UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE ELI LEÃO CATACHUNGA EDUCAÇÃO ÍNDIGENA TICUNA E O PROCESSO DE AFIRMAÇÃO ÉTNICA NA ESCOLA MUNICIPAL EBENÉZER SÃO PAULO 2020 ELI LEÃO CATACHUNGA EDUCAÇÃO ÍNDIGENA TICUNA E O PROCESSO DE AFIRMAÇÃO ÉTNICA NA ESCOLA MUNICIPAL EBENÉZER Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação, Arte e História da Cultura da Univer sidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial à obtenção de título de Mestre em Educação, Arte e História da Cultura. Orientadora: Profa .Dra. Rosana Maria Pires B. Schwartz SÃO PAULO 2020 C357e Catachunga, Eli Leão. Educação indígena Ticuna e o processo de afirmação étnica na escola municipal Ebenézer / Eli Leão Catachunga. 100 f. : il. ; 30 cm Dissertação (Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2020. Orientadora: Rosana Maria Pires Barbato Schwartz. Referências bibliográficas: f. 83-84. 1. Educação indígena. 2. Identidade cultural indígena. 3. Identidade étnica. 4. Povo Ticuna. 5. Escola Ebenézer. I. Schwartz, Rosana Maria Pires Barbato, orientadora. II. Título. CDD 371.82998081 Bibliotecária Responsável: Andrea Alves de Andrade - CRB 8/9204 Folha de Identificação da Agência de Financiamento Autor: Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em selecione Título do Trabalho: O presente trabalho foi realizado com o apoio de 1: CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo Instituto Presbiteriano Mackenzie/Isenção integral de Mensalidades e Taxas MACKPESQUISA - Fundo Mackenzie de Pesquisa Empresa/Indústria: Outro: 1 Observação: caso tenha usufruído mais de um apoio ou benefício, selecione-os. ELÍ LEÃO CATACHUNGA EDUCAÇÃO INDÍGENA TICUNA E O PROCESSO DE AFIRMAÇÃO ÉTNICA NA ESCOLA MUNICIPAL EBENÉZER Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial à obtenção de título de Mestre em Educação, Arte e História da Cultura. Aprovado em 28 de Janeiro de 2021. BANCA EXAMINADORA Prof.ª Dr.ª Rosana Maria Pires Barbato Schwartz Universidade Presbiteriana Mackenzie Prof. Dr. João Clemente de Sousa Neto Universidade Presbiteriana Mackenzie Prof.ª Dr.ª Ana Bárbara Pederiva Universidade Cruzeiro do Sul III Dedicatória Dedico este trabalho aos remanescentes da etnia Ticuna, pela coragem de vencer os momentos mais obscuros da história em especial aos líderes que incansavelmente lutaram pelo reconhecimento do direito de ser diferente, direito à terra e por uma educação diferenciada. IV AGRADECIMENTOS À minha esposa Anita e filhos Josué, Caleb, Fredy e Ely Willian, que muito me incentivaram a empreender o desafio ao estudo e pesquisa, pela conclusão do curso e relevância do tema que acredito irá colaborar para o fortalecimento da consciência de sujeitos conscientes de sua identidade como cidadão brasileiro e indígena, aliás orgulho da identidade étnica Ticuna. À meu saudoso pai Aniceto e mãe Ricarda pelas boas orientações que incansavelmente foram dadas, pois conduziram-me ao caminho correto entre eles a trilhar o caminho da academia. Ao meu sogro e amigo Sr. Aristides e Doloria, aliás meu orientador que nos momentos de diálogo ensinou-me os valores da tribo ao mesmo tempo incentivou-me a ser um sujeito ator de nosso próprio destino em busca de dias melhores como povo indígena. Ao programa de pós graduação em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie, campus Higienópolis em SP, pela abertura de espaço ao acadêmico indígena. Aos docentes do curso, à Dra. Rosana Maria Pires Barbato Schwartz, pela paciência ao orientar, por seu respeito à cultura Ticuna. Enfim a Deus por me conceder a vida e a sabedoria. V RESUMO A pesquisa investigou no âmbito da escola se os processos e práticas pedagógicas atribuídos às crianças e jovens Ticunas consideravam a cultura do povo, fortalecendo e afirmando sua identidade étnica. O objetivo geral foi compreender a relevância dos conhecimentos tradicionais e mitológicos do povo Magüta na educação formal por meio da trajetória histórica do povo Ticuna. Para isso, foram analisados o material didático e documentos da escola indígena Ebenezer e o projeto político pedagógico da escola. A pesquisa teórica foi ancorada em Elias (1990), Franz Boas (2005), Bronislaw Malinowski (1986), Evans-Prichard (1993), Clifford Geertz (2001), Arnold Vann Gennep (2013), Darcy Ribeiro (2000) Marcel Mauss (1974) e Lévi-Strauss (2003). E a metodologia empregada foi qualitativa, de campo, história oral e perspectiva de vida, observação participante, com entrevistas aberta, não estruturada. Desta forma pretendeu-se captar a interpretação das pessoas e de suas próprias vidas e descrever a importância do valor e da manutenção dos conhecimentos tradicionais e mitológicos Ticuna na educação contemporânea. Palavras-chave: educação indígena, identidade cultural indígena, identidade étnica, povo Ticuna, escola Ebenezer. VI ABSTRACT The research investigated at the school level whether the pedagogical processes and practices attributed to Ticunas children and young people considered the culture of the people, strengthening and affirming their ethnic identity. The general objective was to understand the relevance of the traditional and mythological knowledge of the Magüta people in formal education through the historical trajectory of the Ticuna people. For this, the didactic material and documents of the Ebenezer indigenous school and the school's political pedagogical project were analyzed. Theoretical research was anchored in Elias (1990), Franz Boas (2005), Bronislaw Malinowski (1986), Evans-Prichard (1993), Clifford Geertz (2001), Arnold Vann Gennep (2013), Darcy Ribeiro (2000) Marcel Mauss (1974) and Lévi-Strauss (2003). And the methodology used was qualitative, field, oral history and life perspective, participant observation, with open, unstructured interviews. In this way, it was intended to capture the interpretation of people and their own lives and describe the importance of the value and maintenance of traditional and mythological Ticuna knowledge in contemporary education. Keyword: indigenous education, indigenous cultural identity, identity ethnic, Ticuna people, Ebenezer school. VII LISTA DE TABELAS Tabela 1: Metades Exogâmicas ................................................................................ 47 Tabela 2: Características da Educação Escolar Indígena na política de atendimento aos povos indígenas ................................................................................................. 79 VIII LISTA DE FIGURAS Figura 1: Quadro 1 – Localização do povo Ticuna .................................................... 19 Figura 2: Distribuição das familias por clã ................................................................. 45 Figura 3: Moça Nova ................................................................................................. 52 Figura 4: Tamborim Tutu ........................................................................................... 52 Figura 5: Flauta Coĩri ................................................................................................. 53 Figura 6: Chocalho de Avai ....................................................................................... 54 Figura 7: Trombeta Sagrado Iburi ............................................................................. 55 Figura 8: Zarabatana ................................................................................................. 57 Figura 9: Setas da Zarabatana .................................................................................. 58 Figura 10: Remo ........................................................................................................ 61 Figura 11: Peneira ..................................................................................................... 64 Figura 12: Pote de Barro Grande .............................................................................. 65 Figura 13: Rede de Tucum ........................................................................................ 67 Figura 14: Mascara Mãe do Vento ............................................................................ 72 Figura 15: Escudo Natchine ...................................................................................... 73 Figura 16: Pintura Facial ........................................................................................... 75 IX LISTA DE ABREVIAÇÕES E SIGLAS OGPTB - Organização Geral dos Professores Ticuna Bilíngue CGTT - Conselho Geral da Tribo Ticuna FUNAI - Fundação Nacional do Índio CEDPAS - Centro de Documentação e Pesquisa do Alto Solimões CF- Constituição Federal LDBEN- Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional RCNEI- Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas SESAI- Secretaria da Saúde Indígena VIDC- Vienna Institute for Development and Cooperation SEMED- Secretaria de Educação, cultura e Desporto FOCCITT- Federação dos Caciques e Comunidades Indígena da Tribo Ticuna OMITTAS- Organização da Missão Indígena da Tribo Ticuna do Alto Solimões SUMÁRIO Dedicatória............................................................................................................................................ III AGRADECIMENTOS .......................................................................................................................... IV RESUMO ............................................................................................................................................... V ABSTRACT .......................................................................................................................................... VI LISTA DE TABELAS .......................................................................................................................... VII LISTA DE FIGURAS ......................................................................................................................... VIII LISTA DE ABREVIAÇÕES E SIGLAS ............................................................................................. IX INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................... 9 CAPÍTULO 01 - ABORDAGEM HISTÓRICA: DA ORIGEM A RESIGNIFICAÇÃO IDENTITÁRIA ...................................................................................................................................... 15 1.1 GÊNESES DO POVO TICUNA NA PERSPECTIVA MITOLÓGICA ............................... 15 1.2 ORGANIZAÇÃO SOCIAL ....................................................................................................... 18 1.3 LOCALIZAÇÃO ........................................................................................................................ 18 1.4 DESTRUIÇÃO DOS PILARES DA SOCIEDADE TICUNA ............................................... 21 1.4.1 AS MALOCAS CLÂNICAS .............................................................................................. 21 1.4.2 A AUTONOMIA ................................................................................................................. 22 1.4.3 A EDUCAÇÃO .................................................................................................................. 24 1.4.4 O IDIOMA .......................................................................................................................... 30 1.4.5 A CULTURA MILENAR ................................................................................................... 31 1.5 DEMARCAÇÃO E RETOMADA DAS TERRAS TICUNA.................................................. 32 1.6 POVO TICUNA HOJE ............................................................................................................. 39 1.6.1 PROTAGONISMO INDÍGENA ....................................................................................... 41 CAPÍTULO 02 - ABORDAGEM CULTURAL: DA TRADIÇÃO MITOLÓGICA A RESIGNIFICAÇÃO RELIGIOSA ...................................................................................................... 44 2.1 ORGANIZAÇÃO SOCIAL ....................................................................................................... 45 2.1.1 FAMÍLIAS CLÂNICAS ...................................................................................................... 45 2.1.2 A MOÇA NOVA ................................................................................................................. 48 2.1.3 A FESTA DA MOÇA NOVA ............................................................................................ 49 2.1.4 O CASAMENTO ............................................................................................................... 51 2.2 CANTOS E INSTRUMENTOS DE MUSICA ....................................................................... 52 2.2.1 AS CANTIGAS .................................................................................................................. 52 2.2.2 TAMBORINS (TUTU) ....................................................................................................... 52 2.2.3 FLAUTA (COĨRI) ............................................................................................................... 53 2.2.4 CHOCALHO DE AVAI (ARU REE) ................................................................................ 54 2.2.5 A TROMBETA (I'BURI) .................................................................................................... 54 2.2.6 A TROMBETA SAGRADA (TO'CÜ) .............................................................................. 55 2.3 INSTRUMENTOS PARA CAÇA E PESCA .......................................................................... 56 2.3.1 ARCO E FLECHA ............................................................................................................. 56 2.3.2 SUMO DE RAIZ TIMBÓ .................................................................................................. 56 2.3.3 ZARABATANA (Ĩ'Ẽ) .......................................................................................................... 57 2.3.4 BURACO NO CHÃO ........................................................................................................ 59 2.4 MORADIA ................................................................................................................................. 60 2.4.1 OCA CLÂNICA .................................................................................................................. 60 2.4.2 TAPIRI ................................................................................................................................ 61 2.5 TRANSPORTE FLUVIAL........................................................................................................ 61 2.5.1 CANOA E REMO .............................................................................................................. 61 2.6 IMPLEMENTOS DO LAR DE USO PESSOAL E DIÁRIO ................................................ 62 2.6.1 PACARÁ ............................................................................................................................ 62 2.6.2 BOLSA DE TUCUM ......................................................................................................... 63 2.6.3 TIPITI .................................................................................................................................. 64 2.6.4 PENEIRA ........................................................................................................................... 64 2.6.5 POTE DE BARRO GRANDE (BARÜ) E PEQUENO (TCHURI) ............................... 65 2.6.6 REDE DE TUCUM ............................................................................................................ 66 2.7 ALIMENTAÇÃO ....................................................................................................................... 67 2.7.1 PEIXE E CARNE DE CAÇA MOQUEADO ................................................................... 68 2.7.2 PUPECA ............................................................................................................................ 68 2.7.3 MOJICA .............................................................................................................................. 68 2.7.4 FARINHA DE MANDIOCA .............................................................................................. 69 2.7.5 NGOERÜ'Ü ........................................................................................................................ 69 2.8 BEBIDAS ....................................................................................................................................... 70 2.8.1 PAJUARU .......................................................................................................................... 70 2.8.2 CAIÇUMA .......................................................................................................................... 70 2.8.3 OVO DE SAPO ................................................................................................................. 71 2.9 FANTASIAS PARA ALEGRAR A FESTA ............................................................................ 71 2.9.1 OS MACACOS “TO'Ũ” ..................................................................................................... 71 2.9.2 MÃE DO VENTO “O'MA” ................................................................................................. 72 2.9.3 ESCUDO “NATCHINE” .................................................................................................... 73 2.10 ARTES E PINTURA CORPORAL ....................................................................................... 74 2.10.1 TURURI ........................................................................................................................... 74 2.10.2 PINTURA FACIAL E CORPORAL ............................................................................... 75 CAPÍTULO 03 - ABORDAGEM EDUCACIONAL: DA APRENDIZAGEM A RESIGNIFICAÇÃO PEDAGÓGICA ................................................................................................. 77 3.1 A EDUCAÇÃO TRADICIONAL TICUNA .......................................................................... 77 3.2 A EDUCAÇÃO FORMAL DE 1500 A 1988 ...................................................................... 78 3.3 EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA DIFERENCIADA .................................................. 80 3.3.1 OS MARCOS LEGAIS E A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA ............................. 83 3.4 DOCÊNCIA INDÍGENA E OS ENTRAVES NA IMPLEMENTAÇÃO DA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA ................................................................................................................... 84 3.4.1 ESCOLA MUNICIPAL INDÍGENA EBENEZER ........................................................... 84 3.4.2 A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA QUE SE QUER ............................................. 86 3.4.3 FORMAÇÃO DE CIDADÃOS CONSCIENTES ENQUANTO BRASILEIROS E INDÍGENAS ................................................................................................................................. 89 3.5 CONSIDERAÇÕES ................................................................................................................. 90 Referências bibliográficas ............................................................................................................. 93 9 INTRODUÇÃO Escrever sobre uma história que não foi privilegiada pela historiografia até os anos de 1990, é desafiadora e instigante, principalmente quando se faz parte dela. Como Ticuna sempre me inquietou estudar as consequências do processo civilizatório, implementado desde o início da conquista das Américas pelos portugueses, na contemporaneidade. A violência, a degradação e os desenraizamentos e destribalização marcam a história, a cultura e a educação indígena Ticuna. A historiografia branca pontua que, por volta de 1500, existiam de 1 milhão a 3 milhões de indígenas no Brasil (FUNAI) e que em cinco séculos, essa população nativa reduziu-se a 306 mil, o que representa 0,03% da população brasileira, segundo o IBGE (2010). A maioria das etnias denominadas de indígenas vivem na Floresta Amazônica, local com a maior biodiversidade tropical do planeta. Nela existem etnias isoladas que nunca tiveram contato com o homem branco e as demais, como a Ticuna, desconstruídas em sua estrutura cultural original. Sob a perspectiva da antropologia norte-americana, corrente que inclui o conhecimento, o mito, a arte, as crenças, a lei, a moral e os costumes adquiridos pelo ser humano no seu cotidiano, passado de geração em geração, as páginas desta pesquisa se desabrocharam. (ELIAS,1990, p. 24). Elias (1990) mostra que o conceito de civilização e não civilizado surgiu na Europa e que, já de início, ganhou significados diversos entre as várias populações nacionais daquele continente. As teorias antropológicas problematizando essas visões, direcionaram-se para as etnografias de Franz Boas (2005) e Bronislaw Malinowski (1986), onde o “outro”, o não europeu, “diferente”, também pôde ser pensado como portador de conhecimento, cultura e identidade. A escrita da história é pautada pelas relações de poder, transforma-se segundo surgem novas concepções de sociedade e homem, nesse sentido, os nativos, durante o século XIX eram vistos, categorizados pela perspectiva da corrente positivista, linear, determinista, branca europeia ou norte-americana e pelo eurocentrismo. Os nativos foram apresentados em múltiplos discursos como o “diferente”, o “preguiçoso”, o “estranho”. Etnocentrismo é uma visão do mundo onde o grupo dominante europeu é tomado 10 como centro de tudo e todos os outros grupos são pensados e sentidos através dos valores europeus. No plano intelectual é problematizado como a dificuldade de se pensar a diferença, e construção de imagens e representações de estranhamento para com o outro. Essa perspectiva causa sentimento de estranheza e por consequência, hostilidade ou preconceito. Do choque entre o “eu/majoritário” e o “outro/minoritário” dentro das relações de poder nas narrativas científicas, nasceu o Etnocentrismo. De um lado se conhecia o grupo do “eu” o “nosso” que come, veste e gosta das mesmas coisas, do outro o grupo do diferente do “outro”, que sobrevivia à sua maneira. A diferença transparecia como ameaçadora, por que feria a identidade cultural dominante. O etnocentrismo estava calcado em sentimentos fortes como o reforço da identidade do “eu”, se conjugava com a lógica do progresso, com a ideologia da conquista, com o desejo da riqueza, com a crença num estilo de vida que excluía a diferença As visões do século XVII e XVIII categorizavam os nativos em selvagens, já no século XIX a ideia de primitivo ganhou espaço respaldada nas ciências médicas e biológicas. (DARCY,2000). Nos dois casos a relação de dominação está presente. O selvagem, visto como incapaz para o progresso e civilização moderna, desregrado e perigoso, tendo que ser disciplinado e o primitivo, visto como incapaz, inferior, inapto, tendo que ser tutelado ou dizimado. Evans-Prichard (1993) e Clifford Geertz (2001) juntamente com Arnold Vann Gennep (2013), questionaram essas visões e contribuíram com discussões sobre o desejo de manutenção das tradições de alguns povos como sendo resistências e não inaptidão ao mundo civilizado branco europeu. Já Darcy Ribeiro (2000) com as suas experiências e vivências com os nativos brasileiros, sustentou teorias sobre a necessidade de conhecimento e entendimento da cultura do diferente e respeito às suas tradições. A antropologia, as ciências sociais e a história, com seus estudos etnográficos, ainda que difundida de formas diferentes e com sistemas metodológicos divergentes, contribuem para problematizar as complexidades de determinadas etnias, como a Ticuna. Para o antropólogo Franz Boas (2005), a antropologia – a ciência da humanidade – diz respeito, ao que é humano”. Cresceu em decorrência do império colonial e da categorização das sociedades divididas em primitivas e civilizadas. 11 Marcel Mauss (1974) e Lévi-Strauss (2003) apresentaram para esta reflexão, o foco da relevância da tradição oral, das formas de resistências, os mitos, a cultura e o processo de transformação cultural. Assim, percorreu-se essa literatura com o intuito de construir as balizas da pesquisa e ao beber na fonte de cada teórico e seus métodos, se configuraram e se delinearam os escritos sobre a aldeia indígena Ticuna de Filadélfia, que leva esse nome por causa da forte influência da religião de tendência protestante imposta na década de 1950 às poucas famílias que habitavam o território Ticuna. As pessoas desse lugar foram evangelizadas pelos missionários evangélicos da missão evangélica Batista Regular, procedentes do sul dos Estados Unidos. Antes de ocuparem o atual território físico, as famílias, moravam na ilha de Bom Intento, considerada terra baixa, que uma vez por ano, com a chegada da enchente, dependendo do nível alcançado, a terra da ilha é tomada pela água, gerando prejuízo na lavoura e na moradia. Foi no ano de 1967 que a maior enchente aconteceu, as famílias atingidas pela alagação viram-se na obrigação de se deslocar, migrar para a terra firme. A terra que ocuparam em consequência da alagação era de propriedade de um fazendeiro, onde atualmente é a comunidade, há 07 km do município de Benjamin Constant estado do Amazonas. Hoje, depois de passados 48 anos a comunidade tem 1301 habitantes e 324 casas, a maioria dos moradores da aldeia pertencem à etnia Ticuna que mantém uma relação constante com os Ticuna que habitam em território colombiano e peruano. Com relação à educação formal atualmente na aldeia há a educação infantil, fundamental e ensino médio Nos últimos 30 anos os Ticunas superaram momentos obscuros, (descritos nos capítulos) em sua história, mas, hoje é a etnia com maior número de habitantes. Diante da demanda populacional surgem, assim, perguntas relacionados ao papel que a educação deve exercer nas aldeias. Pós 300 anos de contato com a sociedade não indígena, os remanescentes Ticuna se vem diante dos desafios de encontrar seu lugar no mundo tão complexo de se posicionar como indígenas ao mesmo tempo que se consideram cidadão brasileiro sem abrir mão de sua identidade étnica nem dos saberes necessários procedentes do homem branco. Assim, para a compreensão dos objetivos propostos foi abordada a temática, Educação Indígena Ticuna e o Processo de Afirmação Étnica 12 na Escola Municipal Ebenezer, problematizando a educação na escola indígena, por meio, de histórias passadas por gerações, pela oralidade, até a Constituição Federal de 1988. A coleta dos dados foi através da observação participante, documental, entrevistas, história de vida dos sujeitos moradores da aldeia e envolvidos com a educação, como também das pessoas externas ao ambiente da escola. A fim de melhor compreender o objeto de investigação, o tipo de pesquisa, quanto à abordagem foi utilizada a pesquisa qualitativa, quanto à natureza é descritiva de caráter etnográfico, visando a compreensão da realidade atual da escola, quanto à práxis pedagógica versos o mundo do aluno indígena enquanto sujeito Ticuna Pretendeu-se questionar se a atual escola formal de educação das crianças e jovens ticunas leva em consideração a Cosmovisão, Conhecimentos Tradicionais e Mitológicos do povo Ticuna, em seu projeto político pedagógico e prática pedagógica, como fator metodológico de aprendizagem, fortalecimento e afirmação da identidade étnica. Perceber se os docentes Ticunas, carecem de mudança de mentalidade no que se diz respeito à importância da manutenção e valorização de cultura Ticuna no espaço dessa escola, de acordo com o marco legal da Constituição Federal de 1988, art. 432 e lei nº 11.645/8. Compreender a relevância dos conhecimentos tradicionais e mitológicos do povo Magüta no processo de educação das crianças e jovens Ticunas para o fortalecimento e afirmação da identidade étnica. Através da análise do material didático e documentos da escola indígena Ebenezer, entrelaçados com as narrativas orais, obtidas por meio de entrevistas não estruturadas, se verificou se os conhecimentos tradicionais e mitológicos do povo Ticuna são contemplados no projeto político pedagógico, materiais didáticos e documentos da escola. Esses procedimentos metodológicos possibilitaram o estudo proposto e a descrição da importância do valor e da manutenção dos conhecimentos tradicionais e mitológicos do povo Ticuna na educação contemporânea. Além dos autores que balizam a pesquisa, percorreu-se estudos de Freire (1987), Sousa (2017), SILVA, S. (2014), SILVA, A. (2016), Saviani (2012), Pesavento (2003), Poutignat (1998), Fenart e Barth (1969, 1988), Silva e Grupioni (2006), Luciano (2006), Oliveira Filho (1988), Veras e De Brito (2012), Denys Cuche (1.999), Macedo (1996), Nimuendaju (1929), Triviños (2008), Biase (2001) e marcos legais como a Constituição Federal (1988), RCNEI (1998), DCNEI (2012), lei nº 11.645/8, para 13 revisitar o passado e o presente da escola, no contexto indígena e os impactos gerados pelo modelo da educação introduzida historicamente na sociedade atual dos povos indígenas brasileiros. A pesquisa se justifica em um Programa de Pós-graduação em Educação, Arte e História da Cultura, com ênfase no interdisciplinar pelo entrelaçamento entre História Cultural e Educação, também, pelo envolvimento autor/pesquisador e pesquisado. Como tudo que se escreve está impregnado da essência de quem escreveu, a história do autor é narrada pela sua própria perspectiva, ou seja, Ticuna. Assim, aos 18 anos ingressei no movimento indígena, atuando junto à Federação das Organizações, Comunidades e Caciques da Tribo Ticuna do Alto Solimões-FOCCITT, no ano de 1990 também, foi fundado a Organização da Missão Indígena da Tribo Ticuna do Alto Solimões-OMITTAS, organização de natureza religiosa da qual também participei. Mais tarde já com uma caminhada consolidada e, maior maturidade e entendimento das complexidades vivenciadas pelos indígenas historicamente e no momento atual e do meu papel social como liderança indígena na articulação de ações que contribuam com a superação das exclusões e desigualdades dos povos indígenas no Brasil e em especial no Alto Solimões justifico a pesquisa e saliento a necessidade de uma escrita tecida pelos próprios Ticunas. A dissertação centraliza-se na busca da compreensão e relevância dos conhecimentos tradicionais e mitológicos do povo Magüta no processo de educação das crianças e jovens Ticunas e na contribuição dessas questões nas relações e problemas sociais presentes na educação formal na aldeia. Acredita-se que estudos dessa natureza venham contribuir na superação da vulnerabilidade da juventude Ticuna1 e na baixa estima das crianças, jovens e adultos da tribo. Pondera-se que a escola pode ser um espaço de apropriação indígena, portanto, lugar de socialização dos saberes milenares Ticuna. No âmbito da universidade faz-se necessário trazer à discussão do tema da pesquisa e os saberes tradicionais do povo Ticuna, pelos próprios indígenas, através de estudos e pesquisas cientificas, afim de torná-los visível e reconhecida pela ciência na perspectiva Ticuna, uma vez que os saberes tradicionais muito contribuiu para a evolução do saber cientifico e carecem de serem desvelados pelo protagonista. 1 Os jovens Ticuna, desejam sair da aldeia. 14 Ressalta-se novamente que o tema da educação indígena na perspectiva do indígena Ticuna está dentro da interdisciplinaridade, uma vez que o mundo e a cultura indígena é constituído por uma gama de teia de saberes que se relacionam entre si. Isto posto, optou-se em realizar um texto descritivo sob a perspectiva Ticuna e subdividir os capítulos em: Capitulo I Abordagem Histórica: da origem a ressignificação identitária, Capítulo II Abordagem Cultural: da tradição mitológica a ressignificação religiosa e Capítulo III Abordagem Educacional: da aprendizagem a ressignificação pedagógica. O primeiro capítulo aborda a respeito do povo Ticuna, e sua trajetória no decorrer da história, desde o Brasil colônia até os dias de hoje, traz no seu conteúdo, as consequências do tipo de contato realizado pelos colonizadores e suas devidas consequências para os povos indígenas e em especial para o povo Ticuna. Já o segundo capitulo traz a descrição a respeito da cultura milenar do povo Ticuna e sua devida importância na sociedade Ticuna e o terceiro e último capítulo, na descrição é sobre a importância da inclusão dos saberes tradicionais e mitológicos no âmbito da educação formal, especialmente da escola indígena municipal Ebenezer da comunidade de Filadélfia, objeto da pesquisa. 15 CAPÍTULO 01 - ABORDAGEM HISTÓRICA: DA ORIGEM A RESIGNIFICAÇÃO IDENTITÁRIA A história de um povo tem um valor decisivo na vida dos sujeitos, seja para planejar o futuro cheio de conquistas ou simplesmente para se acomodar diante das mais diversas situações por desconhecer a história. Por isso o objetivo deste primeiro capitulo é tentar percorrer os caminhos da história dos povos originários e em especial do povo Ticuna com relação à educação. A começar da origem a partir da perspectiva mitológica, localização, suas lutas, as conquistas, organização social, a destruição dos pilares enquanto sociedade e a ressignificação do povo hoje. 1.1 GÊNESES DO POVO TICUNA NA PERSPECTIVA MITOLÓGICA Os anciãos contam que Yo'i é o deus bom e Ipi o deus do mal, estes vieram a existência ao serem gestados nos joelhos do Ngutapa o Deus da criação, contam que antes do mundo existir, ele já existia, não teve pai nem mãe. Ngutapa, teve Mapana sua mulher com a qual desejava muito ter um filho, acontece que ela não lhe dava o filho desejado, então ele ficou muito irado com ela, convidou-a para ir à mata adentro onde planejou abandoná-la como castigo. Da maloca onde moravam, seguiram por uma trilha, depois de caminhar bastante, chegaram a um lugar bem longe, ele sentou-se sobre o tronco de um pau caído à beira da trilha, chamou sua mulher Mapana para conversar dizendo. Por que você não me deu um filho, me diga qual é o motivo? Ela respondeu dizendo. É por isso que você está irado? Ele disse, sim, então foi para cima dela agredindo-a, ela indefensa chorou em voz alta pedindo socorro, mas ninguém estava por perto para lhe ajudar. Ngutapa a espancou mais forte, batendo com força no seu peito, Mapana então caiu no chão semimorta, ele pegou uma corda de cipó e amarrou seus pês e braços junto ao tronco de uma árvore, logo foi embora abandonando-a na mata adentro, bem longe de sua casa. Mapana ficou abandonada à própria sorte, presa por uma corda de cipó junto ao tronco, sem chance de liberdade. Chorou com voz alarmante e foi nesse momento que um pássaro chamado Coü, aproximou-se e ficou cantando ao redor dela. Desesperada por ajuda disse: pássaro Coü, que bom que você ouviu meus gritos por 16 socorro, venha me ajudar, esse maldito Ngutapa castigou-me. Então o pássaro virou gente, desceu da árvore dizendo. É você minha neta, que houve contigo? Naquele momento o pássaro Coü transformou-se num belo índio Ticuna, teve compaixão da mulher Mapana, que estava quase morrendo, aproximou-se dela, lhe perguntando novamente: “Que houve com você minha neta? Ela respondendo disse. Ngutapa que não vale nada, castigou-me, por favor me desamarre deste tronco já estou exausta, não suporto mais a dor. Coü, cuidadosamente soltou as cordas dos braços e dos pés, deixando-a totalmente livre, depois ele a orientou a devolver o castigo para Ngutapa seu marido. Disse, você vai apanhar um ninho cheio de marimbondo e vai aguardar Ngutapa passar pelo caminho. Mas você deve se esconder no meio do mato de tal forma que ele não te veja ao passar por perto, deves jogar na altura de seus joelhos o ninho do marimbondo. Combinado? Ela disse certo, assim o farei. Mapana foi fazer do jeito como Coü a orientou, foi a procura do ninho do marimbondo. Logo bem próximo, encontrou um, com uma folha na mão aproximou- se, pegou o ninho e cuidadosamente em suas mãos segurou o ninho. Caminhando devagar aproximou-se da trilha onde Ngutapa iria passar, pois, ele viria tocando uma música e dançando, comemorando o castigo de sua mulher. Mapana ao chegar na trilha, procurou um lugar com bastante mato, onde se escondeu, ali discretamente aguardou o momento em que seu marido iria passar. Não demorou muito, lá vinha Ngutapa, cantando e dançando, ao passar bem pertinho, ela então jogou sobre ele o ninho do marimbondo, bem na direção dos joelhos. Os marimbondos ferraram os dois joelhos, a dor foi insuportável, Ngutapa não conseguia caminhar, aos gritos pedia por perdão de sua mulher, então saiu se arrastando em direção à sua maloca, ao chegar lá deitou-se na rede. Depois de uma semana de muito sofrimento e dor, seus joelhos incharam-se, de repente ele percebeu que dentro haviam duas pessoas em cada um dos joelhos. No joelho direito estava sendo gerado Yo'i que estava confeccionando uma zarabatana e sua irmã Aicüna muito ocupada tecendo uma rede. No joelho esquerdo estava Ipi, trabalhando fazendo um arco e uma flecha do seu lado estava sua irmã Mowatcha, também ocupada tecendo uma bolsa de fibra de tucum. Então foi do joelho de Ngutapa que vieram a existência Yo'i o deus bom e Ipi o deus do mal. 17 Povo Ticuna de acordo com a memória dos mais velhos da tribo é denominado também como povo Magüta que significa gente de verdade, nome dado no momento da criação pelo herói mítico Yo'i o Deus bom. Segundo a mitologia a respeito da criação do povo Magüta, contado de pais para filhos disse que Yo'i depois de haver nascido do joelho do Ngutapa, decidiu criar seu povo. Contam que estando à beira do lago Eware, o lago sagrado, Yo'i pegou seu caniço (a vara de pescar) na primeira tentativa de pescar usou como isca uma semente de coquinho caroço de tucumã uma espécie de palmeira, logo jogou o anzol na água ao puxá-lo para fora o peixe fisgado transformou-se em animal, em porco do mato, assim surgiram os animais, cada um com seu par macho e fêmea, por isso os dentes dos porcos do mato são duros e resistentes. Ao perceber que o peixe fisgado não se transformava em gente, então decidiu trocar de isca, foi então à roça em busca de macaxeira, pegou e o colocou no anzol de imediato jogou-o na água, então os peixes que foram fisgados transformaram-se em duuṹˈgü (gente de verdade) e estes foram os ticunas “o povo Magüta”. Isso é o motivo pela qual os dentes dos ticunas são molhes e irresistentes. Segundo o professor indígena Santos Cruz: Seu avô contou que depois de Yo'i haver pescado as pessoas, chegou a hora em que todas as pessoas precisavam tomar um banho no lago sagrado Evare, para isso as pessoas foram divididas em três grupos. O primeiro grupo que tomaram banho ficaram bem limpos, bem brancos e estes são as pessoas que hoje são de pele bem brancos e são os alemães, francês, italianos, etc. Logo o segundo grupo foi tomar banho na mesma água, pelo fato de a água estar um pouco suja com a sujeira do primeiro grupo, por isso a pele não ficou bem limpa, estes ficaram com a pele morena, são os Ticuna. Por último fizeram uso da mesma água para tomar banho o terceiro grupo, ai a água já estava muito suja, não sendo possível a total limpeza da pele, por isso as pessoas do terceiro grupo ficaram com a pele bastante negra. Segundo os velhos da tribo os contadores da história, esta parte da história não é contada para as pessoas do primeiro grupo e do terceiro grupo. Gruber, que trabalho a confecção do livro das árvores, juntamente com os professores ticunas, a respeito do mito da criação afirma. 18 Quando a piracema passou, Yo’i fez um caniço e foi pescar, usando caroço de tucumã maduro. Mas os peixes, quando caiam na terra, viravam animais: queixada, anta, veado, caititu e muitos outros. Ai Yo'i usou isca de macaxeira, e com essa isca os peixinhos se transformavam em gente. Yo’i aproveitou e pescou muita gente. Mas seu irmão não estava entre essas pessoas. Yo’i então, entregou o caniço para Tetchi arü Ngu’i e ela conseguiu fisgar um peixinho que tinha uma mancha de ouro na testa. Era Ipi. Ipi saltou em terra, pegou caniço e pescou os peruanos e outros povos. Esse pessoal foi embora com Ipi para o lado onde o sol se põe. Da gente pescada por Yo’i descendem os Ticuna e também outros povos que rumaram para o lado onde o sol nasce, inclusive os brancos e os negros. (GRUBER, 1997, p. 18). Ticuna ou povo Magüta, conforme afirmação dos velhos da tribo, significa gente de verdade, criados e dotados de inteligência para cuidar de sua sociedade, portanto organizados politicamente, economicamente, socialmente e culturalmente. 1.2 ORGANIZAÇÃO SOCIAL Com relação à organização social, segundo as histórias, quando ainda eram contadas oralmente pelos anciãos da aldeia, afirmam que foi estabelecido por “Yoi” o sistema regulador da sociedade Ticuna que consiste em atribuir uma identidade familiar em base ao clã, que são famílias extensas e que tem como função legitimar o casamento, impedindo a união com membro da mesma família, evitando assim o incesto. 1.3 LOCALIZAÇÃO Atualmente as aldeias do povo Ticuna, estão localizadas na região do Alto Solimões no estado do Amazonas, à beira do rio Solimões e cabeceiras dos pequenos rios. Antes do contato com os brancos não haviam aldeias, eram famílias clânicas que moravam uma bem distante da outra. As primeiras aldeias vão surgir com a presença e ajuda de novos agentes procedentes de fora no início do século XX com a presença do Serviço de Proteção ao Índio-SPI, nasce a aldeia de Umariaçú. Outro agente responsável por ajuntar famílias ticunas é o protestantismo que se localizaram em Santa Rita do Weil ao ceder terra para as famílias adeptos à religião deram origem a Campo Alegre e no município e Santo Antonio do Iça, surgiu a comunidade Vila Betania. 19 Figura 1: Quadro 1 – Localização do povo Ticuna Fonte: Dados do mapa ©2020 Google, INEGI As aldeias, hoje são em número de 250, encontram-se situadas em territórios de 07 municípios: Tabatinga, Benjamin Constant, São Paulo de Olivença, Amaturá, Santo Antônio de Içá, Tonantins e Coari, nos últimos 25 anos algumas famílias migraram do Alto Solimões à distância de 1.000 km, descendo o rio Solimões até à cidade de Manaus, onde atualmente há uma aldeia urbana no bairro Cidade de Deus. Pelo fato de sua localização ser na tríplice fronteira, também há aldeias do povo Ticuna nos países vizinhos do Perú e da Colômbia, e a relação de comunicação e intercambio com as aldeias dos três países é constante, para o indivíduo Ticuna não há barreira de fronteiras. É um povo milenar, já habitavam a bacia amazônica, há pelo menos 2 mil anos antes da chegada dos colonizadores portugueses e espanhóis, ocupavam as terras firmes e principalmente as cabeceiras dos pequenos rios/igarapés, afluentes do rio Solimões, mantem contato há 300 anos com a sociedade envolvente desde finais do século XVII. A ocupação do povo Ticuna na bacia amazônica no território atualmente habitado é milenar, antes mesmo da presença dos colonizadores europeus, segundo Silva, S. (2014, p. 24) “de acordo com registros arqueológicos, os Tikuna datam de 20 950 (± 90) d. C. com base em fragmentos cerâmicos semelhantes a cerâmicas feitas pelos Tikuna atuais.” Normalmente a pergunta feita por um não-indígena é. Qual o país a que pertencem os ticunas? Será que são brasileiros, peruanos ou colombianos? Para tentar explicar a pergunta é necessário viajar no tempo a fim de compreender o motivo pela qual há presença dos Ticuna nos três países. Ao mencionar sobre o território tradicional ocupado pelos Ticuna segundo o relato dos viajantes, Silva, S. (2014, p. 24) afirma. Os relatos destes viajantes, apesar de meramente descritivos, servem de base inclusive, para conhecimento da forma de vida desta etnia como descrição física, comportamento, organização social, traços da personalidade, costumes, mitos e cosmogonia e registram também sua localização geográfica desde o Rio Napo (no Peru) até o Alto Amazonas (atual Rio Solimões) no Brasil. Antes das atuais delimitações dos países politicamente delimitadas, originalmente o território tradicional Ticuna era uma só, era a cabeceira dos pequenos rios, onde os ticunas habitavam em suas malocas clânicas, com o passar dos anos com a suposta extinção do povo Kambeba e domesticação do povo Cocama pelos colonizadores, os ticunas desceram das cabeceiras dos pequenos rios, à beira do rio Solimões para habitá-la. Já na primeira metade do século XIX, na região do Alto Solimões, alguns povos já estavam extintos ou assimilados pela cultura europeia. De acordo com Bates (1973, p. 175), citado por Oliveira (2015, p. 59). Por volta da primeira metade do século XIX os viajantes que passem pelo Alto Solimões traçam o seguinte panorama: o índios do Iça estão praticamente extintos (passes, juris, yumanas e mariates), exceto umas poucas dezenas vivendo juntos aos não índios, principalmente em Tonantins (Bates, 1973:175); dos omáguas não existe mais qualquer referência [...]. Os Cambebas ou Omaguas eram habitantes da beira do rio Solimões, por isso foram os primeiros a ter contato com o homem branco e sofrer os maiores impactos da colonização, foram tidos como povo extinto, mas nos últimos dez anos, remanescentes deste povo que por muitos anos permaneceram no silencio, estão ressurgindo e se afirmando como povo. 21 1.4 DESTRUIÇÃO DOS PILARES DA SOCIEDADE TICUNA Os europeus que por aqui chegaram, estabeleceram um sistema de controle eurocêntrico, por cinco séculos sufocou a cultura indígena, por isso muitos povos tiveram que negar sua identidade como uma forma de garantia da sobrevivência, outros se afastaram para lugares de difícil acesso, fugindo do terror protagonizado pela frente de contato dos colonos bandeirantes e extrativistas. Oliveira Filho (1988, p. 31) afirma que “A preocupação dominante era mostrar a progressiva descaracterização cultural daquelas sociedades e a absorção de crença e costume procedente do branco”, absorvidos pela classe dominante os índios foram obrigados a abandonar seu próprio sistema de organização social e aceitar a cultura imposta. Como consequência da imposição da cultura eurocêntrica é lamentável saber que muitos dos remanescentes Ticuna desconhecem o saber tradicional, nas famílias e no cotidiano grande parte da cultura deixou de ser socializada. 1.4.1 AS MALOCAS CLÂNICAS A moradia original onde os ticunas habitavam antes da presença dos colonizadores na região, até final do século XVIII era a maloca clânica, que ao construí-la era projetada para abrigar todos os membros de uma extensa família clânica. Cuja estrutura era construída de madeira bem selecionadas e de longa durabilidade. Conforme Marcoy (2001), citado por Silva, S. (2014, p. 44). Afirma que: A mobilidade dos assentamentos Tikuna interferiu na estrutura da moradia que durante a exploração hispano-lusitana ainda era a maloca. Construída para abrigar avós, pais, filhos, genros, noras e netos, apresentava no século XIX de acordo com Marcoy (2001) de formato arredondado, descrita de forma mais detalhada por Bates (1857, p. 292-294) em sua viagem a São Paulo de Olivença: (...) uma ampla choupana de formato ablongo, cuja parte interna era arranjada de forma desordenada e assimétrica que dava a impressão de ter sido construída por vários pedreiros que trabalhassem independentemente e fossem colocando vigas, esteios, etc. Sem tomar conhecimento do que os outros vão fazendo. As paredes e o teto eram cobertos com um trançado de folhas de palmeira. Redes penduradas entre grossos mourões que sustentavam o teto deixavam uma passagem livre no centro, onde era acendido o fogo; num dos lados erguia-se um jirau feito de troncos de palmeira partidos ao meio de sentido longitudinal. Antes de construir a maloca a arquitetura era muito bem pensada e planejada para atender as demandas de todas as necessidades da extensa família, 22 tais como conforto e segurança, principalmente deveria estar bem protegida contra animais perigosos da selva que poderiam invadir a parte interna da moradia, assim como serpentes, onças e mosquitos pernilongos. O formato da maloca era estilo oval, coberto desde o chão até o teto com um tipo de palmeira nobre conhecido como (caraná), retirado do mato com a ajuda de todos os habitantes da moradia. No primeiro dia com a ajuda de todos as palmeiras são cortadas, logo amarradas em feixes de até 80 kg, para a cobertura da maloca eram necessários de 15 a 20 feixes, logo os feixes do caraná eram transportados até o lugar da construção, onde eram tecidas numa vara no formato de um pente. Pois para a cobertura e a parede da maloca eram necessários de 200 a 300 pentes, palhas de caraná. Na década de 20 quando o etnólogo alemão Curt Nimuendaju, visita pela primeira vez a região do Alto Solimões, a partir da memória dos remanescentes Ticuna com a qual teve contato, a respeito da maloca que já estava extinta afirma: Segundo Nimuendajú (1952), citado por Silva, S. (2014, p. 44), [...] retrata por intermédio de testemunhos orais, o desenho da maloca Tikuna, em formato “aparentemente” circular com uma secção retangular de formato quadrangular, de um, dois ou três metros. O tipo de moradia dos ticunas as ocas clânicas foi um dos pilares que foi destruída e extinta pelos colonizadores que por aqui chegaram, mais conhecidos popularmente como os patrões ou coronéis do barranco, eles obrigaram os ticunas a abandonar a maloca, pois julgavam que pelo fato de viverem em grande número de pessoas na mesma casa eram preguiçosos. Visto que o maior interesse dos patrões era a produção em grande escala dos produtos do extrativismo, uma vez sob o domínio dos colonizadores os indígenas foram obrigados a abandonar suas malocas e passar a viver e trabalhar forçadamente pelos interesses do patrão, deixaram de ser autônomos. A respeito do abandono das malocas clânicas pelos ticunas, Cardoso de Oliveira (1964), citado por Silva (2014, p. 78), também afirma o seguinte: “De acordo com Cardoso de Oliveira (1964:54); Umbarila (2003); Garcés (2000) o sistema de endividamento para exploração do látex ao qual foram submetidos os indígenas, promoveu aos Tikuna do Brasil e da Colômbia o abandono de suas malocas”. 1.4.2 A AUTONOMIA 23 Documentos a respeito sobre o povo Ticuna antes do contato com o homem branco, é escasso, permanece obscuro, carente de descoberta. Com relação a essa realidade Nimuendajú (1952, p. 116), citado por Oliveira (2015, p. 48) afirma. Os dados sobre a “situação pré-contato” são bastante escassos e caracterizam-se pelo caráter conjectural e fragmentário. O pouco que se pode dizer com relativa segurança é que os ticuna, antes da chegada dos portugueses e espanhóis na região, foram índios da terra firme, habitando os altos igarapés situados à margem esquerda do rio Solimões, no trecho atualmente compreendido entre Tabatinga e São Paulo de Olivença. Desconheciam de canoas e ubas, evitando sistematicamente as beiras do Solimões, ocupado pelos Omaguas, inimigo dos ticuna e que em alguns de seus mitos e lendas aparecem realizando incursões contra a suas malocas (Nimuendajú, 1952:116). No entanto, as histórias contadas e passadas de geração em geração, salientam que os ticunas, antes de sofrerem a invasão territorial, gozavam de autonomia com relação à própria forma de governar, cada oca clânica tinha seu próprio líder mais conhecido como (To'ü eru), cuja habilidade era comparado com a esperteza do macaco (To'ü). O líder nato, desde sua infância era separado e treinado pelo líder-mestre em todos os saberes da tribo para se construir enquanto tal, isso incluía a abstinência de certos alimentos e da prática do sexo fora do tempo permitido, pois, deveria ter total compromisso com os interesses do povo e não desperdiçar seu tempo em outros assuntos. Deveria ter total habilidade para preparar o povo para as guerras que constantemente acontecia com povos vizinhos, era papel dele também empreender a confecção de zarabatanas, arcos e flechas usados nas atividades da caça de animais e também nas guerras. Com a chegada dos colonizadores, a figura do líder nato foi extinto, sendo substituído pelo líder e patrão branco, posteriormente pelo capataz e pelo capitão, líderes que não representavam o interesse do povo e sim do dominador patrão branco. Ao longo dos anos, o hibridismo (do contato de uma cultura com a outra nasce uma terceira) e a gestação da dependência da cultura hegemônica europeia dominante. Isso gerou serias consequências de ordem psicológicas e sócias. Conforme Oliveira (2015, p. 75). Dois fatores vão se conjugar para dar ao seringueiro-índio a sensação de abandono e de deterioração de sua condição de vida, fato que os 24 informantes ticunas algumas vezes atribuem à sucessão de direção no âmbito da empresa, outros vindo substituir os “bons patrões” de antigamente. Uma vez extinto o líder genuíno, os ticunas espalharam-se para qualquer direção, seguindo qualquer um, ao exemplo do bando de porcos, quando seu principal líder é morto pelo caçador. O legado da hegemonia hispano-lusitano foi a dependência crônica dos índios ao aceitar a posição de inferioridade com relação aos brancos. 1.4.3 A EDUCAÇÃO Não se pretende uma reflexão crítica da história desde o Brasil Colônia até os dias atuais, mas, percorrer alguns momentos que permitam a compreensão de que a estrutura política, social e a educação voltado para os indígenas no processo sócio histórico, foi inevitavelmente permeado pelo pensamento europeu especialmente da era industrial o responsável pela extinção e silencio da diversidade de culturas indígenas. Conforme Poutignat, Fenart e Barth, (1988, p. 47): O tipo de estrutura social próprio da era industrial conduz, ao contrário, grandes massas de população, pertencentes às culturas inferiores descontínuas, em direção ás altas culturas normalizadas, homogêneas, secularizadas, transmitidas não somente pelas elites, mas por instituições educativas especializadas sustentadas pelo poder central. Também de acordo com Luciano (2006, p. 41), “O objetivo, portanto, não era tanto cultural ou racial, mas, sobretudo econômico, guiando toda a política e as práticas adotadas pelos colonizadores”. Assim, as caravanas procedentes de Portugal chegaram à terra que era habitada pelas diferentes nações indígenas, extremamente motivados pelo acúmulo de riquezas, desconsiderando a autonomia, o tipo de vida social, político, religioso e a economia dos povos indígenas. Assim ao aportar na terra já habitada pelos índios a caravana dos homens brancos, encheram os olhos de ganância ao perceber a oportunidade e a facilidade de tornar realidade o desejo de enriquecimento, diante da abundante riqueza natural existente, que no imaginário deles não era de propriedade de ninguém. Na tentativa de explorar a riqueza encontrada, perceberam que não fora possível extrair a riqueza em grande quantidade com a mão-de-obra dos poucos 25 homens que aqui aportaram, pois o trabalho era difícil e braçal, a alternativa para acelerar o trabalho de exploração era de incluir a mão-de-obra indígena. No momento do encontro com os visitantes estrangeiros que aqui chegaram a intenção do indígena era de prover a melhor recepção, oferecendo ajuda em hospedagem, proteção, alimentação e até mesmo dando presentes como bens preciosos, atitudes que tinha como principal objetivo conhecer melhor o outro, a fim de construir bons relacionamentos, como donos de casa. Tais atitudes provam que os povos originários ou natos desta terra eram sociedades autônomas muito bem governadas e economicamente autossuficientes, no entanto a intenção dos visitantes europeus era de explorar a riqueza encontrada e consequentemente de subjugar o índio ao trabalho escravo para promover a exploração desumana. Assim o encontro foi desigual e paulatinamente destruidor da sociedade indígena. Além do abuso cometido em nome da economia, historicamente a educação pensada para os povos indígenas era de extinguir a cultura dos índios com o objetivo de homogeneizar a cultura brasileira em nome da civilização. “Em poucas palavras, desde a chegada das primeiras caravelas até meados do século XX, o panorama da educação escolar indígena foi um só, marcado pelas palavras de ordem catequizar, civilizar e integrar ou, em uma cápsula, pela negação da diferença.” (SILVA; GRUPIONI, 2004, p. 150) Na concepção do branco colonizador o índio foi um sujeito mau por sua atitude, ao reagir em proteção e legitima defesa do seu território e aldeias quando foram invadidos. Na disputa em ações defensivas em resposta à invasão o índio sempre foi o perdedor, pois enquanto o nativo se defendia com arco e flecha o invasor exterminava-os com arma de fogo. De acordo com Fernandes (1975, p. 27): Teoricamente, podemos presumir três formas básicas de reação do índio a esses desdobramentos da conquista: a) de preservação da autonomia tribal por meios violentos, a qual teria que de tender, nas novas condições, para a expulsão do invasor branco; b) a submissão nas duas condições indicadas de “aliados” e de “escravos”; c) de preservação da autonomia tribal por meio passivos, a qual teria de assumir a feição de migrações para as áreas em que o branco não pudesse exercer dominação efetiva. A ordem dos Jesuítas, aliados da monarquia portuguesa, tinham a missão de fortalecer e expandir a fé católica, pois na idade média eram os detentores do poder e do conhecimento. As ações em territórios conquistados eram realizadas em acordo 26 com o poder imperial. No Brasil dedicaram-se à tarefa de domar ou de civilizar os nativos, através da educação, uma vez “civilizados ou transformados em homens brancos” eram entregues aos senhores donos das fazendas para ali servir de mão- de-obra escrava (FERNANDES, 1975, p. 26). No olhar do sujeito europeu, projetado de fora para dentro do mundo indígena, ao perceber, a inexistência da escola formal, da sala de aula, do docente, do currículo, do horário, de uma disciplina rígida, de punições e de castigos corretivos levou-lhes a concluir que os povos indígenas não tinham educação por isso julgaram necessário civilizá-los, de acordo com o modelo europeu de educação escolarizada. Os sujeitos indígenas por serem diferentes em sua cultura, traços físicos, organização social e política, foram considerados desumanos, classificados como animais e sem alma, portanto deveriam ser civilizados via a educação catequizadora. O índio deveria se tornar gente ou (homem branco) com ideais iluministas e individualistas. Movidos pelo egoísmo e desejo de apropriação das terras encontradas, assim como a intensão do uso da mão-de-obra indígena, foi planejado a ideia de civilizar os povos que aqui habitavam via educação, cuja responsabilidade foi dada aos jesuítas, um seguimento da igreja católica que surgiu no século XVI na Europa como reação à reforma protestante, protagonizado por Martinho Lutero o pai do protestantismo. Na perspectiva Ticuna encontramos relatos, histórias contadas. Mesmo cientes das armadilhas da memória, dos esquecimentos e reelaborações do passado no presente a história oral contribui para levantarmos histórias de culturas tradicionais. Assim, a memória a respeito da luta pela educação indígena Ticuna, foi problematizada por meio da obtenção de depoimentos concedidos ao autor, como a do sr. Santo Cruz em 06/07/2020 que apresenta o processo de constante desconstrução da cultura Ticuna. “Meu nome na língua portuguesa é Santo Cruz, é meu nome dado por meu padrinho, mas tenho também meu nome original Ticuna, dado por minha avó no momento em que nasci, quando foi cortado o cordão umbilical, assim recebi o nome de (Pucüracü) pois sou do clã do Mutum da família das aves, mas o nome branco é o que entra para os registros. Educação Infantil pela perspectiva do autor. Nos dias do meu tempo, quando eu era criança em nossas aldeias Ticuna não havia escolas ou salas de aulas do jeito do branco, as escolas somente existiam nas 27 cidades onde os brancos moram. Na década de 70, foi o início de minha trajetória em busca de uma educação formal, nesses anos em nossas aldeias não havia escolas nem professores, naquela época não havia comunidades, havia famílias clânicas morando um distante do outro ao longo da beira do rio Solimões e principalmente nas cabeceiras dos pequenos rios (igarapés). De preferência habitavam em lugares de muita abundância de peixes e animais como anta, veado, paca, caititu, macacos, etc. Eu entrei na escola dos brancos no ano de 1972, foi nessa escola que estudei até a quarta série, logo no ano de 1979, depois de haver concluído a quarta série meu pai falou com os senhores brancos do programa conhecido como Campos Avançados do Projeto Rondon2 que haviam chegado por aqui e trabalharam por 15 anos no Alto Solimões. O projeto Rondon, eram pessoas procedentes do Rio Grande do Sul, eles chegaram aqui no município de Benjamin Constant, vieram com o objetivo de dar capacitação para os professores brancos do município. Nós os indígenas Ticuna também estávamos ai era eu, Santo Cruz, Nino Fernandes, Francisco Julião, Adelmo, Etevir, Alirio e outros Paulo, Constantino. Foi no ano de 1979, que o Projeto Rondon deu-nos um curso, denominado como curso de nivelamento, na verdade era um curso para atuar na docência das escolas era realizado em convenio com a prefeitura. E em janeiro de 1.980, foi realizado o curso de professores leigos da zona rural que teve duração de 04 anos, depois de concluir o curso já estávamos habilitados para o magistério, cada um de nós recebeu o certificado de conclusão. Depois de ter concluído o curso, fomos atuar na educação usando o material didático do Projeto Rondon com o título Terra Verde Céu Azul, cujo conteúdo tinha elementos da cidade do contexto não-indígena como por exemplo nomes de animais desconhecidos pelos Ticuna. 2 Projeto Rondon O Projeto Rondon, sob coordenação do Ministério da Defesa, é conduzido em estreita parceria com o Ministério da Educação, o Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário, o Ministério da Saúde, o Ministério do Meio Ambiente, o Ministério da Integração Nacional, o Ministério do Esporte e a Secretaria de Governo da Presidência da República. É uma ação interministerial do Governo Federal realizada em coordenação com os Governos Estadual e Municipal que, em parceria com as Instituições de Ensino Superior, reconhecidas pelo Ministério da Educação, visa a somar esforços com as lideranças comunitárias e com a população, a fim de contribuir com o desenvolvimento local sustentável e na construção e promoção da cidadania. 28 Então nós os Ticuna questionamos o material, dizendo que não é correto ensinar nossas crianças usando livros didáticos cujos conteúdos não levam assuntos de nosso contexto. Por isso no ano de 1982 a 1986, protagonizamos a criação de um grupo de professores Ticuna para trabalhar a elaboração de um material didático compatível com a cultura Ticuna com o título Tutu, a FUNAI também deu sua contribuição para a confecção do material. A partir dessa experiência, o projeto Rondon juntamente com a FUNAI e a prefeitura, estenderam o projeto para outros municípios tais como Tabatinga, São Paulo de Olivença, Amaturá e Santo Antonio do Iça. Foi assim que os outros professores Ticuna das aldeias de Betânia, Vendaval, Campo Alegre e Nova Itália, vieram a região para receber a capacitação com duração de 04 anos, eles eram trazido das aldeia num transporte de propriedade do projeto Rondon. Os primeiros professores dos outros municípios receberam uma formação básica para assumir a docência nas aldeias. Segundo documentos oficiais do Projeto Rondon, no ano de 1982, os Ticunas docentes trocaram ideias para saber o que fazer para a melhoria do futuro da educação nas aldeias. Concordaram em criar uma organização na região, pois, já havia um grupo de pessoas trabalhando a questão indígena. Ainda não havia sido criado o museu, o nome do local foi denominado como Centro Magüta para funcionar na cidade de Benjamim Constant num espaço alugado. Um pouco mais para frente foi comprado o terreno onde atualmente é o museu Magüta. Este foi o local do Centro de Pesquisa do Alto Solimões. Como já existiam professores da região e das aldeias dos outros municípios envolvidos, foi nessa época que se criou a Organização Geral dos Professores Ticuna Bilíngues-OGPTB, órgão responsável pela busca e melhoria da educação Ticuna, no que se refere a como saber trabalhar na docência no ensino das crianças das aldeias. Objetivava-se que as autoridades não-indígenas conhecessem o trabalho dos indígenas por meio dessa organização, propiciando respeito e trocas de conhecimentos. Segundo depoimentos dos que viveram a experiência, essa organização nasceu forte e se manteve muito forte. A OGPTB tornou-se conhecida em toda a região do Alto Solimões, nessa mesma época em Manaus estava surgindo outra organização dos professores 29 indígenas a nível de Amazônia denominado Coordenação das Organizações dos Professores Indígenas da Amazônia-COPIA, que veio incluir os docentes índios do Alto Solimões, Baixo Amazonas, Rio Negro, estado de Roraima, Acre e outras regiões, tudo começou foi por aqui em Benjamin Constant. Foi assim que se tornou realidade as ações dos não-brancos e atualmente o estabelecimento, nas aldeias de escolas. As escolas proporcionaram condições para que indígenas estudassem e se formassem em nível superior. Não obstante, pergunta-se: Como foi que a OGPTB teve essas conquistas? Sendo que na época ninguém tinha uma formação escolarizada e o máximo de estudo que as pessoas tinham era até a quarta série, outras terceira série e alguns a quinta série. Devido à essa carência de estudo por parte dos docentes indígenas foi que a OGPTB começou o projeto de capacitação de ensino fundamental de primeira até oitava série, logo o ensino médio em magistério e finalmente o ensino superior, foram total de 230 professores formados com nível superior. O Sr. Santo Cruz, também, fez parte da turma que participaram da capacitação oferecida pela OGPTB, por isso, relata a experiência por meio da sua vivência no trabalho realizado. As impressões que marcaram é que o trabalho precisa prosseguir em frente, pois, atualmente no meio indígena, já podem ser encontradas pessoas com formação até em nível de mestrado e doutorado. Por que isso? A resposta é que para manter a cultura tradicional é necessário conhecer as outras, a cultura do homem branco, para que assim tenhamos condições de defesa. Só se possui clareza do que se conhece. Antigamente os brancos, com as suas espingardas nos matavam, mas nos dias de hoje eles nos matam com a obrigatoriedade de assimilarmos somente os seus conhecimentos nas escolas e aceitarmos as suas regras e leis. É necessário aos indígenas aprender os conhecimentos dos brancos, mas, também, aprendermos nas escolas a cultura Ticuna. Cumprindo as determinações da Constituição Federal (1988), a LDBEN (1996), esclarece as responsabilidades e especificidades da educação escolar indígena, sobressaindo a preocupação com o ensino bilíngue e intercultural. No Artigo 26, ressalta a inclusão das características regionais e locais, da cultura, da economia e da clientela de cada escola. Assevera, ainda, a educação diferenciada na garantia 30 de não apenas ensinar conteúdos na língua materna, mas incluir conteúdos curriculares propriamente indígenas. O Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas – RCNEI (1998, p. 24) reafirma o reconhecimento do caráter multiétnico do Brasil, a autonomia indígena e “relações igualitárias entre os povos indígenas a sociedade civil e o Estado”. De acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena, “os princípios da especificidade, do bilinguismo e multilinguíssimo, da organização comunitária e da Interculturalidade fundamentam os projetos educativos das comunidades indígenas, valorizando suas línguas e conhecimentos tradicionais [...]” (DCNEI, 2012, p. 3). Apesar dos avanços na legislação no que diz respeito ao segmento indígena e a educação, as escolas indígenas no seu cotidiano, enfrentam dificuldades para fazer da escola um espaço diferenciado ao serviço da comunidade indígena local. A tendência ainda é de propor experiências descontínuas e esparsas, distanciadas das questões peculiares da região e da particularidade da cultura indígena, limitando-se a reproduzir os métodos e programas do ensino tradicional e formal. 1.4.4 O IDIOMA O povo Ticuna é falante do idioma Ticuna, classificada linguisticamente como uma língua isolada, devido a que não está vinculada a nenhum dos troncos linguísticos é um dos idiomas mais difícil de se aprender. É uma das culturas Ticuna que ainda sobrevive que se preservou no tempo apesar do abuso sofrido, pelo menos 90% dos que habitam em território brasileiro são falantes do idioma materno é a língua de comunicação no cotidiano. Já os que habitam em território colombiano, gradativamente foram abandonando o idioma materno, atualmente 80% das crianças deixaram de falar a língua Ticuna, sendo substituído pela língua espanhola. Os ticunas do Peru ainda em 60% falam o idioma do coração. Pelos colonizadores que por aqui chegaram, era considerado como um idioma estranho, realmente era uma das barreiras na parte de comunicação um verdadeiro empecilho para a realização de seus interesses que era de produzir em grande quantidade. 31 Não era tido como idioma de gente, ou seja deles do homem branco, por isso era imposto o abandono do idioma materno em detrimento da aprendizagem da língua portuguesa, índio que abandonasse seu idioma era tido como “civilizado”. No final do século XVII, logo no início do contato com o homem branco, os primeiros Ticunas que involuntariamente ficaram sob o jugo dos portugueses por período de 250 anos, foram vítimas da perda de sua identidade, entre eles do idioma materno, foram assimilados pela cultura europeia. Enquanto estes foram extintos, os que fugiram para bem longe dos dominantes, preservaram a cultura milenar, foram esses que no período do enfraquecimento do império dos patrões que ao sair de seus lugares de fuga, conseguiram preservar boa parte da cultura entre eles a língua materna. A respeito da fuga dos Ticunas pela frente de contato, Silva, S. (2014, p. 49) afirma: E consta não ter registro de reações de violência desta etnia, contra os abusos sofridos, e sim "fugas" para as cabeceiras dos igarapés e centros da terra firme, onde não haviam possibilidades de serem molestados. Ao sentirem confiança nas pessoas que se aproximam, são amáveis e hospitaleiros, respeitadores e modestos em extremo. Índio civilizado era aquele que deixava de falar seu idioma para falar a língua do estrangeiro, implicava também no abandono das práticas tradicionais da tribo e aprendizagens das atividades favoráveis aos interesses da economia capitalista. Assim de acordo com Freire (2000, p. 11): A chegada dos portugueses ao litoral brasileiro implicou um processo desagregador para os povos indígenas e executaram uma política destinada a desarticular a identidade das etnias, descriminando suas línguas e culturas, que foram desconsideradas no processo educativo. A prática de desrespeito à cultura indígena foi estabelecida pelos colonizadores não somente no litoral brasileiro, mas em todo o território nacional, muitos perderam 100% de suas culturas ao exemplo do povo Kambeba, vizinhos do povo Ticuna. 1.4.5 A CULTURA MILENAR 32 Por ocasião da visita do etnólogo alemão Curt Nimuendaju (1929, p. 5) ao Alto Solimões, ele foi um dos testemunhas oculares sobre a situação social já degradada do povo Ticuna, que ao respeito ele comenta: Eles não têm mais nenhuma organização política: seus chamados ‘capitães’, ou ‘curacas’, no Peru, são intérpretes que repassam a seus companheiros tribais, os quais, geralmente, entendem apenas sua própria língua, as ordens de seus senhores civilizados, proprietários no Solimões, que monopolizam todos os contatos com os índios, mantendo-os sob tutela rigorosa e, assim, assegurando para si a produção gomífera. A vida econômica dos Ticuna girava em torno da atividade extrativista, pesca de tartaruga, com aproveitamento de diversos produtos derivados, pequena lavoura voltada para a subsistência ou pequenos circuitos locais de troca. A ocupação da área era extremamente rarefeita e em grande parte temporária, adaptada ao caráter cíclico da caça à tartaruga, da pesca de maior porte e das diferentes modalidades de coleta. Contrário à prática da economia capitalista, a econômica do indígena é de sobrevivência, por isso tudo que é considerado como necessário é produzido no momento e imediatamente consumido. 1.5 DEMARCAÇÃO E RETOMADA DAS TERRAS TICUNA O território que antes do contato era extenso e vasto, para livremente, nela buscar o alimento básico para o consumo diário, com a chegada dos colonizadores, a terra foi usurpada por eles e reduzida a pequenas terras que passaram a ser denominadas como reserva indígena na atualidade. Gradativamente e à medida que a população Ticuna aumenta e a exploração predatória é praticada, os recursos naturais de sobrevivência do povo indígena, existentes nessas pequenas reservas, esgotaram. Expropriado de suas terras, a maioria dos povos originários, passaram a viver à margem da sociedade brasileira branca, nem dono das terras e nem dono de si mesmo eram. As terras invadidas, território milenar dos povos indígenas, hoje conhecido como América Latina, foi motivo de disputa entre Portugal e Espanha sobre que parte da terra pertenceria a quem. O problema a respeito da propriedade da terra foram resolvidos através de tratados, sem a presença dos proprietários, os índios. 33 Em 1494 foi o tratado de Tordesilhas, onde foi estabelecido uma linha imaginaria a 370 léguas de linha a oeste das ilhas de Cabo Verde e em 1777 foi o tratado de Santo Idelfonso, este tratado véio incluir parte da Amazônia como propriedade de Portugal. De acordo com Loureiro (2007, p.12), “Geopoliticamente, a Região Amazônica estava dividida, pelo tratado de Santo Idelfonso, em duas áreas de influencias: a portuguesa e a espanhola. Já no final do século XIX, foi a vez da repartição das terras do Alto Solimões, milenarmente ocupadas pelo povo Ticuna, novamente sem a devida consulta aos índios que habitavam a terra. Ao respeito veja afirmação de Jobim (1940), citado por Oliveira (2015, p. 71). Em 1884 São Paulo de Olivença se torna a sede da comarca do Alto Solimões. São estabelecidos alguns títulos definitivos relativos à propriedade na beira do Solimões: a grande maioria dos terrenos porém está por lei vinculada ao domínio da União, podendo ser entregue a particulares para exploração (em um regime semelhante ao aforamento) por um período limitado e renovável através das Câmaras e Conselhos municipais. Isso leva a um acirramento na competição por postos na administração local, desembocando algumas vezes em conflitos armados entre grupos políticos opostos na defesa de interesses e privilégios econômicos (vide Jobim, 1940). Com relação à demarcação das terras indígenas do povo Ticuna, a luta pelo reconhecimento e retomada das terras deu-se no início da década de 70 e de maneira organizada nos anos de 1.978, sob o protagonismo do líder Paulo Honorato Mendes que teve a iniciativa de criar a organização denominado como Conselho Geral da Tribo Ticuna-CGTT, fundado no ano de 1982, cujo cacique geral foi o sr. Pedro Inácio Pinheiro morador da aldeia de Vendaval e João Lourenço Cruz, morador de Umariaçú I que ocupou o cargo de segundo cacique geral. A respeito da luta pela demarcação e retomada das terras empreendida pelos líderes Ticuna com a colaboração de militantes pelo direito dos povos indígenas da igreja católica, FUNAI e CEDPAS. Segundo relato de Ademar Fernandes a respeito do protagonismo Ticuna pela demarcação das terras.3 “Meu nome é Ademar Fernandes Coelho, sou do clã do japo e meu nome Ticuna que recebi da minha madrinha, quando nasci é (Buruecü rü Nhatchiaücü) é 3 Entrevista concedido ao autor pelo sr. Ademar Fernandes em 24/06/2020. 34 isso meu nome. No início da luta pela demarcação de nossa terra, foi eu juntamente com meu cunhado Robertinho, foi ele que no começo levou-me, foi com ele que o padre de Benjamim Constant fez uma reunião, foi ai que começou. Antes eu morava na comunidade de Porto Cordeirinho, logo mudei de lá, para morar na comunidade de Filadélfia, depois de morar um ano nessa comunidade, fui eleito para assumir o cargo de cacique, foram 06 os candidatos para cacique, foi no meio deles que o povo me elegeu com 300 votos para o cargo de primeiro cacique da comunidade. Uma vez que já estava ocupando a função de cacique, num belo dia fui procurado pelo líder Nino Fernandes, a qual me propôs protagonizar uma série de reuniões nas aldeias com fins de socializar junto aos caciques locais e moradores a respeito da demarcação de nossas terras. Ele disse-me. “Meu tio, para isso vai ser necessário abrir mão ou seja sair da função de cacique local, pois não vejo outro líder de coragem como você”. Ao aceitar o convite do sr. Nino, quem ficou no meu lugar como cacique local foi o sr. Daniel, mais conhecido como (bombom), então assumi ser parte da equipe do Conselho Geral da Tribo Ticuna-CGTT, foi ai que começamos a realizar várias reuniões nas aldeias. A primeira reunião para discutir a importância de demarcar nossas terras, foi realizado na aldeia de Feijoal, na reunião depois de socializar o assunto, muitas das pessoas presentes concordaram em reivindicar a terra como terra indígena, enquanto que outros não concordaram, pois diziam “por que queremos uma terra como propriedade pois quando iremos morrer nada levaremos conosco”. Ao perceber o desanimo dos caciques pela resposta negativa de alguns moradores daquela aldeia, aproximei-me do sr. Nino motivando-o a seguir com as reuniões e não desanimar, disse a ele sigamos enfrente até alcançar o objetivo de nossa luta que é a demarcação de nossa terra. A próxima reunião foi realizada na comunidade de São Domingo, lá as pessoas deram total apoio, pois os brancos que ali se estabeleceram, ameaçavam de morte aos moradores da aldeia, usando espingarda, isso acontecia todas as vezes que eles pescavam nas lagoas. Eles com medo de morrer fugiam ao serem ameaçados por isso deram total apoio à demarcação das terras. Era assim que aconteceu. Outro cacique afirmou dizendo. “Sim é necessário ter nossas próprias terras, pois o homem branco que chegou aqui, apropriou-se daquilo que era nosso e não deixa que a usemos. 35 Não temos onde fazer nossa roça, nem pegar nosso peixe, nem cortar uma madeira pois o patrão branco tomou para si todo nosso território”. Por causa das reuniões, constantemente eu ficava 05 dias fora de minha aldeia e da minha casa, pois estava empenhado na luta pela retomada de nosso território, tomado de nós pelo colonizador. Logo fomos para a aldeia de Belém de Solimões, lá os caciques também afirmaram sobre a urgente necessidade de demarcar as áreas das aldeias de: Maraita, Campo Alegre, Vendaval, Paraná de Ribeiro, enfim de todas as aldeias, assim o movimento nosso ia se fortalecendo e todas as decisões e resultados das reuniões virava documentos. Os responsáveis pela escrita dos documentos eram os senhores Nino, Constantino e professor Reinaldo que recentemente, faleceram, também era parte da equipe sr. Paulo Mendes e Silvio, este era o grupo responsável pela elaboração dos documentos. Uma vez elaborado os documentos, eu na companhia do sr. Constantino e sr. Nino, éramos os responsáveis por viajar até a capital a cidade de Brasília no congresso nacional onde eram feitas as reivindicações e entrega dos documentos relacionados à demarcação das terras. A última reunião, lembro-me que foi realizada aqui em nossa comunidade Filadélfia, na reunião foi acordado para realizar uma visita à área de Capacete aos moradores da aldeia de Porto Lima, foi nesse momento que o sr. Alceliares Flores, convidou os caciques para reunir na casa dele que ficava na área de Capacete, para beber vinho de açaí. Após a reunião um dia de sábado eu e meu colega sr. Übüri, já estávamos planejando descer o rio para visitar a área de Capacete, mas naquele momento o sr. Nino disse-me. “Não vão, aguardem um pouco, pois vamos descer juntamente com o coronel da base militar de Tabatinga e a polícia federal, pois iremos no transporte deles”. Então juntamente com o sr. Nino, fomos para a cidade de Tabatinga, para ali encontrar com as autoridades do batalhão militar e da polícia federal, chegamos ali às 08 horas da manhã. Enquanto isso os caciques das aldeias da área do Capacete, foram à frente ao local da reunião, os brancos que ali moravam ao ver que os caciques passaram 36 por ali para o lugar da reunião, enquanto encostavam no porto do sr. Alceliares, 04 filhos dos brancos, armados com espingarda, aproximaram-se dos ticunas. Nesse momento os jovens ticuna Dutchiicü e mais outro da aldeia de Maraja, aproximaram-se dos jovens armados, então fizeram foi tirar deles as armar, quebrando-as. Os jovens ao serem desarmados, retornaram para sua casa e falaram para seus pais, dizendo que foram agredidos pelos ticunas. Os pais que já não estavam satisfeitos, irados com os ticunas por causa da terra, ficaram furiosos, cercaram os ticunas pela trilha, foi ai que começou o tiroteio de matança, uns atiraram-se na agua, outros entraram na mata fechada, as mulheradas juntamente com o sr. Salino, correram desesperadamente para à casa do sr. Alceliares, a casa dele era pequena, todos no desespero amontoaram-se dentro da casa, eram senhoras, crianças e moças juntos. A matança continuava, outros esconderam-se no matagal, o líder religioso que estava tentando se esconder detrás de uma arvore foi avistado, na tentativa de sair e fugir correndo, o branco disse. “Aqui tem outro”. Então atiraram nele. No porto estava o sr. Davi e seu filho dentro da canoa, ao ser visto, também atiraram nele e no seu pequeno filho. Os atiradores subiram em direção à casa onde havia muitos ticunas, ao chegarem lá um deles disse. “Chega, não atiremos neles, vamos embora, já matamos muitos deles”. O massacre já estava feito. O tiroteio começou de manhã, quem buscou fuga na agua, foi morto ali mesmo, uma das crianças entrou no mato, caminhou muito longe, foi encontrado vivo depois de 04 dias. A luta pela demarcação da terra continuou, não desanimamos, mesmo que sejamos mortos, muitos de nós já morreram, fizemos a denúncia pelo massacre sofrido, prenderam os assassinos, mais rapidamente foram soltos. O movimento indígena a nível local e estadual tomou força, fomos para Manaus para assistir uma reunião onde havia índios de outras etnias, ali conheci o sr. Delcimar de São Paulo, depois dessa reunião fui para Rio de Janeiro e Brasília, onde fui para protocolar os documentos”. Com relação ao massacre de índios Ticuna, que aconteceu no ano de 1987 na localidade conhecido como Capacete. Na carta relatório de 29-08-1987, o professor Ticuna, Santo Cruz, p.05, também relata o seguinte. 37 “Viemos comunicar, que hoje 28-03-88 às 12 horas do dia, nós reunidos entre 04 comunidades, na localidade Ticuna São Leopoldo no Amazonas, município de Benjamim Constant na casa do Ticuna Alceliares Flores Salvador, aconteceu uma grande tristeza entre nós. Que 20 homens armados, homens civilizados armados com espingardas calibre 16, rifles revolver e metralhadora, ameaçaram-nos. Com essa ameaça, eles mataram em adultos e crianças 11 pessoas. E 22 pessoas feridas. As comunidades que estavam reunidas são: São Leopoldo, Novo Porto Lima, Bom Pastor e Porto Espiritual. Esta reunião não era para brigar e sim, somente para perguntar aos civilizados se foram eles que tinham matado o nosso boi esse boi pesa 400 quilos. Depois que o animal matado nós descobrimos que foram eles mesmos que mataram nosso animal. Eles fizeram isso porque os bancos, têm, raiva de todos os Ticuna por causa da terra deles. Antes disso, eles não respeitavam a nossa área, todos os dias eles entravam e entram com espingardas e, se um Ticuna dissesse alguma coisa para eles, eles iam queimar na mesma hora. Eles falaram que iam acabar com a vida dos Ticuna dessa área, e de fato foi acontecido mesmo. No dia 27 de março de 1988 nós estivemos reunidos na comunidade São Leopoldo e Novo Porto Lima. E tratamos os seguintes assuntos: Que enquanto os capitães irão buscar a policia Federal, nós vamos nos reunir na aldeia Novo Porto Lima. E depois que os capitães chegarem com as autoridades ai vamos todos juntos lá com os civilizados que moram no capacete para perguntar se é verdade que mataram nosso animal. E quando segunda-feira no dia 28 de março de 1988, os capitães saíram para buscar as autoridades. Ai o capitão Leonildo e Pedro marcaram a hora que irão chegar. Marcaram 9 ou 10 horas da manhã. Então quando foi 9 horas da manhã nada de os capitães chegarem. Ai o pessoal disseram: Agora vamos esperam lá na casa do seu Flores, e quando eles chegarem, nós já vamos estar presente. Ai tudo mundo caíram na besteira de ir lá na casa de seu Flores. A casa de seu Flores fica perto da casa dos civilizados e fica bem no meio da casa deles. Quando o pessoal chegou lá todos chegou brincando, outros apanhando açaí e assando macaxeira e banana na brasa. Enquanto o pessoal estavam comendo isso, os outros vão pra o porto olhar na beira se os capitães já vinham por aí. E com 10 minutos depois o pessoal começou a subir na casa do seu Flores. E muitos ainda ficaram no porto entre grandes e crianças, mulheres de filho na tipoia. 38 Foi a hora em que começou o conflito e receberam o grande choque dos civilizados que arrodearam nós e começou o tiroteio”. Antes da luta pela demarcação das terras, vale lembrar que na década de 50 agentes do seguimento religioso protestante de origem norte americana, que se instalaram em santa Rita do Weill, ajudaram as famílias Ticuna que moravam nas proximidades, aos que aderiram à religião, conforme Macedo (1996, p. 181), “compraram a propriedade do Sr. Paulo Calderón, onde estabeleceram as famílias, surgindo a atual comunidade de Campo Alegre no município de são Paulo de Olivença”. Atualmente com 4 mil habitantes. O mesmo aconteceu com a atual comunidade de Vila Betânia, localizada no município de Santo Antonio de Iça, missionários evangélicos da mesma missão que ajudaram os moradores de Campo Alegre, também compraram a propriedade de um fazendeiro onde foram estabelecidos as primeiras famílias, nascendo a comunidade de Vila Betânia, atualmente é uma das maiores comunidades com 5 mil habitantes. No entanto a incansável luta do movimento indígena que então nascia denominado como Conselho Geral da Tribo Ticuna-CGTT, com a assessoria técnica da Fundação Nacional do Índio- FUNAI e antropólogos ligados ao Centro de Documentação e Pesquisa do Alto Solimões-CEDPAS e intervenção financeira internacional, no ano de 1993 resultou na demarcação das primeiras terras, logo em 2.002 as outras também foram demarcadas. De acordo com Erthal e Almeida, (2004, p. 144) ao comentar sobre a retomada das terras Ticuna diz: A demarcação foi realizada, então, pela empresa Asserplan Engenharia e Consultoria Ltda., com financiamento do governo da Áustria e sua agência financiadora, o Vienna Institute for Development and Cooperation (VIDC), e supervisão técnica da FUNAI. O principal objetivo do movimento das lideranças Ticuna foi a retomada das terras de ter a garantia da demarcação das mesmas, para nela poder viver em paz e desenvolver os trabalhos de acordo com a cultura e tradição, então as terras demarcadas foram: Evare I, Evare II, São Leopoldo, Feijoal, Porto Espiritual, Lauro Sodré, Vui-va-ta-In, Betania, Uaitiparaná, Estrela da Paz, Macarrão, Santo Antônio, Bom Intento, Maraita, São Francisco do Canimari, Nova Esperança do rio Jandiatuba, Matintin, Porto Limoeiro e Lago do Correio. 39 Todas as terras mencionadas, hoje estão demarcadas e homologadas, foi uma luta travada entre o movimento Ticuna e governo brasileiro que durou um longo período de 30 anos consecutivos, conquista que se tornou possível com a intervenção de ONGS de ajuda humanitária e apoio financeiro internacional. 1.6 POVO TICUNA HOJE No século XX, quando se pensou que os índios foram extintos para surpresa de muitos o movimento indígena nasceu, antes silenciado e sufocado, surgiu com muita determinação, a força dos remanescentes índios, aliada à segmentos da sociedade brasileira, vieram ao público para reivindicar o direito de ser diferente assim como usufruir dos bens da nação como ser humano e cidadão brasileiro. Foi com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que se deu fim à política de integração e assimilação dos povos indígenas ao estado brasileiro. As contradições, entre reconhecimento e negação de direitos foram sanados, com isso afasta-se definitivamente a noção de que os povos indígenas se acabariam e reconhece-se aos índios o respeito e o direito a suas formas próprias de organização social, e o direito originário às terras que tradicionalmente habitam, entendidas como indispensáveis à sua reprodução física e cultural. Seguidamente com o fim da ditadura militar e a redemocratização brasileira a igreja católica tornou-se um forte aliado no processo de luta do movimento indígena, possibilitando o financiamento de assembleias e facilitando o deslocamento de líderes chaves para assegurar sua presença nas reuniões realizadas a nível local e nacional, promovidas para socializar o direito à terra, reconhecimento e respeito à cultura indígena e educação diferenciada. Como resultado das reivindicações do movimento indígena a Constituição Federal, de 1988, véio para garantir aos índios o direito à diferença e assumia para o Estado a proteção às manifestações culturais indígenas, assegurando o uso de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem. Passados mais de 300 anos de convívio com a sociedade envolvente e de permanecer no sufoco e silêncio, o povo e a cultura Ticuna, finalmente renasceu, com o fim da escravidão, da era dos patrões, o surgimento da democracia e o reconhecimento dos direitos indígenas, promulgada pela constituição federal, o povo 40 teve a liberdade de se afirmar como povo, manter e valorizar a cultura que sobreviveu através dos tempos assim como o desejo de revitalizar e resgatar os saberes tradicionais esquecidos. Nimuendaju (1929, p. 9), afirma ainda que vários elementos da cultura Ticuna, desapareceram, adaptando aspectos da cultura “civilizada” a este respeito ele comenta: Vários elementos importantes de sua cultura antiga os Ticuna já esqueceram completamente, por exemplo, a circuncisão, o sepultamento secundário em urnas, o arremessador de dardos, o ralador de mandioca com lascas de pedra embutidas, a tatuagem, o penteado antigo, o uso do paricá [para rapé] e a tanga das mulheres. Quase todos os Ticuna, hoje em dia, andam vestidos à laia dos civilizados. Lamentavelmente a tendência da futura geração é ocupar a posição de meio termo na sociedade contemporânea, sendo Ticuna por desconhecer a cultura é como se não fosse Ticuna e nem tampouco branco, mesmo almejando sê-lo, pela simples razão de não dominar os códigos da cultura e desconhecer a cosmovisão nacional, branco também não é. No entanto na metade do século XX e final do apogeu do ouro branco, o látex da seringueira, com a presença do Serviço de Proteção ao Índio-SPI, na região do Alto Solimões, em 1942, é o início de uma nova era para o povo Ticuna, pois o órgão indigenista atua na proteção dos ticunas. De acordo com Oliveira (2015, p. 78). A partir de 1940, no entanto a situação começa a mudar, assumindo uma importância significativa da região, o aparecimento de novos agentes sociais. O SPI se estabeleceu em Tabatinga em 1942, mantendo ali um “inspetor”. O exército começou a exercer uma influência crescente, uma vez que foi criando uma rede de recursos e serviços (transporte, comunicação, saúde, escolas, abastecimento, etc.) sem paralelo na região. As ações do SPI sempre procuravam – inclusive pela penúria de recursos – apoiar-se no Comando da Fronteira e aparecer aos regionais como por esse apoio. A presença do governo federal através do órgão de proteção ao índio, perturbou o império dos patrões, até então donos da terra e do índio. Nesta altura os ticunas estavam sem saber o que fazer, por ser um povo messiânico, acreditavam que veio sobre eles enorme castigo por abandonar o Deus bom Yo'i, que foi morar na sua habitação, onde o sol se oculta. 41 Ao ir embora, disse para os ticunas que um dia retornaria para ajudar novamente seu povo. Nessa perspectiva, a presença do delegado do SPI foi tido como Yo'i, o Deus bom que retornou para novamente ajudar, pois o sr. Manuelão ao se deparar com algumas famílias Ticuna no porto de Tabatinga com seus produtos a venda, ele fez a compra de seus produtos a preço justo. Esse gesto fez com que Manuelão ganhasse a confiança dos índios, logo a notícia foi levado para os outros ticunas que moravam sob regime do seringal, na condição de escravos. Foi quando as primeiras famílias, migraram para a então pequena vila de Tabatinga, instalaram-se bem nas proximidades da casa, sede do SPI. 1.6.1 PROTAGONISMO INDÍGENA No ano de 1974, na aldeia de Vendaval, surge um personagem que vai se tornar o líder que vai protagonizar o movimento indígena o sr. Pedro Inacio de pais Ticuna que na sua infância foi adotado como filho por um não-indígena filho do patrão, dono da terra do igarapé Tunetü. Em 1967 como substituto do SPI, surge a Fundação Nacional do Índio-FUNAI com representação na comunidade de Umariaçú, cujo delegado já vinha realizando várias ações de proteção contra o abuso aos indígenas. Então no ano de 1974, o sr. Pedro Inacio passa a ter notícias da existência do governo através da FUNAI na comunidade de Umariaçú. A respeito disso o próprio sr. Pedro (2014, p. 55), afirma. Eu não tinha conhecimento porque, naquele tempo, não havia FUNAI e naquele tempo – não é mesmo? De repente a notícia dele estava lá, do governo que briga por nós [...]. E naquele tempo, só na terra de Umariaçú que existia [...] as pessoa chamam ele de governo - não é mesmo? -, dentro do SPI o governo [...] naquele tempo já tinha chegado a FUNAI mesmo, naquele tempo, naquele ano, no ano de 74. Aos 12 anos de idade seu pai adotivo o levou para a cidade de Manaus anos mais tarde aos 22 anos retornou novamente para sua terra natal, à aldeia de Vendaval onde moravam seus pais biológico, ao chegar de volta à aldeia, seu pai logo lhe deu 42 uma mulher como esposa, por isso não teve mais condição de retornar para Manaus, ficou na aldeia. Anos mais tarde o capitão da aldeia de Vendaval sr. Ângelo o convidou para ser o segundo capitão. A este respeito Pedro Inacio (2014, p. 59), afirma. “Naquele tempo, depois, de repente ele falou: “Será que ele se acha melhor e faz mais bem feito do que se fosse eu?”. Pedro Inacio sabia do seu potencial de liderar, pois sabia lidar com ambas as culturas a dele e a do branco, pois por alguns anos teve a oportunidade de morar na cidade de Manaus, já com idade adulta e com cargo de segundo capitão da aldeia com a ajuda dos capitães, de outras aldeias e da FUNAI, protagonizaram o movimento indígena, cujas prioridades era pela demarcação da terra, que até então era de propriedade dos patrões. A longa trajetória de luta pela demarcação da terra, fez que os patrões se tornassem os piores inimigos, até mesmo de ameaçá-lo de morte. A respeito desse episódio Pedro Inacio (2014, p. 71), afirma. “Naquele tempo, um dia, então, agora mesmo onde eu moro, em minha casa eu estava e naquele tempo assim eles falaram: “Agora ele vai te matar” – assim eles falaram”. Mais o capitão Ticuna sr. Pedro Inacio foi investido com a investidura de um líder autentico e genuíno a do (To'ü eru), ao assumir a lutar pela libertação do seu povo, mesmo que essa decisão viesse lhe custar a vida com a morte. A respeito dessa decisão Pedro Inacio (2014, p. 79), faz a seguinte afirmação. Eu morro por ele, este meu povo, por quantos que, como eu, muitas vezes tudo para eles falta, não existe dinheiro e, como para mim, não existe conhecimento para eles. Por isso eu morro, por ele, esta terra, todas as coisas que aconteceram, por elas eu morro, por isso quando for assim. Naquele tempo, então, de repente ele chegou demorado, esse ficou pronto, esse posto da FUNAI. Naqueles dias a aldeia de Vendaval foi contemplado com um posto da FUNAI, assim a presença do órgão protetor ficou bem mais próximo das famílias ticunas. Daí pra frente, o sr. Inacio não parou de viajar, pois era necessário realizar várias reuniões em aldeias diferentes onde eram socializados a importância da demarcação das terras e o estabelecimento da educação formal nas aldeias, uma vez feito as discussões foram várias as viagens de ida e volta à Brasília, onde os documentos resultados das reuniões eram protocolados. 43 Depois de uma longa trajetória, finalmente foi no ano de 1993 é que aconteceu o reconhecimento e a demarcação das áreas indígenas para o povo Ticuna. Conforme Erthal, Almeida (2004, p. 142) A demarcação de seis das principais terras Ticuna, realizada em 1993 como culminância de um processo de mobilização das comunidades e suas lideranças, aparece, assim, como momento de inflexão no modelo de "participação" das populações indígenas brasileiras na demarcação de seus territórios, fruto da luta política dos próprios Ticuna pelo reconhecimento de seus direitos à terra. Depois das conquistas das terras, também houve grandes conquista na educação, na política e fortalecimento do direito de ser diferente, amparado pelo marco legal da Constituição Federal de 1988. 44 CAPÍTULO 02 - ABORDAGEM CULTURAL: DA TRADIÇÃO MITOLÓGICA A RESIGNIFICAÇÃO RELIGIOSA Este capítulo tem como intuito abordar sobre a diversidade cultural e milenar do povo Ticuna, construídos no decorrer dos séculos. De acordo com a mitologia da criação o Deus do bem Yo'i, foi quem capacitou seu povo para saber criar com inteligência os elementos que constituem o conjunto da cultura tradicional Ticuna. Cada elemento cultural foi criado com o intuito de atender às necessidades do contexto de cada época para o bem individual e consequentemente de toda a sociedade Ticuna, necessidades que tem a ver com a organização social, cantos e instrumentos de música, instrumentos para as atividades da caça e pesca, moradia, transporte fluvial, implementos do lar de uso pessoal e diário no trabalho, alimentação, bebidas, fantasias para alegrar a festa, artes e pintura corporal. Trata-se do conhecimento e técnica que transpõe para os objetos produzidos, de forma simbólica, os elementos de diferenciação social, ou aqueles referenciados nas entidades sobrenaturais apresentando uma linguagem que remete a elementos que são intrínsecos ao objeto, mas que transcendem a ele. Conforme Vanvelthem, (2000, p. 60 apud BARBERO, 2010 p. 125) “Efetivamente, essas produções revelam dimensões do universo mítico e metafísico, assim como transmitem preocupações eminentemente comunitárias e indenitário.” Ainda de acordo com Barbero (2010, p. 1210 “[...], pois para se compreender a produção indígena é preciso saber que o fazer artístico indígena traz relações simbólicas de representação do grupo e das relações cosmológicas com entidades sobrenaturais que orientam a produção.” Assim a arte indígena não é somente um objeto exótico, é uma produção feito com intencionalidade e de representação do mundo Ticuna na dimensão natural e sobrenatural. Tradicionalmente é responsabilidade dos anciãos e pais de cada família os responsáveis pela transmissão de referidos conhecimentos afim de que cada nova geração venha ter total domínio de todos os saberes existentes. Nessa perspectiva a escola tradicional Ticuna é de tempo integral, não tem horário definido nem espaço especifico uma vez que o ato de educar acontece a todo momento e em todos os espaços, seja dentro de casa começando bem cedo ao 45 acordar e na realização das atividades do dia até o anoitecer, finalizando com o deitar na rede e dormir. Os indígenas de todas as etnias brasileiras são semelhantes no que se refere ao traço físico, alhos puxados, cabelos lisos e pele morena, no entanto há uma fronteira cultural que delimita cada etnia lhe dando uma identidade única. É assim que apesar do etnocidio cometido por ocasião da colonização o sujeito Ticuna tem sua própria identidade que lhe faz diferente a outras etnias, veja a seguir. 2.1 ORGANIZAÇÃO SOCIAL Yo'i o Deus do bem criou o povo Ticuna, tradicionalmente conhecido como “Ma'güta” nome que traduzido literalmente significa gente de verdade, segundo a mitologia, Yo'i fisgou os peixes na beira do lago sagrado Eware, ao pular na terra os peixes transformaram-se em pessoas. Assim veio à existência o povo Ticuna de início todos eram irmãos eram membros da mesma família portanto era impossível o casamento entre irmãos (ãs), então o Deus teve a ideia de resolver o problema, estabelecendo a organização cujo fim é de evitar o incesto. Assim foi estabelecido o sistema de famílias clânica. 2.1.1 FAMÍLIAS CLÂNICAS Figura 2: Distribuição das famílias por clã Fonte: LEÃO, Eli. 2021 46 Antes de “Yoi” ir embora para o lado em que o sol nasce, ele estabeleceu entre seu povo o sistema de famílias extensas identificados pelo clã que surgiu com a morte de um jacarerana da família do jacaré que ao ser cortado em pedacinhos foi colocado numa panela de barro para ser cozido e feito dele uma deliciosa sopa, uma vez cozida, todas as pessoas foram convidados para degustar o caldo. Com uma colher de pau, “Yoi” dava para cada pessoa um pouco daquele caldo. Assim a primeira pessoa que degustou a sopa, disse que a sopa tinha sabor de onça, pelo sabor identificado lhe foi dado a nação da onça, logo veio a segunda pessoa que ao degustar a sopa disse que tinha sabor de saúva, aquele recebeu o clã da saúva, na sequencia todos degustaram a sopa, foi pelo sabor identificado no paladar que cada pessoa recebeu a respectiva nação. Um deles disse “esse caldo está azedo”, assim surgiu a nação do mutum à medida que bebiam do caldo, era o tipo do sabor que definia o clã, assim surgiram todos os clãs existentes. Os pais levam muito a sério o casamento dos filhos, assim consideram indispensável a orientação estabelecida por “Yoi”, que é socializado pelos pais, repetidamente afim de ter todo cuidado de não quebrar a lei do matrimônio do (a) filho (a) que ao contrair matrimonio deve casar-se com a pessoa certa do clã favorável. Constantemente anciãos e chefes das famílias firmam que a pessoa do mesmo clã é considerado como irmão (ã) assim ao visitar outras aldeias no momento do encontro com as pessoas do lugar visitado, o visitante deve se apresentar com o nome indígena dado no momento do nascimento que geralmente é uma das características do pássaro ou animal relacionado ao clã a qual pertence, então as pessoas que são do mesmo clã de imediato se apresentam e o reconhecem com um sorriso, dando lhe as boas-vindas por ser parte da mesma família clânica. Uma boa maneira de receber o visitante por parte das pessoas do mesmo clã é oferecendo o melhor, o comportamento imediato da dona de casa é preparar a bebida e o alimento que normalmente é peixe moqueado, leva-o para o centro da maloca onde é compartilhado por todos, enquanto comem e bebem as novidades são socializados. Se o visitante for solteiro (a) de imediato as pessoas do mesmo clã, transmitem o recado para ele, dizendo que na aldeia há muitas meninas do clã oposto e favorável e que são ótimas candidatas para o casamento, normalmente as famílias 47 clânicas encontradas na aldeia desejam para o familiar visitante a melhor esposa e esposo. Quebrar a lei do casamento em base ao clã é cometer o erro mais temido pelo Ticuna já que contrair um matrimônio com a pessoa do mesmo clã é o mesmo que conviver com o membro da mesma família, irmão (ã) ou primo (a). Assim quem ousar cometer este tipo de erro sofrerá a rejeição por todos os moradores da aldeia, pois é comparado com o “jureu” o diabo que não respeita a ninguém e descumpre os bons costumes. A sociedade Ticuna ficou assim dividida, uma família extensa denominada como as famílias de metades com penas e a outras de metade sem pena. Tabela 1: Metades Exogâmicas Metade plantas Metade aves Clãs Subclãs Clãs Subclãs Auaí ´a-ru: (auaí grande) Arara vo´o(vermelha) ´aits´anari: (jenipapo do (maracanã grande) igapó) Saúva ´vaira (açaí) Japu kau:re (japu) (japihim) ´nai (n) yëë (saúva) Onça ´keture (maracajá) Tucano ´tau: (tucano) Fonte: Instituto Socioambiental/Povos Indígenas do Brasil (ISA) 1949. Relação dos clãs que não foram mencionados no quadro acima: Garça, Jaburu, Mutum, Galinha, Boi, Buriti e Acapú. Pós colonização por causa dos casamentos que de vez em quando acontece entre um Ticuna com não-ticuna, comumente conhecido como branco afim de incluir o sujeito (a) à sociedade Ticuna, foi criado o clã da Galinha para representar as famílias de metades com pena e o clã do Boi para representar as famílias de metades sem pena. Considerando que, no decorrer da história os animais galinha e boi foram introduzidos à cultura Ticuna, quando trazidos de fora pelos colonizadores por isso, assim como estes animais antes desconhecidos foram aceitos e incluídos, também as pessoas desconhecidas ao contrair casamento com um sujeito Ticuna, ele ou ela recebe um clã representado pela galinha (com pena) e pelo boi (sem pena) com essa condição a pessoa não indígena, tornasse parte de uma família para ser incluído e ai sim aceito pela sociedade Ticuna. 48 O casamento aceito e legal de acordo com a cosmovisão do povo Ticuna deve acontecer entre pessoas onde um dos conjugues, deve pertencer a família de metade com pena e a outra deve ser da família de metade sem pena. Casar-se com alguém do mesmo clã é o erro que na cultura Ticuna é condenável, dizem que na quebra dessa lei social, o indivíduo desobediente é perseguido pelo (Jureu) um bicho tipo demônio do mato que com muito açoite castiga o infrator, por conviver com sua própria irmã ou irmão. 2.1.2 A MOÇA NOVA Figura 3: Moça Nova Fonte: LEÃO, Eli. 2021 Normalmente o casal Ticuna é bem numeroso no que se refere à quantidade de filhos, tradicionalmente cada casal tinha em média de 08 a 12 filhos não havia preferência entre homem e mulher todos de forma igual são importantes na família, os homens são preparados para a tarefa da caça, pesca e roçado já as mulheres para as tarefas do lar e cuidado no cotidiano dos filhos. 49 Na família quando os filhos são somente mulheres ou vice-versa o casal entra em desespero, diante da situação o casal entra em consenso com a esposa para resolver o problema pois na família deve haver filhos homens e mulheres. No entanto numa familia Ticuna a criança menina irá ter um destaque com especial atenção por parte dos pais e de todos os familiares mais próximos isso acontece exatamente na passagem do estado de criança para o estado de mulher adulta na faixa etária entre 11 a 12 anos, estagio mais conhecido como Moça Nova “Wo'recü”. Nessa faixa etária os pais da menina ficam atentos para o exato momento em que a menina ira ter a experiência da primeira mestruação, uma vez chegado então é declarada oficialmente o estágio de Moça Nova. Ela irá passar por uma nova fase da vida e de preparação para a vida adulta, com o aparecimento da primeira mestruação a moça inaugura seu ingresso para a escola sagrada que é um quarto isolado, construído na parte de cima da maloca, a moça então é convidada para morar no isolamento por período de 01 ano. De acordo com os anciões da tribo, ela deve ficar totalmente isolada dos demais membros da familia, por tanto sem contato com pessoas não autorizadas, somente em contato constante com os mais velhos os mestres do saber tradicional Ticuna, na verdade um tempo de total purificação e instrução denominadas na língua Ticuna “U'tü”. É uma escola de tempo integral é teórica e ao mesmo tempo prática pois ela dedicasse a torcer os fios do tucum para fazer a corda, matéria prima na confecção de bolsas e redes. Também é instruída nas orientações de caráter moral e ético, tais como ser dedicada ao cuidado do lar, respeito e amor ao marido assim como cuidado com afetividade na criação dos filhos. 2.1.3 A FESTA DA MOÇA NOVA Todo o preparativo para a festa começa exatamente no dia em que a menina é declarada Moça Nova e entra no período de reclusão. Para os pais é um tempo de muito trabalho pois iniciasse o árduo trabalho de realizar uma grande roça onde é plantado muitas espécies de plantações para abastecer a alimentação que será consumido durante uma semana que é o período de duração da festa. 50 O trabalho de iniciar o roçado é feito com a ajuda de todas as pessoas habitantes da aldeia, denominado como ajuri, na primeira fase do trabalho é cortado todo o capim e arvores menores da área delimitada, já no segundo avanço ou seja em outro ajuri é derrubada todas as arvores de grande porte e ao mesmo tempo os galhos são cortados em pequenos pedaços. Na terceira fase é feito a queima de todas as folhas e galhos, logo vem as atividades da coivara, cujo objetivo é de deixar o máximo do possível bem limpo a área da roça. Uma vez limpo é realizado as atividades de plantar as sementes das espécies necessárias como banana, macaxeira, batata, mamão, abacaxi e milho. Os dias se passam, no roçado as sementes plantadas, nascem e crescem é possível perceber o verde que são as plantas em crescimento, paralelamente os capins também crescem, mais uma vez é feito o ajuri para retirada do capim que pode sufocar as plantações. Até a colheita é realizado mais dois ajuris para capinar. Passou-se 01 ano, as espécies plantadas estão maduras e prontos para a colheita em poucos dias a abertura da festa será realizada. O anfitrião pede para um de seus colaboradores para tocar a trombeta “Iburi” que é realizado dentro de uma canoa, baixando pela metade do rio, enquanto desce rio abaixo com a ajuda da correnteza a trombeta é assoprada com força para emitir um som agudo e forte de tal forma que seja ouvido pelos convidados, habitantes da beira do rio e dos igarapés. O responsável pela entrega dos convites, visita cada família e lhes é entregue 02 frutas de jenipapo verde, quem o recebe é um convidado especial, também lhe é dado o recado que a festa em 02 dias irá começar, sendo indispensável a presença dos convidados. De imediato os convidados ralam a fruto do jenipapo para extrair a tinta preta com ela cada indivíduo faz a tatuagem no rosto com desenhos que represente sua identidade clânica. Uma vez prontos, todos rumam para o local da festa, onde são recepcionados pelo anfitrião, já com a presença de todos os convidados, então é realizado a abertura da festa. Mas antes a Moça Nova é retirada do seu lugar segredo e levada para outro quarto denominado “Turi”, construído de tiras de buriti, bem ao lado da casa da festa, onde permanece até ser finalmente exposta ao público. 51 Bem de madrugada às três horas da madrugada os cantores e músicos ao som dos tamborins e das flautas, alegram o ambiente, dando boas-vindas a todos os convidados. Todos os convidados da festa trazem consigo os presentes “Natchitüǚ” como peixe e carne moqueado, frutas e enfeites que ao chegar são entregues ao anfitrião, quem não traz não receberá a benção do Deus “Yo'i” não será bem sucedido nas plantações do roçado. A abertura é realizada, a moça nova recebe uma maquiagem especial com tinta preta de jenipapo, penas de arara e gavião, colares e um cocar de pena de arara lhe é colocado na cabeça, cobrindo os olhos para evitar que seja visto pelos bichos do mal. Todas as pessoas entram no clima da festa, desfrutam das mais variadas bebidas como pajuaru, caiçuma e sucos de frutas, também é servido os pratos de peixe e carne do mato, moqueado. 2.1.4 O CASAMENTO Via de regra o casamento é a união de homem e mulher de uma metade exogâmica do clã com pena e a outra sem pena, tradicionalmente era os pais que tinham a responsabilidade de arranjar para o filho ou filha a pessoa ideal. O contrato era estabelecido entre ambos os pais, isso acontecia desde a infância do futuro casal, a cerimônia do casamento era realizado bem no último dia da festa da moça nova, ao termino da festa a menina era entregue ao marido para começar uma nova familia, pois a menina ao passar pelo ritual logo depois da primeira mestruação era considerada uma mulher formada e adulta. Atualmente o casamente demora um pouco mais e a escolha do conjugue é de responsabilidade do interessado no casamento, uma vez encontrado os pais reúnem- se, na reunião convocam os familiares mais próximos tais como tios e tias. São os familiares que firmemente dão os conselhos aos candidatos, recomendam que o homem cuide bem da mulher e vice-versa que ambos trabalhem para que não falte o alimento diário, cuidem bem dos filhos e tenham sua própria casa. 52 2.2 CANTOS E INSTRUMENTOS DE MÚSICA Como toda sociedade, os ticunas tem seus cantores e seu próprios instrumentos de música para alegrar as festas e as cerimonias. 2.2.1 AS CANTIGAS Os responsáveis pelas cantigas na festa da Moça Nova, são pessoa homens e mulheres experientes de idade acima dos 30 anos, normalmente é um casal marido e mulher. As cantigas são cantadas ao ritmo dos tamborins, do chocalho de “Aru ree” e da casca do tracajá. Os cantores são os mesmos que compõem as letras da música que é resultado de inspiração do momento. É naquele momento enquanto a festa acontece que é composto e cantado as letras que falam a respeito de momentos tristes ou alegres do passado e presente, canto às aves e animais e principalmente letras de elogio à menina moça e sua beleza. 2.2.2 TAMBORINS (TUTU) Figura 4: Tamborim Tutu Fonte: LEÃO, Eli. 2021 São vários os tipos de arvores utilizados na fabricação do tamborim Ticuna (Tutu), a Sorva é uma delas, é uma arvore frutífera, também produz um liquido que é transformado em borracha da sorveria. 53 Cortasse na medida de 20cm, com muita habilidade o artesão cava-o por dentro, deixando-a na forma cilíndrica, até alcançar uma espessura fina o ideal para o tamborim. Enquanto a parte cilíndrica é posta ao sol para secar, procurasse o couro de Quatipuru, recomendável pelo fino som que emite ao bater o tamborim. O couro deve ser bem seco, este é adaptado ao formato redondo feito de cipó, logo colocado à parte cilíndrica de madeira, sendo bem fixado com corda de tucum. Finalmente o tamborim é estampado com desenhos de peixes e animais. 2.2.3 FLAUTA (COĨRI) Figura 5: Flauta Coĩri Fonte: LEÃO, Eli. 2021 A flauta “Coĩri” é feito da vara da Taquara “Ba'ma” é cheio de nó, por ser oco por dentro possibilita a confecção da flauta, é cortado na dimensão de 25cm, lhe é feito um buraco bem no meio, local do sopro. É comum ser usado na festa da Moça Nova, a responsabilidade de dirigir os tocadores da flauta é de uma anciã, não é dado para qualquer pessoa pois dá assar. Bem no final da festa, todos os tocadores da flauta, são orientados a entrar na agua. 54 2.2.4 CHOCALHO DE AVAI (ARU REE) Figura 6: Chocalho de Avai Fonte: LEÃO, Eli. 2021 O Chocalho de Avai “Aru ree”, é um tipo de instrumento de percussão, feito da semente do Avai um tipo de trepadeira, cuja sementes são recolhidas, passando pelo processo de retirada da casca e da castanha contida por dentro da semente. Para fazer um chocalho é necessário em média 50 sementes, cada semente deve ser bem raspado e polido, logo numa corda de tucum as sementes são tecidas em fileiras uma bem junto a outra. 2.2.5 A TROMBETA (I'BURI) A trombeta “I'buri” é feito da casca do tronco da madeira “Du'ru”, a casca cumprida é enrolado na forma redonda de tal modo que fique grosso na parte da boca e fina na ponta onde se executa o sopro. Pelo fato de ser cumprida é necessário ter domínio da técnica para o sopro, ela é usado na festa da moça nova é colocado num lugar especial, bem próximo do quarto de isolamento da moça nova “Turi” uma pequena casa é feito de madeira e cobertura de palha pois a moça em resguardo precisa de total proteção. 55 É proibido seu uso fora da festa, assim que chegar ao final da festa a trombeta é descartado pois o material não é durável, todas as vezes que houver festa, outra trombeta é fabricada. 2.2.6 A TROMBETA SAGRADA (TO'CÜ) Figura 7: Trombeta sagrada i’buri Fonte: LEÃO, Eli. 2021 Antigamente a Trombeta Sagrada era muito usado nas festas da Moça Nova, era o musico especialista que soprava o instrumento, começando desde o raiar do dia até o início da festa. É um instrumento sagrado por isso era proibido de ser visto pelas pessoas era guardado no segredo na beira do rio no fundo da agua, quando era requerido era de noite às 19:00 que o responsável o retirava do seu lugar, logo levado ao lugar da cerimonia e ali era tocado até as 03:00 da manhã, logo era novamente devolvido ao lugar segredo. Depois de ser usado na festa, a trombeta precisava estar por um tempo isolado para purificação, até que novamente fosse requerido na próxima festa. A trombeta sagrada é feito de madeira de paxiuba “E'ta”, pois é no meio das raízes que mora o pequeno Jabuti “Me'tare” é também nesse mesmo lugar que um pássaro pousa encima do casco do pequeno jabuti, pois acreditasse que posteriormente “Me'tare” vai se transformar em uma nova arvore, madeira “E'ta” útil na fabricação da flauta. 56 Enquanto “Me'tare” passa pelo processo de transformação o pássaro “Ngove” entoa uma música dizendo “ngove tchu, ngove tchu, me'tare ni tchu, me'tare ni tchu” que significa, o pequeno jabuti está virando uma arvore. “E'ta” é um tipo de madeira oco por dentro, é muito usado para pôr piso na casa tradicional, por ser oco por dentro possibilita a confecção da trombeta. O som da trombeta é bastante alto e é possível ouvi-lo de muito longe, tem um som agudo. 2.3 INSTRUMENTOS PARA CAÇA E PESCA Yo'i foi que ensinou os ticunas a fabricar os mais variados tipos de instrumentos para caça de animais e pesca, são técnicas que somente o especialista domina. 2.3.1 ARCO E FLECHA O arco e a flecha é feito de madeira “Tema Tchitane” é fatiado em ripas logo trabalhado para dar forma de arco a espessura deve ser fina, bem lixada e polida. Se for para usar na caça de animais a medida é de 1,50mt a corda do arco é de tucum bem transado e com boa resistência é necessário passar o arco na fogueira até a madeira ficar molhe de tal forma que seja possível curvar e ai sim por a corda. A flecha é feito da mesma madeira ao ser trabalhada é necessário que seja bem reto na ponta é colocado veneno e uma pena de ave na cabeça para dar direção. Com o arco e flecha é possível matar animais tais como cutia, mutum e tucano. 2.3.2 SUMO DE RAIZ TIMBÓ Timbó é um cipó que cresce em terra alta, há três tipos de cipó “Pocuri”, rabo de tatu, estes dois produzem veneno pouco letal, já o timbó original “Üǚ” utilizado para a pesca seu veneno é letal. O cipó original produz muitas batatas, estes são tirado e cortados em pedaços e amarrados em feixes para serem levados para casa, todas as vez que o indivíduo for para a pesca, um ou dois feixes são levados. Ao localizar o lugar habitat dos peixes, o cipó é batido logo espremido e o liquido deste é espalhado exatamente no local onde os peixes foram avistados em 57 pouco tempo os peixes que ali estão tais como surubim, pacu, curimatã, sulamba, cara, tambaqui e outros, começam a morrer, de imediato são recolhidos e colocados na canoa. Este tipo de pesca é bastante predatório, pois além de matar os peixes grandes, também morrem os alevinos, extinguindo com a vida dos peixes. 2.3.3 ZARABATANA (Ĩ'Ẽ) Figura 8: Zarabatana Fonte: LEÃO, Eli. 2021 A respeito da Zarabatana veja a seguir (Informação concedido ao autor em 10/10/2020 pelo sr. Lorenzo Simon Cuellar). É do clã do Jaburu, seu nome clânico é “Ngu'tchiicü”, dado por sua madrinha. Sr. Lorenzo é um jovem Ticuna de 21 anos é nato da aldeia colombiana conhecido como a Terceira Maloca que está situado à beira do igarapé “Tchia'tü” afluente do rio Putumayo nome dado na Colombia e Iça no Brasil. A Zarabatana “Ĩ'ẽ” é confeccionado de três tipos de madeiras “Purene”, “Tematchitane” e “E'ta” o tronco escolhido deve ser bem reto e maduro, com um 58 machado tirasse duas bandas, cortados na medida certa seja de 1,50mt, 2,50mt ou de 03mt, logo a madeira é trabalhada até deixá-la bem aparelhada. O próximo passo é com uma linha cumprida e tingida marca-se o centro da madeira de uma extremidade à outra para definir o buraco da Zarabatana que deve ser bem centralizado e reto. Prosseguindo o trabalho em ambas partes da madeira é feito o buraco exatamente seguindo à risca da marca tingida com a linha, uma vez concluído o buraco as duas partes da madeira é colada uma na outra. Logo com um facão é tirado partes da madeira até dar o formato ideal deixando-a, a parte da ponta mais fina e a parte do cabeçote mais grossa. O cabeçote é feito de Muirapiranga um tipo de madeira de alta durabilidade que é encaixada na cabeça exatamente lugar para o sopro. O acabado final é feito com areia e um tipo de folha “Tetacü atü”, a folha de “Urutchawa” um tipo de lixa natural, a Zarabatana é lixado até ficar bem liso e alcançar o brilho exigido, finalmente com a casca de uma arvore e breu, cola natural, o cano é revestido. Para confeccionar uma Zarabatana, o tempo que se leva é de máximo 07 dias. Figura 9: Setas da Zarabatana Fonte: LEÃO, Eli. 2021 As setas “Otchagu” são fabricados de um tipo de palmeira “Wocu” e também de “Mota” é tirado a parte mais dura da palmeira, com um facão é confeccionado e 59 cuidadosamente trabalhado para ser bem reto, a dimensão é de 30cm de cumprimento e bem fino de acordo ao buraco da Zarabatana. O veneno “Gure ou Ai'nũ”, há dois tipos de venenos, um menos forte que é usado para matar animais de pequeno porte tais como aves e macaco já o outro é usado para matar animais de grande porte como veado, anta e porco do mato. O veneno é liquido produzido de um tipo de cipó, cuja casca é raspada e espremida para extrair somente o sumo que é colocada num pote de barro “Tchuri” para ser fervida na fogueira até diminuir o liquido, ficando somente a essência. A seta da Zarabatana, atinge uma distância a partir do chão à copa de uma arvore bem alta aproximadamente 80mt de altura, normalmente é nessa distancia que estão os pássaros mais apreciados pelos caçadores como o mutum, gavião rei e os macacos barrigudos. É fatal o veneno das setas, especialmente as fabricadas com a casca da arvore “O'müra” uma vez que atinge o corpo da caça o veneno ataca diretamente o pulmão, fechando as vias respiratórias, comprometendo a respiração, o outro tipo de veneno fabricado com a casca do “Ü'rari” ataca diretamente o fígado da vítima levando-o à morte. 2.3.4 BURACO NO CHÃO É um tipo de armadilha “Ngopenü” cuja função é de pegar a caça com facilidade, é construído no chão, exatamente na trilha dos animais onde eles acostumam caminhar de ida e vinda em busca de alimento sementes de frutas silvestres. O caçador cava no chão de 1,80mt quadrado e 2,80mt de profundidade, o barro é retirado e levado para longe do local de tal forma que o animal não perceba o buraco que é feito na sua trilha. Logo procurasse madeira de paxiuba barriguda de preferência que seja verde, é tirado em fatias para ser colocado sobre o buraco e formar uma espécie de chão falso para melhor simular e ocultar o buraco, é colocado sobre a madeira todo tipo de capim. Uma vez feita a armadilha o caçador precisa verifica-lo de manhã e de tarde para fazer manutenção das madeiras, pois pelo fato de ser madeira verde corre o risco de rapidamente apodrecer. Também o buraco já pode estar com o animal dentro dela 60 pois ao cair nela dificilmente sairá, o caçador retira o animal e é levado para a casa para suprir o alimento de todas as pessoas da aldeia. A armadilha o buraco na trilha dos bichos é preparado para animais pesados como anta, veado, caititu, porco do mato, paca e onça. 2.4 MORADIA A moradia tradicional é denominada como oca clânica, esta foi extinta e substituída pelas casas retangulares na época em que se submeteram à escravidão. 2.4.1 OCA CLÂNICA Construir uma maloca não é um trabalho fácil pois é de dimensão grande de 35mt de cumprimento x 15mt de largura, o trabalho é grande no entanto para facilitar é necessário a ajuda de todas as pessoas que irão habitar nela, para começar é necessário juntar todos os esteios que é de madeira Acapú, tirasse somente o âmago pois precisa ter longa durabilidade. Depois de cortar toda a madeira tais como os esteios para os pilares, madeira redonda para a estrutura e para a cobertura, uma vez cortadas todas são transportadas ao lugar da construção. Primeiramente os esteios que são os pilares da maloca são enfiados no lugar, seguidamente é feito a estrutura da cobertura, as madeiras são amarradas uma na outra com cipó “Tuũ”. Uma vez pronta a estrutura, então todos vão ao mato para cortar as palhas do caraná um tipo de palha especial e nobre este é levado ao local da maloca onde é tecida sobre uma vara de paxiuba, logo expostos ao sol para secar, para uma oca clânica é necessário 500 palhas. Já com as palhas todas secas, procedesse a atividade de pôr as palhas na cobertura, ela é fixada na estrutura com cipó “Tuũ” um tipo de cipó resistente e durável. Atualmente a maloca tem como função ser um espaço de exposição cultural, lugar onde é realizado a festa tradicional o ritual da moça nova e casa de reunião. Quando foram forçados a viver junto ao patrão ao abandonar a maloca clânica foram obrigados a viver casas retangulares construídos para cada familia, essas também foram construídas de madeira redonda e cobertura de palha. 61 2.4.2 TAPIRI É um tipo de moradia temporário muito comum para o grupo enquanto nômades, é construído para permanecer nela por pouco tempo, período de 05 meses por isso o material usado na construção é de pouca durabilidade. Normalmente tem 04 pilares que são estacas enfiadas nas esquinas a cobertura é coberto com palhas de palmeiras que são transadas para evitar infiltração de agua em épocas de chuva. Atualmente as pessoas constroem seus tapiri ao lado do roçado para ocupá-lo em momentos de descanso, também nela há um espaço para o forno onde é torrado a farinha de mandioca. 2.5 TRANSPORTE FLUVIAL Ao ocupar as margens do rio Solimões, os ticunas especializaram-se na fabricação de canoa para se deslocar de um lugar para outro. 2.5.1 CANOA E REMO Figura 10: Remo Fonte: LEÃO, Eli. 2021 A canoa é fabricada de 03 tipos de arvores “Muruweta”, “O'quene” e “Tü'müne” a arvore é derrubada, logo é cortada na medida desejada seja de 05mt ou 07mt logo com um machado é trabalhada a parte da barriga e também a parte da costa, então do lado da barriga é cavado por dentro até deixá-lo com uma espessura de uma polegada entre o lado de fora e dentro. 62 O próximo passo é deixar a canoa, depois de cavada por duas semanas imerso dentro da agua até a madeira atingir a cor preta enquanto isso a fogueira é preparada para passar pelo processo da queima afim de deixar a madeira molhe. O processo de queima dura 01 dia, até que a madeira fique molhe, ao atingir o ponto certo a canoa é aberta lentamente com auxílio de cordas de cipó amarradas no lado direito e esquerdo da beira. Uma vez aberta a canoa novamente é trabalhada tirando a parte queimada da madeira e dando os últimos retoques dando polimento ao corpo da canoa, finalmente lhe é colocado a quilha e os 03 bancos com isso a canoa fica pronta para uso. Para deslocar a canoa é necessário o auxílio do remo que é fabricado da arvore “Nhomane” um tipo de madeira especialmente usado na fabricação do remo. Não é necessário derrubar a arvore, somente é tirado uma parte dela, exatamente na medida do tamanho do remo. Fazer o remo não dá muito trabalho é somente tirar partes da madeira até lhe dar a forma do remo com uma parte plana no formato de um coração, o cabo e a cabeça. O acabado inclui o polimento com lixa natural de pedra/espuma “Tüwütchi” também recebe uma pintura de cor preta com tinta extraído de cipó Cumate. 2.6 IMPLEMENTOS DO LAR DE USO PESSOAL E DIÁRIO Dentro de casa há objetos, estes precisam de um lugar onde são guardados para isso são feitos os recipientes, também são feitos implementos para o trabalho no cotidiano. 2.6.1 PACARÁ É um bem de muita utilidade no lar, pois é nela que se guardam os objetos e adereços pessoais como roupas, colares, cocar de penas de aves, agulhas, etc. Em cada lar há pelo menos de 03 a 05 pacarás ou até mais dependendo da quantidade de famílias vivendo na oca. O artesão o confecciona usando tiras de arumã, mas antes passam pelo processo de tingimento, se for para guardar os objetos pessoais o tamanho grande é de 1mt de altura e 80cm de diâmetro. 63 O transado que é de vários tipos pode ser estilo da escama do peixe samoata, estrela e dente de piranha, começa pela parte de baixo da base, logo tecido para cima com uma barriga no meio e terminando com a boca, finalmente é feito a tampa. Além de ser útil no lar, atualmente também é fonte de renda, pois é um objeto muito apreciado pelos não indígenas, especialmente pelos turistas. 2.6.2 BOLSA DE TUCUM A bolsa de tucum é útil para carregar os produtos da caça e da roça de volta para casa nele é colocado os produtos como banana, macaxeira, batata doce e frutas do roçado é pendurado na cabeça para maior resistência do peso. A fábrica é uma atividade exclusivamente feminina, é feito de fibra de palmeira tucum, o processo inclui tirar a palmeira verde do tucum, quando ainda a folha não foi aberta. É tirado cuidadosamente pois é uma palmeira com muitos espinhos uma vez tirado a palmeira dele é retirado as folhas cumpridas para posteriormente tirar somente as fibras de cada folha, este é lavado para retirar as manchas e deixá-lo bem limpo e branco. Também é possível tingir a fibra com cores como vermelho que é extraído da semente do urucum, amarelo da essência do açafrão, verde do sumo da folha da pupunheira e preto da folha do cipó, é com fins de dar cor e beleza à bolsa. As fibras são expostas ao sol para secagem, uma vez seca então é retorcido pode ser de dois ou três fibras dependendo do tamanho do grossor que se quer pode ser fina ou grossa. A medida que a corda é feita, seguidamente é enrolada na forma redonda, até alcançar a quantidade em cumprimento de corda necessário para a confecção da bolsa. Logo passasse ao processo de tecer a bolsa, este pode ser tecido sobre uma régua de madeira ou somente com as mão sem auxílio da madeira se for para carregar objetos pesados a corda deve ser grosa e olhos entre uma e outra grandes. Atualmente a bolsa é uma atividade que gera renda para as famílias pois é comercializada, quando for para essa fim as bolsas são de tamanho médio e pequenas. 64 2.6.3 TIPITI O tipiti tem um formato redondo de 2mt de cumprimento e 20cm de diâmetro é oco por dentro com uma boca e no final uma orelha que tem a função de nele introduzir uma vara para puxar, esticando-o para baixo para secar a massa da mandioca. É confeccionado de tiras extraído das varas do arumã logo se faz 15 grupos de 10 tiras em cada um, então procedesse o transado em forma de escama do peixe samoata desde a calda até a boca, sempre seguindo a forma redonda ao longo do cumprimento. As famílias a utilizam para secar a massa úmida da mandioca, pela boca é introduzida a massa uma vez cheia é pendurado numa forquilha na parte de baixo ou seja na orelha é introduzido uma vara cuja função é de pressiona-lo para baixo, esticando-o, apertando a massa para extrair o liquido, uma vez seco a massa é peneirado e torrado no forno/taxo. 2.6.4 PENEIRA Figura 11: Peneira Fonte: LEÃO, Eli. 2021 A peneira “Cuetchinü” é um dos objetos do lar de muita utilidade, principalmente para peneirar a massa da mandioca que é a farinha depois de ser torrada no forno, pode ser grosa ou fina. 65 É feito do talo de arumã um arbusto encontrado na área pantanosa da selva, as varas são cortadas e levados para casa onde ele passa pelo processo de retirada da parte da superfície da vara ou seja as tiras, de uma vara retirasse muitas tiras. As tiras também passam pelo processo de tingimento para obter a cor preta com tinta natural extraído do cipó, então iniciasse a atividade do transado até alcançar a dimensão de 80cm quadrado, para dar o acabamento lhe é colocado 08 varas, 02 para cada lado que são adaptadas à peneira com tiras transado nele. Para peneirar e obter farinha grossa é preciso que as brechas da peneira seja de olho grande e para obter farinha fina é preciso que os olhos sejam de tamanhos pequenos. E para peneirar o suco de açaí, a caiçuma e o pajuaru é preciso que os olhos sejam muito mais pequenos de modo que finalmente somente o sumo do produto peneirado fique para consumo humano. 2.6.5 POTE DE BARRO GRANDE (BARÜ) E PEQUENO (TCHURI) Figura 12: pote de barro grande Fonte: LEÃO, Eli. 2021 O pote de barro “Barü” e “Tchuri” é feito de um tipo de barro especial de cor azul, encontrado somente na cabeceira dos igarapés a 03 metros de profundidade. O 66 especialista na fabricação tira a quantidade necessária para fabricar o pote, logo passa pelo processo de secagem. Enquanto o barro é secado, preparasse o ingrediente que será misturado ao barro para lhe dar consistência, este é feito da casca da arvore “Puru” a casca é colocado na fogueira até ficar somente as cinzas uma espécie de pó semelhante ao cimento que é recolhido e peneirado, uma vez pronta é misturado ao barro. Depois de misturar o pó ao barro, é colocado agua e com as mãos é amassada até alcançar o ponto certo para ser trabalhado. Do barro enquanto massa molhe é feito uma espécie de corda redondo e longo, que com muita habilidade e técnica o “Baru” vai recebendo o formato de pote grande. Na cultura Ticuna a confecção dos potes é uma atividade exclusivamente das mulheres, uma vez concluída o pote é exposta para secagem para isso é coberto com folha de bananeira, depois de seco o pote é lixado com a semente do coqueiro “Õwü” até obter o brilho esperado. Para o último processo, juntasse muita lenha, é feito a fogueira, onde o pote é colocado por um dia para passar pela queima que dará ao pote muita resistência e confiabilidade, depois da queima o produto é decorado com “Deregücü” uma massa de barro molhe. Finalmente o pote na parte de dento recebe um revestimento de breu para garantir sua durabilidade. O “Barü” é útil como recipiente para deposito de bebidas tais como pajuaru, caiçuma de macaxeira, de pupunha e de batata doce. Já o pote pequeno “Tchuri” é útil para nela conservar a agua e mantê-la fria para o consumo humano. 2.6.6 REDE DE TUCUM É o móvel da casa Ticuna um tipo de sofá do lar, muito utilizado para momentos de descanso e também oferecido ao visitante para o momento de diálogo e construção de amizade. 67 Figura 13: Rede de Tucum Fonte: LEÃO, Eli. 2021 Fibra de tucum é o material usado para a confecção da rede para isso é necessário torcer a fibra até obter 200mt de corda que é enrolado formando uma bola. A corda é tingido com cores naturais para obter a cor preta a corda é submersa numa vasilha de agua com barro denominado Tabatinga, encontrado na beira do igarapé e a cor amarelo e tirado da batata do açafrão. A rede é tecida sobre duas varas paralelas, separadas num espaço de 2mt, somente as especialistas dão conta da tecelagem, pois ao olhar parece ser bem difícil, no entanto a medida que avança é possível perceber o desenho estampado na rede no formato de escama de peixe. O tempo gasto na fabricação é de dois dias depois é colocado na sala de casa para ser usado como móvel para nele descansar, enquanto as pessoas descansam, rola as conversas informais, relatando os acontecidos do dia e também conto de histórias e mitos. 2.7 ALIMENTAÇÃO A culinária Ticuna é rica em variedades e para diferentes momentos seja para épocas de abundância ou para satisfazer a fome em tempo de escassez. 68 2.7.1 PEIXE E CARNE DE CAÇA MOQUEADO Peixe e carne moqueado é mesmo que assado na brasa com a única diferença que não é para o consumo do momento é assado de forma lenta com a finalidade de conservá-lo para ser consumido em momentos de escassez do peixe ou da carne do mato. Para evitar que o alimento se estrague, ele é colocado num paneiro e pendurado bem acima do fogão de lenha que deve permanecer acessa com a fumaça em direção do paneiro pois ao receber permanentemente a fumaça, este ajudara na conservação do alimento até por 30 dias. 2.7.2 PUPECA A Pupeca é um prato típico, preparado com pequenos peixes tais como cara, branquinha, sardinha, matupiri e curimatã, vários peixes bem tratados e temperados com tempero natural os peixes são embrulhados na folha da bananeira e colocados na fogueira para ser assado. É uma comida natural e saudável, livre de óleo de cozinha industrializado é consumido com banana da terra cozido, farinha de mandioca e pimenta ardosa. 2.7.3 MOJICA É uma comida semelhante a uma sopa, este tipo de comida é preparado quando em casa há pouco peixe e carne, com o fim de aumentar o volumem da comida então é preparada a mojica. Na receita inclui peixe ou carne de animal ou ave, colocasse bastante agua na panela que é misturado com massa de banana da terra, se for peixe deve ser retirado todos os espinhos. Para dar sabor, colocasse muita chicória, cebola e sal ao gosto, logo os pratos são servidos e todas as pessoas ficam satisfeitas. 69 2.7.4 FARINHA DE MANDIOCA No prato Ticuna não pode faltar a farinha de mandioca, pode faltar tudo menos a farinha. Faz parte do alimento básico, é fabricado da raiz da mandioca ou também conhecido popularmente como macaxeira, plantada no roçado e que num período de 06 meses já está pronto para a colheita. Aqui na região há dois tipos de mandioca, a brava que é de cor amarela, essa não é recomendável para consumo humano se não for cozida pois é venenosa, somente serve para fazer farinha que depois de torrada é bastante apreciada por ser de cor amarela. A outra é a macaxeira branca que pode ser consumida mesmo sendo crua, dela é produzido a farinha branca assim como as bebidas o pajuaru e a caiçuma. O processo de fazer a farinha é artesanal, as raízes são colhidas no roçado e levados à beira do igarapé onde são descascadas, depois colocadas na agua por um período de 03 dias, até que as batatas estejam bem molhes. Uma vez molhes, são retiradas da agua e levadas ao tapiri onde passara pelo processo de mistura com a massa de mandioca nova, recentemente colidas e ralada. Essa mesma massa irá passar pelo processo de secagem ao ser colocado no tipiti. Uma vez seca, a massa é peneirado e já está pronto para pôr no formo onde é torrado até ficar bem assada e crocante para ser consumida. 2.7.5 NGOERÜ'Ü É um prato tradicional e especial, no preparo inclui peixes pequenos como sardinha, matupiri e cara que depois de asados na brasa é misturado com macaxeira branca cozida. Na mistura também é acrescentado, pimenta ardosa que é para lhe dar o sabor final, normalmente este tipo de comida é feito quando em casa há pouco alimento. Ela é saborosa, bem apimentada e da satisfação ao ser consumido em tempo de escassez, mata a fome. 70 2.8 BEBIDAS Ticunas são especialistas em fazer bebidas de frutas, macaxeira, batatas e bananas umas são bem fermentadas e outras doces e são consumidas em todas as ocasiões seja de trabalhos, festas e pequenas reuniões em familia. 2.8.1 PAJUARU É uma bebida autenticamente da cultura Ticuna, é feito de macaxeira, a batata é raspada somente a pele da superfície, logo é ralada, depois a massa é espremida no tipiti uma vez seco é peneirado e torrado no forno. Logo a farinha é misturada com agua morna, até virar novamente em massa que é espalhada no chão sobre a folha da bananeira depois sobre a massa colocasse pó de manitchawa, finalmente é coberto novamente com folhas da bananeira. Depois de coberto encima colocasse frutas tais como mamão, abacaxi, abiu, cana e ingá, pois acreditasse que essas frutas é que faz com que a bebida fique de boa qualidade e doce. Dois dias depois, levantasse o pajuaru ou seja a massa é retirado e colocado no fundo do pote de barro, sobre um jirau de varas armado no fundo, este é com fins de separar o vinho do pajuaru uma bebida especial. Logo a massa é peneirado misturado com agua, assim a bebida está pronta para o consumo se for necessário que seja fermentado, então deixasse a bebida dentro do pote por 05 dias. A bebida é consumida nas festas e também nos trabalhos comunitários se estiver muito fermentada depois do consumo exagerado as pessoas ficam extremamente embriagadas. 2.8.2 CAIÇUMA Também é uma bebida tradicional, preparado para ocasiões de festas e também para consumo nos trabalhos comunitários, é preparado de macaxeira branca. 71 A macaxeira quando já cozido é socado com o tocari, enquanto é socado, pedaços de macaxeira são mastigado e depois colocado de volta na massa, pois a saliva é um ingrediente natural que ajuda na fermentação da bebida. Uma vez pronta a massa é colocado numa panela para descanso por período de 02 dias, logo é peneirado e depois acrescentasse agua até virar suco, este é conservado no pote de barro para ser fermentado. O servente, serve a bebida numa taça enorme feito de cuia, todos bebem até ficarem satisfeitos e quando fermentado, bêbados. 2.8.3 OVO DE SAPO É um mingau preparado com tapioca, é mais conhecido como ovos de sapo, antes de pôr a tapioca, a panela com agua já deve estar fervendo ai sim põe-se a tapioca, colocasse sal ao gosto, finalmente o mingau fica pronto para o consumo. Este tipo de mingau é consumido principalmente quando há escassez de alimento, pois é nutritivo e também atua como remédio para hidratar as pessoas doentes com diarreia. 2.9 FANTASIAS PARA ALEGRAR A FESTA Para a festa em especial da Moça Nova, os artistas Ticuna são suficientemente criativos na confecção dos mais variados tipos de fantasia, representando os bichos do mau e do bem como os macacos brincalhões. 2.9.1 OS MACACOS “TO'Ũ” Também conhecidos como os macacos doidos são os mascarados que imitam aos verdadeiros macacos. São mascaras confeccionados em pano de tururi com rostos de macacos, rabos enrolados e um enorme pênis, pintado de vermelho uma tinta extraído do urucum. Ao entrarem no meio da festa vão bagunçando tudo quanto há na sua frente, eles procuram as moças que muito ficam assustadas pois se deixar, eles a agarram, esfregando no corpo seu enorme pênis vermelho, por isso as meninas ao ver os macacos, fogem para longe. 72 As pessoas que representam o macaco são em torno de 15 pessoas, o fazem com intuito de ganhar um presente por parte do anfitrião da festa e também para trazer entretenimento e diversão. Por serem doidos os mais velhos, seguram os macacos para impedir que façam bagunça, também entram na roda para dançar. 2.9.2 MÃE DO VENTO “O'MA” Aparecem em cerimonias especiais, é um adulto que veste a máscara, cujo objetivo é de dar medo as pessoas. Figura 14: Mascara Mãe do Vento Fonte: LEÃO, Eli. 2021 “O'ma” é uma máscara que representa a mãe do vento, tem um enorme rosto de cor preta, tem orelhas grandes e dente brilhosos, ninguém sabe se é uma pessoa ou de fato um bicho do mato. Ao aparecer no meio da multidão no decorrer da festa, gera muito medo nas pessoas, ele de imediato deve ser pego impedindo que traga consigo um enorme vento, normalmente é pego por duas pessoas fortes um segurando do lado direito e outro do esquerdo, juntos dançam ao ritmo da música Ticuna. 73 A máscara é feito de casca da arvore “turiri” o rosto grande é de um enorme paneiro adaptado ao pano de tururi, seu nariz grande é de balseira. Sua presença na festa além de gerar medo é também com o objetivo de alegrar as pessoas. 2.9.3 ESCUDO “NATCHINE” É um instrumento de defesa, muito usado nos momentos de guerra entre etnias rivais que aconteciam constantemente, era o líder clânico o responsável por manter a tribo muito bem preparado para os combates. Figura 15: Escudo “Natchine” Fonte: LEÃO, Eli. 2021 O escudo de defesa “Natchine”, é feito da casca da arvore “tururi”. A arvore é derrubado, logo cortasse na medida de 04mt com a casca ainda no tronco com um cassetete é batido até a casca ficar mole como um pano grosso. A casca é retirada do tronco já na semelhança de pano, novamente é batida de ambos os lados até atingir a textura necessária, logo é colocado de molho na agua por toda uma noite. 74 No dia seguinte bem cedo, retirasse da agua, o pano é retorcido para tirar a agua logo é colocado no sol até secar, uma vez seco, esticasse o pano até ficar bem esticado e grande, seguidamente costurasse o pano encima de um cipó “Buu”, feito em formato redondo. A medida do formato redondo é de 1,60cm, de tal forma que o escudo cubra o corpo todo da pessoa, assim ele é bem costurado e finalmente, estampado com desenhos coloridos e grafismo no formato de escama do peixe “Xirui”. Na verdade o escudo “Natchine” feito da casca do tronco do “Tururi” hoje é usado para ornamentação da festa da Moça Nova e também para apresentação da cultura em dias especiais. Já o escudo “Natchine” original, usado para defesa do corpo nas guerras era confeccionado de couro da Anta. Nas caçadas a anta é morto, a carne é usado na alimentação e o couro é retirado para fazer o escudo. Uma vez retirado o couro, passa pelo processo de limpeza, logo é colocado ao sol para secar, isso com a finalidade de o couro ficar bem consistente e bem resistente de tal forma que evite as pontas das flechas ultrapassar o couro e ferir o corpo do guerreiro. O couro da Anta tem a propriedade de ser grossa e bem dura como a borracha, por isso os ticunas há usavam para fazer o escudo de proteção. 2.10 ARTES E PINTURA CORPORAL A arte assim como a pintura corporal estão carregados de representações da cultura milenar por exemplo as pinturas no pano do “Tururi” e o grafismo fácil, carecem de um olhar específico para compreender as mensagens por trás delas. 2.10.1 TURURI É um pano extraído da casca de arvore “Pota” e “Tchuna” no passado foi útil para confeccionar a roupa tradicional Ticuna e também dele era feito o lençol e o cobertor para se proteger do frio da noite. Atualmente é utilizado como pano para pinturas e nele desenhar os mais variados desenhos da natureza. A arte é comercializado para o público de turistas, gerando uma fonte de renda para as famílias. 75 Na produção, inclui a busca da madeira se for para lençol e cobertor precisa ser madeira madura e grossa se for para fazer roupa e artesanato deve ser uma arvore nova, cortasse na medida do tamanho de um cobertor ou menor de 40cm para pintura e roupa. Com um cassetete a casca ainda no tronco é batida até ela desgrudar do tronco, logo é retirada e mais uma vez é batida, esticasse o pano que depois é colocado dentro da bacia com agua para ser lavado. Depois de lavado é exposto ao sol para ser secado e já fica disponível para o devido uso. 2.10.2 PINTURA FACIAL E CORPORAL Figura 16: Pintura facial Fonte: LEÃO, Eli. 2021 O convite para a festa da moça nova é feito com 02 jenipapos, este é recebido pelos convidados também é sinal de que em 02 dias a festa irá começar por isso antes de rumar ao local da festa com a tinta do jenipapo, todos fazem a pintura no rosto que é um tipo de grafismo cujo símbolo informa que aquele sujeito pertence ao clã da onça portanto do grupo sem pena ou do japo, grupo com pena. As frutas do jenipapo entregues são ralados, logo a massa é espremida para extrair somente a parte liquida, este é colocado num pequeno pote e com uma 76 pequena lasca de madeira de ponta fina coberto com algodão que é molhado na tinta é feito com traços finos a representação do clã no rosto. Aqueles que são do clã da onça, desenham no rosto um rabo com a ponta enroscado, os que pertencem ao clã do pássaro desenham uma pena de ave e os que são do clã das sementes assim como avai, desenham umas bolinhas representando a fruta. Pelo fato de haver muitas pessoas na festa o desenho no rosto é a identidade clânica do indivíduo assim não é necessário perguntar às pessoas com relação à sua identidade, basta olhar para o rosto estampado com o desenho que caracteriza seu clã. Naturalmente as jovens e os jovens é na festa que aproveitam buscar seus pretendentes para o casamento, assim antes de olhar para a beleza é necessário primeiramente olhar para sua identidade clânica e saber se é do clã favorável ou não. 77 CAPÍTULO 03 - ABORDAGEM EDUCACIONAL: DA APRENDIZAGEM A RESIGNIFICAÇÃO PEDAGÓGICA O último capítulo tem como intuito abordar a educação indígenas em seus vários momentos desde a colonização até a atualidade, a começar pela educação tradicional sua importância e a maneira como era socializada, assim como a educação formal e suas consequências. Também um relato sobre o surgimento da educação indígena e diferenciada, as conquistas na legislação e os entraves por parte dos docentes indígenas no protagonismo da educação que se quer para as aldeias. 3.1 A EDUCAÇÃO TRADICIONAL TICUNA Tradicionalmente, a educação da criança Ticuna acontece informalmente, num amplo espaço, em contato com os adultos em suas atividades diárias, ou formalmente através dos rituais e comemorações, integrando sobre tudo, três círculos relacionados entre si: a língua, a economia e o parentesco. Luciano (2006, p. 170), afirma que: Os principais saberes indígenas estão ligados à percepção e à compreensão que eles têm da natureza, e se manifestam no trabalho, nos ritos, nas festas, na arte, na medicina, nas construções das casas, na comida, na bebida e até na língua, que tem sempre um significado cosmológico primordial. Enquanto a carne do mato, o peixe, a batata, a macaxeira e a banana eram assados na braça, as crianças, os adolescentes e os jovens aprendiam sobre os mais variados contos, mitos e piadas. Os homens aprendiam na teoria as técnicas de caçar animais, confecção do arco e flecha, da zarabatana, construção da canoa e do remo, logo no dia seguinte todos iam para a prática na mata adentro. Esses conhecimentos tradicionais estão impregnados na mente do povo e são frutos da experiência adquirida ao longo dos séculos pelas comunidades, adaptadas às necessidades do contexto, culturais e ambientais e transmitidos de geração em geração. 78 A cultura Ticuna, a língua materna e os mitos são únicos e particulares, são elementos importantes para a sobrevivência e afirmação da identidade como povo, merece atenção especial e diferenciada. Conforme Pesavento (2003, p. 43), “O imaginário é histórico e datado, ou seja, em cada época os homens constroem representações para conferir sentido ao real. Essa construção de sentido é ampla, uma vez que se expressa por palavras/discursos/sons, por imagens, coisas, materialidades e por práticas, ritos, performances. O imaginário comporta crenças, mitos, ideologias, conceitos, valores, é construtor de identidades e exclusões, hierarquiza, divide, aponta semelhanças e diferenças no social. Ele é um saber-fazer que organiza o mundo, produzindo a coesão ou o conflito.” Nessa perspectiva os mitos são saberes empíricos, práticas, crenças e costumes passados de pais para filhos nas comunidades indígenas. Saberes, quanto à moral, técnicas para o domínio da arte na fabricação da canoa, fibras, tecidos e uso de vegetais e animais que são fontes de alimentação e de uso para uma variedade de finalidades importantes. 3.2 A EDUCAÇÃO ESCOLAR DE 1500 A 1988 A presença da educação formal em meio aos povos indígenas, introduzido pelos colonizadores vindos de Portugal não foi construída com a participação de ambas sociedades, foi imposta pela hegemonia portuguesa com o intuito de homogeneizar a cultura do pais em formação. Conforme Silva, A. (2016, p. 27), O modelo de educação foi imposto aos povos indígenas, sem lhes dar a chance de dizer se queriam receber ou participar seguindo essa forma. Os europeus, munidos de uma visão etnocêntrica, viram a educação escolar como um meio de integrar e enquadrar os índios aos padrões culturais ocidentais na perspectiva de “civilizar” esses povos. Por causa de sua natureza, não foi benéfica aos índios uma vez que a intensão era de civilizar para ser útil como mão de obra barata dos senhores que por aqui chegaram. 79 3.2.1 DA COLONIZAÇÃO AO SÉCULO XX Povos como os Tupinambás que habitavam o litoral brasileiro há 500 anos foram vítimas da educação civilizadora, já os Cocamas e Cambebas natos da beira do rio Solimões no estado do Amazonas, foram vítimas há 400 anos. O povo Ticuna que originalmente eram habitantes das cabeceiras dos igarapés desde o final do século XVII por ocasião do primeiro contato com os colonizadores também não teve como fugir da ordem de civilizar via a educação da época. Veja a seguir no quadro, breve panorama da educação formal em cada época com relação aos povos indígenas brasileiros. Tabela 2: Características da Educação Escolar Indígena na política de atendimento aos povos indígenas N. PERÍODO LEGISLAÇÕES CARACTERÍSTICAS 01 1686 - 1759 Regimento das Missões Catequese Carta Régia de 21/12/1686 02 1757 - 1798 Diretório dos Índios Imposição cultural e negação da diferença; Educação Escolar impositiva e assimilacionista. 03 1798 - 1845 Carta Régia Não fazia referência à educação escolar. 04 1845 - 1889 Regulamento das Missões Imposição cultural e negação da Decreto n° 426/1845 diferença; Catequese e Educação Escolar assimilacionista. 05 1910 - 1967 Criação do SPI Decreto n° Alegou-se uma preocupação com a 8.072/1910 diversidade linguística e cultural dos povos indígenas; Ensino laico 06 1967 - 1991 Criação da FUNAI Lei n° de caráter integracionista. 5.371/1967 07 A partir de1988 Constituição Federal de 1988 Reconhecimento e valorização da diferença indígena; Educação Escolar bilíngue, intercultural, específica e diferenciada. Fonte: SILVA, A. 2016, p. 33 Depois das trágicas consequências sofridas pelos povos indígenas, finalmente na metade do século XX, por pressão internacional é que o Brasil vai olhar para a sociedade indígena como povos que merecem respeito com relação a sua diversidade cultural. Pós segunda guerra mundial a ONU em 1948 olha com cuidado para o direito das minorias entre eles povos indígenas. Conforme Cunha, (1987, p.128 apud SILVA, A. p. 34), Em meados da década de 60, no século passado, os organismos internacionais iniciaram uma mobilização em defesa dos direitos dos povos autóctones, 80 proclamando o direito à diferença étnica e cultural associada ao direito as suas terras, considerando estas um elemento promotor da identidade dos grupos. Pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1976) é declarado que “nos Estados não será negado às pessoas pertencentes às ditas minorias o direito que lhe assista, em comum com os demais membros de seu grupo de ter sua própria vida cultural” É na Constituição Federal de 1988, artigo 432 que efetivamente os povos indígenas vão ter o direito legal de respeito e valorização à diferença cultural assim como ao idioma falado por cada povo. 3.3 EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA DIFERENCIADA Subjetividade dos líderes Ticuna no ano de 1990, manifestam seu interesse pelo respeito e valorização da diversidade pela cultura. Veja no Filme: Fronteiras da Educação Ticuna. Paulo Mendes afirma. “Nós somos a maior tribo do Brasil, somos 20 mil Ticuna, somos muitos índios e dentro de 20 mil Ticuna, todos falam a língua, o Ticuna nunca perdeu a língua e Ticuna não tem vergonha de falar a língua”. João Pacheco de Oliveira, comenta. “Ticuna tem 300 anos de contato com os brancos, ne, eles participaram das primeiras missões que foram feitas aqui em aldeamento dos jesuitas e carmelitas esse contato data de 1680 a 1710 por ai. Nino Fernandes. “Somos é muito Ticuna, e cada vez, cada anos nós estamos aumentando e nos precisa a área, nós precisamos pudessem demarcar a nossa área”. Paulo Mendes. “Nós somos Ticuna, daqui dessa terra e quando nós já nascemos, já nascemos Ticuna e Ticuna nós temos que morrer”. Pedro Inacio. “Nós não viemos de outro pais, nós não viemos do sul, nós não viemos dos Estados Unidos pra gente habitar aqui, gente somos fruto daqui mesmo desta terra, muitos brancos que habita e muitos tempo aqui na alto rio Solimões Amazonas, considera os índios Ticuna dizendo que os índios Ticuna não é mais índios, é porque nós temos a roupa, muitas vezes nós usamos relógio, sapato e vestimenta e falamos português, tem alguns nossos irmão Ticuna que saiba ler, escrevem, então por causa disso não consideram a gente. O povo Ticuna não é mais índio, porque gente usamos também e muitas coisas do branco”. João Lourenço Cruz. “Nós queremos saber até onde o branco sabe também”. 81 Paulo Mendes. “Nós queremos aprender do branco, e mais com nossa cultura sem deixar a nossa a nossa tradição”. Nino Fernandes. “Olha a problema da educação, porque nós também assim professores, sempre nós reunimos em junto com capitães e quando tem reunião geral do capitães nós também os professores nos reunimos também para poder discutir a nosso problema. Professores branco tem algum que é apoiado do governo, dos prefeitos dos outros órgãos, assinaram carteira dele né, e nós também nós somos índios quer dizer nós somos índios professores, mas somos, somos é a mesma gente não somos diferente é direito de, é mesmo direito que nós temos do branco também né”. Reinaldo Otaviano do Carmo. “Somos professores que muitos anos nós estamos aqui no Alto Solimões amazonas, sofrendo, trabalhando e até hoje nunca dá certo e até hoje que nossas carteiras nunca foi assinado”. Prof. Francisca. “É dificuldade não falar a língua Ticuna, é porque é muito difícil de falar e de entender, então agora sou professora aqui, e não consigo falar a língua Ticuna pra ensinar para os alunos, agora estou ensinando no português e os alunos pouco entende eu também pouco entendo o que eles me falam”. Reinaldo Otaviano do Carmo. “Nós trabalhamos como professor 10, 15 anos ou tem professor que trabalha 08 anos, nunca consegue assim de levar os nossos alunos pra bem alfabetizar mesmo”. Constantino Ramos. “Esse livro aqui que eu dou aula, Terra Verde Céu Azul, esse livro aqui foi feito pelo Campos Avançado do Rio Grande do Sul. Aqui esse animal acho que tudo mundo sabe como pessoal branco, tudo mundo sabe que é elefante e por aqui a gente pode aprender a segunda letra das vogais que é a letra E, é por aqui a gente disse pra ele que essa letra aqui é a letra minúscula e no mesmo tempo a gente disse que essa letra é, E, sendo a vogal maiúscula, mas a gente diga que só por ai no Rio Grande do Sul, por ai na África existe esse animal aqui, mas por aqui a gente disse que esse animal não existe. A gente aprende só o nome por que começa com a letra “e”. Reinaldo Otaviano do Carmo. “Essa cartilha foi feita em Peru, mais nós daqui do Brasil, nós não achamos que muito bom para escola. Um erro esse daqui por exemplo, aqui gente ta vendo é uma casa mais na escrita disse que é um quarto” ucapu” mas não é, então por isso, gente se preocupou de fazer nós mesmo fazer então essa cartilha e essa daqui foi pra substituir essa daqui. Então nós fizemos a 82 primeira cartilha de alfabetização Ticuna do Brasil né, e também nos temos mais outra livro que feito por nós também nós somos professores, esse livro que chama Nosso Povo na língua “Torü duuṹˈgü”, esse livro é uma história dos Ticuna de como vivia antigamente, como nascia e que hoje em dia vai servir pra nossos filhos e pra escola também, porque primeira cartilha que existe, primeiro livro que existe no Brasil do Alto Solimões o Amazonas. Por que nós somos índios Ticuna que nunca tivemos livro, nunca tivemos cartilha, feito pelo próprio nós mesmo”. Pedro Inacio. “Então precisaria de ter essas cartilhas para poder nossos filhos e filhas aprenderem na escola para não aprender só na língua português, porque nossa língua também importante porque se nós só escreve em português e não escrever na nossa língua daqui um 05, 10 anos ou 20 anos que seja os nossos filhos não vai mais falar em nossa língua, não sabe mais nem contar história não sabe mais dizer o nome das cada arvores de cada animais que existe na nossa terra, não sabe mais nem andar na mata, não sabe nem conhecer o que é o nome de cada arvore de cada ramo de qualquer remédio que existe na mata pra que serve uma arvore, então pra isso que gente estuda que tem essas cartilhas Ticuna”. Paulo Mendes. “Tem que aprender as duas línguas pra nós poder ter contato com branco, pra nós poder conversar e que a gente precisa de, não somente de duas línguas, mas de mais línguas, tem Ticuna aqui que fala as três línguas fala o espanhol, fala o português, fala o Ticuna. Então é por isso que a gente quer aprender as duas, o Ticuna nós não vamos deixar por que tem Ticuna que ainda nunca viu o branco ainda, então pra nós, nos se reunir melhor, discutir melhor nossos problema e nós não deixa nossa língua”. Paulo Ramos. “Que nem os brancos, é pra mim aprender, aprender o pessoal e aprender mesmo né, aprender a escrever, ler”. Constantino Ramos. “Eu lembro se eu não sabe como é que eu posso falar em português eu não posso falar com eles, mais sim pode mas para ele entender o que eu estou querendo não dá pra ele entender sabe. Paulo Ramos. “Passei três anos em Benjamin Constant, estudando lá, ai a mulher dava o roupa pra mim, sandália sim pra calçar, caderno, lápis, borracha tudinho deu pra mim né. Ai voltei porque não tinha mais condição, a mulher não tinha mais condição assim, pra, por que já é na quarta série pra quinta já é pago o livro”. Foi nos anos de 1990 que os caciques e professores Ticunas, com a assessoria dos não-indígenas que por aqui estiveram na condição de pesquisadores entre eles 83 João Pacheco de Oliveira, foi que o movimento teve seu auge na busca de retomada das terras e também pela educação diferenciada. 3.3.1 OS MARCOS LEGAIS E A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA Como resultado das reivindicações do movimento indígena a Constituição Federal, de 1988, veio garantir aos índios o direito à diferença e assumia para o Estado a proteção às manifestações culturais indígenas, assegurando o uso de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem. Cumprindo as determinações da Constituição Federal (1988), a LDBEN (1996), esclarece as responsabilidades e especificidades da educação escolar indígena, sobressaindo a preocupação com o ensino bilíngue e intercultural. No Artigo 26, ressalta a inclusão das características regionais e locais, da cultura, da economia e da clientela de cada escola. Assevera, ainda, a educação diferenciada na garantia de não apenas ensinar conteúdos na língua materna, mas incluir conteúdos curriculares propriamente indígenas. O Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas – RCNEI (1998, p. 24) reafirma o reconhecimento do caráter multiétnico do Brasil, a autonomia indígena e “relações igualitárias entre os povos indígenas a sociedade civil e o Estado”. De acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena, “os princípios da especificidade, do bilinguismo e multilinguíssimo, da organização comunitária e da Interculturalidade fundamentam os projetos educativos das comunidades indígenas, valorizando suas línguas e conhecimentos tradicionais [...]” (DCNEI, 2012, p. 3). Com relação à democracia brasileira, houve valiosos avanços pelo menos na legislação no que diz respeito ao segmento indígena e a educação, no entanto as escolas indígenas no seu cotidiano enfrentam muitas dificuldades para fazer da escola um espaço diferenciado ao serviço da comunidade indígena local. A tendência ainda é de propor experiências descontínuas e esparsas, distanciadas das questões peculiares da região e da particularidade da cultura indígena, limitando-se a reproduzir os métodos e programas do ensino tradicional e formal. 84 3.4 DOCÊNCIA INDÍGENA E OS ENTRAVES NA IMPLEMENTAÇÃO DA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA Como resultado do movimento indígena que teve início no ano de 1970, hoje há leis tanto no âmbito da CF e na educação que amparam a implementação da educação escolar diferenciada. No entanto entre o real e o ideal ainda há muito para se fazer, pois o problema radica na dificuldade que a maioria dos docentes indígenas tem de colocar em pratica o direito de protagonizar a pedagogia indígena. Uma vez que os atuais docentes índios são produtos da educação tradicional e bancária, espaço escolar onde era excluído os saberes tradicionais indígenas. 3.4.1 ESCOLA MUNICIPAL INDÍGENA EBENEZER Na aldeia Ticuna de Filadélfia atualmente existem duas escolas públicas que oferecem desde a educação infantil ao ensino médio. A Escola Estadual Gildo Sampaio e a Escola Municipal Ebenezer, esta última foi palco da pesquisa de campo em questão. A Escola Ebenezer foi fundada no ano de 1968, na época não havia participação do poder público para as questões educacionais, no sentido da construção estrutural da escola e fornecimento de materiais pedagógicos. Nessa perspectiva, com a ajuda dos missionários da missão Evangélica Batista Regular que se construiu na comunidade um lugar de reunião para os indígenas adeptos ao protestantismo, a casa foi construída de madeira e cobertura de palha, uma vez concluída recebeu o nome de Ebenezer (que significa até aqui Deus nos ajudou), pois, além de ser um lugar para socializar o ensino da Bíblia, também foi útil como espaço escolar para a educação formal dos filhos das famílias, moradoras da comunidade que então surgia. No decorrer dos anos como consequência da reinvindicação do cacique da comunidade a participação do poder público na educação, aconteceu a partir do ano de 1995. Em 1996 com a entrada da nova administração municipal, foi implantado o sistema de Polo que contribuiu para o desenvolvimento da educação e fez com que os jovens das comunidades vizinhas indígenas e não-indígenas tivessem acesso ao 85 Ensino Fundamental completo e comum, não específico, com tratamento especial para a etnia Ticuna. Com o crescimento da população e consequentemente dos estudantes, foi necessária a construção de uma escola em alvenaria com seis salas de aula. Logo em março de 1997 foi solicitada a ampliação de mais quatro salas de aula. A Escola Municipal Indígena Ebenezer, está localizada à Rua Tchimãücü n.º 2007, da comunidade Indígena Ticuna de Filadélfia no Município de Benjamin Constant-AM. É mantida pelo município e administrada pela prefeitura Municipal e Secretaria de Educação, cultura e Desporto-SEMED. Como instituição de ensino, foi reconhecido pelo Decreto nº 031 de 08 de novembro de 1996, sancionada pelo então prefeito, no entanto sem as perspectivas do reconhecimento como uma escola indígena e diferenciada. Ainda não possui CNPJ, é identificado pelo código nº 13005162 junto à SEMED. Posteriormente foi reconhecida como uma escola de categoria indígena a partir da aprovação da Resolução Federal nº 03/99, que fixou as diretrizes para o funcionamento das escolas indígenas do país. Então a escola começou atender todas as demandas de 5ª a 8ª série do Ensino Fundamental, ou seja, alunos indígenas e não indígenas. De acordo com o objetivo geral, estabelecido na proposta do Plano de Ação Pedagógica da Escola em 2016, diz que a escola existe para contribuir para maior participação e interação entre a escola e a família com vista a melhorar o processo de ensino-aprendizagem do educando e da efetivação de uma gestão democrática. E os objetivos específicos são: Aumentar a frequência dos pais/famílias na escola; promover ações que possam garantir a prática da gestão democrática; efetivar a atuação do conselho escolar nos processos e ações pedagógicas da escola e promover ações de socialização entre os seguimentos que compõem a comunidade escolar. No dia 04 de setembro de 1999, foi inaugurado uma nova estrutura da escola pelo então excelentíssimo senhor prefeito municipal José Amauri da Silva Maia, a escola Ebenezer, e demais autoridades como o Presidente da Câmara Municipal, José Maria Freitas da Silva Junior, o secretário de educação municipal o sr. Aldeney José Cajueiro do Nascimento. Na inauguração também estiveram presente os Caciques das comunidades vizinhas de Bom Caminho, Porto Cordeirinho, Bom Intento, Guanabara II e III, Lauro 86 Sodré, Novo Paraíso, vereadores Adir Ticuna e Ofir Aiambo entre outras autoridades civis, militares e eclesiásticas, onde solenemente foi inaugurada a nova face da Escola Municipal Indígena Ebenezer. A escola tem um gestor titular, e um adjunto; que são escolhidos a cada quatro anos através de uma eleição, quando professores, alunos e pais de alunos votam nos candidatos que geralmente são professores da própria comunidade. Há um coordenador pedagógico com formação em pedagogia e 31 professores, em regência de classe, cada um com formação em sua respectiva área. O planejamento da Escola é feito com base no Referencial Curricular do Munícipio e no Projeto Político Pedagógico - PPP, da instituição. É realizado um planejamento anual, dividido em meses e o professor faz sua adequação diária, conforme vai aplicando os conteúdos. No início de cada ano letivo é efetuado as matrículas que é de competência da Secretaria da Escola, conforme legislação em vigor, cabe à direção da unidade escolar a responsabilidade pela divulgação do período e dos critérios para efetivação da matrícula. É a partir do ato da matrícula que o aluno, pai ou responsável tomará conhecimento dos dispositivos legais como o Regimento escolar e do Plano Político Pedagógico da escola. Para a matricula dos alunos novatos, o candidato deverá apresentar a certidão de nascimento e atender o estabelecido na legislação em vigor. Para a matrícula de alunos transferidos de outros estabelecimentos de ensino, a Unidade Escolar deverá exigir os documentos: atestado de Frequência e Histórico Escolar, devidamente assinado pelos responsáveis, fica então estabelecido o prazo máximo de 30 dias para apresentação dos documentos exigidos no ato da matrícula. A escola tem 427 alunos matriculados nos três períodos, matutino 6º ao 9º ano, e Educação Infantil Pré I, com funcionamento nos horários de 07h00 a 11h00 e o período vespertino 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental e Educação Infantil Pré II, com funcionamento nos horários de 13h00 a 17h00. 3.4.2 A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA QUE SE QUER Conforme assinala Libâneo (2008) toda escola possui uma dinâmica de trabalho e de organização que refere-se tanto a sua intenção de trabalho quanto ao 87 público que vivencia o processo educativo na escola. Nesse sentido é possível afirmar que cada escola possui a sua cultura, ou seja o seu modo de organização. Com relação a escolas indígenas, assim como as escolas não indígenas demanda uma organização que de um lado cumpre a legislação brasileira de modo geral sobre a organização da educação em todo o Brasil, e de outro busca atender as peculiaridades sociais e culturais daqueles que vivenciam o espaço educativo. Conforme mencionamos em outras passagens, o Ticuna é um dos povos indígenas do Brasil que mantem firme muitas das suas tradições culturais, dentre os quais destaca-se a manutenção da Língua Materna que é falada pela maioria dos Ticuna. A partir da legislação vigente, este fato direciona às escola para um fazer pedagógico que contemple o modo de ser do povo Ticuna. O ideal é que os rituais, as pinturas, as danças, as indumentárias, os artesanatos, comidas e bebidas típicas da cultura Ticuna que fazem parte dos acontecimentos sociais e culturais, façam parte do currículo e da práxis pedagógica da escola para contribuir com a valorização e afirmação da identidade étnica Ticuna. No âmbito da educação formal, há muito para se avançar no que se refere ao espaço físico da sala de aula, as crianças Ticuna demandam de um espaço amplo e adequado em conformidade com suas necessidades no que se diz respeito à aprendizagem e que possibilite o pleno desenvolvimento nos aspectos cognitivo, afetivo, físico, social e cultural. O espaço físico no seu formato deve representar a arquitetura Ticuna, o retangular deveria ser substituído pelo formato oval, tal como eram as ocas clânicas onde o líder principal o “Toüeru” e os anciãos da tribo, sentados num meio círculo, transmitiam os diferentes saberes. Baseado no pensamento do que a escola é para Paulo Freire, podemos dizer que o ambiente escolar ou a escola, é um espaço de relações, um lugar destinado não apenas ao estudo, mas fundamentalmente ao encontro, a troca, a conversa, a discussão, ao diálogo que não existe fora da amorosidade e que desta maneira, possibilita tanto a manutenção quanto a transformação da sociedade. Gadotti (2007, p.12), por sua vez, fazendo uma releitura das obras de Paulo Freire, complementa esse conceito dizendo que “a escola não é só um espaço físico. É, acima de tudo, um modo de ser, de ver”. Paulo Freire deixa implícito a concepção do espaço da escola como local privilegiado para a libertação, uma vez que é por meio do debate, discussão e diálogo 88 que é dada a possibilidade de compreensão da realidade que está a nossa volta, sendo possível assim, transformar histórias e proporcionar mudanças na vida de todos os envolvidos. É justamente neste sentido, que Freire enxerga a escola como espaço de ensino e aprendizagem, que por sua vez, resultam da troca de conhecimentos entre seus sujeitos, fazendo assim, emergir um debate de idéias e reflexões. O saber existente que o estudante traz de casa fara com que os conhecimentos procedentes de fora venha somar como um valor agregado ao saber tradicional, dando-lhe significado relevante. Conforme assinala (MASINI; MOREIRA, 2017, p. 24). Aprendizagem significativa ocorre quando há uma interação cognitiva, ou seja, uma interação entre um ou mais aspectos da estrutura cognitiva e o (s) novo (s) conhecimentos. Interação significa ação entre: nesse caso, ação entre conhecimentos prévios e novos conhecimentos. Nesse processo interativo um novo conhecimento, declarativo ou procedimental, adquire significados mas, ao mesmo tempo, o conhecimento prévio que serviu de “ancoradouro” pode ficar mais estável, mais diferenciado e, inclusive, adquirir novos significados”. Por exemplo, quando na escola, nos “apresentam”, e “recebemos”, o conceito de força gravitacional certamente acionamos o conceito de força que já temos na estrutura cognitiva, e que começamos a formá-lo, construí-lo, desde que nascemos para dar significado a essa “nova força”, a gravitacional. Nesta conjuntura, entende que a constância do diálogo oportuniza o desejo e, por conseguinte, o interesse do educando em conhecer mais, entendendo assim, a aprendizagem como sendo o resultado da relação entre ação de ensinar e o empenho em aprender. Paulo Freire defendia a escola da maioria, ou seja, as escolas públicas e tinha como um dos princípios fundamentais o fato de que o aluno, alfabetizado ou não, ao chegar à escola trazia consigo uma cultura diferente e que nem por isso era melhor ou pior do que a do professor, cabendo ao educador estabelecer um elo entre o saber formal e a experiência vivida. 89 3.4.3 FORMAÇÃO DE CIDADÃOS CONSCIENTES ENQUANTO BRASILEIROS E INDÍGENAS Ao transitar na cidade e ser identificado como indígena tenho ouvido quase que constantemente a expressão “O índio é o verdadeiro brasileiro”. Será que isso é verdade? É a pergunta que vem na minha mente. Pelo menos até a metade do século XX a expressão de que o índio é o verdadeiro brasileiro não passa de uma expressão romântica uma vez que seus territórios foram desapropriados e saqueados, suas bases como sociedade organizada desestruturados. A perda da identidade étnica gerou o sujeito “índio genérico”. É índio, mas não se aceita como tal, desejando ser branco, mas branco também não é, assim ocupando a margem da sociedade brasileira. Diante de tal situação é papel da educação formal e diferenciada ser um espaço para reverter o quadro e dedicado a formação de indígenas conscientes como cidadãos brasileiros com deveres e direitos, assim como sujeitos com orgulho de sua identidade étnica. O orgulho da identidade étnica socializado na escola formal não compromete a soberania nacional. 90 3.5 CONSIDERAÇÕES Ao finalizar esta pesquisa intitulada Educação Indígena Ticuna e o Processo de Afirmação Étnica na Escola Municipal Ebenezer, agregou novos conhecimentos e experiência acadêmica enquanto mestrando. Com certeza também irá contribuir para a vida profissional dos docentes índios, no campo da educação indígena. Na condição de acadêmico e pesquisador, experimentou-se a realidade de viver o cotidiano do fazer pedagógico e as responsabilidades que estão por trás da prática pedagógica. Percebeu-se que o processo de busca por resultados no que se refere à qualidade educacional na escola Ticuna depende das ações e organizações dos Ticunas, dos estudos interdisciplinares nas universidades, nas conexões entre os saberes. Destaca-se que a proposição exposta de maneira descritiva da inquietação foi provocativa. Durante a pesquisa perguntou-se: Como os estudiosos lidam com a informação oral, em relação ao seu trabalho de investigação. Como lidam com as descrições, ou seja, com as fontes produzidas pelo próprio narrador na contemporaneidade? Como lidam com os rastros, pistas, vestígios deixados na vida cotidiana e apenas pela oralidade dos anciãos. Como olhar para os costumes expressos cotidianamente, voluntária ou involuntariamente, que atravessam épocas, transpõem espaços, vencem apagamentos e descasos e colocá-los na academia? Tais fontes encontram por parte do ofício do pesquisador da História Cultural, diferentes usos, próprios do fazer-se “prova” ou “testemunho”. Esta dissertação se compõe de narrativa descritiva multifacetada de pessoas Ticunas, lugares e culturas hibridas, brancas e não-brancas. Artífices que teceram os intrincados caminhos deixados por histórias prováveis e improváveis entrelaçadas. Ciente de que me transformei em porta-voz de uma trajetória, feita por questões e conexões feitas e refeitas no decorrer da escrita, objetivei abrir caminhos investigativos a luz de diferentes métodos, métodos repletos de circularidades, próprios dos Ticunas. O caminho árduo de se construir a pesquisa, a partir da lógica não-indígena, na busca da compreensão de não-ditos, dos silêncios e omissões na educação da 91 escola proposta, trouxe a trama que circunda o fazer História Cultural, o Fazer estudos sobre educação. Os registros das atividades dos Ticunas, em toda a sua complexidade foram fixados em diferentes suportes, na alimentação, no andar pelo território, na dança, no casamento, na escola. Na descrição do autor/pesquisador encontraram formas de perenidade. Mesmo ciente de que a escrita direta, na academia sofrerá mais adiante, trabalho crítico e crivo, optamos em manter a linha de raciocínio e lógica construtiva do texto pela cultura híbrida Ticuna/não-indígena, para não perder a essência do que se desejava perenizar. Frente a complexidade de se escrever, na academia, a proposta, o autor comprometeu-se a ler e entregar a dissertação para cada fonte, para cada organização envolvida. A intensão é criar registros dentro do que se conseguiu reconstruir, sob o olhar pesquisador as questões aqui propostas. Deseja-se que os relatos sirvam de fonte de pesquisa e matéria-prima para a História e que a vivencia em um outro tempo da educação escolar indígena no Brasil e no contexto do povo Ticuna, observe e valorize os conhecimentos tradicionais deste povo, que historicamente foi negado. Que entre pela porta da frente na escola possibilitando um fazer pedagógico que articule o saber acadêmico com os conhecimentos da realidade dos Ticuna. Que apesar dos avanços no campo conceitual e legal, se desconstrua as dificuldades com relação a realização de uma educação que contemple a religação dos saberes. Assim, para tanto é necessário que haja profissionais comprometidos e especializados para atuar na educação diferenciada, pois na falta de ferramentas específicos, a tendência é de repetir os erros do passado. Fazer da escola um espaço para a criança Ticuna e não a criança Ticuna para o espaço escolar, assim como a maloca clânica era o espaço de convivência e socialização dos saberes tradicionais. É papel da escola formal, formar índios conscientes do seu papel como cidadão brasileiro e orgulho da identidade étnica Ticuna, sem distúrbios psicológico, aptos para serem sujeitos de sua própria história, solucionadores dos problemas sociais existentes. Por fim após percorrer a bibliografia sobre a temática, da História Cultural e educação destaco que foi satisfatório, aprender com os que já estão a mais tempo na 92 estrada da educação e aprender com eles as experiências do fazer pedagógico e de alguma maneira ser agente de mudanças necessárias no campo da pedagogia, favoráveis à qualidade da educação na escola indígena Ticuna. 93 Referências bibliográficas BARBERO, Estela Pereira. Artes Indígenas no Brasil-trajetórias de contato. Dissertação. 2010. Dissertação (Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura)- Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2010. BOAS, Franz: Antropologia Cultural. Editora: Jorge Zahar Editor, 2005. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: Texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988. ______. Senado Federal. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional: nº 9394/96. Brasília, 1996. ______. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. 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