa forma, García Márquez acaba por construir e apresentar uma visão subjetiva da história, pois são produzidos um Chile, uma ditadura e um Miguel Littín através de sua obra. Para tanto, o jornalista e escritor colombiano transforma o exilado em “clandestino”. Esta transformação se dá no nível discursivo, na medida em que, trabalhando o discurso social, como prevê Marc Angenot (2015) a partir da perspectiva sociocrítica, García Márquez transforma o discurso social político, representativo do exilado, no discurso de representação literária aventuresca, representativo do clandestino. Para além dessas questões centradas principalmente no conteúdo, tem-se questões relacionadas à forma. García Márquez, ao estabelecer La aventura de Miguel Littín clandestino en Chile entre o jornalismo e a literatura, tece um questionamento a respeito da escrita e da recepção dos textos jornalísticos e literários. Isso ocorre já na introdução da obra, quando apresenta ao leitor “as regras do jogo”, ou seja, a linguagem e os propósitos adotados na composição do texto, salientando que o estilo do texto é dele, García Márquez, mas que procurou, “na medida do possível, conservar os modismos chilenos da narração original, e respeitar sempre o pensamento do narrador, que nem sempre coincide com o” dele (GARCÍA MÁRQUEZ, 2003, p. 8, grifos desta autora). Dessa maneira, relativizando o factual e o jornalístico, García Márquez aponta um caminho reflexivo a respeito das múltiplas formas de compreender e formular a realidade. La aventura de Miguel Littín clandestino en Chile avulta a memória, individual, social e coletiva: individual na medida em que se constrói, em especial, das recordações de Littín; social uma vez que acaba por representar a realidade de muitos outros que assim como Littín vivenciaram a ditadura de Pinochet e suas consequências; e coletiva, visto que expõe, em certa medida, a experiência de exílio, a qual se pode ter de diversas formas. Cabe destacar que as facetas das memórias social e coletiva se sobrelevam quando são trazidas as vozes de personalidades que representaram época e as de anônimos e suas respectivas memórias, registrando-as todas como parte da coletividade. À sua maneira, García Márquez utiliza-se de recursos provenientes da literatura para dar profundidade ao seu livro-reportagem, transcendendo o conteúdo, tanto em 118 seu aspecto informativo quanto humano. Ademais, o escritor e jornalista colombiano envolve os leitores, a partir da reflexão e da relação humana, a fim de ampliar os significados superficiais resultantes da simples repetição dos fatos, tão comum à prática do jornalismo sumário (Lima, 2010). A partir da análise da maneira como La aventura de Miguel Littín clandestino en Chile se compõe enquanto texto, é possível perceber que o livro-reportagem, produto final e corpus desta dissertação, apresenta resquícios estruturais dos gêneros dos quais resultou – documentário, ata, entrevista. No entanto, desponta como uma obra singular. No que tange à historicidade e identidade latino-americanas, estas são essências norteadoras da narrativa, contribuindo e influenciando, a todo tempo, nas estratégias adotadas por García Márquez na construção do relato. A identificação do escritor e jornalista colombiano com Miguel Littín se transparece, no sentido de ambos terem uma consciência latino-americana, da condição de exilado, uma vez que García Márquez também foi forçado a deixar a Colômbia durante o período ditatorial de Rojas Pinilla, e da necessidade de se dar voz àqueles que não costumam ser ouvidos, em especial pelos órgãos oficiais. Quando se fala aqui em consciência latino-americana, diz-se daquele que capaz de assumir o lugar de onde se fala, conhecendo bem suas origens e, consequentemente, realidades. De certo que tanto García Márquez quanto Miguel Littín passaram por diferentes processos para alcançá-la, decorrentes de suas experiências pessoais. Por fim, La aventura de Miguel Littín clandestino en Chile representa, de fato, uma obra jornalística que se adequa entre a veracidade e a ficcionalidade. A adoção de elementos literários, por sua vez, visa a envolver o leitor para um enredo de aventuras, já o cruzamento entre gêneros corrobora com a crítica social que é elaborada ao longo de toda a narrativa sobre esse período histórico chileno específico (de 1973 a 1986). 119 RERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANGENOT, M. El discurso social. Los límites histórico de lo pensable y de lo decible. Buenos Aires: Siglo XXI, 2010. ____________. ¿Qué puede la literatura? Sociocrítica literaria y crítica del discurso social. Estudios de Teoría Literaria, Mar del Plata, a. 4, n. 7, p. 265-277, mar. 2015. Disponível em: https://fh.mdp.edu.ar/revistas/index.php/etl/article/view/1133/1178. Acesso em: 22 mar. 2019. AULETE, C. Aulete Digital – Dicionário contemporâneo da língua portuguesa: Dicionário Caldas Aulete, vs on-line. Acesso em: 26 ago. 2019. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. BARROS, D. L. P. de. Gêneros do discurso e ensino. In: ERNST, A.; FUNCK, S. 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