UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE CARLA PATRÍCIA DA SILVA VILÃO ANOS REBELDES (GILBERTO BRAGA, 1992): Representações ficcionais de resistências frente à ditadura militar no Brasil contemporâneo São Paulo 2024 CARLA PATRÍCIA DA SILVA VILÃO ANOS REBELDES (GILBERTO BRAGA, 1992): Representações ficcionais de resistências frente à ditadura militar no Brasil contemporâneo Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Educação, Arte e História da Cultura. ORIENTADORA: Profª. Drª. Rosângela Patriota Ramos São Paulo 2024 V696a Vilão, Carla Patrícia da Silva. Anos Rebeldes (Gilberto Braga, 1992): representações ficcionais de resistências frente à ditadura militar no Brasil contemporâneo / Carla Patrícia da Silva Vilão. 168 f. ; il. Dissertação (Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2024. Orientador: Rosângela Patriota Ramos. Referências bibliográficas: f. 163-168 1. Audiovisual. 2. Telenovela. 3. Ditadura militar. 4. Brasil. I. Ramos, Rosângela Patriota. orientador (a). II. Título. Bibliotecário(a) Responsável: Marcela da Silva Matos – CRB 8/10691 Folha de Identificação da Agência de Financiamento Autor: Carla Patrícia da Silva Vilão Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação, Arte e História da Cultura Título do Trabalho: Anos Rebeldes (Gilberto Braga, 1992): Representações ficcionais de resistências frente à ditadura militar no Brasil contemporâneo O presente trabalho foi realizado com o apoio de 1: CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo Instituto Presbiteriano Mackenzie/Isenção integral de Mensalidades e Taxas MACKPESQUISA - Fundo Mackenzie de Pesquisa Empresa/Indústria: Outro: 1 Observação: caso tenha usufruído mais de um apoio ou benefício, selecione-os. À minha querida, amada e dedicada mãe, fonte inesgotável de amor, sabedoria e coragem, meu alicerçe, minha inspiração. AGRADECIMENTOS Primeiramente, agradeço a Deus, cuja benevolência em me conceder força e perseverança incansáveis para superar desafios e alcançar este marco significativo da minha trajetória profissional. Este é um momento de muita alegria em minha vida, por isso, expresso minha profunda gratidão a todos que, de alguma maneira, contribuíram para esta ocasião especial. À minha querida e amada mãe, dedico um imenso agradecimento sincero, pelo amor inabalável e pelo constante estímulo, em me incentivar todos os dias a ser forte e a não desistir dos meus sonhos. Sua presença foi um farol orientador em minha jornada de incansáveis noites em claro para a produção deste trabalho. Mãe, você é exemplo de perseverança. Amo-te muito. Agradeço à minha filha, Beatriz, pelo apoio, ternura, paciência e muita compreensão, por ter suportado as minhas ausências para que eu pudesse proseguir com meus estudos. Um reconhecimento especial vai para o Dr. Carlos Mendes, meu médico dedicado e querido, segue a minha gratidão pela presença constante de afeto, pelos cuidados dedicados à minha saúde e pelo apoio incansável aos meus estudos. Ao estimado e querido Fábio, pelo apoio, carinho, paciência, sempre disposto a ajudar em todos os momentos que eu mais precisei. Ao meu querido irmão, Felipe, pelo apoio. Sempre prestativo nas horas difíceis. Agradeço à minha querida orientadora, Professora Rosângela Patriota, por ter caminhado junto comigo. A minha profunda gratidão aos professores Gerson Leite e Alcides Ramos, cujo carinho e orientação dedicada têm sido inestimáveis na condução e progresso contínuo do meu trabalho de pesquisa até o presente momento. Também expresso minha gratidão a todos os estimados professores da Universidade Mackenzie, pela valiosa transmissão de conhecimentos, além do corpo de funcionários da instituição, pelo apoio constante e pela dedicação exemplar de todos, pois estavam sempre prontos a ajudar e a resolver questões nos momentos em que necessitei durante minha jornada acadêmica. Gostaria de expressar minha sincera gratidão à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pelo generoso apoio financeiro concedido durante este trabalho. A contribuição financeira e o suporte institucional foram fundamentais para o desenvolmento desta pesquisa. Agradeço sinceramente pelo comprometimento e pela oportunidade de aprimorar meus estudos e pesquisas, enriquecendo, assim, minha trajetória acadêmica. Além disso, agradeço a todos colegas e amigos que contribuíram para este processo, seja com amizade, orientação acadêmica ou apoio emocional. Pela compreensão, por todo o tempo que estive reclusa no desenvolvimento da minha pesquisa. Este marco não seria possível sem a valiosa colaboração de cada um de vocês. Só se pode alcançar um grande êxito quando nos mantemos fiéis a nós mesmos (Friedrich Nietzsche). RESUMO A minissérie Anos rebeldes, escrita por Gilberto Braga e produzida pela Rede Globo de Televisão, aborda as representações ficcionais de resistência diante da ditadura militar no Brasil contemporâneo. Situada em um período conturbado da história do país, a trama retrata a vida de estudantes brasileiros que enfrentaram repressões e censuras impostas pelo regime militar. A minissérie ganhou destaque ao expor a militância e rebeldia de alguns jovens que lutavam contra os abusos cometidos pelos militares e buscava a transformação do cenário político do país. As obras ficcionais da teledramaturgia têm o poder de representar a realidade de determinada época, levando-nos a refletir sobre os acontecimentos ocorridos na sociedade e a estabelecer conexões com o nosso próprio contexto. No caso específico de Anos rebeldes, a trama retrata um Brasil repressivo no qual parte da população busca a democracia e luta para alcançar seus objetivos. A obra nos convida a refletir sobre a importância da resistência e a compreender as lutas históricas que moldaram a sociedade. Esta pesquisa tem como propósito compreender quais elementos da minissérie Anos rebeldes provocaram reflexões na população brasileira em relação aos problemas enfrentados pelo país, considerando o contexto político das décadas passadas. Em um primeiro momento, a pesquisa apresenta um panorama da trajetória de Gilberto Braga, desde suas origens até sua entrada no mundo da televisão, a fim de compreender as influências e experiências que moldaram sua abordagem como escritor e o levaram a criar a minissérie. Em um segundo momento, este estudo aborda a história e a política da implementação do Ato Institucional n. 5 (AI-5) em dezembro de 1968, que traz uma mudança drástica na situação do país. Nesse período, muitos jovens revolucionários foram presos, torturados e até mesmo assassinados, resultando em eventos traumáticos e na abolição da necessidade de mandado policial para investigações, o que intensifica ainda mais a repressão. Nesse contexto, grupos de estudantes e militantes contrários ao regime ditatorial começam a se envolver em passeatas e alguns se engajavam na luta armada como forma de resistência. A morte do estudante Édson Luís, fato também retratado na minissérie, influencia diversos militantes a se unirem à guerrilha. Paralelamente, o casal João Alfredo e Maria Lúcia que enfrenta os desafios de manter um relacionamento amoroso em meio à grande tensão política vivida no país. Em síntese, o trabalho analisa aspectos da trama de Anos rebeldes, especialmente aqueles que retratam os abusos cometidos pelos militares. Assim, esta pesquisa se enquadra no campo da História Cultural e busca refletir sobre a inclusão de elementos históricos em narrativas ficcionais e o impacto desses elementos no contexto em que foram produzidos. Palavras-chave: Anos rebeldes; Gilberto Braga; ficção; minisséries e telenovelas brasileiras; ditadura militar. ABSTRACT The miniseries Anos rebeldes, written by Gilberto Braga and produced by Rede Globo de Televisão, addresses the fictional representations of resistance against the Military Dictatorship in contemporary Brazil. Set in a turbulent period of the country's history, the plot depicts the lives of Brazilian students who faced repression and censorship imposed by the military regime. The miniseries gained prominence by exposing the activism and rebellion of the youth who fought against the abuses committed by the military and sought the transformation of the country's political landscape. Fictional works in television drama have the power to represent the reality of a specific time, leading us to reflect on the events that occurred in society and establish connections with our own context. In the specific case of Anos rebeldes, the plot portrays a repressive Brazil in which part of the population seeks democracy and struggles to achieve its goals. The work invites us to reflect on the importance of resistance and to understand the historical struggles that shaped society. This research aims to understand which elements of the miniseries Anos rebeldes prompted reflections among the Brazilian population regarding the problems faced by the country, considering the political context of past decades. Initially, the research provides an overview of Gilberto Braga's trajectory, from his origins to his entry into the television world, in order to understand the influences and experiences that shaped his approach as a writer and led him to create the miniseries. In a second phase, this study addresses the history and politics of the implementation of the Institutional Act number 5 (AI-5) in December 1968, which brings a drastic change in the country's situation. During this period, many young revolutionaries were arrested, tortured, and even killed, resulting in traumatic events and the abolition of the need for a police warrant for investigations, further intensifying repression. In this context, groups of students and activists opposed to the dictatorial regime begin to engage in marches, and some become involved in armed struggle as a form of resistance. The death of the student Édson Luís, also depicted in the miniseries, influences various militants to join the guerrilla. Meanwhile, the couple João Alfredo and Maria Lúcia face the challenges of maintaining a romantic relationship amidst the great political tension in the country. In summary, the work analyzes aspects of the plot of Anos rebeldes, especially those that depict the abuses committed by the military. Thus, this research falls within the field of Cultural History and seeks to reflect on the inclusion of historical elements in fictional narratives and the impact of these elements on the context in which they were produced. Keywords: Anos rebeldes; Gilberto Braga; fiction; brazilian miniseries and soap operas; military dictatorship. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 - André Pimentel (Waldir), Cássio Gabus Mendes (João Alfredo), Pedro Cardoso (Galeno), Marcelo Serrado (Edgar), Malu Galli (Jurema), Paula Newlands (Lavínia) e Malu Mader (Maria Lúcia) em Anos rebeldes, 1992 ......................................................................... 75 Figura 2 - Reportagem da Revista Veja no lançamento da minissérie em 1992 ...................... 77 Figura 3 - Maria Lúcia, João Alfredo e Edgar .......................................................................... 80 Figura 4 - João Alfredo no Diretório da Faculdade de Direito ................................................. 87 Figura 5 - Natália (Betty Lago), Heloísa (Cláudia Abreu) e Fábio (José Wilker) ................... 92 Figura 6 - Edgar, Galeno, Waldir e João Alfredo ................................................................... 103 Figura 7 - Reportagem da revista Veja no lançamento da minissérie em 1992 ..................... 136 Figura 9 - Reportagem da revista Veja no lançamento da minissérie em 1992 ..................... 143 Figura 8 - Reportagem da revista Veja no lançamento da minissérie em 1992 ..................... 146 LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Músicas da minissérie Anos rebeldes e seus respectivos intérpretes ................................ 155 Tabela 2 – Músicas que acompanham painéis em Anos rebeldes e seus respectivos intérpretes ....... 158 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 12 CAPÍTULO 1 - GILBERTO BRAGA (1945-2021): DE CRÍTICO TEATRAL A TELEDRAMATURGO ............................................................................................................ 22 1.1 Breve biografia de Gilberto Braga...................................................................................... 22 1.2 Temas de relevância social nas minisséries e telenovelas de Gilberto Braga .................... 47 1.3 De Anos dourados a Anos rebeldes .................................................................................... 50 CAPÍTULO 2 — ANOS REBELDES: HISTÓRIA, CULTURA E POLÍTICA ....................... 57 2.1 Minisséries: inovações ficcionais televisivas ..................................................................... 57 2.2 Anos rebeldes: análise da estrutura narrativa e do enredo .................................................. 63 2.3 Retratos da época: os jovens de Anos rebeldes .................................................................. 73 CAPÍTULO 3 - ANOS REBELDES – DIÁLOGOS ENTRE HISTÓRIA E FICÇÃO ............. 96 3.1 Anos inocentes em contexto histórico ................................................................................ 98 3.2 Revelações e resistências: análise profunda dos anos rebeldes ........................................ 117 3.3 Entre a trama e a história: reflexões sobre os anos de chumbo ........................................ 138 3.4 Sons de resistência: a relevância das letras musicais em Anos rebeldes .......................... 151 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 161 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 163 Artigos de jornais, revistas e sites .......................................................................................... 163 Portais diversos (endereços eletrônicos)................................................................................. 163 Filmografia ............................................................................................................................. 165 Bibliografia ............................................................................................................................. 165 12 INTRODUÇÃO A presente pesquisa permitiu-me explorar o conteúdo que eu costumava acompanhar durante meu tempo de lazer diário, a fim de compreender uma parcela da maneira como um produto cultural, que exerce influência sobre a sociedade, é construído de forma comunicacional para o grande público. Anos rebeldes, minissérie produzida pela Rede Globo de Televisão e escrita por Gilberto Braga, retrata a vida de estudantes brasileiros durante o período da ditadura militar (1964- 1985)1. Esse acontecimento histórico ocorreu em um contexto turbulento, no qual certos grupos conservadores da sociedade estavam insatisfeitos com as ações do presidente João Goulart (1919-1976), resultando em um golpe militar que alterou o rumo do país. A minissérie destacou- se ao representar de forma notável esse período na televisão, marcado por repressões e censuras, além de abordar a juventude engajada e rebelde que enfrentou os abusos perpetrados pelos militares. O retrato da vida dessa juventude, em vários âmbitos, está no cerne da minissérie, já que, de acordo com Braga, pela descrição dos personagens, e provavelmente mais ainda pelo resumo da história que vamos ler a seguir, poderá ficar a impressão de que estamos propondo um programa em que vai se falar de política, atos institucionais, repressão, luta armada etc. de ponta a ponta, porque não vemos como contar a história incluindo o cotidiano. Mas em Anos rebeldes, nossa intenção é enfocar, enquanto estamos contando uma história sem dúvida determinada por acontecimentos políticos, a vida normal de um país numa fase de profundas transformações pelas quais passou o mundo inteiro nos anos 60 (Braga, 2010, p. 43). Segundo Braga (2010), Ventura (2018) e Silva (2022), Anos rebeldes impactou a política do país quando foi exibida em 1992, pois apresentou à juventude daquela época um exemplo de rebeldia, que, de certa forma, influenciou o surgimento dos caras-pintadas2, em resposta aos atos de corrupção no governo Fernando Collor de Mello. 1 Adota-se “ditadura militar” a despeito de haver um debate em torno de qual expressão utilizar: se “ditadura militar”, “civil-militar”, “cívico-militar” ou “militar e civil”. De todo modo, como bem destacou Ridenti (2010, p. 289), ainda que ele prefira “militar e civil”, as outras formas também descrevem o regime que durou 21 anos. 2 “Caras-pintadas” foi o nome dado ao movimento de jovens e estudantes que saíram às ruas vestidos de roupa preta, o que simbolizava o luto dos acontecimentos políticos, e com as caras pintadas de verde e amarelo, em alusão às cores do país. Esses jovens eram orientados pela União Nacional dos Estudantes (UNE) e pela União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES), que lutavam, desde os anos de 1980, pela democracia e pelo fim da censura e da corrupção. 13 O objetivo desse grupo era pedir o impeachment do então presidente, o que mostra o papel proeminente da juventude na oposição ao Governo, algo também visto no período da ditadura. Assim, pode-se dizer que os acontecimentos retratados em obras ficcionais da teledramaturgia, ao representar a realidade de uma época, nos fazem refletir sobre aquilo que aconteceu em uma sociedade, e também contribuem para que se trace um paralelo com a nossa própria conjuntura. No caso de Anos rebeldes, a situação retratada diz respeito aos acontecimentos de um Brasil repressivo, cuja população, ou parte dela, clamava por democracia e lutava para atingir seus objetivos. Nesse panorama, haja vista o retrato histórico do cenário político brasileiro das décadas de 1960 a 1980, reconstituído pela minissérie, objetiva-se, nesta pesquisa, compreender que elementos de Anos rebeldes puderam provocar reflexões na população brasileira sobre os imbróglios políticos do Brasil. Para tanto, este trabalho analisa elementos da trama de Anos rebeldes, sobretudo aqueles que retratam os abusos cometidos pelos militares. Nesse sentido, a análise aqui realizada se enquadra no âmbito da História Cultural, propondo uma reflexão sobre a inserção de elementos históricos em narrativas ficcionais e os seus reflexos na conjuntura do momento em que foi produzida. Explorar o presente, com a devida influência dos acontecimentos passados, é crucial ao analisarmos a história, pois a sociedade e a narrativa histórica se formam por meio de um contínuo processo de evolução e revolução. Anos rebeldes é uma minissérie brasileira escrita por Gilberto Braga e Sérgio Marques, com colaboração de Ricardo Linhares e Ângela Carneiro. A direção da produção ficou a cargo de Denis Carvalho, Silvio Tendler e Ivan Zettel. Foi produzida pela Rede Globo de Televisão e, originalmente, exibida do dia 14 de julho até 14 de agosto de 1992, no horário das 22h30, contendo 20 capítulos no total, divididos em três blocos, a saber: os “Anos inocentes”, que compreendem os capítulos do 1 ao 6; os “Anos rebeldes”, que abarcam a narrativa do capítulo 7 ao 13; e os “Anos de chumbo”, que vão do capítulo 14 ao 20. A série de TV Anos rebeldes foi criada a partir da transformação e adaptação de dois livros: 1968: o ano que não terminou, escrito por Zuenir Ventura, um jornalista, e, como há de se supor, proporciona uma perspectiva jornalística sobre o período da ditadura militar, e Os carbonários, cuja autoria é de Alfredo Sirkis, um ex-militante, obra notável por relatar as experiências vividas por ele durante o movimento de resistência ao regime militar. Anos rebeldes também foi objeto de uma adaptação para romance, cujo título é homônimo, sob a organização de Flávio de Campos (1992). Contudo, é importante ressaltar que essa versão 14 literária apresenta perspectivas e elementos substancialmente distintos daqueles que caracterizaram a minissérie televisiva. No ano de 1984, o panorama televisivo experimentou um notável avanço com o estabelecimento da casa de criação Janete Clair, uma iniciativa em honra à célebre escritora de telenovelas, que faleceu no ano anterior. Sob a liderança de Dias Gomes e o apoio do diretor da Rede Globo, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho (Boni), em conjunto com Daniel Filho, recém-empossado na direção da Central Globo de Produções, o projeto foi desenvolvido até o ano de 1987. O objetivo principal era a expansão da teledramaturgia brasileira, abrangendo também as minisséries, que já haviam conquistado uma audiência significativa. Em matéria intitulada “Anos Rebeldes revê anos 60”, publicada em 21 de abril de 1992 no jornal O Estado de S. Paulo, é discutido o seguinte: A Rede Globo parece ter tomado a frente ao programa a minissérie Anos Rebeldes, escrita por Gilberto Braga e Sérgio Marques, está pondo o dedo numa das mais feias chagas da história recente brasileira, uma fatia de tempo que a televisão insiste em ignorar – o período repressivo compreendido entre o golpe militar de1964 e o ano de 1972. A anistia, de 79, aparece num epílogo. Os atores estão sendo municiados pelo centro de pesquisa da Globo com fatos de época. O cineasta Sílvio Tendler foi encarregado de fornecer material documental de época para fazer o contraponto a ficção. Alguns nomes do elenco estiveram diretamente envolvidos na luta de resistência contra o regime, como Gianfrancesco Guarnieri, Francisco Milani, Stephan Nercessian, Beth Mendes (Anos […], 1992). A matéria destaca o papel proeminente que a emissora parece ter assumido ao abordar uma temática histórica delicada, representando um período repressivo da história recente brasileira, compreendido entre o golpe militar de 1964 e o ano de 1972. Esse período é frequentemente negligenciado pela televisão. A ênfase é colocada na importância da minissérie em trazer à tona uma faceta pouco explorada pela mídia, destacando a relevância do período de repressão política e seus desdobramentos na sociedade brasileira. O contexto histórico é complementado com a menção à anistia de 1979, que é abordada na trama como um epílogo. A produção da minissérie foi cuidadosamente embasada em pesquisa histórica, uma vez que os atores receberam subsídios do centro de pesquisa da própria Globo para municiar suas atuações com fatos e detalhes verossímeis da época retratada. Além disso, a inclusão do cineasta Sílvio Tendler para fornecer material documental autêntico adicionou credibilidade ao projeto, o que permite um contraponto à ficção apresentada na série. Outro aspecto relevante é o envolvimento de alguns membros do elenco que tiveram uma participação direta na luta de resistência contra o regime. Esse fato ressalta a conexão 15 emocional e pessoal que esses atores podem ter com os temas abordados, potencialmente agregando uma camada mais profunda de significado às suas interpretações na obra. Em uma entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, o ator Cássio Gabus Mendes, na época com 30 anos, por exemplo, expressou sua opinião sobre a relevância de a televisão abordar o tema em questão: A série não faz julgamento, apenas narra fatos acontecidos, da maneira mais isenta. Falar de História é sempre bom. A minha geração foi pouco informada sobre o que aconteceu no Brasil naquele período. Acredito que Anos Rebeldes vá contar coisas que muitos não sabem (Anos […], 1992). O ator enfatiza que a série tem como objetivo retratar fatos que realmente aconteceram, sem fazer julgamentos, ou seja, busca apresentar uma narrativa imparcial e isenta. Ele destaca a relevância de falar sobre a História, e afirma que é sempre benéfico trazer à tona eventos históricos relevantes para a compreensão da sociedade. Cássio Gabus Mendes faz uma observação pessoal sobre sua própria geração, indicando que, em sua opinião, a educação histórica foi insuficiente no que diz respeito ao período retratado na série, que é o tempo compreendido entre o golpe militar de 1964 e o ano de 1972. Ele acredita que muitas pessoas de sua geração possuem lacunas de conhecimento sobre o que ocorreu no Brasil nesse período específico. Em suma, a citação de Cássio Gabus Mendes reflete sua percepção sobre a relevância da série e seu potencial para disseminar conhecimento histórico, além de destacar a importância de se abordar eventos históricos no contexto da televisão, buscando uma abordagem imparcial e esclarecedora, ainda que nem sempre ocorra a imparcialidade, uma vez que uma produção ficcional também está submetida a eventuais indicações da empresa televisiva em que será veiculada. A matéria veiculada pelo jornal O Estado de S. Paulo também faz menção à distinção que Gilberto Braga fez das duas minisséries que produziu, respectivamente Anos dourados e Anos rebeldes. Anos Rebeldes procura entender os anos 60 e 70 a partir dos acontecimentos políticos que marcaram a época, ao contrário de outra série de Gilberto Braga, Anos Dourados, que pensava os anos 50, usando como referência a hipocrisia da vida familiar enquadrada por códigos severos de comportamento. Os autores garantem que não há intenção de esmiuçar os acontecimentos, mas verificar de que maneira eles agiram sobre a juventude. Anos Rebeldes está sendo rodada em locações espalhadas pelo Rio de Janeiro. As primeiras cenas gravadas mostram o Colégio Pedro II, onde era forte o movimento estudantil (M.D.) (Anos […], 1992). 16 A escolha de locações na cidade do Rio de Janeiro acrescenta autenticidade à representação do contexto histórico retratado. Além disso, a abordagem distinta entre duas séries, ressaltando a importância de compreender as sutilezas históricas e sociais de diferentes épocas, bem como o papel das produções televisivas na reflexão sobre o passado e suas implicações na sociedade e na juventude. Essa perspectiva possibilita uma exploração do impacto dos movimentos políticos e sociais dos anos 60 e 70 na vida e mentalidade dos jovens. Tendo isso em mira, cumpre destacar que a minissérie não se furtou em abordar eventos históricos nacionais e internacionais amplamente relembrados, como a morte do estudante secundarista Edson Luís de Lima Souto (1950-1968), no Restaurante Calabouço, bem como a passeata dos Cem Mil, as torturas e prisões ocorridas durante o regime militar e a invasão da Checoslováquia pela União Soviética. Na opinião de Zuenir Ventura, por exemplo: Essa misteriosa sintonia, que juntava em torno de anseios e ideias comuns jovens de nações e sistemas tão diferentes, manifestou-se de maneira peculiar no Brasil. Aqui começou antes, no Rio de Janeiro, em 29 de março, quando 50 mil pessoas acompanharam o enterro do estudante Edson Luís, morto pela polícia, convocando a classe média, ainda relutante, com um apelo irresistível repetido até o cemitério: ‘E se fosse um filho seu’. Outra diferença é que os contestadores brasileiros, em lugar da ‘sociedade de consumo’ e do ‘sistema’, tinham um inimigo mais concreto, que censurava, prendia, torturava e matava: a ditadura militar de 1964. Por isso, a nossa ‘geração de 68’ foi a que mais caro pagou por sua rebeldia, através de prisões, tortura, exílio e até morte (Ventura, 2018, p. 14-15). Diferentemente dos manifestantes de outras nações, que focavam em questões relacionadas ao consumo e ao sistema capitalista, os contestadores brasileiros enfrentavam um inimigo mais palpável e real, representado pela ditadura militar de 1964, que censurava, prendia, torturava e, em vários casos, chegava até mesmo a tirar vidas. Como resultado desse enfrentamento, a então chamada geração de 68, no Brasil, pagou o preço mais elevado por sua rebeldia, sofrendo com prisões, torturas, exílio e mortes. Essa peculiar convergência de ideias e suas consequências refletem um período marcante na história do Brasil e na forma como os jovens da época reagiram aos eventos políticos e sociais de seu tempo. Alfredo Sirkis, que no passado foi um militante do movimento estudantil, cuja proposta era fazer frente ao regime militar no Brasil, relatou que há alguns anos concedeu à Rede Globo os direitos de uso de alguns episódios da série Os Carbonários. Esses episódios, juntamente com o livro de Zuenir sobre o ano de 1968, foram utilizados como fonte de inspiração para a criação da série Anos rebeldes, produzida por Gilberto Braga. Sirkis relata: 17 O que me emocionou mesmo foi a abertura, com Alegria Alegria. Já me acostumei a assistir todos os filmes e séries sobre aquela época com os olhos de simples espectador de obras de ficção, sem a angústia de quem espera ver na tela ou telinha sua própria vida. Isso me é salutar e me ajuda a respeitar a criação artística dos outros, sem aquele sentimento de que estão me despossuindo de meu passado, deturpando-o. Na verdade é muito difícil (mas não é impossível) recriar o clima psicológico, o astral, a paixão daqueles anos nos veículos audiovisuais (Sirkis, 2014, p. 27). Alfredo Sirkis enfatiza que aprendeu a assistir a filmes e séries sobre aquele período como um mero espectador, sem a expectativa de ver sua própria vida retratada na tela. Esse distanciamento permitia que ele apreciasse a criação artística dos outros, respeitando o trabalho e a liberdade criativa dos produtores, sem se sentir pessoalmente afetado ou despojado de sua própria história. O autor menciona que é saudável assistir às obras de ficção sobre o passado com esse olhar desprendido, evitando sentimentos de apropriação ou distorção de sua própria vivência daqueles anos, embora seja um desafio, tendo em vista que suas memórias podem ser diversas daquelas mobilizadas por profissionais da ficção. Ele reconhece que é uma tarefa complexa para os veículos audiovisuais recriarem de forma fiel o clima psicológico, o sentimento geral e a intensidade emocional daquele período histórico retratado. No entanto, ele também deixa claro que não é impossível alcançar uma representação autêntica, embora seja um desafio. Segundo Kornis (2006, p. 103): Aspectos e momentos da história brasileira, foram incorporados à programação ficcional televisiva a partir do ano de 1984, quando a Rede Globo colocava no ar as chamadas minisséries, integrando as Séries brasileiras, exibidas a partir das 22h. Foi numa cojuntura de retomada democrática ao final do regime militar, que a história nacional passou a ser contada pela televisão, inclusive seus acontecimentos mais recentes. Do ponto de vista de suas construções narrativas, as minisséries viriam a seguir a mesma tendência já firmada nas telenovelas da emissora desde o início dos anos 1970, quando uma linguagem realista trouxe para a pequena tela temas da realidade brasileira colocados no ar em rede nacional. Ao abrir essa linha de programação, a Rede Globo lançava um novo produto ficcional, visando atingir um público mais sofisticado e pretensamente mais exigente, audiência típica das produções destinadas àquele horário. É interessante observar como a televisão, através das minisséries, assume a responsabilidade de apresentar a História do país. Ainda que tal atribuição pareça fazer as vezes do trabalho de historiador, ela não o substitui, porque são de naturezas diferentes. A menção à prevalência da abordagem narrativa realista nas minisséries e telenovelas suscita reflexões pertinentes sobre o impacto da ficção na formação da memória coletiva. 18 A representação realista viabiliza uma maior identificação e compreensão dos acontecimentos históricos por parte do público. Contudo, não se pode desconsiderar que tal abordagem pode incorrer em simplificações ou distorções, negligenciando nuances e complexidades inerentes à história real. Além disso, é oportuno destacar a significativa relevância da televisão enquanto veículo difusor da história brasileira, ao passo que emergem questionamentos críticos acerca da construção, interpretação e direcionamento das narrativas para distintas audiências. Assim, urge promover uma análise aprofundada sobre o papel desempenhado pela ficção televisiva no que tange à sua potencial contribuição para compreender (ou mesmo formular) a leitura dos aspectos históricos do país por parte da audiência. Tal fenômeno também pode ser visto como uma oportunidade para disseminar conhecimento histórico e promover a consciência cívica, mas também pode suscitar questionamentos sobre a maneira como a história é selecionada, interpretada e retratada para o público, o que, em vez de ajudar a formar, pode acabar comprometendo o entendimento acerca do tema apresentado. A programação das minisséries na televisão brasileira tematizou a história política nacional, entrelaçada com dramas familiares e enredos amorosos, como é característico da produção ficcional televisiva. A relevância atribuída a essa temática específica nas minisséries foi evidenciada no programa de aniversário da TV Globo em 1999, quando, ao fazer um retrospecto sobre sua teledramaturgia, as primeiras cenas exibidas destacaram as questões políticas abordadas pela programação ficcional, inclusive temas considerados tabus, a exemplo, especialmente, das questões sexuais. Segundo Kornis (2006, p. 109): Há portanto o intuito da emissora de construir uma memória da história brasileira, intensificando assim a sua já marcante presença no cenário nacional como agente construtor de uma identidade cultural e nacional. Numa escala certamente maior, vários estudos norte–americanos mostram o que foi e continua sendo o cinema produzido por Hollywood, do ponto de vista de afirmação da história daquele país. No Brasil, a Rede Globo, ao longo dos últimos 20 anos, vem igualmente construindo um verdadeiro imaginário da história brasileira nas suas minisséries. A audiência dessa programação amplia-se ainda mais à medida que seus programas são não só reexibidos em outros horários inclusive no Canal Futura, mas também veiculados posteriormente em vídeo e mais recentemente em DVD, como é o caso de Anos Dourados e Anos Rebeldes. Acrescente-se ainda a força da teledramaturgia da Rede Globo como um todo, considerado a sua potente intervenção em rede nacional desde o início dos anos 1970 enquanto agente de construção de um imaginário da sociedade brasileira. 19 De posse da apresentação da problemática, cumpre destacar que esta pesquisa está organizada em três capítulos. O primeiro, intitulado “Gilberto Braga – De Crítico Teatral a Teledramaturgo”, abordará o perfil profissional do autor, o início de sua carreira e as principais características das minisséries e telenovelas de sua autoria. Entre elas, por exemplo, encontra- se Anos dourados, para a qual Anos rebeldes funciona quase como uma continuação, tendo em vista a cronologia abordada em ambas. Espera-se, com o capítulo, compreender o contexto de produção de Anos rebeldes e os objetivos que seu autor tinha em mente ao produzi-la. O objetivo metodológico em abordar a biografia de Gilberto Braga é fornecer um contexto mais amplo e compreensível para a análise das minisséries e telenovelas criadas por ele. Compreender sua formação, interesses e motivações pode contribuir para uma análise mais profunda e enriquecedora das obras que ele produziu. Ao explorar a sua trajetória profissional, início de carreira e influências pessoais, há de se identificar conexões entre a sua vida e suas obras, o que tende a lançar luz sobre os temas recorrentes, as abordagens narrativas, estilos de escrita e escolhas temáticas presentes nas criações de Gilberto Braga. A análise da biografia do autor pode convidar a refletir sobre os fatores que moldaram sua perspectiva criativa, suas experiências de vida e que possam ter influenciado seus enredos e personagens, bem como as mudanças em seu estilo ao longo do tempo. Além disso, a exploração da biografia de Gilberto Braga contextualiza as motivações por trás de escolhas específicas em suas criações, como a tão abordada conexão entre Anos dourados e Anos rebeldes. Se o objetivo metodológico de discutir sua biografia é enriquecer a análise crítica das obras audiovisuais através da compreensão das influências pessoais e profissionais do autor, aborda-se a narrativa ficcional televisiva, destacando definição de autoria e em relação a outros gêneros televisivos, além de uma análise das minisséries, considerando-as como um produto específico. O segundo capítulo foca diretamente na trama de Anos rebeldes e trata, em especial, de aspectos de discussão entre história e ficção, da cultura e da política das décadas de 1960 e 1970, temas amplamente retratados na minissérie. Para tanto, aborda-se história e ficção, tendo como foco central as personagens da minissérie. Nesse contexto, explora-se a trajetória de cada uma delas e seu papel na trama. Para embasar nossas análises, as fontes mobilizadas são: matérias publicadas em jornais, biografias sobre Gilberto Braga e informações do livro que revela os bastidores da referida minissérie, cujas introduções são autobiográficas, porque escritas pelo próprio autor. 20 Trata-se de empreender abordagem metodológica baseada no exame crítico das publicações jornalísticas e revistas veiculadas durante o período de transmissão da minissérie em questão. Dentre as fontes selecionadas, destacam-se os jornais de relevância histórica. O propósito central desta pesquisa é promover um diálogo entre a história das décadas de 1960 e 1970 e a representação fictícia apresentada na minissérie Anos rebeldes. A investigação concentra-se no exame de como a ficção aborda as lutas, vivências e desafios enfrentados pelos personagens no contexto da ditadura militar. Dessa forma, importa analisar a relevância dessa abordagem para a construção da memória coletiva e para a compreensão da sociedade contemporânea em relação a esse período histórico desafiador. Se o objetivo é estabelecer possíveis relações entre a minissérie Anos rebeldes e seu impacto na mídia televisiva da época de veiculação, não se pode perder de vista as conexões existentes entre o público que se pretendia atingir, pois embora seja difícil estabelecer com concretude quais foram os telespectadores reais, há pistas para identificar os idealizados, haja vista a sua veiculação em canal de televisão com audiência expressiva. Finalmente, o terceiro capítulo, mais abrangente, se dedica ao estudo de uma análise de “Anos rebeldes – diálogos entre História e Ficção do Brasil”. Abordam-se aspectos como a representação da história e a sociedade brasileira, incluindo eventos históricos, mudanças sociais e desafios contemporâneos. Além disso, investigam-se as representações realistas e estereotipadas do Brasil, bem como seu potencial impacto na percepção do público sobre o país. Primeiramente, essa abordagem levanta questões sobre a relação entre ficção e realidade. Ao analisar essa obra, é importante considerar como a ficção pode ser usada como uma ferramenta para representar eventos históricos, personagens e contextos culturais. Ela pode oferecer uma perspectiva única e emocional sobre esses acontecimentos, mas também pode distorcer ou simplificar a realidade em prol da narrativa dramática. Além disso, a análise de Anos rebeldes pode questionar como a ficção e a história se complementam e se influenciam mutuamente. A obra pode servir como um meio para explorar a experiência humana durante um período de turbulência política, oferecendo insights sobre as emoções, dilemas éticos e conflitos pessoais dos personagens fictícios que representam aquele contexto histórico. Outro aspecto relevante é a importância do diálogo entre a ficção e a história. Através dessa análise, podemos avaliar como a série baseia-se em fatos reais, pesquisas históricas e documentos da época para construir sua narrativa. Isso levanta questões sobre a responsabilidade dos criadores de ficção em relação à precisão histórica e à ética na representação de eventos reais. Esta pesquisa também esclarece como Anos rebeldes contribuiu 21 para a (re)construção da memória de inúmeros brasileiros que vivenciaram a década de 1960 a 1970, bem como daqueles que, mesmo sem terem experienciado o período, tenham conhecimento dessa significativa parte da história. O terceiro bloco da minissérie, intitulado Anos de chumbo, que vai do capítulo 14 ao 20, por exemplo, apresenta uma fase histórica que perdura como um estímulo instigante e desafiador para investigações acadêmicas. Nesse contexto, parcela específica dos cidadãos brasileiros enfrentavam corajosamente adversidades em busca de seus ideais, ainda que para isso fosse necessário o uso de armamentos e organização de guerrilha. Essa época revelou inúmeras vulnerabilidades da sociedade, mas também fomentou o surgimento de uma intelectualidade ativa, que canalizou suas perspectivas por meio de composições musicais, escritos e diversos discursos. Essa esfera intelectual empenhou-se na crítica das arbitrariedades, na denúncia dos abusos perpetrados pelo regime ditatorial e na mobilização dos cidadãos para resistirem à opressão. Esse capítulo pode fornecer uma oportunidade para refletir sobre como a ficção é usada para representar a história, como essas duas dimensões se influenciam e como a narrativa ficcional pode nos oferecer uma compreensão mais profunda e empática dos eventos históricos e das experiências humanas. 22 CAPÍTULO 1 - GILBERTO BRAGA (1945-2021): DE CRÍTICO TEATRAL A TELEDRAMATURGO O capítulo aborda a trajetória de Gilberto Braga, destacando sua contribuição significativa para a teledramaturgia brasileira, especialmente no horário nobre das 21h. Originário de uma família de classe média, Braga superou desafios ao seguir sua paixão pelo cinema e teatro, inicialmente como crítico. Sua determinação e visão estratégica foram fundamentais para sua ascensão na televisão, onde criou personagens icônicos, consolidando-se como um profissional de destaque no cenário artístico brasileiro. 1.1 Breve biografia de Gilberto Braga Gilberto Braga foi um destacado roteirista e autor associado à Rede Globo de Televisão, a principal produtora de telenovelas no país. No cronograma da emissora, o horário de maior visibilidade e, consequentemente, mais atrativo para anunciantes, é o das 21h, que anteriormente era conhecido como horário das 20h. Braga integrou o grupo de autores que contribuíram para a expansão da teledramaturgia e a construção do horário nobre da emissora carioca desde 1978, quando estreou com Dancin´ Days. Somente entre 1994 e 2003 que ele interrompeu sua passagem no horário das 20h, ao assumir o horário das 18h, com a telenovela Força de um Desejo (Braga, 2010)3. Gilberto Tumscitz Braga nasceu em 1 de novembro de 1945 no bairro de Vila Isabel, Rio de Janeiro, filho de um escrivão de polícia e uma dona de casa. Embora seus pais - a mãe sobretudo, porque queria que o filho ocupasse carreira que lhe proporcionase estabilidade - tivessem aspirações de vê-lo como um diplomata, desde cedo ele manifestou um forte interesse pelo cinema e teatro. Destoando completamente dos desejos familiares, Braga cursou Letras na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), onde se formou, e em 1967, formou-se na Aliança Francesa, onde começou a dar aulas de Francês. Posteriormente, passou a colaborar como crítico de arte no jornal O Globo e, em 1972, após ficar conhecido do público, vitrine proporcionada pelo periódico dos Marinhos, ingressou na teledramaturgia, estreando como crítico de cinema e teatro na TV Globo. No início de sua carreira profissional, não se pode esquecer, Gilberto Braga, ainda com 17 anos, foi funcionário bancário, função que desempenhou, ainda que a contragosto, para ajudar nas despesas da casa, uma vez que seu pai havia acabado de falecer, o que colocou sua 3 Boa parte das considerações aqui presentes, senão todas, foram retiradas desta obra. Quando houver exceções, elas serão devidamente apresentadas. 23 família em uma delicada situação financeira e de privação de recursos. O fato de ter se mantido no trabalho no Banco Moreira Salles, localizado no Posto Seis, próximo, inclusive, à sua residência, por aproximadamente um ano, bem comprova que o cargo era para suprir necessidade momentânea, haja vista que seu interesse era outro. É relevante destacar que mesmo antes da triste perda paterna, Gilberto Braga já se dedicava ao ensino particular de língua francesa - atividade que desempenhava informalmente, porque não havia concluído seu curso na Aliança Francesa -, para custear suas próprias despesas, visando a independência financeira, condição que se acentuou quando optou por manter-se ensinando idiomais em vez do cargo no banco. Segundo ele, lecionar lhe proporcionava uma renda consideravelmente superior em comparação ao emprego assalariado no banco. Consequentemente, tomou a decisão de renunciar à estabilidade laboral preexistente em busca da tão desejada autonomia e da oportunidade de se dedicar à carreira de sua preferência, ou seja, naquele momento, a docência de língua francesa. Após completar sua formação na Aliança Francesa, no término de 1967, Gilberto Braga tornou-se apto para exercer o ensino oficial daquele idioma. Demonstrando notável proatividade, ele se valeu de sua rede de contatos na instituição para desenvolver projetos pessoalmente significativos, ao mesmo tempo em que promovia a escola de línguas, associando-a ao entretenimento e à efervescência cultural do período. Aproveitando-se dessa plataforma, ele orquestrou uma notável leitura teatral da obra de Jean Racine4, contando com a participação de Nathalia Timberg5, figura até então desconhecida dele, e Henriette Morineau6, quem conhecia superficialmente graças à sua conexão com Daisy Lúcidi7, amiga de sua mãe. É importante ressaltar que Henriette era francesa e naturalizada brasileira, e Nathalia havia estudado na França, ambas demonstravam, portanto, fluência no idioma francês e no português. 4 Jean-Baptiste Racine (1639-1699) foi um dramaturgo e poeta do período áureo das letras francesas, considerado, ao lado de Molière, um dos maiores representantes da dramaturgia clássica francesa. Mais informações em: https://www.ebiografia.com/jean_baptiste_racine/. Acesso em: 28 set. 2023. 5 Nathalia Timberg foi uma atriz carioca. Ingressou na Globo em 1965 e, ao longo de sua trajetória na emissora, participou de diversos projetos de grande sucesso, incluindo novelas, minisséries e seriados. Para mais informações, consultar: https://memoriaglobo.globo.com/perfil/nathalia-timberg/noticia/nathalia-timberg.ghtml. Acesso em: 28 set. 2023. 6 Henriette Morineau iniciou suas atividades artísticas aos 18 anos, em Paris, integrando, posteriormente, a prestigiosa Comédie Française – que lhe deu passaporte para se apresentar em vários países. Nos anos 1930, chegou ao Brasil e adotou o país como pátria, naturalizando-se brasileira. Mais informações, ver: https://www.mulheresdocinemabrasileiro.com.br/site/mulheres/visualiza/219/Henriette-Morineau/3. Acesso em: 28 set. 2023. 7 Daisy Lúcidi nasceu no Rio de Janeiro em 10 de agosto de 1929 e teve a honra de ser parte do elenco inaugural da Rádio Globo. Sua carreira como radialista foi marcada por mais de quatro décadas de dedicação ao programa “Alô Daisy” na Rádio Nacional. Após uma breve incursão em novelas na década de 1970, Daisy retornou às telas com destaque em Paraíso Tropical (2007). Ela moreu aos 90 anos, em maio de 2020. Mais informações em: https://memoriaglobo.globo.com/perfil/daisy-lucidi/noticia/daisy-lucidi.ghtml. Acesso em: 28 set. 2023. 24 Suas tramas abordam, frequentemente, temas relacionados a disputas pelo poder e análises políticas, culturais e sociais do país, embora tenha se definido como alguém alheio às discussões políticas acaloradas. Além disso, ele demonstra habilidade notável na criação de personagens vilanescos, que se tornaram icônicos na história das produções televisivas, cujas narrativas adquiriram notoriedade em virtude da frequente incorporação de enredos caracterizados pela intriga de homicídios enigmáticos nas seções conclusivas das obras em questão. Exemplos notáveis incluem Odete Roitman, interpretada por Beatriz Segall, e Maria de Fátima, representada por Glória Pires, ambas personagens de Vale Tudo (1988). Também se destacam as figurações de Joana Fomm, ao interpretar Yolanda de Souza Matos Pratini, na novela Dancin´ Days (1978), Cláudia Abreu, que deu vida à Laura Prudente da Costa em Celebridade (2003), além de Tereza Rachel, intérprete de Renata Dumont, em Louco Amor (1983). No que respeita especialmente à minissérie Anos rebeldes, objeto de análise desta pesquisa, importa destacar que foi considerada filha dileta de Anos dourados (1986). Justamente por isso, este capítulo se dedica a explorar diversos aspectos da vida de Braga, escritor de ambas as tramas, desde os estágios iniciais de sua carreira até a sua notável ascensão na televisão, com o propósito de compreender as motivações que fundamentaram a criação da minissérie Anos rebeldes. A referida leitura teatral causou um considerável impacto, sendo habilmente divulgada por Braga nos meios de comunicação, o que chamou atenção do diretor-geral da Aliança Francesa no Brasil. Em um gesto generoso, o mencionado diretor recompensou-o, concedendo- lhe uma viagem à França como reconhecimento pelo êxito da iniciativa realizada. Inicialmente, logo após receber apenas as passagens para Paris, Gilberto Braga expressou suas preocupações ao diretor sobre os obstáculos financeiros que poderiam dificultar sua permanência na cidade. Em resposta a essa inquietação, o diretor concedeu-lhe uma bolsa de estudos, permitindo sua participação em um curso destinado a professores, com duração de três meses. As atividades desse programa foram programadas para o período matutino. Contudo, em virtude dos hábitos noturnos de Braga, marcados por suas idas ao teatro, geralmente extendidas no decorrer da noite ao participar da vida boêmia da cidade, ele frequentemente se levantava tarde, resultando em ausências frequentes nas atividades acadêmicas. Essa circunstância gerou o iminente risco de perder a bolsa de estudos, o que o motivou a ir conversar diretamente com o diretor geral da Aliança Francesa, a fim de explicar as razões subjacentes a suas faltas nas aulas. Demonstrando compreensão diante das 25 circunstâncias que frequentemente afligem jovens em sua primeira experiência na Cidade Luz, o diretor optou por manter a bolsa de estudos de Gilberto Braga sem quaisquer restrições. Com essa viagem, descobri que não queria morar fora do Brasil. Gostei muito de Paris, mas não queria morar lá e falar francês o tempo inteiro. De volta ao Rio, tive que encontrar alguma coisa para fazer que não fosse a diplomacia porque já sabia que não seria feliz com uma carreira nômade. Tive a chance de conseguir um trabalho como professor, na Aliança, além de retomar meus alunos particulares. Nessa fase, eu já sabia que trabalharia em alguma coisa ligada a cinema ou teatro. Então pensei: ‘Não conheço ninguém, não sou de família rica, preciso encontrar um jeito de entrar nesse meio, conhecer pessoas ligadas ao poder.’ Sei ver onde está a oportunidade e percebi que poderia me tornar crítico de teatro. Sabia que isso me ajudaria (Braga, 2010, p. 17). Gilberto Braga demonstrou coragem ao enfrentar as incertezas e buscar seu próprio caminho no mundo das artes, mesmo sem possuir uma posição privilegiada ou recursos abundantes, a despeito de, vale lembrar, não ser de família pobre, porque pertencente a uma classe média em ascensão. Ele enfatizou a importância de seguir seus interesses e paixões, bem como de estar atento às oportunidades ao seu redor para construir uma carreira significativa e gratificante. Essa determinação e visão estratégica acabaram por impulsionar sua trajetória e contribuir para seu sucesso posterior, o que o tornou um renomado profissional de teatro e cinema. Por meio de seu conhecimento com Daysy Lúcidi, Gilberto Braga estabeleceu contato com Gil Brandão, o editor do jornal O Globo, distribuído aos domingos em copacabana, na época. Durante essa interação, Braga inquiriu sobre a possível necessidade de um crítico de teatro na publicação. A resposta foi afirmativa, com a oferta de um espaço para que Braga pudesse redigir uma coluna sobre o tema. Todavia, ficou claro que não haveria remuneração pelo trabalho. Somente com a publicação de três colunas dos jornais onde Gil Brandão8 era editor, Braga começou a ter a crítica apreciada, e chamou atenção do revisor de O Globo, seu amigo Fernando Zerlotini. Coincidentemente, naquele momento, O Globo estava em busca de um novo colaborador, porque o editor do segundo caderno, Carlos Menezes, estava insatisfeito com o atual crítico de teatro, Martim Gonçalves, que também era diretor teatral e apresentava negligência em suas atribuições jornalísticas. Carlos Menezes desejava que alguém, no mínimo, dividisse a escrita da coluna com Martim, o que, evidente, não foi bem aceito por este. Menezes, então, solicitou que Braga 8 Gil Brandão foi um modelista, ou seja, suas publicações diziam respeito às informações de tendências de moda, tanto no Jornal do Brasil quanto nas revistas Fon Fon e Manequim. 26 escrevesse a respeito de uma peça dirigida pelo próprio Martim, cuja avaliação de Braga não foi nada positiva. Se o pedido de Menezes foi deliberado ou não, o certo é que a crítica de Braga foi a centelha de um conflito prolongado entre ele e Martim, o que se arrastou até o momento em que o último foi dispensado do jornal, momento em que Braga assumiu a coluna sozinho. Há de se reforçar que, dali em diante, sua posição como crítico de teatro em O Globo foi fundamental para facilitar sua entrada na TV Globo, pois, àquela altura, seu trabalho já era conhecido e respeitado pelos pares e público. Essa narrativa demonstra como as oportunidades e conexões na carreira de Gilberto Braga desempenharam um papel significativo em sua trajetória profissional, permitindo-lhe progredir e alcançar seus objetivos, tanto no âmbito jornalístico quanto no mundo da televisão. Além disso, evidencia a importância de sua dedicação e habilidade crítica, que lhe renderam reconhecimento e sucesso em sua área de atuação. Já na função de escritor de novelas, destaca-se que o horário das seis permanecia em um estado de indefinição dentro da programação da Rede Globo, ao enfrentar dificuldades e impasses no sentido da continuidade da exibição de folhetins e quem os escreveria. Daniel Filho concebeu a ideia de realizar adaptações de obras clássicas da literatura brasileira, justamente para preencher essa faixa de horário, e tinha ciência de que Gilberto Braga, devido à sua experiência como professor na Aliança Francesa, possuía um conhecimento profundo da literatura clássica. A estreia das telenovelas nesse horário das seis deu-se com a adaptação realizada por Gilberto Braga de Helena, baseada no romance de Machado de Assis, aliás, um dos autores prediletos de Gilberto Braga. Essa produção, de fato, corresponderia aos padrões atuais de uma minissérie, similar a Anos rebeldes, tendo em vista sua breve duração, formada por apenas vinte capítulos. O êxito da dramaturgia nessa faixa de horário teve seu ponto de partida nesse momento, e o desenvolvimento das produções ocorreu de forma harmoniosa. Posteriormente, Gilberto Braga prosseguiu com sua segunda incursão, intitulada Senhora, uma adaptação do romance escrito por José de Alencar, que se estendeu ao longo de sessenta capítulos e representou a primeira novela das seis a ser transmitida em cores na televisão brasileira. Todas essas atrações foram conduzidas por Herval Rossano, quem exercia a supervisão desse período da programação, momento em que Gilberto Braga se estabelecia gradualmente. Entretanto, em 1976, uma contenda instaurada pela censura acarretou em alterações na organização dos autores. A novela escalada, concebida por Lauro César Muniz, alcançou grande sucesso, o que conferiu ao autor ainda maior prestígio junto ao público e à crítica especializada, bem como dentro da estrutura da Rede Globo. Em virtude dessa proeza, José Bonifácio de Oliveira 27 Sobrinho, conhecido como Boni, e Daniel Filho tomaram a decisão de designar Lauro Muniz como o autor oficial do horário das oito para se dedicar a futuras produções televisivas. Por consequência, Janete Clair passou a ser a responsável pelo horário das sete, onde iniciou a elaboração de sua obra Bravo!. Ainda na dança das cadeiras, Muniz alternou-se no horário das oito com Dias Gomes, que se preparava para lançar a novela Roque Santeiro. Inesperadamente, no dia de sua estreia, o enredo foi proibido, o que causou grande agitação entre os envolvidos. Enquanto alguns expressavam sua indignação e protestavam contra a censura, outros empenhavam-se em encontrar soluções para o impasse. Notável era o fato de que apenas Janete Clair possuía a capacidade de escrever uma novela em tempo tão reduzido, e, além disso, utilizando o mesmo elenco previamente contratado para Roque Santeiro. Janete Clair escolheu Gilberto Braga para dar continuidade à novela Bravo!, atuando como mediadora durante o processo de transição de autor, e, ao mesmo tempo, concebeu a novela Pecado Capital para ocupar o horário das oito. Pecado Capital marcou uma reviravolta em sua carreira, trazendo maior modernidade às tramas, em parte devido à brilhante direção de Daniel Filho. Quando Gilberto Braga assumiu a escrita de Bravo! no horário das sete, já havia desenvolvido metade da novela, embora de forma original, sem partir de nenhum material prévio de autoria de Gilberto Braga ou que proviesse de sua concepção criativa. Após a conclusão dessa obra, Gilberto Braga retornou ao horário das seis, cansado de realizar adaptações. Através da obra Bravo!, Gilberto Braga foi submetido a uma avaliação no horário das sete, onde ele produziu aproximadamente metade do folhetim. No entanto, é importante ressaltar que a abordagem adotada foi distinta, uma vez que não se baseou em nenhum material preexistente de sua autoria ou originado de sua concepção criativa. Após a conclusão desse projeto, Gilberto Braga optou por retornar ao horário das seis, manifestando cansaço em relação à elaboração de adaptações. O propósito de Gilberto Braga consistia em almejar o horário das sete para conceber um roteiro genuíno, não desejando apresentar uma proposta por si próprio, mas almejando ser convidado para tal empreendimento. Nesse contexto, Braga concebeu a ideia de optar por uma abordagem distinta, afastando-se do gênero de novela de época e sugerindo a peça teatral contemporânea intitulada Dona Xepa, cuja trama revela-se parcimoniosa, porém respaldada em uma personagem de elevada expressividade. A adoção dessa perspectiva permitiria a Gilberto Braga um vasto leque de possibilidades criativas. 28 O resultado foi um tremendo sucesso já no primeiro mês de exibição. Foi aí que aconteceu o que eu queria, ou, na verdade, algo além do que eu vislumbrava, porque Daniel me ligou e perguntou: ‘Quer escrever a próxima novela das oito?’ Fiquei pasmo. Estava esperando ser convidado para a faixa das sete e fui chamado para as das oito. Não era algo fácil de acontecer. Na Globo, tanto ontem como hoje, há uma resistência a novos autores. Um dos motivos, entre outros, é porque há muito dinheiro em jogo em todas as produções, principalmente nas do horário principal (Braga, 2010, p. 21). Ao se destacar a resistência a novos autores na Globo, Braga confirma as complexidades e desafios presentes no processo de produções televisivas, onde a tomada de decisões sobre quais autores e projetos são selecionados para os horários mais nobres pode ser influenciada por diversos fatores, mas cujo norteador é o financeiro, haja vista o alto investimento, cujo retorno de audiência é esperado por conta da presença de grandes anunciantes. A oferta para escrever a próxima novela das oito não só demonstra o reconhecimento de sua competência artística, mas também a necessidade da própria emissora em renovar sua mão-de-obra qualificada, tendo em vista a sobrecarga de trabalho que recaía sobre Janete Clair. Posteriormente, em um período subsequente, Gilberto Braga foi informado de que Janete Clair e Dias Gomes empreenderam uma visita ao executivo Boni, com a finalidade de endossar a capacidade artística e autoral de Gilberto Braga. Ambos asseguraram a competência criativa de Gilberto Braga, tendo Janete, inclusive, assumido o compromisso de prosseguir com a novelística de sua autoria caso esta não alcançasse êxito. Essas ações, segundo ele, foram conduzidas de maneira deliberada, mas discreta, visando preservar o psicológico de Gilberto Braga, a fim de evitar qualquer eventual insegurança de sua parte. Munido de tal avaliação positiva, Boni acolheu a proposta de Gilberto Braga, o que culminou na produção da telenovela intitulada Dancin' Days, que logrou êxito expressivo. Assim, a obra Dancin' Days conferiu notoriedade nacional a Gilberto Braga, elevando- o de uma posição promissora a um escritor reconhecido no cenário artístico nacional. Todavia, essa ascensão implicava em um risco latente, pois ceder ao acolhimento complacente dos contínuos elogios poderia conduzi-lo à estagnação criativa. Nesse sentido, a única saída viável consistia em evitar a armadilha da autoindulgência e se lançar na audaciosa empreitada de experimentar o inusitado, o que, embora representasse uma atitude arriscada, frequentemente recompensava com resultados gratificantes. Muitos anos depois, esse paradigma mostrou-se pertinente no contexto da telenovela Anos rebeldes. 29 Gilberto Braga menciona que, muitos me perguntam como decido sobre o que vou escrever. Sugerem diversos temas com os quais eu poderia trabalhar, tipos de personagens que eu poderia desenvolver, e têm curiosidade sobre como se dão minhas escolhas. Não sou um escritor do tipo romântico, não fico pensando se tenho vontade de escrever sobre isso ou aquilo e esperando que a inspiração venha. Sou um escritor profissional. Na minha experiência, conta bem mais transpiração do que inspiração. Escrever é uma tarefa e tento fazê-la com dignidade (Braga, 2010, p. 11). A ausência de inspiração em seu processo de escrita, que, a julgar pelo excerto acima, era uma característica de Gilberto Braga, talvez advêm do fato de uma parte significativa de sua escrita partir da influência de sua forte ligação com o cinema, onde a função do texto é ser guia para algo que acontecia posteriormente, ou seja, a filmagem. Na televisão, ele ressalta que essa dinâmica ocorre de maneira semelhante, onde as imagens complementam e dão vida ao que foi previamente escrito no roteiro. Ele reconhece a importância da sonoplastia, do figurino e dos diálogos como componentes essenciais da imagem em movimento. Para Braga, esse aspecto tornava o trabalho na televisão e no cinema uma experiência coletiva, envolvendo profissionais de diversas áreas. Apesar de haver um responsável pelo processo, como o autor ou o diretor, ele enfatizava ser necessário contar com o trabalho de muitos profissionais para que a sinopse inicial se transformasse em uma produção finalizada, que fosse cativante, envolvente e divertida para o espectador. Logo, a produção televisiva não se efetiva individualmente. Braga enfatiza que seu maior aprendizado, livre de regras e formalidades acadêmicas, ocorreu dentro das salas de cinema. Desde os seis anos de idade, ele já se encantava com filmes voltados para o público adulto, como os estrelados por Esther Williams, e também se divertia com as hilariantes chanchadas da Atlântida, cujo roteirista talentoso era Cajado Filho, o mesmo responsável pelas adoráveis comédias de Carlos Manga. Já aos dez ou doze anos, Braga apreciava filmes no estilo de Testemunha de Acusação, baseado na obra de Agatha Christie9 e com o toque saboroso do roteirista Billy Wilder10. O cinema tornou-se, sem dúvida, sua 9 Agatha Christie (1890-1976) foi uma renomada escritora britânica que deu vida a Hercule Poirot, um perspicaz detetive belga que desempenhou um papel central em 33 de suas obras e que se tornou uma das figuras mais icônicas da literatura de mistério. Ela é incontestavelmente aclamada como a principal autora de romances policiais de todos os tempos, com um impressionante total de 93 livros e 17 peças teatrais em seu catálogo literário. Mais informações em: https://shre.ink/nMww. Acesso em: 29 set. 2023. 10 Billy Wilder nasceu em Sucha, em 22 de junho de 1906, e faleceu em Beverly Hills, em 27 de março de 2002. Foi um destacado cineasta norte-americano. Sua trajetória profissional abarcou mais de cinco décadas e incluiu a atuação como roteirista, diretor e produtor em um impressionante catálogo de mais de 60 filmes. Mais informações sobre filmes dirigidos por Billy Wilder, consultar: https://www.melhoresfilmes.com.br/directors/billy-wilder. Acesso em: 29 set. 2023. 30 primeira e mais marcante influência quando tinha entre quatorze para quinze anos, época em que começou a se dedicar à leitura de revistas especializadas na temática, como Les Cahiers du Cinéma11, que minuciosamente descreviam o trabalho de cada diretor. Nessas leituras, Braga aprendia, por exemplo, que Deus Sabe Quanto Amei era um filme dirigido por Vincente Minnelli12, e não protagonizado por Frank Sinatra13, como ele inicialmente pensava. Isso o levou a iniciar suas pesquisas sobre os diretores dos filmes que tanto apreciava. Seu interesse inicial recaiu sobre a obra de Alfred Hitchcock14, cujo talento Braga considerava verdadeiramente maravilhoso. É interessante observar como as idas constantes ao cinema desempenharam um papel tão significativo na formação e inspiração de Gilberto Braga como escritor. Durante a sua adolescência, ele mergulhou no mundo do cinema através da leitura de revistas especializadas, como Les Cahiers du Cinéma, o que lhe proporcionou uma compreensão mais profunda da arte. O exemplo citado, ou seja, o fato de ele ter descoberto, através de leituras, que o filme Deus Sabe Quanto Amei foi dirigido por Vincente Minnelli e não protagonizado por Frank Sinatra, ressalta o impacto dessas pesquisas em seu conhecimento cinematográfico. Essa nova perspectiva despertou seu interesse em explorar ainda mais a história dos diretores e de suas obras. É notável como esse mergulho no mundo cinematográfico, especialmente com foco na obra de Alfred Hitchcock, desencadeou um profundo encantamento em Gilberto Braga, considerando o talento do diretor como verdadeiramente maravilhoso. Essa influência do cinema certamente moldou sua visão criativa como escritor, e é possível imaginar como tais descobertas contribuíram para enriquecer suas histórias e personagens ao longo de sua carreira. Gilberto Braga destaca a importância de bem recepcionar diversas fontes de inspiração e aprendizado. A experiência de Braga com o cinema é um exemplo claro disso, pois sua imersão nesse mundo cinematográfico o incentivou a explorar novos caminhos criativos e a 11 A revista Cahiers du Cinéma, fundada na França em abril de 1951 por André Bazin, Jacques Doniol-Valcroze, Joseph-Marie Lo Duca e Léonide Keigel, desempenhou um papel crucial na redefinição do cinema como uma forma de arte, sendo uma publicação que tinha um plano de intervenção crítica na sociedade para elevar o cinema à categoria das artes. Mais informações em: https://bibliotecadaeca.wordpress.com/2015/09/14/cahiers-du- cinema/. Acesso em: 29 set. 2023. 12 Vincente Minnelli (1903-1986) foi um cineasta americano e considerado um dos criadores do moderno musical. Ganhou um Oscar de Direção pelo filme Gigi (1958). Mais informações em: https://filmow.com/vincente- minnelli-a69933/. Acesso em: 29 set. 2023. 13 Francis Albert Sinatra (1915-1998) - também conhecido como Frank, Frankie, The Voice e Blue Eyes - foi um dos maiores cantores de música popular norte-americana do século vinte. Foi também um importante ator em Hollywood. Mais informações em: https://shre.ink/nMHO. Acesso em: 29 set. 2023. 14 Alfred Hitchcock (1899-1980) foi um cineasta inglês, uma das mais importantes personalidades do cinema de mistério e intriga, sendo chamado de “Mestre do Suspense”. Mais informações em: https://www.ebiografia.com/alfred_hitchcock/. Acesso em: 29 set. 2023. 31 aprimorar suas habilidades como escritor. Esse testemunho demonstra como a busca por conhecimento em diferentes áreas enriqueceu a visão artística do cineasta e o impulsionou a voos mais altos na carreira. Braga relata: Na minha juventude, assistia praticamente a um filme por dia, graças a um acordo feito logo cedo com meus pais. Estudava inglês no Ibeu e negociei com eles para que me passassem para a aula das oito da noite, diferentemente de antes, quando miha turma entrava às nove da manhã. Dessa forma, tive, aos doze anos, autorização para ir ao cinema na sessão das dez, após o curso. Não havia violência em Copacabana e meus pais eram liberais. Foi assim que o cinema passou a ser ainda mais importante na minha vida (Braga, 2010, p. 12). A vida de Braga foi permeada por uma rotina que o permitiu mergulhar profundamente no mundo do cinema, tornando-se uma parte essencial e significativa de sua trajetória. A liberdade e o amor pela sétima arte, desde a sua juventude, provavelmente tiveram um papel crucial em sua jornada como escritor, influenciando positivamente sua criatividade ao longo dos anos. Em 1965, na cidade do Rio de Janeiro, havia uma média de aproximadamente dez novos filmes sendo lançados por semana. Gilberto Braga costumava assistir a todos eles e revisitar os que mais apreciava. Contudo, um filme em particular, A Chinesa, dirigido por Jean-Luc Godard15, foi um marco importante para suas descobertas enquanto espectador. Após assistir ao filme A Chinesa, Gilberto Braga mudou sua abordagem em relação às produções que não lhe agradavam. Por exemplo, havia uma cena peculiar em que um homem realizava divulgações e equações em um quadro-negro, algo que parecia vir diretamente da mente única e peculiar de Godard. Foi nesse momento que Braga tomou uma decisão: se não gostasse do que estava assistindo, não se sentiria obrigado a permanecer na sessão. Ele afirmou a si mesmo: “Vou embora, não fui condenado a ver essa merda” (Braga, 2010, p. 12). Essa experiência marcou um ponto de virada como espectador, permitindo-lhe ser mais seletivo em suas escolhas e não se sentir preso a filmes que não o cativavam. Essa liberdade de escolha provavelmente o levou a apreciar ainda mais as produções cinematográficas que verdadeiramente o encantavam e contribuiu para sua apreciação mais crítica do mundo da arte. Mais tarde, Braga fez uma descoberta reveladora: a maioria dos diretores que ele tanto admirava, inicialmente considerando-os americanos, eram, na verdade, judeus europeus. Em 15 Jean-Luc Godard (1930-2022) foi um cineasta francês, um dos principais nomes da Nouvelle Vague, que revolucionou a forma de fazer e pensar cinema no final da década de 50 e nos anos 60. Mais informações em: https://www.ebiografia.com/jean_luc_godard/. Acesso em: 29 set. 2023. 32 sua inocência juvenil, ele acreditava que o cinema americano era superior porque criticava a cultura de seu próprio país, enquanto o cinema francês exaltava a França, e o italiano celebrava a Itália. No entanto, com o tempo, ele percebeu que estava enganado, aqueles cineastas eram, na verdade, judeus que haviam se refugiado nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Essa revelação abriu seus olhos para a verdadeira origem e riqueza cultural dos filmes que tanto o inspiravam, tendo em vista a pluralidade de visões culturais que envolviam suas produções. Por volta dos anos 70, o humor judaico começou a ganhar bastante destaque, ao que tudo indica influenciado pelo sucesso de Woody Allen16. Braga sentia uma forte identificação com esse tipo de humor, o que o levou a refletir sobre suas raízes familiares. Algumas pessoas, ao observarem seu sobrenome, Tumscitz, e sua aparência, presumiam que ele fosse judeu. Entretanto, a verdade era que o avô de Gilberto Braga não era o marido oficial de sua avó. Seu pai era fruto de uma relação casual, conhecido como filho natural, à época. Após o nascimento de seu pai, a avó casou-se com o Sr. Tumscitz, e foi assim que seu pai recebeu esse sobrenome. Portanto, apesar do sobrenome que carrega, Gilberto Braga não tem ascendência judaica. Eu perguntava para as pessoas o que era este tão falado humor judaico. Elas me explicavam e eu respondia que aquilo para mim era humor, só humor. Nada mais tinha graça. Aos poucos, fui percebendo que minha sensibilidade era muito próxima à dos judeus porque fui criado por eles. Fui educado por Billy Wilder, por Joseph Mankiewicz17, por George Cukor18 e por todo o filme americano feito por judeus europeus. Eles me mostraram do que eu gostava, o que eu achava bom, e me influenciaram bastante em relação ao diálogos, pois sempre traziam falas muito bem dosadas, certeiras e bonitas. No caso dos musicais, ainda havia o ritmo e a sonoridade das palavras, tratadas de forma especial, o que me agradava e me marcou tanto. Até hoje, criando uma cena, me guio mais pelo diálogo e seu rítmo do que pela imagem – é uma espécie de marca pessoal (Braga, 2010, p. 13). Braga relata como sua afinidade com o humor judaico se desenvolveu e como foi influenciado por cineastas judeus e filmes americanos feitos por judeus europeus. Ele questionava o que caracterizava o humor judaico e, ao obter respostas, percebeu que, para ele, 16 Woody Allen (1935 -) é um cineasta, ator, escritor e músico norte-americano, autor de comédias ácidas e inteligentes, que lhe renderam várias premiações do cinema. Mais informações em: https://www.ebiografia.com/woody_allen/. Acesso em: 29 set. 2023. 17 Joseph Leo Mankiewicz (1909-1993) foi um premiado diretor de Hollywood que dirigiu alguns dos mais conhecidos clássicos do cinema. Ele era capaz de dirigir roteiros dos mais diversos gêneros, sempre com a competência que era reconhecida como um de seus traços. Mais informações em: https://cinemaclassico.com/listas/joseph-l-mankiewicz/. Acesso em: 29 set. 2023. 18 George Cukor (1899-1983), um diretor altamente sensível e talentoso, destacou-se em Hollywood durante a era de ouro do cinema, sendo conhecido por sua habilidade em dirigir tanto atores quanto atrizes e por sua aptidão para espetáculos grandiosos. Ele iniciou sua carreira como diretor de teatro na Broadway, na década de 1920, e foi atraído para Hollywood devido ao aumento da demanda por filmes sonoros na época. Mais informações em: https://www.infopedia.pt/apoio/artigos/$george-cukor. Acesso em: 29 set. 2023. 33 isso era simplesmente humor, sem nada além disso. Destaca que sua sensibilidade em relação ao humor era muito próxima à dos judeus devido à sua criação. Os cineastas citados, a exemplo de Billy Wilder, Joseph Mankiewicz e George Cukor, e os filmes que produziram mostraram ao autor o que ele gostava, considerava bom e o influenciaram significativamente, sobretudo em relação aos diálogos de vários personagens. No caso dos musicais, havia também o ritmo e a sonoridade das palavras, tratadas de forma especial, o que deixava uma marca no autor. E a influência dos cineastas judeus e seu estilo de criação moldaram a sensibilidade e a sua preferência artística. A paixão pela leitura exerceu uma forte influência na trajetória de Gilberto Braga, tendo recebido uma excelente formação em língua portuguesa e literatura no Colégio Pedro II. Durante o ginásio, equivalente ao atual Ensino Fundamental, ele teve a oportunidade de explorar obras de renomados autores brasileiros, como Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes e Manuel Bandeira. Entre os escritores que mais o cativaram estava Aluísio Azevedo. No entanto, algumas leituras exerceram uma influência ainda mais profunda em sua formação literária. O Romantismo, de maneira geral, não o cativava, sendo seus interesses direcionados especialmente para dois proeminentes escritores de outra vertente: Machado de Assis e Eça de Queiróz, que se tornaram seus favoritos e tiveram um impacto significativo em sua visão artística e no desenvolvimento de seu estilo de escrita. Em 1962, quando Gilberto Braga estudava no antigo Clássico, que hoje corresponde ao Ensino Médio, teve a sorte de contar com uma professora inspiradora chamada Eneida Bomfim. Ela percebeu que alguns alunos, incluindo Braga, tinham um interesse particular pelo estilo literário do autor Nelson Rodrigues e, por isso, sugeriu a realização de um seminário sobre esse tema, que foi, como era de se esperar, bem-recebido por Braga e seus colegas, que apreciaram muito a leitura das peças do referido autor. Além disso, eles tiveram a oportunidade única de assistir a prestigiadas produções teatrais nacionais, como Boca de Ouro, encenada em 1961 e dirigida por José Renato, com as talentosas atuações de Milton Moraes, Vanda Lacerda e Oswaldo Louzada, sendo Tereza Rachel uma das grandes estrelas do terceiro ato. Outra estreia histórica que marcou esse período foi O Beijo no Asfalto, em 1962, com direção de Fernando Torres e elenco composto por Mário Lago, Ítalo Rossi, Fernanda Montenegro e Sérgio Britto, em uma memorável apresentação no maravilhoso Teatro dos Sete. Em 1963, a montagem Bonitinha, mas Ordinária, dirigida por Martim Gonçalves, também impressionou pela sua qualidade. Contudo, um dos momentos mais impactantes na vida de Gilberto Braga, segundo ele próprio, ocorreu em 1966, quando assistiu à montagem avassaladora de Toda Nudez Será Castigada, dirigida por Ziembinski e com a talentosa Cleide 34 Yácones no elenco. A geração de Gilberto Braga teve a sorte de vivenciar todas essas expressivas produções teatrais, que certamente deixaram uma marca indelével em sua vida e paixão pelas artes cênicas. Segundo relato de Braga: Meus pais gostavam muito de teatro, desde cedo foram eles que me levavam para assistir a peças, a maioria delas de adultos, porque o teatro infantil antes de Maria Clara Machado era fraco. Mais uma sorte: meu pai, como escrivão de polícia, conseguia entradas gratuitas (todo teatro era obrigado a reservar _três ou quatro lugares para a Polícia Federal, por sessão, acho que ainda hoje existe isso). Eu mesmo ia ao centro da cidade de ônibus para pegar os chamados ‘permanentes’, que passavam de mão em mão, sob o controle de uma funcionária, curiosamente alocada no prédio da Polícia Central, onde depois ficaria o Departamento de Ordem Política e Social, o Dops, que aparece em Anos rebeldes (Braga, 2010, p. 14). Se a paixão de seus pais pelo teatro, favorecida pelos ingressos obtidos na condição de escrivão de polícia, permitiram que ele tivesse acesso a esse ambiente desde muito cedo, há de se destacar que Braga desenvolveu o hábito de obter os ingressos permanentes para desfrutar do teatro sem precisar incomodar seu pai. Ele interagia diretamente com a funcionária encarregada da distribuição e conseguia esse passe para usufruir durante todo o fim de semana. De posse das entradas, às sextas-feiras, por exemplo, frequentava o teatro com seus pais e aos sábados era comum que fosse acompanhado de seu avô. De acordo com Braga (2010, p. 14), em uma ocasião, ele compartilhou essa história com Fernanda Montenegro, uma grande amiga e conhecida por seu excelente senso de humor. Em resposta, a atriz comentou: “Poxa, então aqueles lugares que a gente ficava irritado de dar para a polícia ao menos serviram para alguma coisa, serviram para a formação do Gilberto!”. Segundo Gilberto Braga, após as aulas de literatura no colégio, ele passou a ler menos. Embora sempre tivesse um livro ou outro na cabeceira, ser um leitor ávido era difícil para alguém que frequentava muito o cinema. Além disso, suas aulas de francês na Aliança Francesa o apresentaram aos escritores daquele país, a exemplo de Molière19 e Balzac20, que se tornaram seus favoritos. Ele menciona que só mais tarde, quando já estava mais velho, que enveredou 19 Molière (1622-1673) foi um dramaturgo francês e um dos maiores destaques do teatro daquele país no século XVII. Mais informações em: https://www.ebiografia.com/moliere/. Acesso em: 29 set. 2023. 20 Balzac (1799-1850) foi um escritor francês, amplamente conhecido por ser retratista da burguesia do século XIX. Entre suas obras destacam-se A Comédia Humana e A Mulher de Trinta Anos, do qual se originou o termo balzaquiana. Mais informações em: https://shre.ink/np76. Acesso em: 29 set. 2023. 35 pelas obras de Proust21 e adorou, devido à psicologia do comportamento tão presentes no estilo do autor, o que se tornou tema de maior interesse em sua vida. Quando Gilberto Braga ingressou na Rede Globo, a informação de que a emissora remunerava cada apresentação do programa Caso Especial lhe chegou através de fonte desconhecida. Em determinado momento, Braga frequentava a piscina do Clube Campestre, localizado no Alto Leblon, na companhia de uma amiga e de seus filhos pequenos. Na mesma área residia Daniel Filho, que, à época, era casado com Dorinha Duval e também frequentava o mesmo ambiente de lazer. Durante seus encontros, Gilberto Braga e Daniel Filho costumavam debater sobre cinema e teatro, e em uma dessas ocasiões, Braga manifestou interesse em participar da elaboração do programa Caso Especial. Diante dessa inclinação, Daniel Filho sugeriu a Gilberto Braga que buscasse contatar Domingos de Oliveira, um profissional ligado à TV Globo, recomendação atendida prontamente por Braga. Na trajetória de Gilberto Braga ocorreu um encontro casual com Domingos, figura que ele conhecia apenas superficialmente. Nessa ocasião, Domingos expressou seu interesse em privilegiar obras clássicas para o programa Caso Especial22. Assim, apresentou a Gilberto Braga uma extensa lista de romances e peças teatrais que julgava pertinentes para o projeto. Esse encontro ocorreu no ano de 1972, época em que Gilberto Braga já mantinha um relacionamento amoroso com Edgar Moura Brasil, com quem posteriormente se casou. Foi Edgar quem realizou a seleção da obra A dama das Camélias. Domingos concordou com a escolha, porém ele desejava uma adaptação que se mostrasse modernizada e contemporânea da referida obra. Diante disso, Gilberto Braga assumiu a responsabilidade pela adaptação, seguindo as diretrizes da emissora. Entretanto, como Braga não possuía conhecimentos em televisão e também não era espectador, o texto inicial precisou passar por revisões. A sorte foi uma aliada nesse percurso, uma vez que Domingos estava prestes a sair de férias, e quem assumiria a responsabilidade pelo programa Caso Especial, durante sua ausência, seria Oduvaldo Vianna Filho23. 21 Marcel Proust (1871-1922) foi um romancista, ensaísta e crítico literário francês. Autor da obra-prima Em Busca do Tempo Perdido composta de sete volumes, entre eles: Sodoma e Gomorra e A Prisioneira. Mais informações em: https://www.ebiografia.com/marcel_proust/. Acesso em: 29 set. 2023. 22 Série de dramaturgia Caso Especial. Os Casos Especiais eram programas com duração média de uma hora, que apresentavam histórias originais ou adaptações de obras de autores brasileiros e estrangeiros. Esses programas exigiam uma produção mais apurada. O programa foi exibido entre 10 de setembro de 1971 e 5 de dezembro de 1995. Mais informações, consultar: https://memoriaglobo.globo.com. Acesso em: 29 set. 2023. 23 Oduvaldo Vianna Filho, também conhecido como Vianninha, foi um ator e dramaturgo brasileiro ativo em movimentos culturais, como o Teatro Brasileiro dos Estudantes, o Centro Popular de Cultura da UNE (CPC), além de ter participado de grupos teatrais, caso do Teatro de Arena e o Opinião. Ele nasceu no Rio de Janeiro em 1936 e faleceu em 1974. Mais informações em: memoriasdaditadura.org.br. Acesso em: 29 set. 2023. https://memoriasdaditadura.org.br/personalidades/oduvaldo-vianna-filho/ 36 Oduvaldo Vianna Filho compartilhava uma visão semelhante à de Gilberto Braga, quem o admirava profundamente. Após o falecimento de Filho, suas obras foram amplamente elogiadas, apesar de, à época, não serem tão bem recebidas pela crítica carioca. Entretanto, Gilberto Braga sempre expressou admiráveis apreciações em relação às peças do autor, em virtude de bem acolher a personalidade agradável de Oduvaldo Vianna Filho, o que culminou em uma amizade entre ambos. Enquanto crítico de Teatro, Gilberto Braga mantinha uma atitude reticente em relação às tendências da moda e não se interessava por modismos ou vestimentas. Naquele período, havia uma ascensão do teatro direcionado pelo diretor, como exemplificado pelo trabalho de José Celso Martinez Corrêa. Contudo, Gilberto Braga inclinava-se mais para o teatro que se concentrava na importância do texto como ponto central das produções. Oduvaldo Vianna Filho efetuou a leitura do roteiro da peça A Dama das Camélias e identificou elementos considerados marcantes, especialmente a construção notável da personagem feminina. Nesse contexto, ele ofereceu sua colaboração a Gilberto Braga para realizar as adaptações no texto, fornecendo valiosas orientações. Vianna Filho, proveniente de uma tradição de trabalho em grupo, associada ao Centro Popular de Cultura e ao Teatro de Arena, demonstrou uma disposição generosa em compartilhar seus conhecimentos e experiência com Braga. A intuição aguçada de Gilberto Braga revelou-se valiosa nessa parceria, resultando em sua segunda série de Caso Especial, prontamente aceita e gravada, sem a necessidade de mais adaptações, incluindo a produção de A Dama das Camélias. Durante o ano de 1973 foram realizados um total de cinco programas da referida série. Braga relata: Quando entreguei o quinto Caso especial, Daniel filho me perguntou, antes mesmo de ler: ‘Quer escrever a próxima novela das sete?’ Eu respondi: ‘Tá maluco? Que novela? Eu nunca vi novela, não sei nada de novela.’ Ele respondeu que, mesmo assim, achava que eu tinha jeito e estava precisando de novos colaboradores (Braga, 2010, p. 19). O diálogo bem captura a surpresa de Gilberto Braga diante do convite de Daniel Filho e a consequente autodepreciação do primeiro ao afirmar a falta de traquejo na produção do gênero televisivo. No entanto, por outro lado, Daniel Filho demonstrou confiança no potencial de Braga, afirmando que acreditava que ele tinha talento e habilidade para se adaptar ao formato da escritura de novelas, mesmo sem experiência anterior nessa área. Segundo a abordagem de Michael Baxandall (2006), é possível afirmar que a responsabilidade de Gilberto Braga de criar um roteiro para uma telenovela consiste em 37 estabelecer uma conexão entre o texto dramatúrgico exibido no horário nobre televisivo e o contexto histórico, social e cultural, seguindo uma escrita que fosse ao mesmo tempo interativa e atualizada. A expressão mencionada por Baxandall adapta-se, provavelmente, ao propósito de Braga, ou seja, o de criar uma telenovela com conteúdo significativo e intenção artística, buscando atrair e envolver a audiência de forma consciente e deliberada. A ideia é que o roteiro não fosse meramente superficial ou desprovido de significado, mas sim construído com uma intenção clara de comunicação e reflexão sobre questões relevantes para o público contemporâneo. Na década inicial dos anos 70, a emissora Globo deparou-se com um dilema concernente à escassez de um autor que pudesse intercalar com Janete Clair na produção das novelas transmitidas no horário das oito horas da noite. Observou-se uma notável dicotomia no desempenho das produções: as novelas de Janete obtinham sucesso notável, ao passo que as obras de outros autores não alcançavam o mesmo êxito. Sob essa conjuntura, destaca-se Lauro César Muniz na faixa de horário das sete, com sua novela intitulada Carinhoso, protagonizada por Regina Duarte, Cláudio Marzo e Marcos Paulo. Diante desse cenário, Daniel Filho propôs que Lauro César Muniz assumisse a responsabilidade pela produção no horário das oito, o que, por consequência, resultaria em uma vaga disponível para o horário das sete. A sugestão de Daniel Filho envolveu uma colaboração entre Lauro César Muniz e Gilberto Braga para a elaboração de uma nova novela. Especificamente, Lauro César Muniz foi incumbido de escrever trinta capítulos iniciais da trama, compartilhando sua expertise com Gilberto Braga, que, posteriormente, assumiria a empreitada de maneira independente. Consequentemente, Gilberto Braga aceitou de pronto a proposta de envolvimento nesse processo de escritura. Tal estratégia foi adotada como um meio de facilitar a transição harmoniosa entre os horários das sete e das oito, visando a manutenção do sucesso que as novelas de Janete Clair24 vinham alcançando, bem como proporcionando a ascensão de novos talentos, como Gilberto Braga, na faixa de horário das sete. Nessa perspectiva, a decisão e a colaboração entre os autores permitiram a criação de narrativas televisivas inéditas, além de consolidar a relevância de Gilberto Braga como uma 24 Janete Clair (1925-1983) foi uma renomada escritora brasileira de novelas e uma das mais importantes autoras da teledramaturgia brasileira. Ela nasceu em Conquista, Minas Gerais, em 25 de abril de 1925. Ela se destacou por sua contribuição para a televisão brasileira, sendo responsável por criar algumas das novelas mais populares e memoráveis da época. Mais informações em: https://memoriaglobo.globo.com/perfil/janete-clair/noticia/janete- clair.ghtml. Acesso em: 29 set. 2023. 38 figura proeminente na teledramaturgia brasileira. É pertinente destacar que essa iniciativa empreendida pela emissora Globo influenciou os paradigmas de produção das novelas e catalisou a trajetória de diversos escritores na indústria do entretenimento televisivo. A trajetória de Gilberto Braga, na elaboração da novela, transcorreu favoravelmente durante sua colaboração com Lauro César Muniz. No entanto, após assumir a empreitada individualmente, Braga deparou-se com dificuldades ao enfrentar o desafio de redigir seis capítulos semanais. Contudo, um fator determinante que contribuiu para auxiliá-lo foi a presença sempre atenta de Janete Clair, que acompanhava a trama e apreciava os diálogos apresentados. A partir dessa perspectiva, Janete Clair estabeleceu conversa com Daniel Filho, com a intenção de prestar auxílio a Gilberto Braga. O suporte fornecido por ela a Braga foi essencialmente caracterizado por uma forma de orientação textual, que atualmente seria denominada como supervisão de texto. É relevante notar que, à época, essa prática não possuía um caráter oficial e reconhecido. Dessa forma, estabeleceu-se uma dinâmica na qual Gilberto Braga e Janete Clair se reuniam semanalmente para desenvolver as histórias que seriam apresentadas ao público na semana subsequente. Essa colaboração entre Gilberto Braga e Janete Clair se revelou como um elemento catalisador para a produção da novela, proporcionando suporte e aprimoramento às narrativas elaboradas por Gilberto Braga. O engajamento de Janete Clair nessa supervisão textual evidencia a interação e o compartilhamento de conhecimentos entre escritores renomados, impulsionando a qualidade e a fluidez da trama televisiva em questão. Essa prática de supervisão, mesmo que informal à época, demonstra a importância do diálogo colaborativo e da mentoria na produção de obras televisivas bem-sucedidas. A colaboração voluntária de Janete Clair e sua predisposição em auxiliar Gilberto Braga proporcionaram a ele maior sensação de segurança em sua atuação. Tal segurança advém, em parte, da habilidosa orientação provida por Janete Clair durante o processo de supervisão. Como resultado dessa assistência, Gilberto Braga foi capaz de concluir o projeto Corrida do Ouro (1974-1975). Esse apoio propiciou a Gilberto Braga uma posição de continuidade na Rede Globo de televisão, embora ainda não estivesse plenamente preparado para assumir a escrita de novelas de forma independente. Entretanto, a sua permanência na emissora não se justificava pela incapacidade, mas sim pelo reconhecimento de seu potencial e pela relevância de suas contribuições, ou seja, ainda ocupava um não lugar dentro da emissora. Nesse contexto, ele se estabeleceu como um profissional valioso para a empresa, e sua contínua atuação foi respaldada não apenas pela experiência compartilhada por Janete Clair, mas também pela perspectiva de crescimento e aprimoramento ao longo de sua trajetória profissional. 39 Segundo Nogueira (2002), durante a primeira fase de sua carreira, que envolvia adaptações literárias, Gilberto Braga percorreu uma tragetória de aprendizado dos mecanismos da indústria. Além disso, foi a partir de Dancin’ Days (1978-1979) que, apesar das exigências da produção em série, começou a desenvolver seu estilo próprio. O autor ainda afirma que: […] as produções de Gilberto Braga utilizam três poderosas forças de criação: ‘os desejos do público, ávido por personagens estereotipados com que possa se identificar e nos quais possa se projetar; os desejos do produtor (a emissora), racional na busca da audiência e rentabilidade; e o ato de criação’ (Nogueira, 2002, p. 112-113). Sobre o estilo de Gilberto Braga, Nogueira (2002) ressalta que a escola realista/naturalista da literatura do século passado serve como base para o desenvolvimento do trabalho do autor: Braga, em linhas gerais, tem o seu suporte na escola realista/naturalista da literatura do século passado. Compreendida entre 1865 e 1890, essa escola reflete o momento histórico de afirmação de teses materialistas: a celebração da tecnologia e do progresso científico. A subjetividade do período anterior, o romantismo, dá lugar à objetividade. Em vez do idealismo, a busca da verdade. Nesse sentido, as artes, principalmente a literatura, manifestam-se no período, expressando ‘aquilo que estamos vendo’, ‘do jeito que as coisas são’, isto é, o objeto artístico deve mostrar a realidade sem filtros e da forma mais natural possível (Nogueira, 2002, p. 113). A influência do pensamento realista/naturalista em Gilberto Braga resulta em uma abordagem mais objetiva da trama, na tentativa de mostrar a sociedade e os conflitos humanos de maneira autêntica e sem artifícios, ainda que para isso se valha das estratégias de ofuscamento da realidade, como bem destacou na obra Anos rebeldes: os bastidores da criação de uma minissérie. Essa influência pode ser observada na construção de personagens, histórias e diálogos em suas telenovelas. A primeira assinatura de Gilberto Braga como autor na Globo foi, como já destacado, em um episódio de um programa chamado Caso Especial, no qual ele adaptou a história de A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas, tendo Glória Menezes e Cláudio Cavalcanti como protagonistas. Em 1973, Braga produziu As Praias Desertas e Feliz na Ilusão. A partir daí, o autor foi adquirindo experiência em suas criações, com boa desenvoltura e destaque na escrita dos episódios. Em 1974, já bem relacionado com Daniel Filho, o chefe de direção das novelas da Globo, produziu a telenovela Corrida de Ouro, em parceria com Lauro César Muniz e Janete Clair. No entanto, Braga decidiu se afastar da produção, a despeito de estar na metade da trama, 40 pois não estava habituado ao ritmo da televisão à época. Chegou a desistir de escrever o folhetim, mas, por causa da intervenção e da insistência de Daniel Filho, persistiu na produção da novela, com a condição de que Janete Clair estivesse por perto prestando o devido auxílio. Gilberto Braga, além de ser responsável pela produção de minisséries memoráveis, como Anos dourados (1986), O Primo Basílio (1988) e Anos rebeldes (1992), também se destacou por suas adaptações literárias e pela inspiração que encontrou em diversas obras para a criação de novelas marcantes, a exemplo de Lua Cheia de Amor (1990-1991), Salsa e Merengue (1996-1997) e Lado a Lado (2012-2013). Braga desempenhou um papel fundamental na elaboração dessas histórias, contribuindo com sinopses, revisões de roteiros, supervisão de leituras e na criação de personagens. Ele foi um dos pioneiros na produção de novelas de época na Rede Globo, em um período em que esse formato era inovador na televisão brasileira. Em 1975, Braga substituiu Janete Clair na autoria da novela Bravo (1975), quando a escritora precisou preparar Pecado Capital (1975) para assumir o lugar de Roque Santeiro (1975), de Dias Gomes, que foi censurada pelo regime militar. Nesse período, Braga também investiu em adaptações literárias para o horário das seis, com Senhora (1975) e Helena (1975), ambas telenovelas de curta duração e inspiradas nas obras de, respectivamente, José de Alencar e Machado de Assis. Isso consolidou sua carreira e iniciou uma nova faixa de telenovelas e minisséries na TV Globo. Sobre a relação de Gilberto Braga e Janete Clair, Nogueira (2002, p. 114-115) afirma: Gilberto Braga vai retomar a linha de sua predecessora, Janete Clair, e, ao mesmo tempo, procurar brechas no sistema industrial da televisão, no sentido de criar características próprias para o seu trabalho. A trajetória de Gilberto Braga é ligada à de Janete Clair, porque prossegue com um tipo de telenovela que tem a grande cidade e suas contradições como tema central, além de criar personagens marcantes (facilitando a projeção/identificação em seu grau máximo) e fazer reviravoltas nas tramas, cativando e aprisionando o público do horário nobre. O autor é também comparado com a novelista principalmente por um estilo que opõe pobres e ricos, refletindo o fenômeno da rápida urbanização do Brasil, após os anos 60. Braga seguiu com sucessos, como Escrava Isaura (1976). Assim, ele foi promovido para o horário nobre, com as novelas das 20h, estreando com Dancin' Days em 1978. A novela teve sua trilha sonora composta por diversas canções de discotecas, sendo que as internacionais venderam mais de um milhão e meio de cópias, e as nacionais, por sua vez, um milhão de cópias. Dancin’ Days foi o marco inicial do estilo de Gilberto Braga25, conhecido por abordar 25 A respeito, ver: https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/novelas/dancin- days/noticia/curiosidades.ghtml. Acesso em: 30 set. 2023. 41 os valores da classe média e das elites urbanas. Na construção da história, o autor utilizou o romantismo e o sarcasmo, elementos característicos de seu universo ficcional. Ao retratarem o cotidiano social com verossimilhança, as telenovelas da Rede Globo mostraram o universo das classes médias urbanas das metrópoles, sintonizadas com os valores da cultura moderna consumista, que passaram a ser considerados como novos hábitos e mentalidades que deveriam ser inseridos no jeito brasileiro de ser, como nota Esther Hamburger (2005, p. 149): Nos anos 1970, a conjuntura da época tornou-se elemento de referência preponderante de dramas, principalmente no horário das 20 horas, que apresentavam tensões de um país que se via como, do futuro ‘e que parecia crer que finalmente chegara a sua vez. [...] Sem deixar de lado sua vocação melodramática, as novelas exageraram sua veia folhetinesca e se tornaram vitrines privilegiadas do que significava ser ‘moderno’, estar sintonizado com a moda e comportamentos contemporâneos. Ainda nessa perspectiva, Hamburguer afirma que o modismo e as sintonias da modernidade tornaram-se um fenômeno cultural entre os telespectadores, a exemplo do: […] uso de meias listradas como as da personagem de Dancin’ Days significava ‘estar por dentro’, ser in; expressava o desejo de participar do ‘Brasil do Futuro’, um país urbano, industrial, em que infindáveis produtos eletrônicos estavam disponíveis nas prateleiras de lojas para quem pudesse comprar a prestação. Faz diferença que a novela incorpore e promova o surgimento, no Rio de Janeiro da época, da moda ‘disco’, que venda boate, música e roupa em vez de apresentar inatingíveis dunas de Agadir, povoadas de personagens vestidas em figurinos que não se aplicam, cenários em geral e estúdio que não foram feitos para sugerir o turismo ou a liberalização da sexualidade nas relações entre homens, mulheres e homossexuais, como comportamentos adequados a uma ‘modernidade’ plástica e associada ao consumo. [...] Ao longo do tempo essas histórias captam e expressam a liberação dos costumes, a dissociação de sexo e casamento, a possibilidade do estabelecimento sucessivo de várias relações amorosas, a legitimidade do prazer feminino, mudanças comportamentais vigentes inicialmente em segmentos das classes médias urbanas e que foram difundindo para toda a sociedade. Estudos de recepção mostram que habitantes de regiões não compreendidas nessas áreas distinguem o universo ficcional da televisão de seu próprio cotidiano. No entanto, a migração para a cidade grande, além da busca de trabalho, vem associada ao deslocamento em direção ao universo mostrado na tela (Hamburger, 2005, p. 149-150). Hamburguer (2005) ainda explica que esta conexão da teledramaturgia com a modernidade ocorreu principalmente por meio da referência a elementos externos reconhecidos como parte do contexto atual, e, portanto, passíveis de serem compreendidos e apreciados pelo público televisivo. A partir desse ponto, o consumo seria um veículo de integração social e, desse modo, um meio de constituir uma identidade nacional moderna. As novelas, nesse 42 sentido, sempre foram um meio de olhar para o Brasil e falar dele, com um amontoado de clichês que representam a sociedade e que criam uma maior receptividade ao telespectador. Segundo Bauman (2008, p. 41). Pode – se dizer que o ‘consumismo’ é um tipo de arranjo social resultante da reciclagem de vontades, desejos e anseios humanos rotineiros, permanentes e, por assim dizer ‘neutros quanto ao regime, tranformando-os na principal força propulsora e operativa da sociedade, uma força que coordena a reprodução sistêmica, a integração e estratificação sociais, além da formação de indivíduos humanos, desempenhando ao mesmo tempo um papel importante nos processos de autoidentificação individual e de grupo, assim como na seleção e execução de políticas de vida individuais. O consumismo não é apenas uma atividade individual, mas um fenômeno social profundamente arraigado que afeta muitos aspectos da vida moderna. Ela levanta questões sobre como os desejos humanos são moldados e reciclados pela cultura de consumo e como isso influencia a sociedade em geral, assim como as influências das novelas e minisséries brasileiras. Por meio da trama das telenovelas, por exemplo, é possível evidenciar produtos e marcas específicas, gerando anseios e aspirações entre o público. Essa dinâmica guarda consonância com a concepção de Bauman de que o consumismo implica na constante reutilização dos anseios humanos. As telenovelas frequentemente ilustram discrepâncias sociais e econômicas entre seus personagens, sublinhando a desigualdade de maneira compatível com as preocupações de Bauman acerca das disparidades econômicas decorrentes do consumismo. Além disso, quando essas produções televisivas brasileiras são exportadas para outras nações, contribuem para a disseminação global de marcas e produtos, alinhando-se com o fenômeno da globalização do consumo, tão bem abordado pelo sociólogo polônes. Esta globalização, por sua vez, amplifica as disparidades econômicas geradas pelo consumismo, uma vez que, conforme a visão de Bauman, o consumo tende a acentuar a desigualdade social. Vale destacar que o consumo envolve a reciclagem contínua dos anseios humanos. Adicionalmente, as telenovelas retratam com frequência personagens que adotam estilos de vida aspiracionais, exibindo residências sofisticadas, vestimentas de grife e veículos de luxo. Isso reforça a concepção de que o consumo de produtos e serviços de alta qualidade está correlacionado ao êxito e à felicidade. Bauman (2008, p. 107) ainda menciona que, em primeiro lugar, existe a preocupação de “estar e permanecer à frente” (à frente da tendência de estilo – ou seja, no grupo de referência, dos “pares”, dos “outros que contam”, e cuja aprovação ou rejeição traça a linha entre o sucesso e o fracasso). 43 A cultura da televisão e do entretenimento desempenham um papel importante na amplificação e na perpetuação das reflexões de Bauman sobre a busca constante por estar à frente das tendências e receber aprovação social. Esses programas podem influenciar atitudes, comportamentos e aspirações dos espectadores, moldando suas percepções sobre o que é considerado sucesso e fracasso na sociedade contemporânea. Surgiram mais novelas de sucesso em horário nobre, em 1980, como Água Viva, escrita por Gilberto Braga a partir do capítulo 57, em parceria com Manoel Carlos. Em 1981, prosseguiu com a telenovela Brilhante. Em 1983, Braga escreveu Louco por Amor e em 1984, Corpo a Corpo. Em 1988, estreou outro de seus sucessos, Vale Tudo, com a criação do mistério e do suspense de Quem matou Odete Roitman?, personagem de destaque da atriz Beatriz Segall. No ano de 1986, estreou a minissérie Anos Dourados, que retratava a cidade do Rio de Janeiro da década de 1950 e contou com 20 episódios. Um dos ápices da narrativa é a morte de Olivério (interpretado por Arthur Costa Filho), que acontece no episódio 16. O autor do crime foi revelado, como é de se imaginar, apenas no último capítulo da minissérie e se tratava do personagem Carneiro (interpretado por Cláudio Corrêa e Castro). Uma característica das obras de Gilberto Braga é o suspense, o autor começou a utilizar, em suas telenovelas e minisséries, o bordão “quem matou?”, o recurso foi utilizado nas seguintes telenovelas: Água Viva (Rede Globo, 1980), Vale Tudo (Rede Globo, 1988), Força de um Desejo (Rede Globo, 1999), Celebridade (Rede Globo, 2003), Paraíso Tropical (Rede Globo, 2008) e Insensato Coração (Rede Globo, 2010), e nas minisséries Anos Dourados (Rede Globo, 1984) e Labirinto (Rede Globo, 1998). Essa abordagem do gênero policial deu origem a outras produções televisivas impactantes, nas quais a estratégia consiste em instilar temores acerca do destino dos protagonistas, em vez de apenas provocar a curiosidade que acompanha uma pergunta típica. Conforme Hitchcock defendeu, aos moldes do que mencionou Truffaut (2004), essa abordagem enriquece a trama. Quando a audiência se preocupa não apenas com a resposta à pergunta central, mas também com o destino dos personagens, todo o interesse se expande para abranger a resolução desses elementos, o que evita reduzir o processo a algo meramente trivial. A estratégia do enigma Quem matou? foi empregada em duas de suas minisséries, impulsionada pela discrepância no processo de criação e reconhecimento dessas obras. Isso se manifesta a partir de várias diferenças, começando pelo próprio formato: a minissérie geralmente compreende menos episódios e, frequentemente, já está escrita em sua completude antes do início da produção. Em contrapartida, nas telenovelas, o desenvolvimento do enredo 44 ocorre à medida que os episódios são transmitidos, o que pode alterar a trama em função de sua repercussão social. Nas minisséries há também a liberdade de explorar textos mais experimentais, direcionados para um tema específico, e uma construção de imagens mais complexa. Isso contrasta com a rotina diária das telenovelas, que não permite tanto espaço para tais abordagens elaboradas. Na minissérie policial Labirinto, de 1998, o público ficou mobilizado com a pergunta central, a saber: quem matou Otacílio Martins Fraga? (interpretado por Paulo José). Em Força de um Desejo (1999), no capítulo 155, introduziu-se a pergunta quem matou o Barão Henrique Sobral? (Reginaldo Faria). O mistério durou até o capítulo 226, não surpreendentemente o último da trama. Depois de quatro anos, a novela Celebridade (2003) perguntava quem matou Lineu Vasconcelos? (Hugo Carvana), cuja autora do crime foi a vilã e assassina Laura (Cláudia Abreu). Em 2007, o suspense e o mistério de Paraíso Tropical tratavam de quem matou Taís Grimaldi? (Alessandra Negrini). Em 2011, o bordão era quem matou Norma Pimentel? (Glória Pires); e em 2015 estreou a telenovela Babilônia, que trouxe ao público o bordão quem matou Murilo? (Bruno Gagliasso). Todas são evidências de que a fórmula obtinha o devido êxito de atrair o público. Santos e Ferreira (2016, p. 77-78), inspirados em Roland Barthes (1970), afirmam que: […] a melhor maneira de retardar a resposta do acontecimento de uma narrativa é ampliar o suspense, seja pela mentira ou pelo fingimento. Por essa via, bastante explorada nas novelas brasileiras, as virtualidades se multiplicam a partir de um único segredo, já que os movimentos de dissimulação e engano conduzem personagens e público receptor a interpretações puramente especulativas, conforme ocorre nas tramas do novelista Gilberto Braga, ao assassinar um dos vilões da história, próximo ao seu desfecho, deixando especulações ao telespectador sobre ‘quem matou?’. Com o bordão “quem matou?”, característico das novelas de Braga, o autor teve como objetivo levar os telespectadores a acompanhar o desfecho da trama a partir de tal indagação. Segundo Almeida (2020), as telenovelas de Braga giram sempre em torno de perguntas ligadas ao país, discutindo questões sociais, econômicas e políticas. A utilização do enigma policial em suas tramas, no entanto, não parece ser apenas uma estratégia narrativa usada para gerar expectativa e aumentar a audiência. A pergunta parece ter se tornado uma de suas marcas autorais e uma forma de dialogar com o público sobre os problemas atuais, ancorada em duas situações recorrentes: a vítima é comumente ligada a alguma instância de poder e, por vezes, 45 ao vilão da história; e o protagonista da trama torna-se sempre um dos principais suspeitos, desestruturando sua vida e sendo preso ou ameaçado de condenação. Sobre o processo criativo de Gilberto Braga, D'Abreu e Braga (2022) mencionam que, a partir de 2007, consistia na reunião de seis a oito roteiristas, três vezes por semana, para o desenvolvimento do trabalho, que elaboravam o perfil dos personagens das tramas ao longo de meses, até chegar a uma sinopse. A sinopse de uma telenovela estabelece o arco dramático de protagonista(s) e antagonista(s) e as tramas que daí se ramificam ou em torno da qual orbitam. Seu caráter descritivo define o percurso da ação de personagens com características bem definidas, que interagem em um determinado tempo (que pode ter múltiplas temporalidades) vivido em lugares específicos (que podem conjugar múltiplas referencialidades). A técnica que envolve essas descrições se articula, necessariamente, a uma complexa unidade dramática capaz de se abrir para a superposição e a continuidade de movimentos de exposição, desestabilização, complicação, clímax e normalização (Comparato, 1983, p. 106). Essa explicação convida a refletir sobre a importância da sinopse na estruturação narrativa de uma telenovela, fornecendo uma visão geral do enredo, personagens e desenvolvimento da trama. A citação destaca a necessidade de uma técnica narrativa habilidosa para criar uma história coerente e envolvente, com elementos dramáticos bem desenvolvidos, capazes de gerar suspense, tensão e interesse por parte do público. Quando uma sinopse é aprovada, os autores iniciam o processo de escrita de um capítulo. Segundo Baxandall (2006), mesmo uma obra sendo um trabalho confeccionado por várias mãos, há uma única assinatura, no caso, de Gilberto Braga, o que demonstra que se trata de produto do entretenimento especificamente autoral; sendo assim, todos os seus colaboradores, com sua visão particular, ajudam Braga a criar e escrever de acordo com o perfil e o universo de cada um, mas a assinatura é apenas do autor principal. Sob a perspectiva de Baxandall, pode-se dizer que o encargo da produção de um texto de telenovela de Gilberto Braga equivale a relacionar o texto teledramatúrgico do horário nobre televisivo (entre 18h e 21h) e o contexto histórico, social e cultural de uma escrita dialógica e contemporânea. Por exemplo, Gilberto Braga encarava um estilo crítico da sociedade e não fugia de temas polêmicos. Era reconhecido como um autor que enfrentava as críticas, principalmente quando falava sobre a sociedade carioca, numa época em que o estilo de vida desta sociedade não era bem-visto. Para Goes (2021), Gilberto Braga retratou socialites longe de clichês. O autor, nascido numa família de classe média, teve uma educação requintada e não gostava de ser apontado 46 como um especialista na alta sociedade, mas criou vários grã-finos incríveis. O fato é que seus personagens da alta sociedade também se mostravam humanos, longe de qualquer esterótipo, mesmo, ou principalmente, quando eram vilões, como Odete Roitman, de Vale Tudo (1988- 1989), ou Felipe Barreto de O Dono do Mundo (1991-1992). Era um leitor voraz e um cinéfilo renitente. Falava francês tão bem que foi professor no curso Aliança Francesa. Também tentou a carreira diplomática antes de se tornar crítico de teatro e cinema. Ainda nos anos 1970, foi morar com o decorador Edgar Moura Brasil, este, sim, vindo de um clã aristocrático. Os dois formaram um casal gay bastante visível numa época em que o casamento entre pessoas do mesmo sexo nem sequer estava em discussão. Chegaram a aparecer na ‘Sociedade Brasileira’, um livrinho publicado anualmente que trazia nomes e endereços de figurões da sociedade carioca. Excelente observador, Gilberto Braga se inspirou nesses tipos para criar alguns de seus personagens. Beki Klabin, a primeira socialite a desfilar como destaque numa escola de samba, serviu de base para Stella Fraga Simpson, a excêntrica milionária vivida por Tônia Carrero em ‘Água Viva’, de 1980. Houve tantos rumores de que o inescrupuloso Felipe Barreto de ‘O Dono do Mundo’, de 1991, era espelhado no cirurgião plástico Ivo Pitanguy, que Braga precisou incluir no texto um diálogo em que dois médicos comentavam o desprezo que Pitanguy ‘sentia’ por seu colega ficcional (Goes, 2021). De acordo com o site Memória Globo (2021), Gilberto Braga teve sua formação exclusiva para a televisão e nunca escreveu para o teatro. Suas obras focalizavam ambição social; cotidiano da classe média e da classe média alta do Rio de Janeiro; vingança; corrupção; alta sociedade carioca contemporânea; turismo sexual; rivalidades entre famílias e entre irmãos; prostituição; alcoolismo; racismo; diversidade sexual, como a homossexualidade; e desigualdades sociais; entre outros. O autor nunca teve medo de escrever e criar suas obras, que faziam muito sucesso por retratarem o dia a dia da sociedade brasileira, abordando temas polêmicos, os quais chegaram a fazer algumas de suas criações sofrerem censura antes da estreia. Uma das notáveis produções de Braga é a telenovela A Escrava Isaura (1976), que foi a responsável por levar a teledramaturgia brasileira para o mundo. A novela ultrapassou todas as fronteiras sociais e políticas, e a trama foi exibida em mais de cem países, de Cuba à China, sendo reprisada até os dias de hoje. A obra A Escrava Isaura, romance de Bernardo Guimarães, apresenta as características típicas do Romantismo brasileiro, assim como as produções de Gilberto Braga. Essas características dizem respeito à existência de um amor que necessitava de vencer grandes obstáculos para ser concretizado, à idealização da mulher na trama e aos traços abolicionistas. Além disso, A Escrava Isaura nos traz a historiografia de uma época que retrata paisagens, personagens típicos do interior do Brasil, valorização de costumes regionais e a vida do homem 47 no campo, que possuía valores morais mais conservadores do que a população dos centros urbanos, retomando um contexto histórico importante que repercutiu numa reflexão e num debate acerca da escravidão no Brasil. Em resumo, Gilberto Braga é tido, por diferentes autores (Nogueira, 2002; Hamburger, 2005; Abreu, 2006; Bentes, 2021) como alguém com habilidades notáveis para criar personagens com os quais a sociedade brasileira se conectou, tudo isso enquanto lidava com temas polêmicos, de alta relevância social. 1.2 Temas de relevância social nas minisséries e telenovelas de Gilberto Braga Esta seção apresenta alguns dos temas de relevância social abordados nas produções de Gilberto Braga, o que é uma de suas características, como dito na seção anterior. A começar por Dona Xepa (1977), a telenovela aborda questões do cotidiano brasileiro e as dificuldades socioeconômicas da classe média baixa. O enredo mostra a vida de dificuldades da protagonista, uma feirante. As gravações externas de Dona Xepa ocorreram em diversos locais do Rio de Janeiro, como o antigo Mercado de São Cristóvão, a Estrada Velha da Tijuca e o Jardim Botânico. As animadas feiras foram retratadas em planos amplos capturados na Praça General Osório, em Ipanema. Para garantir a autenticidade dos personagens e de suas histórias, a Globo realizou uma extensa pesquisa sobre a rotina dos feirantes e as tradições das feiras livres. Em Dancin' Days (1978), por sua vez, uma das novelas mais notórias de Braga, a rivalidade entre famílias e irmãos foi explorada. As personagens Júlia Mattos (Sônia Braga) e Yolanda Pratini (Joana Fomm) disputam o amor de Marisa, que é filha biológica de Júlia, mas que foi criada por Yolanda. A trama também envolve a acusação de atropelamento e homicídio de um guarda noturno, pelos quais Júlia foi condenada a 22 anos de prisão. Após cumprir metade da pena, ela obtém liberdade condicional e tenta superar o estigma de ex-presidiária. Água Viva (1980) retrata o cotidiano da classe média alta no litoral do Rio de Janeiro, com destaque para o windsurfe e para polêmicas como o topless nas praias cariocas. A trama gira em torno da disputa de dois irmãos, Miguel (Raul Cortez) e Nelson (Reginaldo Faria), pelo amor da protagonista Lígia (Betty Faria). Miguel é um cirurgião plástico bem-sucedido que condena o estilo de vida do irmão, um bon vivant, enquanto Nelson tenta reconstruir sua vida após perder toda sua fortuna. Lígia, uma mulher ambiciosa e mãe de dois filhos, se envolve com Nelson sem saber de sua nova condição financeira. Paraíso Tropical (2007) apresenta uma trama marcada por paixões, humor e crítica social, com foco na rivalidade entre as gêmeas Paula e Taís (ambas interpretadas por Alessandra 48 Negrini). Paula é trabalhadora e de bom-caráter, enquanto Taís é fútil e desonesta, disposta a encarar vários desafios se houver dinheiro em troca. A novela também aborda o embate entre os meio-irmãos Olavo (Wagner Moura) e Ivan (Bruno Gagliasso), que descobrem a existência um do outro ao longo da trama. Taís tenta destruir o relacionamento amoroso de Paula com Daniel (Fábio Assunção), enquanto Olavo faz de tudo para impedir que Daniel suceda seu tio Antenor Cavalcanti (Tony Ramos) na presidência da empresa. Insensato Coração (2011) conta a história de dois irmãos, um considerado invejoso e revelado como psicopata, e o outro que encontra o amor de sua vida. A trama central aborda temas como escolhas amorosas, dificuldades de amar e relacionamentos familiares, incluindo a rivalidade entre irmãos. Destaca-se o romance entre Pedro (Eriberto Leão) e Marina (Paolla Oliveira), que enfrentam obstáculos para ficarem juntos. Também são explorados os preconceitos enfrentados pelo casal de homossexuais formado por Eduardo (Rodrigo Andrade) e Hugo (Marcos Damigo), e a aceitação da mãe de Eduardo, Sueli (Louise Cardoso), diante do fato de seu filho ter tornado pública sua sexualidade. Babilônia foi exibida de 16 de março a 28 de agosto de 2015, totalizando 149 capítulos, e aborda temas como prostituição, homossexualidade, amor na maturidade e corrupção política. A trama de Babilônia mostra o sentimento em diversas formas. As personagens Beatriz (Glória Pires), Inês (Adriana Esteves) e Regina (Camila Pitanga) têm personalidades diferentes, mas compartilham o mesmo ímpeto de conseguir o que desejam. A novela foi dividida em duas fases, ambientadas em 2005 e 2015, e retrata a ascensão de Beatriz, a frustração de Inês e a integridade de Regina. Beatriz é uma mulher gananciosa que se casa por interesse com Evandro (Cássio Gabus Mendes), dono da Construtora Souza Rangel, e comete vários crimes para assumir a presidência da empresa do marido. Inês, que nutre uma obsessão por Beatriz desde a infância, é uma advogada frustrada que não se conforma com o alto padrão de vida da amiga e a chantageia após filmá-la aos beijos com o motorista de Evandro. Regina, de origem humilde, abandona seus sonhos após engravidar de Luís Fernando (Gabriel Braga Nunes) e enfrenta dificuldades ao morar no morro da Babilônia. A morte de Cristóvão (Val Perré), motorista de Evandro e pai de Regina, entrelaça a vida das três mulheres. A trama também aborda a disputa de poder entre Beatriz e Inês, além da busca de Regina por justiça pelo assassinato de seu pai. Além da rivalidade familiar, outros temas de alta relevância social, mas que sofrem com a estigmatização do público, frequentemente apareciam nas produções de Gilberto Braga, como a diversidade sexual. Essa temática é trabalhada nas seguintes obras, conforme se vê em Globo (c2000-2023): 49 — Dancin' Days (1978), que abordou a temática da homossexualidade por meio do personagem Everaldo (interpretado por Renato Pedrosa), um mordomo gay; — Brilhante (1981), apresentou o personagem Inácio (interpretado por Dennis Carvalho), um homossexual cuja mãe pretendia casá-lo com a protagonista da trama, Luíza (Vera Fischer), a qual, por sua vez, era apaixonada por outro homem. — Vale Tudo (1988), que trouxe um casal de lésbicas, formado por Cecília (Lala Deheinzelin) e Laís (Cristina Prochaska), que enfrentaram dificuldades e preconceito em seu relacionamento; — Paraíso Tropical (2007), em que os personagens Rodrigo (Carlos Casagrande) e Tiago (Sérgio Abreu) formaram um casal homossexual na trama; — Insensato Coração (2011), que abordou o tema da homossexualidade por meio do personagem Eduardo (Rodrigo Andrade), filho de Sueli (Louise Cardoso), o qual se envolveu romanticamente com Hugo (Marcos Damigo). A trama explorou os desafios e preconceitos enfrentados pelo casal. Na última telenovela das 21h, de Gilberto Braga, Babilônia, ocorreu o polêmico beijo homossexual entre as personagens Estela Marcondes (interpretada por Nathalia Timberg) e Teresa Petruccelli (Fernanda Montenegro), sendo considerado o primeiro beijo gay entre mulheres em uma novela do autor. Esse ato sofreu boicote na Rede Globo e foi apontado como um dos principais motivos pela queda da audiência da novela. Além disso, a trama também apresentou um casal gay formado pelos personagens Ivan (Marcelo Mello Jr.) e Sérgio (Cláudio Lins), bem como a personagem transexual Úrsula, interpretada por Rogéria. Em síntese, pode-se dizer que: Gilberto Braga também tentou retratar a si mesmo por meio de personagens homossexuais totalmente resolvidos. Foi dele o primeiro gay mais ou menos assumido de uma novela brasileira, o Inácio Newman de ‘Brilhante’, de 1981, encarnado por Dennis Carvalho. Mais ou menos porque a censura da época não deixava o personagem dizer com todas as letras o que de fato vivia. Depois de uma trajetória sofrida, ele embarcava para Nova York com um namorado no último capítulo. Em depoimento à série ‘Orgulho Além da Tela’, disponível no Globoplay, Braga diz que se arrepende um pouco de Everaldo, o afetadíssimo mordomo vivido por Renato Pedrosa em ‘Dancin’ Days’, de 1978. ‘Ele não ajudou ninguém’, lamenta o autor. Mesmo assim, um outro mordomo afetado ainda surgiu em sua obra, se bem que com mais camadas —Eugênio, papel de Sérgio Mamberti em ‘Vale Tudo’, de 1988. Mas, de modo geral, os gays e lésbicas das tramas de Gilberto Braga eram distantes dos clichês e da caricatura. Não eram marginais. Todos viviam inseridos na sociedade, produzindo e se dando ao respeito. Era nítida a vontade do escritor em normalizar a situação que ele mesmo vivia em sua intimidade. Nem sempre dava certo. Em ‘Insensato Coração’, de 2011, o par formado por Marcos Damigo e Rodrigo Andrade se casam no papel, mas sem direito a beijo 50 em frente às câmeras. Quatro anos depois, em ‘Babilônia’, o mundo veio abaixo quando Natália Thimberg e Fernanda Montenegro se beijaram logo no primeiro capítulo (Goes, 2021). As telenovelas são consideradas obras de ficção e entretenimento que retratam aspectos da cultura brasileira e do cotidiano da realidade (Goulart; Sacramento; Roxo, 2010). No entanto, a recepção de tramas que abordam temas diversos e que geram polêmica nem sempre reflete o pensamento da sociedade, o que suscita questionamentos sobre a aceitação do público televisivo. Portanto, os temas instigadores abordados por Gilberto Braga — que são socialmente relevantes, mas sofrem estigmatização por uma parcela dos telespectadores — são uma maneira de fazer o grande público refletir e repensar suas opiniões e seus posicionamentos, ainda que a recepção também possa não ter o fim esperado, ou seja, ser capaz de dar vazão para grupos não progressistas, cujo ódio ao diferente, aliás, tem acolhida recente na História do Brasil. 1.3 De Anos dourados a Anos rebeldes A produção de minisséries na Rede Globo de Televisão teve início com a Casa de Criação Janete Clair (Goulart; Sacramento; Roxo, 2010), fundada por Dias Gomes em 1985, com o propósito de expandir e aperfeiçoar as produções ficcionais da emissora carioca. Seu principal objetivo era fomentar a descoberta de novos talentos, incentivar a interação entre os dramaturgos associados à emissora, além de desenvolver e selecionar roteiros para as produções da TV Globo. Uma das abordagens exploradas nesse contexto foi a criação de minisséries que abordassem diferentes períodos da história recente do país. O projeto em questão, apoiado por José Bonifácio de Oliveira Sobrinho (Boni) e Daniel Filho, recebeu o nome de teledramaturgia e marcou um momento significativo na produção de ficção da emissora, segundo informa o site Mémórias Globo, cuja natureza, como bem indica o título, é reunir material memorialístico da empresa, o que demonstra que a seleção é bastante específica, ou seja, trata-se de organizar depoimentos, cuja separação parte do desejo da emissora. A transição do regime militar para a instauração de uma nova ordem social encontrou expressão nas criações televisivas. A reconstrução da história recente do país tornou-se um campo importante para compreender e diagnosticar a nação em busca de um processo de restauração democrática (Abreu, 2006). Nesse contexto, o universo moral — enfatizado pela narrativa melodramática — e a política assumiram papéis fundamentais, visando contribuir para uma sociedade mais justa e consciente. 51 Segundo Kornis (2003), a produção ficcional pode ser examinada como um elemento organizador da reconstrução histórica, dentro de uma estratégia alegórica de lembrar do passado para falar do presente. Para a autora, [é] no interior da programação das minisséries que será construída uma história do Brasil recente, com produções que retratam outras fases da história nacional, além de aspectos da sociedade contemporânea. Realizam-se nesse formato trabalhos de caráter mais autoral, com um investimento maior na qualidade. Exibi-las num horário de menor audiência e para um público em princípio mais seletivo, as minisséries trazem a marca de um produto nobre, que será ainda beneficiado, ao longo da década de 1990, pela introdução de novos recursos técnicos que procuram crescentemente aperfeiçoar a verossimilhança (Kornis, 2003, p. 129). Ao longo do período conhecido como Nova República, diversas minisséries foram produzidas, cuja intenção era representar temas da história recente do país e, assim, agregar novos significados ao processo de construção da identidade nacional, tendo como produtora a Globo, cuja história empresarial aconteceu em concomitância com as transformações sociais, políticas e econômicas de uma época. Segundo Mônica Almeida Kornis (2003), essas minisséries narram, de forma diegética, os eventos que ocorreram no Brasil entre os anos de 1954 e 1984, com uma breve extensão até 1992, abrangendo momentos importantes da história do país. Esses momentos incluem o suicídio do presidente Getúlio Vargas, em agosto de 1954; o governo de Juscelino Kubitschek; a crise do governo João Goulart e o golpe militar de 1964; o próprio regime militar, até o processo de reabertura política, que culminou na campanha das Diretas Já e no retorno da democracia por meio da eleição indireta de um presidente civil, após 21 anos de governos autoritários, chegando até o impeachment do presidente Fernando Collor, em 1992. Durante essa cronologia histórica, observa-se um ciclo de alternância entre graves crises políticas que geraram comoção nacional, como o suicídio de Vargas, e momentos de impasse no caminho para a consolidação democrática. Nesse contexto, surgem crises, esperanças, confrontos, ambiguidades e tensões, formando um cenário dinâmico e complexo. Se a primeira minissérie a abordar um período recente da história nacional, conforme entende a Rede Globo, foi Anos dourados, produzida em 1986, que escolheu o Brasil do governo de Juscelino Kubitschek como cenário, a escolha bem se justifica porque se tratou de período de euforia democrática. Sua produção aconteceu no primeiro ano de um governo civil, após 21 anos de regime militar; a série também considerou outros momentos históricos, como os últimos dias de Getúlio Vargas na presidência e o início da Nova República, retratando as mudanças sociais dos anos de 1960. Embora Dias Gomes e Ferreira Gullar já tivessem 52 concluído um texto sobre o fim do governo Vargas, a direção da Globo optou por produzir uma minissérie ambientada nos anos de JK. O autor Gilberto Braga foi convidado para escrever a obra, o que sinalizou o surgimento de projetos que seriam desenvolvidos na década seguinte. Anos dourados apresenta o Rio de Janeiro do final dos anos 1950, então capital do Brasil. A narrativa exibe duas histórias de amor que são impossíveis de se concretizar. Na primeira, Lurdinha (interpretada por Malu Mader), uma jovem de família conservadora, apaixona-se por Marcos (interpretado por Felipe Camargo), um rapaz do Colégio Militar cujos pais são divorciados. A família de Lurdinha opõe-se firmemente ao relacionamento dos dois. Na segunda história, a mãe de Marcos, Glória (interpretada por Betty Faria), envolve-se romanticamente com o major Dornelles (interpretado por José de Abreu), um homem casado. Esse segundo romance enfrenta oposições ainda mais intensas do que o primeiro, pois, naquela época, uma mulher divorciada já era considerada escandalosa pela sociedade, mas ter um relacionamento com um homem casado era visto como algo equivalente a ser uma prostituta. Esses elementos destacam uma das características marcantes do folhetim: amores impossíveis, marginalização da mulher, preconceito, enfim, todos os elementos necessários para cativar o público, ainda que não se configurem apenas em dados da ficção, porque, de fato, a rigidez dos costumes teve guarida nos anos 1950. A minissérie Anos dourados foi concebida no início da chamada Nova República e, justamente por isso, operou como uma alegoria de um momento histórico que se apresentava como novo por ser democrático. A narrativa contrasta uma sociedade conservadora, patriarcal, clientelista e hipócrita com outra que surge como nova, racional e autêntica. O caráter de transição para um novo país, carregado de esperança e crença no futuro, foi fundamental para o processo de identificação da “Nova República” com os chamados “anos JK”, o período histórico retratado na trama. O contexto político também desempenha um papel importante na definição da transição alegórica do regime ditatorial militar para a democracia, na redemocratização. Isso é evidenciado pela polarização entre conservadores, lacerdistas e anti- juscelinistas versus legalistas e juscelinistas, somados aos personagens que, por meio de suas atitudes e estilo de vida, representam o ideal de modernidade e progresso presentes no discurso desenvolvimentista dos anos 1950 (Skidmore, 2007). Após a Segunda Guerra Mundial, a década de 1950 foi marcada por um clima político democrático e progressista, desenvolvimento econômico razoável e transformações culturais significativas em grande parte do mundo, conforme apontado por Hobsbawm (2004). Essa época é comumente conhecida como “Anos Dourados”, cronônimo, aliás, controverso, pois, ainda que do ponto de vista geral, o país apresentasse avanços econômicos, não se pode dizer o 53 mesmo em questão das mentalidades, identificadas através de anúncios que miravam épocas anteriores, tidas por momentos bem vividos (Trescentti, 2022, p. 107). No Brasil, esse período foi bastante diferente tanto da Era Vargas, que o precedeu, quanto do Regime Militar, que o sucedeu. Iniciando com o segundo governo de Getúlio Vargas, eleito democraticamente, a década representou um intervalo de legitimidade institucional, além de confiança e otimismo em relação ao futuro do país por parte dos seus cidadãos. Sobre o período dos Anos Dourados, Couto (2006) explica que o governo de Juscelino Kubitschek foi notavelmente diferente e extraordinário. Iniciado em 1956, propôs-se a realizar cinquenta anos de progresso em apenas cinco. Já haveria de se supor que se tratou apenas de lema político, porque o objetivo se configurava inalcancável, ainda assim há de se identificar que se esforçou para tal. Sua determinação e energia alteraram o curso histórico do país, sobretudo com a construção de Brasília, o que permitiu o deslocamento de capital e pessoas para o centro do país. Ademais, a estrutura econômica passou por transformações profundas, colocando o desenvolvimento como prioridade na agenda nacional. Kubitschek construiu Brasília, desencadeou uma marcha em direção ao interior e causou uma forte impressão no exterior. Além disso, sob a sua liderança, foram construídos mais de vinte mil quilômetros de estradas e foram asfaltados cerca de 5,6 mil quilômetros de rodovias antigas. Além disso, mais de três mil quilômetros de ferrovias foram construídos, e a produção interna de petróleo foi multiplicada. Durante o governo de JK, o PIB aumentou quase 50%. De fato, os Anos Dourados da História do Brasil, ainda que a terminologia seja complexa, como se mostrou, testemunharam a realização de projetos ousados no campo político e econômico, como o desenvolvimento da indústria automobilística e a construção da nova capital, Brasília. No aspecto cultural, foi nesse período que a Bossa Nova emergiu no cenário da música popular brasileira. No âmbito esportivo, recuperando o orgulho nacional abalado em 1950, o Brasil se tornou campeão mundial de futebol pela primeira vez. A década também foi marcada por um intenso culto à beleza feminina, destacando-se os concursos de misses Brasil e Universo. Posteriormente, Gilberto Braga produziu a minissérie Anos rebeldes (1992), ainda que tal ideia não estivesse em seu horizonte, cuja proposta foi abordar uma mudança comportamental dos anos 1960, inserida em um contexto em que a política dominava a cena. Vale ressaltar que há uma continuidade no interesse em retratar os anos de 1950, como já havia sido demonstrado na escolha de Anos dourados, assim como o período pós-regime militar consolidado no projeto da Nova República. A política está presente em todas as minisséries 54 veiculadas pela Rede Globo, embora seja tratada de maneiras diferentes em termos de intensidade. Ao criar a minissérie Anos rebeldes, Gilberto Braga atendeu a um pedido do público, que desejava uma continuação de Anos dourados e até sugeriu o nome da nova produção (Braga, 2010). Por meio dessa minissérie, pela primeira vez, uma emissora de televisão se dispôs a retratar o conturbado período político vivido pelo Brasil durante a Ditadura Militar. Para construir a trama, Braga baseou-se em referências históricas reunidas em livros como 1968: O Ano Que Não Terminou, de Zuenir Ventura, e Os Carbonários, de Alfredo Sirkis. De acordo com Silva (2022), Anos rebeldes encontrou inspiração também no cinema, que era uma grande paixão de Gilberto Braga desde a infância. Um desses filmes foi Desaparecido: Um Grande Mistério (com o título original de Missing), dirigido por Costa- Gavras em 1982, que contava a história da busca por um escritor americano desaparecido durante o golpe de Estado no Chile, em 1973. Outro filme que teve influência na produção de Anos rebeldes foi o favorito de Malu Mader, intitulado Nosso Amor de Ontem (1973), dirigido por Sidney Pollak, com Barbra Streisand e Roberto Redford. Malu Mader descreve o filme como uma história de um casal que se ama intensamente, mas com visões de mundo divergentes, o que reflete os conflitos dos personagens Maria Lúcia e João Alfredo na minissérie. Além disso, destaca-se uma reunião na casa de Dennis Carvalho em que Bete Mendes compartilhou sua experiência como militante política durante o período retratado na trama. Bete Mendes, que havia integrado a organização VAR–Palmares, interpretou Carmen, a mãe de Maria Lúcia na minissérie. Silva (2022) menciona que Malu Mader expressa sua admiração por Bete Mendes e relembra como foi impactante ouvir a atriz contar sua história de combate à ditadura, incluindo sua prisão e tortura. Não só Bete Mendes, mas também grande parte dos atores que participaram de Anos rebeldes, tinha experiência pessoal com o período da ditadura, envolvendo-se em algum tipo de militância política. Como exemplo, pode-se mencionar Gianfrancesco Guarnieri, que interpretou o personagem Dr. Salviano, um comunista engajado; Francisco Milani, que desempenhou o papel de Camargo, um funcionário dos órgãos de repressão; e Stepan Nercessian, que deu vida a Caramuru, um motorista particular disposto a sacrificar-se pelos amigos. A minissérie Anos rebeldes conta a história do país durante parte do regime militar (1964-1979) e foi trazida para a televisão em um momento em que a política ocupava o centro das atenções na vida nacional, devido à intensificação das denúncias de irregularidades financeiras envolvendo o governo de Fernando Collor de Mello, o primeiro presidente eleito 55 por voto direto desde 1960. Da mesma forma, a política desempenha um papel central na narrativa ficcional, uma vez que os momentos de aproximação e afastamento do jovem casal João Alfredo e Maria Lúcia são moldados pela militância política do rapaz, que vai se radicalizando à medida que a história do país se desenrola na trama. Assim, a política se torna um desafio para a estabilidade e confere dramaticidade à ação. Gilberto Braga atribui um significado extremamente significativo à minissérie Anos rebeldes. Para ele, essa obra tem a capacidade de relatar uma história de amor impactante, ao mesmo tempo em que oferece um panorama sucinto de um período turbulento da história do Brasil. Além disso, Braga acreditava que a minissérie tenderia a comover diversas gerações de espectadores, enquanto no que respeita ao processo de sua confeção, trouxe à tona suas próprias memórias da adolescência. Com um sentimento de orgulho, o autor destacou a construção cuidadosa dessa obra e considerou que, dentre todos os seus trabalhos, talvez tenha sido uma contribuição notável para a dramaturgia e a memória histórica do nosso país. Em Anos rebeldes, é a juventude que desempenha o papel de protagonista da história, pois é nela que reside a maior força da radicalização política na construção ficcional. A minissérie reflete a visão do passado tida naquele momento, revelando um sentimento generalizado de desilusão com a Nova República. Em contraste com Anos dourados, que estabelece uma conexão direta entre o otimismo presente no momento da história fictícia, Anos rebeldes situa-se em um obstáculo para a democracia brasileira. No desenlace da trama, é demonstrado que o amor entre Maria Lúcia e João Alfredo não pode superar as profundas diferenças vivenciadas intensamente durante o regime militar. Nessa narrativa melodramática, João é retratado como portador de uma moral positiva. Nesse sentido, a minissérie pode ser analisada como a alegoria de uma nação imersa em uma grave crise moral, que se sobrepõe até mesmo à crise política vivida pelo país nos primeiros anos da década de 1990. Escrita em 1980, num momento em que o entusiasmo e o otimismo resultantes do fim do governo militar e das promessas da Nova República, incluindo o fracasso do Plano Cruzado, já estavam se dissipando, Anos rebeldes retrata a rebeldia jovem na ficção, possivelmente buscando resgatar uma ética perdida. As minisséries Anos dourados e Anos rebeldes compreendem um amplo período, que abarca desde os anos do governo Kubitschek até o início da abertura política durante o regime militar. Gilberto Braga constrói um panorama abrangente dessa conjuntura nacional, passando brevemente pelos anos 1970. Sua narrativa concentra-se em retratar uma geração, por meio de uma crônica de costumes, utilizando, de maneira envolvente, a estratégia de evocar a memória 56 do público, com referências marcantes da época retratada, em uma atmosfera nostálgica, características inevitáveis em um folhetim. Tanto em Anos dourados quanto em Anos rebeldes, a trama se desenvolve em torno de dramas familiares da classe média, destacando-se a ascensão social como um traço distintivo dos personagens hipócritas e traidores. Há uma marcante ironia em relação aos valores tradicionais, que se entrelaçam com o mundo dos adultos, no qual se encontra o segmento mais conservador, imerso no senso comum, sendo ironicamente pontuado por personagens secundários. As minisséries Anos dourados e Anos rebeldes reforçam as características distintivas da teledramaturgia de Gilberto Braga, em que a crítica social está intrinsicamente entrelaçada a valores morais. No próximo capítulo, apresenta-se como esses assuntos são abordados na trama de Anos rebeldes. 57 CAPÍTULO 2 — ANOS REBELDES: HISTÓRIA, CULTURA E POLÍTICA A configuração conhecida como minissérie, inovação que promoveu alterações substanciais na paisagem narrativa televisiva, destacou-se ao apresentar uma abordagem mais compacta e centrada, contrastando com as extensas séries televisivas. Nesse capítulo, intitulado “Anos Rebeldes: História, Cultura e Política”, será realizada análise da minissérie Anos rebeldes no contexto dessas três dimensões interconectadas. Trata-se de abordar os seguintes aspectos: breve descrição sobre este gênero folhetinesco e o seu surgimento na televisão brasileira, além do período histórico retratado pela minissérie Anos rebeldes, enredo, estrutura narrativa, contextualização de eventos relevantes, mudanças sociais e políticas que influenciaram a trama. Irá ser discutido como a narrativa se alinha ou se desvia dos eventos históricos reais, ou seja, como a minissérie representa e interpreta aspectos culturais da sociedade da época, a caracterização de personagens, as tradições culturais abordadas e como esses elementos contribuem para a construção do cenário cultural. Anos rebeldes aborda questões políticas relevantes ao período em foco, cuja trama procurou enfatizar movimentos sociais, conflitos políticos e as dinâmicas de poder. O objetivo do capítulo é identificar o impacto da minissérie na percepção contemporânea dos eventos históricos abordados e como a representação na ficção televisiva pode influenciar a compreensão pública da história. Sintetizar as descobertas, identificando conexões significativas entre os aspectos históricos, culturais e políticos da narrativa. Ademais, investigar qual a possível contribuição da minissérie para uma compreensão mais profunda da interseção entre esses elementos e da expansão das possibilidades de histórias representadas na televisão. 2.1 Minisséries: inovações ficcionais televisivas Para além do entretenimento proporcionado, as minisséries desempenham uma função crucial na articulação da cultura e na análise de questões sociais. Estas produções televisivas não apenas têm o poder de influenciar e refletir a identidade de uma sociedade, mas também abordam temas que reverberam profundamente entre o público. Para Keides Vicente (2016, p. 101): [...] muitos atores da minissérie estiveram envolvidos em algum tipo de militância, durante o período da ditadura, como Gianfrancesco Guarnieri (que interpretou Dr. Salviano, um comunista militante), Francisco Milani (que 58 representou Camargo, um funcionário dos órgãos de repressão), Stepan Nercessian (viveu Caramuru, um motorista capaz de dar a vida pelos amigos) e Bete Mendes (que interpretou Carmem, mulher de Damasceno e mãe de Maria Lúcia). Existe uma convergência entre os atores da minissérie e suas experiências pessoais durante o período da ditadura militar no Brasil. A presença de Gianfrancesco Guarnieri, Francisco Milani, Stepan Nercessian e Bete Mendes, todos envolvidos em algum tipo de militância durante esse período histórico, adiciona camadas de significado à interpretação de seus respectivos personagens na trama de Braga. A escolha de personagens por esses atores, representando um comunista militante, um funcionário dos órgãos de repressão, um motorista disposto a sacrificar-se pelos amigos e a mulher de um personagem envolvido na resistência política, sugere uma intenção por parte dos criadores da minissérie de estabelecer uma conexão entre o passado engajado desses artistas e as narrativas abordadas na trama. De acordo com Ribeiro, Sacramento e Roxo (2018), o paradigma da telenovela, que evoluiu no cenário televisivo brasileiro, tem suas raízes no meio radiofônico. As radionovelas desempenharam um papel fundamental ao estabelecerem os fundamentos essenciais para a narrativa serial, os quais, a partir da metade dos anos 1950, foram transferidos para a televisão. As primeiras incursões das telenovelas no Brasil consistiam em adaptações para o português de enredos originados de outras nações latino-americanas, notadamente Argentina, México e Cuba. Alternativamente, eram textos produzidos em língua portuguesa, mas muitas vezes sob a égide de agências publicitárias norte-americanas. Essas narrativas eram construídas com base em situações prototípicas, apresentando escassa referência ao contexto nacional ou à identidade do povo brasileiro. Similar ao rádio, essas produções ficcionais eram diretamente concebidas pelos seus patrocinadores, os quais, inclusive, inseriam seus próprios nomes nos títulos dos programas, ou por suas agências publicitárias. Consequentemente, a dramaturgia recebia investimento limitado nesse contexto. É a partir dos anos 1960 que o Brasil começa a deixar de traduzir originais mexicanos ou cubanos e passa a gravar sistematicamente novelas escritas por novelistas brasileiros, embora ainda reproduzindo os mesmos esquemas das importadas. O salto de qualidade acontece quando a televisão vai buscar os seus atores no teatro, lugar onde a dramaturgia brasileira já havia conhecido um notável desenvolvimento em termos de texto e fabulação. Os enredos se tornaram então mais imaginativos; os personagens, mais convincentes; os diálogos, mais próximos da fala cotidiana e as situações, mais condizentes com a realidade vivida pelo povo. Dias Gomes, Jorge Andrade, Oduvaldo Viana, e Cassiano Gabus Mendes foram os principais nomes do grupo renovador da telenovela brasileira, culminando com Bráulio Pedroso, que modernizou a linguagem da ficção televisiva e introduziu a figura do anti- 59 herói com seu ousado Beto Rockfeller26 (1968-1969) (Ribeiro; Sacramento; Roxo, 2018, p. 244). É destacado acima que a transição significativa na produção de telenovelas no Brasil sai da adaptação de originais estrangeiros para a criação de conteúdo nacional. Essa mudança também envolveu uma busca por qualidade artística, influenciada pela colaboração entre a televisão e o teatro, resultando em uma narrativa mais rica e próxima da realidade brasileira. Segundo Fernanda Furquim (2011), jornalista da revista Veja, no início da década de 1970, o êxito das minisséries americanas exerceu uma notável influência no cenário televisivo brasileiro, moldando a abordagem narrativa e formativa das produções nacionais. Essa influência se manifestou concretamente em 1982, quando a Rede Globo inaugurou um novo capítulo na história da televisão brasileira com o lançamento de Lampião e Maria Bonita. Sob a direção conjunta de Paulo Afonso Grisollie e Luís Antônio Piá, a trama, concebida por Aguinaldo Silva e Doc Comparato, apresentou ao público brasileiro uma visão romanceada da vida do lendário cangaceiro. Esse marco representativo não apenas assinalou a estreia do formato de minissérie no país, mas também evidenciou uma mudança significativa nas abordagens narrativas e estilísticas da produção televisiva nacional. Furquim aborda a influência significativa das minisséries americanas no cenário televisivo brasileiro no início da década de 1970 e destaca o impacto concreto desse fenômeno em 1982, quando a Rede Globo de Televisão lançou Lampião e Maria Bonita. Essa informação destaca a introdução do formato de minisséries no Brasil, marcando um novo capítulo na história da televisão do país. Além disso, ressalta a mudança significativa nas abordagens narrativas e estilísticas da produção televisiva nacional, evidenciando a influência duradoura e transformadora das minisséries americanas no desenvolvimento da televisão brasileira. Para Ribeiro, Sacramento, Roxo (2018, p. 244), a partir de meados dos anos 1970, em busca de ampliação de mercado, as redes brasileiras, principalmente a Rede Globo, expandem a sua produção de ficção televisiva para os seriados e minisséries, que já faziam sucesso através dos produtos importados. Seriados como ‘Plantão de Polícia’ (1979-1981), ‘Malu Mulher’ (1979-1981), ‘Carga Pesada’ (1979-1981), ‘Armação Ilimitada’ (1985-1988) e muitos outros permitiam experimentar novas possibilidades narrativas e temáticas, sobretudo porque a faixa de horário em que eram exibidos os deixava menos submissos às censuras externas e interna. A minissérie, particularmente a que dava os resultados mais qualitativos em termos dramatúrgicos na televisão brasileira, tinha um formato mais enxuto, com vinte capítulos no máximo (enquanto a média da telenovela é de 170 capítulos) e possibilitava elaborar um produto mais sofisticado, com uma 26 Novela de Bráulio Pedroso, concepção de Cassiano Gabus Mendes e escrita por Bráulio Pedroso, Eloy Araújo, Ilo Bandeira e Guido Junqueira, com direção de Lima Duarte e Wálter Avancini, totalizando 230 capítulos. 60 discussão mais concentrada de temas emergentes, sem as concessões ao merchandising que outros programas não podiam evitar. Os seriados e as minisséries introduzem também a utilização do equipamento portátil de vídeo, até então restrito ao telejornalismo e ao documentário. Ao que parece, foi o especial ‘Morte e Vida Severina’ (1981), dirigido por Walter Avancini, que utilizou pela primeira vez esse equipamento no campo da ficção televisiva, pelo menos em termos de Brasil. Tal equipamento possibilitou fazer teledramaturgia em locação, isto é, fora do estúdio, e, com isso, os seriados ganharam as ruas e as minisséries passaram a explorar temáticas regionais. Sendo assim, o excerto apresenta as modificações técnicas na produção ficcional televisiva no Brasil, especialmente na Rede Globo, a partir dos anos 70, como a diversificação de formatos, seriados como experimentação narrativa, minisséries com formato mais elaborado, introdução de equipamento portátil de vídeo, e também como a exploração de temáticas regionais. Já as minisséries na Rede Globo de Televisão iniciaram com a Casa de Criação Janete Clair, que tinha um plano que envolvia a criação de minisséries abordando distintas épocas da história do Brasil. Fundada em 1985 por Daniel Dias Gomes27, a Casa de Criação Janete Clair tinha como propósito principal a seleção e desenvolvimento de roteiros destinados às produções televisivas da emissora. A partir desse conceito, foi estabelecido que Gilberto Braga assumiria a responsabilidade pela década de 1950. Posteriormente, Braga se dedicaria à autoria da minissérie Anos rebeldes, a qual abordou o desafiador período de repressão durante o regime militar. Notavelmente, essa empreitada marcou a estreia de Gilberto Braga na criação de minisséries para a TV Globo. Nas próprias palavras do autor, Anos dourados é considerada o ponto culminante de sua carreira, destacando-se como a produção de maior impacto e repercussão em seu percurso profissional28. Segundo Balogh (2004, p. 95-96): As minisséries, como já se teve oportunidade de analisar em outras obras constituem um formato sui generis dentro do conjunto de formatos mais consagrados de ficção: a telenovela, a série, o seriado e o unitário. Trata-se do formato mais fechado do gênero: produto terminado antes de sua transmissão pelas emissoras, estruturalmente muito mais coeso que a novela, com fortes marcas de autoria no texto roteirizado. A novela, pelo contrário, dada sua enorme extensão simultaneidade da elaboração e da veiculação, constitui um formato muito mais poroso. Tais características da novela bem como sua 27 O novelista, escritor e dramaturgo nasceu em Salvador, Bahia, no dia 19 de outubro de 1922. Dias Gomes estreou na Globo em 1969, com a novela A Ponte dos Suspiros. Autor de O Bem-Amado (1973), a primeira novela a cores no Brasil. Morreu em 1999, aos 76 anos. https://memoriaglobo.globo.com/perfil/dias-gomes/noticia/dias- gomes.ghtml. Acesso em: 5 dez. 2023. 28 Informações retiradas do site Memória Globo. Disponível em: https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/minisseries/anos- dourados/#:~:text=O%20t%C3%ADtulo%20Anos%20Dourados%20foi,primeira%20miniss%C3%A9rie%20na %20TV%20Globo. Acesso em: 5 dez. 2023. 61 cotidianidade a tornam muito mais vulnerável às invasões do merchandising social e político. A minissérie, pelo contrário, abre pouco espaço para esse tipo de estratégia discursiva. As marcas de autoria e clausura da minissérie em relação aos demais formatos de ficção na TV a tornam ideal para as adaptações da literatura, pois o formato representa o seu congênere mais próximo em termos audiovisuais, posto que é o produto que menos se insere nos moldes da ‘estética da repetição’ ou neobarroca tal como concebida por Omar Calabrese29. Enquanto as séries, seriados e novelas se caracterizam por reiterações, tanto no nível narrativo, quanto no nível figurativo, as minisséries oferecem traços de originalidade raros na ficção televisiva, até mesmo em um universo fictício já per se original como o da teledramaturgia brasileira. Acima estão em destaque as características distintivas das minisséries em comparação com outros formatos consagrados de ficção televisiva, como telenovelas, seriados e unitários. Além disso, as minisséries, por sua natureza, têm uma extensão temporal predeterminada, demandando a habilidade de narrar uma história completa em um número restrito de episódios, formato que permite a construção de uma conexão mais substancial entre o público e as personagens, uma vez que muitos espectadores conseguem se identificar com as experiências emocionais retratadas. Este componente se configura como o núcleo da trama, guiando o desenvolvimento da narrativa. Em se tratando de Anos rebeldes, não se pode perder de vista que a narrativa examina os desdobramentos da História recente do Brasil, desempenhando um papel crucial ao qualificar a minissérie como uma produção de época. Pallotini (2012, p. 33) aborda que: Uma telenovela seria, assim, uma história contada por meio de imagens televisivas, com diálogo e ação, criando conflitos provisórios e conflitos definitivos; os conflitos provisórios vão sendo solucionados e até substituídos no decurso da ação, enquanto os definitivos os principais só são resolvidos no fim. A telenovela se baseia em diversos grupos de personagens e de lugares de ação, grupos que se relacionam interna e externamente, ou seja, dentro do grupo e com os demais grupos; supõe a criação de protagonistas, cujos problemas assumem primazia na condução da história. E, na atualidade, tem duração média de 160 capítulos, sendo que cada capítulo tem, aproximadamente, 45 minutos de ficção. Faz parte dado esquema da telenovela brasileira o fato de ter ela seus trabalhos de produção e gravação iniciados antes de estar totalmente escrita [...]. Dessa forma, está sujeita ao julgamento do público e da crítica, modificando-se, se for necessário [...] Ao mencionar que a produção muitas vezes começa antes da conclusão da escrita, Pallotini destaca a interseção entre as considerações criativas e industriais na produção de telenovelas. Isso ressalta a necessidade de equilibrar as exigências artísticas com os fatores práticos e comerciais envolvidos na produção televisiva, uma visão aprofundada da telenovela 29 Omar Calabrese é um semiólogo e crítico de arte italiano. 62 brasileira, delineando suas características estruturais, narrativas e as complexidades envolvidas na sua produção, ao mesmo tempo em que destaca sua contínua interação com o público e a crítica. Ao assistir à minissérie Anos rebeldes na Globoplay, observou-se que a Rede Globo de Televisão apresenta sua interpretação da História por meio de uma de suas especialidades: a teledramaturgia. Esta abordagem já havia sido adotada pelo mesmo autor em minisséries anteriores, a exemplo de Anos dourados, levando a emissora a dedicar-se progressivamente a esse gênero de produção, explorando diversas épocas e temas na história do Brasil. Sendo assim, a Rede Globo de Televisão opta por comunicar sua perspectiva histórica por meio de uma narrativa específica, um estilo dramatúrgico que enfatiza situações emocionais intensas, utilizando elementos emotivos para envolver os espectadores na trama. Como desdobramento dessa opção, a emissora intensificou seus investimentos nesse gênero de produção, explorando variadas épocas e facetas da história brasileira, assertiva reforçada pelas considerações de Paiva (2007, p. 7): De algum modo, tudo o que pretenderam os intérpretes e explicadores do Brasil, em seus recortes nacionais, regionais, locais têm sido realizado há mais de duas décadas pelas minisséries brasileiras. Trata-se de uma experiência cultural que não pode ser negligenciada, principalmente se observarmos a maneira como as narrativas ficcionais se entrelaçam com as tramas políticas. Isto foi muito bem explorado, por exemplo, no livro de Narciso Lobo, Ficção e Política (2000), tratando da minissérie Anos Rebeldes (1992). Ou seja, de certa maneira, a ficcionalidade contribui para um estilo de politização do cotidiano, pois libera dimensões que foram ocultadas pela história oficial e isto só é possível pelo prisma das lentes e câmeras do cinema e da televisão. Assim, essa reflexão sugere que a ficcionalidade, especialmente quando transmitida através do cinema e da televisão, tem o poder de liberar perspectivas e aspectos da realidade que não são tão visíveis ou evidentes nas versões oficiais da história. Ao criar conexões entre os eventos fictícios e o contexto político, as minisséries brasileiras enriquecem o debate público e a compreensão da sociedade, contribuindo para uma maior conscientização e politização do cotidiano brasileiro. Motter e Mungioli (2008, p. 164) mencionam que: […] as minisséries e telenovelas cujas imagens e tramas valorizam a ‘cor local’, ‘o pitoresco’30, comportam, muitas vezes, boa dose de crítica social e, portanto, são orientadas ideologicamente por seus autores e diretores no sentido de permitir ao Brasil se conhecer como nação. Esse (re)conhecimento 30 Este gênero poderia ser exemplificado por, valendo-se apenas de alguns casos: Roque Santeiro (1985), O Bem Amado (1973, 1980-1984 – telenovela e seriado, respectivamente), Anos rebeldes (1992), Anos dourados (1986) e Porto dos Milagres (2001). 63 permitiria conscientizar público a lutar contra mazelas como corrupção e desigualdade social que, na opinião de muitos autores e diretores, impedem que a nação e o povo se desenvolvam. As minisséries e telenovelas não são apenas entretenimento, mas também desempenham um papel ativo na formação da consciência social. Ao mostrar o Brasil através de suas imagens, tramas e valores locais, essas produções contribuem para a construção de uma identidade nacional compartilhada. Além disso, ao abordar criticamente problemas como corrupção e desigualdade, os criadores dessas obras buscam não apenas refletir a sociedade, mas também influenciar ativamente a opinião pública para a busca de uma transformação social positiva. Essas narrativas televisivas podem ser consideradas uma forma de discurso social e cultural, analisando como os elementos locais são representados e como as críticas sociais são incorporadas. Implica que as minisséries e telenovelas não se configuram apenas em objeto de lazer e diversão, mas também são produzidas com objetivos outros, a exemplo da intenção de contribuir para a consciência social. Ao mostrar o Brasil através de suas imagens, tramas e valores locais, essas produções contribuem para a construção de uma identidade nacional compartilhada. Além disso, ao abordar criticamente problemas como corrupção e desigualdade, os criadores dessas obras buscam não apenas refletir a sociedade, mas também influenciar ativamente a opinião pública para a busca de uma transformação social positiva. 2.2 Anos rebeldes: análise da estrutura narrativa e do enredo A minissérie Anos rebeldes enfatiza um período importante da história brasileira: os anos da ditadura militar, entre as décadas de 1960 e 1970. A trama aborda os eventos políticos, sociais e culturais da referida conjuntura com ênfase nos importantes movimentos estudantis e na luta pela liberdade, pela democracia e pela justiça social, dando foco ao universo de um grupo de jovens ativistas que vivem na cidade do Rio de Janeiro e que se engaja em manifestações e protestos contra a repressão do regime autoritário. A minissérie retrata as experiências e os obstáculos enfrentados pelos personagens em um ambiente marcado por censura, perseguição política e violência. Representa a 33ª produção em formato de minissérie veiculada pela Rede Globo de Televisão. Foi transmitida de 14 de julho a 14 de agosto de 1992 pela referida emissora, ocupando o horário das 22h30 e composta por um total de 20 episódios e cerca de 15 horas de exibição. A autoria ficou a cargo de Gilberto Braga e Sérgio Marques, com a colaboração de Ricardo Linhares e Ângela Carneiro. A direção 64 foi conduzida por Denis Carvalho, com assessoria do cineasta Silvio Tendler e do diretor de televisão Ivan Zettel. A minissérie insere-se na categoria conhecida como histórica, uma vez que em sua narrativa aborda não apenas as mudanças políticas no Brasil durante o período da ditadura, mas também examina as transformações comportamentais e culturais, especialmente no contexto da juventude durante o regime militar, que perdurou no Brasil por mais de vinte anos. A versão comercializada em DVD apresenta uma edição mais compacta, com aproximadamente 9 horas de duração. Em 2011, a minissérie foi novamente apresentada na íntegra pelo canal Viva, entre 30 de maio e 24 de junho, celebrando o primeiro ano de estreia do canal (Braga, 2010, p. 624- 627). Nos anos 1960, Alfredo Syrkis atuou como militante no movimento Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), que desempenhou um papel no sequestro dos embaixadores alemão, Van Holleben, e suíço, Giovanni Bucher. Sua competência no idioma inglês levou à sua designação para supervisionar os sequestradores. Posteriormente, ele foi forçado ao exílio e, assim como outros prisioneiros políticos, retornou ao Brasil em 1979, beneficiando-se da anistia. Conforme seu relato: Fui pelas margens da multidão até a cabeça da passeata. Dobrávamos a Nilo Peçanha em direção à avenida Rio Branco. O coração aos pinotes, a emoção jorrando no sangue. Olhei para trás: já éramos mais de três mil, a manifestação engrossava constantemente! Das janelas dos escritórios começou a chover papel picado, muita gente aplaudia. Na esquina com a Rio Branco alguém jogou, do oitavo andar, um rolo de papel higiênico que foi se desbobinando no ar, graciosamente, como uma serpentina gigante. O toque carnavalesco. – ABAIXO A DITA – DURA! ABAIXO A DITA-DURA! ABAIXO A DITA – DURA! – os edifícios da avenida pareciam vibrar ao fragor do desafio. Nas calçadas, à margem da passeata, que se espalhava por entre automóveis imóveis e ônibus apinhados, crescia a multidão de curiosos. Da manada metálica estancada na contramão pela nossa súbita aparição, vinha uma cacofonia de buzinas e gritos (Syrkis, 2014, p. 50). O relato de Syrkis versa sobre sua participação em uma manifestação ou passeata contra o regime autoritário brasileiro. A cena retratada sugere uma experiência intensa e emocionante durante a manifestação, na qual o autor mostra a sua caminhada pelas margens da multidão até a cabeça da passeata. Descreve elementos visuais e sonoros que contribuem para a atmosfera festiva e desafiadora da manifestação. O papel picado caindo das janelas dos escritórios, o rolo de papel higiênico se desenrolando graciosamente no ar e os edifícios “vibrando ao fragor do 65 desafio” indicam um tom carnavalesco e festivo, contrastando com a seriedade do protesto político. A expressão “Abaixo a Dita-Dura!” reflete o desejo de protestar contra o regime ditatorial, enquanto a resposta entusiástica da multidão e a interação com os espectadores nas calçadas sugerem um aumento gradual do apoio à manifestação. A menção à cacofonia de buzinas e gritos dos veículos parados pela passeata acrescenta um elemento de confronto e destaca o impacto da manifestação nas ruas da cidade. De acordo com as informações fornecidas na obra Anos Rebeldes: os bastidores da criação de uma minissérie, o formato desse gênero televisivo é considerado o mais complexo na teledramaturgia brasileira. Sua estrutura assemelha-se a uma telenovela mais curta, distinguindo-se principalmente pela quantidade de capítulos. Enquanto uma telenovela costuma ter, em média, entre 150 a 180 capítulos, uma minissérie geralmente varia de 8 a 25 capítulos, embora possa ultrapassar esse limite. No entanto, mesmo em casos excepcionais, a duração de uma minissérie nunca se aproxima do padrão estendido de uma telenovela (Braga, 2010). A minissérie Anos rebeldes configura-se como uma narrativa ficcional. No entanto, sua relevância histórica é substancialmente incrementada pela incorporação de registros históricos por meio dos painéis que retratam o período em foco. Nessa perspectiva, a ficção é delimitada pela presença de elementos factuais, sendo regulada por um conjunto mínimo de eventos reais. A construção da obra é notável por sua verossimilhança, destacando eventos históricos de importância, como o falecimento do estudante Edson Luís de Lima e Souto, em 28 de março de 1968, durante um protesto estudantil contra o aumento dos preços da comida no restaurante Calabouço. Outros acontecimentos marcantes, como os festivais musicais, a implementação do Ato Institucional número cinco (AI-5) e os sequestros relâmpagos de embaixadores em troca de presos políticos, são apresentados de modo a contextualizar eficazmente o período abordado na narrativa (Braga, 2010). Segundo Zuenir Ventura (2018, p. 106-107): Em 68, a morte de alguém, mesmo a de um jovem desconhecido, podia levar o país a uma crise e o povo à indignação, como levou naquela sexta–feira, 29, em que 50 mil pessoas acompanharam o corpo de Edson Luís Lima Souto ao Cemitério São João Batista. [...] baleado no peito por um soldado da PM num choque no restaurante estudantil do Calabouço. O episódio violento da morte do estudante Edson Luís salta aos olhos, haja vista o contexto sensível e politicamente tenso produzido pelo regime militar, sobretudo após a instauração do AI-5, em dezembro de 1968. Destaca-se o impacto profundo que a morte de uma 66 pessoa, mesmo que desconhecida, poderia ter na sociedade. O episódio mencionado desencadeou uma crise e provocou a indignação pública. A descrição do funeral de Edson Luís, com a participação massiva de 50 mil pessoas acompanhando seu corpo ao Cemitério São João Batista, demonstra a magnitude do evento. Isso ressalta como a morte de um jovem estudante teve o poder de mobilizar a população e gerar um sentimento generalizado de indignação. Essa reflexão aponta para a intensidade das tensões sociais e políticas da época, quando atos de violência do Estado contra indivíduos, especialmente estudantes e jovens engajados, podiam desencadear reações enérgicas da sociedade. Na minissérie, esses eventos históricos foram abordados, destacando a atmosfera de resistência e as lutas contra os abusos do regime militar. A série, ao contextualizar esses acontecimentos, proporciona uma visão mais profunda sobre como a sociedade reagia diante das violações de direitos e das injustiças ocorridas durante aquele período conturbado. Uma das peculiaridades de Anos rebeldes é a capacidade de manter uma unidade narrativa e explorar um tema central, concentrando a tensão em um número reduzido de episódios. A elaboração da reconstituição histórica foi cuidadosamente planejada, o que demonstra preocupação em criar uma minissérie profundamente conectada com a história. Sílvio Tendler, por exemplo, foi convidado por Gilberto Braga para contribuir na construção dos cenários de época, convite, aliás, considerado pelo primeiro não apenas intrigante, mas também genial. Ele expressou seu interesse em meticulosamente recriar cada fotograma da história do Brasil, fosse para a televisão ou para o cinema, destacando que Anos rebeldes proporcionaria essa oportunidade aos telespectadores, já que a minissérie se passa no Rio de Janeiro entre 1965 e 197831. Na Cenografia e Arte, segundo informações do site Memória Globo, a maior parte das sequências de Anos rebeldes foi registrada em estúdio. As recriações das ambientações do Teatro Opinião e da entrada do cinema Paissandu foram incumbidas ao cenógrafo Mário Monteiro, com o suporte da produtora de arte Cristina Medicis. Os painéis documentais em tonalidades preto e branco, apresentados ao longo da trama, foram concebidos pelo cineasta Silvio Tendler. Esses painéis resultaram de uma extensa pesquisa em registros de época, fotografias e recortes de jornais32. 31 A respeito, ver: https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/minisseries/anos- rebeldes/noticia/curiosidades.ghtml. Acesso em: 10 jan. 2024. 32 Cf. https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/minisseries/anos- rebeldes/#:~:text=Anos%20Rebeldes%20aborda%20a%20luta,com%20projetos%20de%20vida%20diferentes. Acesso em: 5 dez. 2023. 67 Tendler descreveu sua responsabilidade na confeção do folhetim, como a inserção de trechos de filmes, notícias de jornais e imagens dos anos 60 e 70 para compor os painéis históricos ao longo da trama. Segundo ele, esses painéis foram inseridos com a intenção de relembrar eventos significativos da época, abrangendo não apenas a política, mas também as artes e a moda.33 Nesse panorama, a minissérie destaca-se por fazer uma abordagem crítica da História, revelando as contradições e os dilemas vivenciados pelos personagens em meio àquele contexto, além de provocar reflexões sobre os valores da época, como a busca pela liberdade e a importância da resistência em momento de opressão. No entanto, Anos rebeldes não explora apenas os eventos históricos, mas também examina as relações pessoais e afetivas dos personagens, incluindo suas paixões, amizades e conflitos internos diversos. A produção oferece uma visão íntima dos protagonistas, revelando suas motivações, dúvidas e amadurecimento ao longo dos anos de luta, as complexidades nas relações humanas e os conflitos ideológicos, enfatizando a juventude e a importância do seu papel na construção de um futuro melhor. Para Balogh (2004, p. 98): Anos rebeldes mostrou um período inicial de mais luz e brilho e foi gradualmente tornando a atmosfera mais azulada conforme a situação sociopolítica do país e dos militantes representados se obscurecia, e, por fim, o azul e o alto contraste de luz se mesclam na triste morte da militante Heloísa vivida por Cláudia Abreu. No excerto acima, Balogh aponta para a habilidade da minissérie em utilizar elementos visuais para transmitir simbolicamente a evolução da narrativa e das condições sociopolíticas da época. A referência à atmosfera inicial de “mais luz e brilho” sugere um período inicial otimista ou mais claro, enquanto a transição gradual para uma atmosfera “mais azulada” reflete a crescente complexidade e desafios enfrentados pelos personagens e pelo país. A associação do azul com a tristeza e a obscuridade é uma escolha visual significativa, indicando o agravamento das condições e a perda de esperança. A menção ao alto contraste de luz sugere momentos de intensidade dramática e conflito. A convergência final do azul e do alto contraste de luz na morte da militante Heloísa destaca um ponto crítico na narrativa, simbolizando não apenas a perda de um personagem, mas também a culminação das adversidades enfrentadas pelo grupo de militantes. E essa abordagem visual reforça a 33 TENDLER, Sílvio apud ANDRADE, Patrícia. Ficção em ritmo de relato histórico. Rio de Janeiro. 68 capacidade da produção em comunicar significados sutis e complexos por meio da linguagem cinematográfica, enriquecendo a experiência narrativa para os espectadores. A interconexão entre o domínio da História e o âmbito da ficção não se limita aos romances históricos. Existem diversas maneiras em que as narrativas se manifestam, transcendendo os limites da literatura. Narrar histórias é uma característica inerente à natureza humana, essencial para a comunicação, interação social e senso de pertencimento. A combinação de figuras reais e fictícias apenas ilustra a proximidade intrínseca entre esses elementos. Para Chartier (1988, p. 62), por exemplo: Ao historiador das economias e das sociedades, que reconstitui o que existiu, opor-se ia, efectivamente, o das mentalidades ou das ideias, cujo objecto não é o real mas as maneiras como os homens o pensam e o transpõem. A esta divisão do trabalho histórico corresponde uma divisão dos materiais próprios de cada campo. Aos textos ‘documentais’, que, submetidos a uma justa crítica, revelam o que era a realidade antiga, opor-se-iam os textos ‘literários’, cujo estatuto é o da ficção e que não podem ser considerados testemunhos da realidade. Esta divisão fundamental não foi alterada nem pela construção sob a forma de séries estatísticas dos ‘documentos’ antigos, o que só faz salientar o valor da sua veracidade, nem pela recente utilização de textos literários pelos historiadores, uma vez que neste caso perdem a sua natureza literária para serem reconduzidos ao estatuto de documento, válidos porque mostrando, de um outro modo, o que a análise social estabeleceu pelos seus próprios processos. O texto individual torna-se assim uma ilustração ‘vivida’ das leis da quantidade. Essa reflexão de Roger Chartier destaca a distinção entre dois enfoques históricos mobilizados por historiadores: economia e sociedade. A divisão do trabalho histórico implica uma diferenciação nos materiais utilizados em cada campo, onde textos “documentais” revelam a realidade antiga e textos “literários” são considerados ficcionais, não testemunhos diretos da realidade, embora se configurem em importante material para tornar público representações de determinada época. Esse entendimento ressalta a importância da crítica dos documentos para revelar a verdade sobre o passado, ao mesmo tempo em que reconhece a natureza ficcional dos textos literários. No entanto, Chartier observa que, mesmo com a utilização recente de textos literários pelos historiadores, eles podem adquirir valor documental quando são reinterpretados à luz das análises sociais e ajudam a ilustrar as leis da quantidade de maneiras diferentes. Relacionando isso à minissérie Anos rebeldes, cuja abordagem diz respeito a um período histórico específico, pode-se perceber a aplicabilidade dessas ideias. A série pode ser analisada não apenas como uma representação fiel dos eventos históricos, mas também como uma construção de mentalidades e ideias da época em que foi produzida. Os diálogos, as 69 representações visuais e as escolhas narrativas da série podem oferecer reflexões não apenas sobre os eventos retratados, mas também sobre como as pessoas daquela época percebiam e interpretavam esses eventos. Dessa forma, a análise histórica da série pode incorporar tanto elementos documentais quanto literários, considerando-os como fontes valiosas para compreender o passado. Bernardet e Alcides Freire Ramos (1994, p. 16) seguem mesma linha de raciocínio. Segundo eles: Não é difícil compreender que o discurso sobre História está intimamente ligado ao presente e à luta política. Impor uma determinada interpretação histórica é, ao mesmo tempo, impor a sua leitura do presente, tomando posição no jogo político em favor de um dos grupos em luta. Considerando que a interpretação da história é influenciada pelo presente, os autores ressaltam que a importância de entender as dinâmicas políticas, ao analisar textos históricos, é relevante para debates contemporâneos sobre como a história é ensinada, representada e como as diversas interpretações históricas podem moldar ou refletir nos debates políticos em seu campo de estudo. O ator, como profissional encarregado de dar vida aos personagens de ficção, desempenha um papel crucial na representação destas narrativas, especialmente na televisão, onde a intensidade dessa dinâmica é notavelmente acentuada. Conforme destacado por Pallottini (2012, p. 123), na dramaturgia televisiva, a fusão entre o valor do espetáculo, o valor- palavra e o valor-imagem evidencia a influência significativa do ator e do seu carisma. Essa fusão se torna cada vez mais dominante, a ponto de se misturar e se confundir com a própria personagem, conferindo-lhe uma presença poderosa na tela. A representação para Ricouer (1994, p. 289), a exemplo, trata-se de: […] palavra ‘representância’ [, que] condensa em si todas as expectativas, todas as exigências e todas as aporias ligadas ao que também é chamado de intenção ou intencionalidade historiadora: designa a expectativa ligada ao conhecimento histórico das construções que constituem reconstruções do curso passado dos acontecimentos. Ricouer destaca a importância da palavra “representância” ao encapsular diversas expectativas, demandas e desafios relacionados ao que também é denominado intenção ou intencionalidade historiadora. O termo é apresentado como uma expressão abrangente que incorpora uma série de expectativas e exigências. Isso sugere que o processo de representar historicamente vai além de uma simples recriação factual, envolvendo uma gama complexa de elementos e considerações. A abordagem do historiador ao passado é guiada por intenções 70 específicas, implicando uma consciência deliberada e uma orientação interpretativa na construção do conhecimento histórico. E essa expectativa sugere a busca por uma compreensão profunda e significativa do passado, envolvendo uma análise crítica das construções históricas. De natureza interpretativa e construída da narrativa histórica, apontando para o desafio de representar eventos passados de maneira precisa e fiel. A busca pelo conhecimento histórico envolve não apenas desafios práticos, mas também considerações teóricas e filosóficas que permeiam a intenção historiadora. Na obra cinematográfica Anos rebeldes, Gilberto Braga erigiu um fundamento em sua relação de excepcionalidade com a acepção socialmente reconhecida do mundo real. Em outras palavras, na referida minissérie, o autor imprimiu uma perspectiva da realidade, instituindo uma linguagem intrinsecamente apta a interagir e delineando um discurso que não apenas veicula emoções, mas também incute elementos idealistas. Ao relacionar a citação anterior com a minissérie em estudo, é possível buscar cenas que retratem a vida cotidiana durante o regime militar no Brasil. A série pode ilustrar como personagens lidam com as restrições e inseguranças enquanto tentam manter uma aparente normalidade em meio ao contexto político tenso. A análise das cenas à luz da citação permitirá uma compreensão mais profunda de como a minissérie aborda a resistência da sociedade diante das adversidades políticas da década de 60 a 70. Sirkis (2014, p. 26-27) menciona em seu livro Os Carbonários: Há alguns anos cedi à Rede Globo os direitos de uso de alguns episódios de Os carbonários que junto com o livro de Zuenir sobre 1968 serviu de fonte para a série Anos rebeldes de Gilberto Braga. Vi alguns capítulos com interesse, mas sem me envolver. O que me emocionou mesmo foi a abertura, com ‘Alegria Alegria’. Já me acostumei a assistir todos os filmes e séries sobre aquela época com os olhos de simples espectador de obras de ficção, sem a angústia de quem espera ver na tela ou telinha sua própria vida. Isso me é salutar e me ajuda a respeitar a criação artística dos outros, sem aquele sentimento de que estão me despossuindo de meu passado, deturpando–o. Na verdade é muito difícil (mas não impossível) recriar o clima psicológico, o astral, a paixão daqueles anos nos veículos audiovisuais. Acho que o filme que mais se aproximou disso foi um dos menos diretamente ‘políticos’, o Nunca fomos tão felizes, de Murilo Salles, que conta a história da relação de um pai guerrilheiro com um filho ‘alienado’. Muitas obras houve e, pelo fascínio – para mim meio incompreensível – que esse período continua a exercer, muitas ainda haverá. Depois surgirão os livrões dos historiadores, bem documentados, objetivos, pesquisados com base em toda a documentação que hoje já está acessível. 71 Sirkis enfatiza a dificuldade, mas não impossibilidade, de recriar o clima psicológico, o astral e a paixão daqueles anos em produções audiovisuais, além de deixar bem clara a diferença entre obras memorialísticas e acadêmicas. O filme Nunca Fomos Tão Felizes, de Murilo Salles, como aquele que mais se aproximou desse objetivo, apesar de não ser diretamente político, focando na relação entre um pai guerrilheiro e um filho que não se detinha às questões políticas, considerado, para usar o termo comum à época, “alienado”. O autor expressa um fascínio incompreensível que o período exerce sobre muitas pessoas, e reconhece que ainda haverá muitas obras abordando esse tema. Ele antecipa a chegada de extensos livros de historiadores, baseados em documentação tornada pública, o que permitirá análises objetivas, ou seja, não apenas que evocam a subjetividade da memória, a respeito do período. Sirkis ressalta a importância de respeitar a criação artística dos outros e destaca a inevitabilidade de surgirem novas interpretações e representações sobre esse momento da história. Na concepção de Ventura (2018, p. 31): A efervescência criativa de 67 não era por certo um mal sinal. Terra em transe, Quarup, o Tropicalismo, Alegria, alegria, O rei da vela talvez fossem só o começo. Além do mais, o movimento estudantil, cujas entidades haviam sido postas fora da lei pelo golpe de 64, vinha se reorganizando e mobilizando a massa de secundaristas e universitários. Diversas expressões artísticas e movimentos culturais desse período, tais como o filme Terra em Transe, o livro Quarup, o movimento musical Tropicalismo, a canção Alegria, Alegria e a peça teatral O Rei da Vela. Na minissérie Anos rebeldes, essas obras e movimentos são referenciadas contextualizando–as no enredo para retratar a efervescência cultural da época. Essas criações e manifestações artísticas marcavam apenas o início desse período efervescente. Logo, as primeiras cenas da série podem estabelecer o contexto inicial dessa efervescência, possivelmente apresentando eventos culturais marcantes da época. Além disso, Ventura destaca a reestruturação do movimento estudantil, proibido após o golpe militar de 1964. As cenas retratam a reorganização do movimento estudantil, ilustrando como os estudantes se mobilizaram novamente apesar das adversidades políticas. Ele também ressalta que, mesmo com as entidades estudantis sendo postas fora da lei, o movimento estudantil estava se reorganizando e conseguindo mobilizar um grande contingente de estudantes secundaristas e universitários. As cenas podem representar essa mobilização, mostrando a participação ativa de estudantes secundaristas e universitários em protestos, debates e atividades políticas. 72 Se a minissérie pode enfatizar esse papel, mostrando como as ações dos estudantes influenciaram o panorama político e cultural daquele período, cumpre observar a retomada do ativismo estudantil, que desempenhou um papel relevante nos acontecimentos políticos e culturais daquela época. Tanto na trama quanto na vida real, as ações dos estudantes influenciaram o panorama político e cultural daquele período, sobretudo em função de reações as mais variadas, fossem as tidas por revolucionárias ou reformistas. As pessoas dedicadas à produção dedicaram-se a confecionar recursos os mais variados, a exemplo de apresentar manchetes de jornais e documentos, com a intenção de apresentar conteúodo factual da época. Estes elementos contextualizam o espectador, por exemplo, no ano de 1979, marcado pela promulgação da Lei da Anistia e pelo retorno das personagens João Alfredo e Marcelo do exílio. Conforme indicado pelo site Memória Globo, a maior parcela das sequências da minissérie foi capturada em estúdio, incorporando reconstituições temporais do Teatro Opinião e da fachada do cinema Paissandu. Tais recriações foram meticulosamente concebidas pelo cenógrafo Mário Monteiro e pela produtora de arte Cristina Medicis, responsável pela elaboração dos objetos presentes nas cenas. Adicionalmente, os painéis documentais em preto e branco, exibidos ao longo da minissérie, foram concebidos pelo cineasta Silvio Tendler, mediante uma extensa pesquisa fundamentada em imagens de época, fotografias e recortes de jornais (Tendler apud Nunes, 1992, p. 8). Para Balogh (2004), na elaboração de Anos rebeldes, Gilberto Braga contou com a vantagem de ter vivenciado sua juventude justamente no período abordado. O diretor Denis Carvalho providenciou aos atores uma variedade de informações para aprimorar o entendimento da época, inclusive depoimentos de Bete Mendes, uma militante política durante os anos retratados na série (Balogh, 2004). Segundo Patriota (2018, p. 169): As palavras do filósofo alemão, juntamente com as de Brecht e de Vianinha, vêm ao encontro do debate que, de alguma maneira, permeou as questões políticas e intelectuais da sociedade brasileira nas décadas de 1960 e 1970, especialmente com relação a profissionais que continuaram a atuar no decorrer dos anos de 1970, depois da derrota da luta armada do exílio de inúmeros opositores do regime militar. As circunstâncias históricas de então colocaram uma pá de cal nas expectativas revolucionárias de segmentos de oposição ao governo e, diante dessa nova realidade, ganharam maior aderência social as bandeiras em favor da redemocratização e do restabelecimento do Estado de Direito. Sob esse prisma, a normalidade estabelecida pelo estado de exceção fora mantida. As instituições sociais, a economia e a vida política, em meio a todos os cerceamentos do Estado autoritário (vide os atos institucionais) mantinham–se em funcionamento. Nesse processo, a vida cotidiana, com 73 todas as suas obrigações, continuou, apesar das restrições e inseguranças a que os cidadãos estavam submetidos. O contexto histórico brasileiro das décadas de 1960 e 1970, destacando as palavras de filósofos, como Bertolt Brecht, e dramaturgos, a exemplo de Vianinha. O debate que permeou as questões políticas e intelectuais nesse período, especialmente em relação aos profissionais que persistiram em suas atividades após a derrota da luta armada e o exílio de opositores do regime militar. Ressaltam-se, assim, as circunstâncias históricas da época, que colocaram um fim nas expectativas revolucionárias de certos segmentos de oposição ao governo. Com a derrota da luta armada, ganharam destaque as bandeiras em prol da redemocratização e do restabelecimento do Estado de Direito. Mesmo diante do estado de exceção imposto pelo regime militar, as instituições sociais, a economia e a vida política continuaram funcionando, mantendo uma aparente normalidade. No processo descrito, a vida cotidiana persistiu, embora sujeita a restrições e inseguranças decorrentes das ações do Estado autoritário, notadamente expressas nos atos institucionais. Esse trecho destaca a resiliência da sociedade brasileira diante das adversidades políticas da época, sublinhando como as pessoas continuaram a cumprir suas obrigações cotidianas apesar das condições difíceis impostas pelo governo autoritário, elemento que a minissérie também ajuda a construir, ainda que o enfoque tenha sido demonstrar que determinados setores não viam saída a não ser tomar em armas. Justamente por isso, convém analisar o retrato que a minissérie construiu dos jovens daquela geração, não perdendo de vista que a obra ficional foi ambientada num período de oito anos, de 1964 a 1971, ou seja, parte-se do momento ainda democrático, num verão agitado de 1964, e adentra-se no governo militar. Por isso, a escolha dos diretores, ou seja, a divisão em três grandes blocos não foi despretensiosa, uma vez que se trata de um sequência lógica que apresenta as mudanças ocorridas ao longo do tempo: os anos Inocentes, Rebeldes e de Chumbo, a serem explorados no decorrer deste estudo. 2.3 Retratos da época: os jovens de Anos rebeldes A narrativa da minissérie aborda o romance entre João Alfredo e Maria Lúcia, ambos estudantes no Colégio Pedro II, situado no Rio de Janeiro, em meio ao contexto da ditadura no Brasil. João, um jovem profundamente engajado nos acontecimentos dos anos 60, contrasta com a total alienação de Lúcia, para se valer do termo da época. Os dilemas e escolhas 74 enfrentados pelos protagonistas revelam-se como obstáculos fundamentais para a concretização de seu amor. De acordo com o relato de Gilberto Braga, a história de amor do casal chave da trama surgiu da seguinte forma: Um dia, tive um estalo: a story–line de Nosso amor de ontem, filme de Sydney Pollack a qual eu assistira há muitos anos, poderia ajudar. The Way We Were (no original, em inglês) é um roteiro de Arthur Laurents no qual ideologias opostas separam o casal principal, formado por Barbra Streisand, a politicamente engajada, e Robert Redford, o individualista. Tomei a story– line do filme, ou seja, seu enredo, como ponto de partida para criar uma história passada nos anos 60, no Brasil, e troquei o sexo dos protagonistas. Na minissérie, a individualista é Maria Lúcia e o idealista é João Alfredo, interpretados por Malu Mader e Cássio Gábus Mendes. Laurents escreveu um esplêndido roteiro, mas acho que acabei dando mais sorte do que ele. Certamente por questões de escalação e empatia de atores, vejo no filme a história de uma comunista chatíssima que se casa com um adorável rapaz de direita, e isso me faz pender o tempo todo para o lado do personagem de Robert Redford. Já na minissérie, escrevemos sempre em cima do muro, tentando não privilegiar um ou outro personagem do casal principal. Para isso, fizemos com que Maria Lúcia e João Alfredo alternassem momentos de chatice. Na verdade, os dois são como pessoas bem próximas a nós, com qualidades e defeitos que Malu Mader e Cássio Gabus Mendes defenderam extraordinariamente bem. Assim, o resultado final me parece bem mais equilibrado do que o do filme Pollak (Braga, 2010, p. 24). Braga decide utilizar a estrutura narrativa desse filme como ponto de partida para criar uma história situada nos anos 60, no contexto brasileiro. Uma das mudanças significativas é a inversão dos papéis de gênero: na minissérie, Maria Lúcia é a personagem individualista, enquanto João Alfredo representa o idealista. Interpretados por Malu Mader e Cássio Gabus Mendes, respectivamente, eles encarnam essas personas em um contexto de turbulência política. O autor destaca que, ao contrário do filme original, onde percebe uma inclinação a favor do personagem de Robert Redford, a minissérie é construída de maneira mais equilibrada. Braga opta por não favorecer um dos protagonistas, Maria Lúcia e João Alfredo, tentando retratá-los de forma mais imparcial. Para atingir esse objetivo, os personagens alternam momentos de chatice, tornando-se mais próximos e humanos para a audiência. 75 Figura 1 - André Pimentel (Waldir), Cássio Gabus Mendes (João Alfredo), Pedro Cardoso (Galeno), Marcelo Serrado (Edgar), Malu Galli (Jurema), Paula Newlands (Lavínia) e Malu Mader (Maria Lúcia) em Anos rebeldes, 1992 Fonte: https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/minisseries/anos-rebeldes/noticia/curiosidades.ghtml. Acesso em: 10 jan. 2024. A diferença entre ser reformista e revolucionário é fundamental nesse contexto. Maria Lúcia é representada a partir de postura individualista, uma vez que apenas pensa em sua realidade, divergindo não apenas da postura de seu pai, Orlando Damasceno (Geraldo Del Rey) considerado um reformista, porque inclinado às mudanças dentro do sistema estabelecido, mas também de seu namorado, João Alfredo, que personificou o espírito revolucionário, buscando transformações mais profundas e radicais na sociedade, ainda que para isso fosse necessário pegar em armas. Aqui, cumpre destacar as considerações de Zuenir Ventura (2018, p. 71-72): Uma boa indicação política passava pela adoção de uma ou outra dessas linhas. Classificavam-se as pessoas como se classificam os torcedores: ‘fulano é revolucionário, fulano é reformista’; ou melhor: ‘fulano é esquerdista, porra – loca’; ou, ao contrário, ‘partidão, conciliador’. Mas era preciso não confundir revolucionário com rebelde, um tipo marginal de classe média, conscientizado, politizado, mas no fundo um adepto parcial da razão burguesa. Isso é o que ensinava o ‘revolucionário’ Luiz Carlos Maciel em longo ensaio na Revista Civilização Brasileira, estabelecendo uma distinção: No rebelde, a contradição entre a negação e a afirmação simultânea do real é meramente formal e, portanto, insolúvel; no revolucionário, ela deve ser dialética e conduzir diretamente à ação, onde encontra uma solução prática. Em termos teóricos, para identificar um revolucionário ou um reformista, era necessário recorrer a uma bibliografia que ia de Marx e Lênin a Che Guevara e Régis 76 Debray, passando por Lukács, Gramsci, Marcuse e Althusser, ou pelos brasileiros Caio Prado Júnior ou Celso Furtado. Em termos práticos, porém, o reconhecimento se fazia à primeira vista. Ser revolucionário era uma moda in, ser reformista era out. O vestibular para ingresso na modernidade exigia uma boa nota em radicalismo. ‘Eles estavam mais sincronizados com o tempo’ reconheceria Teresa Aragão, falando agora dos seus adversários in de então (Ventura, 2018, p. 71-72). Em Anos rebeldes, a distinção entre reformistas e revolucionários desempenha um papel crucial na representação das diferentes perspectivas políticas e ideológicas durante o período da ditadura militar no Brasil. Assim, destaca-se a importância dessa distinção e seu impacto na dinâmica social e política da época. No contexto da narrativa da minissérie, a dualidade entre reformistas e revolucionários reflete as tensões ideológicas que permearam a resistência ao regime autoritário. A diferenciação entre esses grupos era, muitas vezes, simplificada, como mencionado na citação, pela categorização superficial de ser revolucionário ou reformista, uma prática comum naquele período. É destacado a relevância política dessa distinção, indicando que a adesão a uma ou outra linha ideológica tinha implicações significativas na forma como os indivíduos eram percebidos e avaliados na sociedade da época. A comparação com torcedores de times de futebol, embora simplista, bem ilustra como essas identidades políticas eram muitas vezes polarizadas, além de como era comum aplicar rótulos em função de escolhas ideológicas. A narrativa da minissérie aborda complexidades ao retratar personagens que adotam diferentes posturas políticas. A interação entre reformistas e revolucionários na trama provavelmente contribui para a construção de um panorama político mais completo e fiel ao período histórico em questão. Dessa forma, a minissérie destaca a complexidade dessas ideologias opostas, explorando nuances e desafios enfrentados pelos personagens em meio a um cenário político conturbado. E a proposta é oferecer uma narrativa equilibrada e mais próxima da realidade, diferenciando-se da dinâmica percebida no filme original que inspirou a criação da série brasileira. 77 Figura 2 - Reportagem da Revista Veja no lançamento da minissérie em 1992 Fonte: anosrebeldes2011.blogspot.com. Acesso em: 10 jan. 2024. João Alfredo, interpretado por Cássio Gabus Mendes, inicia a minissérie aos 19 anos e a conclui com 27 anos. Seu percurso começa como estudante no curso clássico do Colégio Pedro II, liderando um grupo de quatro jovens, cujas vidas acompanhamos de perto. Originário de uma família de classe média da Zona Sul, João Alfredo enfrenta uma oposição radical por parte de seus familiares - seu pai sobretudo, Lacerdista ferrenho - à sua participação política, evidenciando as fissuras ideológicas nas relações familiares em um contexto politicamente conturbado. Proveniente de uma família lacerdista da classe média carioca, emerge como um jovem revolucionário com a aspiração de transformar a situação política, econômica e social do país. Escolhe o caminho da luta armada, abdicando do amor de Maria Lúcia - uma jovem individualista, filha de Damasceno, jornalista engajado, e Dona Carmem, dona de casa dedicada ao cuidado doméstico, do marido e da filha, o que bem demonstra os valores atribuídos às mulheres naquela época. A busca de liberdade de Maria Lúcia limita-se ao desejo de possuir seu próprio quarto. Ela desiste de João, seu grande amor, por receio de envolver-se com alguém comprometido com os interesses coletivos. Essa intricada relação amorosa convida a refletir a https://anosrebeldes2011.blogspot.com/2011/05/ 78 respeito de dois extremos do panorama social e político do Brasil nos anos 1960: a alienação representada no comportamento de Maria Lúcia, refletindo parte da sociedade, e a indignação daqueles que se rebelavam contra a ditadura, personificada nas atitudes de João Alfredo. Paradoxalmente, essa mesma família oferece apoio emocional incondicional, destacando a intrincada interseção entre o público e o privado na trajetória do protagonista. Diferentemente de Maria Lúcia, João Alfredo vem de uma família com três irmãos e nunca experimentou grandes dificuldades financeiras, mesmo porque seu pai, ao que tudo indica, provedor do lar, era comerciante, condição totalmente diversa da família de Maria Lúcia, cujo pai era escritor e jornalista, portanto, sempre com a condição financeira deficitária. Apesar disso, suas ambições não são materialistas, sendo impulsionado por uma forte ideologia que transcende as convencionalidades materiais. A imagem simbólica de João Alfredo, confortável no meio da rua e carregando apenas uma mala com poucos pertences, visualmente retrata sua desvinculação de normas sociais e seu compromisso com uma vida mais alinhada com seus ideais revolucionários. Essa representação simbólica destaca a disposição do personagem em abdicar de confortos materiais em prol de suas convicções políticas. Embora João Alfredo não se enquadre estritamente na categoria de líder revolucionário, seu envolvimento na luta armada e participação em um sequestro fictício de um embaixador suíço em 1970 o coloca no epicentro das atividades políticas do período. Sua evolução ao longo da narrativa, permeada por desafios emocionais, questões familiares e compromissos ideológicos, oferece uma janela perspicaz para compreender as tensões e dilemas enfrentados pela juventude brasileira em um período crucial de transformação histórica e política, mesmo porque cabia aos membros do movimento dedicação integral à causa, o que a minissérie não se furtou em demonstrar. A também jovem Maria Lúcia, por sua vez, cujo papel é desempenhado por Malu Mader, inicia na minissérie aos 18 anos e conclui com 26 anos. Sua jornada começa como estudante no curso clássico do Colégio Pedro II em 1964. Filha de um jornalista e escritor com afinidades políticas à esquerda, um intelectual vinculado ao Partido Comunista Brasileiro (também amplamente conhecido pela alcunha Partidão), Maria Lúcia enfrenta uma tragédia com o falecimento de seu pai em 1967, deixando a família em uma situação financeira complicada. Ao longo da trama, Maria Lúcia encontra-se em um dilema amoroso entre dois jovens, o que se estende por todo o período retratado: João, o idealista, e Edgar, o individualista e pouco afeito a compreender os problemas de sua época. O cerne da narrativa é o conflito entre o individualismo e o idealismo, uma dualidade que se desenrola em um período recente e 79 tumultuado da história do país. O anseio primordial de Maria Lúcia é buscar segurança e algum nível de conforto. Inicialmente, ela é uma adolescente que deseja um espaço só seu, pois o seu quarto também faz as vezes de escritório e biblioteca de seu pai, ambiente utilizado com frequência para reuniões confidenciais que não podem ocorrer na sala de estar, privando-a de privacidade. Anos mais tarde, já adulta e após sofrer perdas significativas, Maria Lúcia enfrenta o desafio de dar um ultimato ao seu namorado engajado. Ela confronta a escolha entre se envolver na luta armada ou manter o relacionamento com ele. Não se pode perder de vista que o dilema amoroso enfrentado por Maria Lúcia, dividida entre João, o idealista, e Edgar, o individualista, funciona como um veículo para explorar questões mais amplas relacionadas ao conflito entre ideais e individualismo. Este embate é exacerbado por um contexto histórico tumultuado, ressaltando a tensão entre a busca por ideais coletivos e a necessidade pessoal de estabilidade e segurança. A busca de Maria Lúcia por um espaço próprio e privacidade, inicialmente simbolizada pelo desejo de um quarto exclusivo, aprofunda-se à medida que ela amadurece. O conflito entre o engajamento na luta armada e a manutenção de um relacionamento amoroso apresenta-se como uma encruzilhada que reflete não apenas as escolhas individuais da protagonista, mas também as tensões sociais e políticas da época. O relacionamento romântico de Maria Lúcia envolve João Alfredo, cuja busca por um país melhor coloca em suspeição a continuidade de seu relacionamento amoroso, tendo em vista as diferenças que saltam aos olhos entre ambos. Ao se conscientizar da crise política global, da ausência de liberdade e das injustiças sociais, João Alfredo passa a enxergar o Brasil sob uma nova perspectiva, envolvendo-se em movimentos políticos de esquerda. A transformação de João Alfredo é evidenciada quando ele toma consciência da crise política global, da falta de liberdade e das injustiças sociais. Essa revelação altera sua percepção do Brasil, levando-o a adotar uma nova perspectiva. A decisão de se envolver em movimentos políticos de esquerda representa sua resposta ativa a essas questões, marcando um ponto de virada em sua trajetória. Sobre o triângulo amoroso de João Alfredo, Maria Lúcia e Edgar, no mais das vez escanteado, Gilberto Braga menciona que: Sempre temi que o público, a certa altura da trama, ficasse contra Maria Lúcia, contra sua insistência na relação com João, tendo Edgar sempre à espera. O personagem de Edgar é muito simpático e Marcelo Serrado é um ator bonito e carismático, um tipo fácil de cair no gosto das mulheres. Ele é o certinho, o genro que todas as senhoras querem ter. Isto seria suficiente para que o público torcesse por Edgar em vez de torcer por João. Mas eu confiava na força de Cássio Gabus Mendes. Sabia que, se Maria Lúcia gostasse de verdade do personagem de Cássio, o público ficaria do lado dele. É mais ou menos assim: 80 se a narrativa determina quem é o casal, pronto, o casal está definido (Braga, 2010, p. 84-85). Braga conclui que na força da interpretação e da conexão emocional entre os personagens, aliada à habilidade dos atores, é fundamental para determinar a empatia do público e o desenvolvimento dos relacionamentos na trama da minissérie, o que bem demonstra que a ideia é permitir que o produto caia no gosto popular. Logo, o ponto central a se discutir é o fato de Anos rebeldes, embora tenha tratado de assunto necessário para educar o olhar cidadão a respeito da História nacional, não se furta a lançar mão de recursos próprios do campo dramatúrgico, com a finalidade principal de atrair o público, conquistar a audiência e, ainda que indiretamente, aumentar o prestígio da emissora que trasmite a minissérie. A título de comprovação a esse respeito, encontra-se uma entrevista concedida por Malu Mader para a BBC News Brasil (Silva, 2022), em que ela fala que, ao tomar conhecimento do roteiro, se descontentou ao saber que não representaria a personagem Heloísa, o que demonstra, talvez, que essa figura era mais atrativa do público ou do seu gosto particular: “Lembro de ter pensado ‘puxa, queria fazer a Heloísa’, conta a atriz, referindo-se à jovem da alta sociedade carioca que adere à luta armada para combater a ditadura militar brasileira na década de 1960, vivida por sua colega de elenco Cláudia Abreu” (Silva, 2022). Figura 3 - Maria Lúcia, João Alfredo e Edgar Fonte: Acervo jornal O Globo. Disponível em: https://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/anos-rebeldes-fez- sucesso-na-tv-ao-retratar-luta-contra-ditadura-militar-21540506. Acesso em: 10 jan. 2024. Malu Mader, ao desejar interpretar o papel da personagem Heloísa, pode estar expressando uma identificação ou empatia com a escolha dessa personagem de se envolver na luta armada. Isso pode sugerir um interesse em compreender as motivações e as complexidades das pessoas que, mesmo fazendo parte da alta sociedade, decidiram aderir a métodos mais 81 radicais de resistência, isto é, Heloísa, a princípio, enquadrava-se apenas na condição de rebelde, pois era apenas contrária ao regime militar. Condição que acabou por ser alterada, haja vista suas escolhas, tendo adentrado no movimento armado. No que respeita a Edgar, magistralmente interpretado por Marcelo Serrado, sua jornada inicia-se aos 19 anos e conclui-se aos 27, Sua presença na trama extrapola os limites de antagonista, pois adiciona nuances intrigantes à narrativa, desafiando convenções e enriquecendo a profundidade da história. Dotado de inteligência afiada, ambição palpável e uma notável integridade, Edgar destaca-se como um personagem envolvente para os demais integrantes da trama e para o próprio público. Sua rivalidade com João Alfredo, tendo em vista a disputa por Maria Lúcia, não apenas introduz um elemento romântico, mas também revela as complexidades das relações entre amigos próximos. Sendo o único do grupo a praticar esportes regularmente, Edgar simboliza a dualidade entre a juventude efervescente e o amadurecimento inevitável, oferecendo uma visão do que o futuro teria a reservar a essa geração. A relação afetuosa com sua mãe viúva, Regina, aprofunda a compreensão de suas motivações e valores, especialmente diante das limitadas memórias de seu falecido pai durante a infância. Sua paixão profunda por Maria Lúcia, contrastando com a abordagem mais idealista de João Alfredo, cria uma tensão adicional na narrativa, explorando diferentes perspectivas sobre o amor e o compromisso de um casal de namorados, o que também convida a refletir sobre rigidez dos padrões de relacionamento da época. A ascensão meteórica de Edgar em sua carreira após concluir os estudos em economia adiciona um elemento de conflito profissional à trama, especialmente quando confronta Waldir na disputa pelo controle de uma editora. Essa trama secundária destaca não apenas as ambições individuais de Edgar, mas também a interseção entre as esferas pessoal e profissional na construção de sua identidade. Embora o papel de Edgar possa ser menos proeminente na sinopse, sua complexidade é crucial para a riqueza da narrativa. Sua caracterização como um personagem cativante, com valores, ambições e desejos distintos, contribui para a complexidade das relações interpessoais e dos dilemas morais enfrentados pelos protagonistas. A ênfase na amizade entre João Alfredo e Edgar, mesmo em meio a divergências ideológicas, acrescenta uma camada adicional de profundidade à trama, tornando-o um elemento valioso na tessitura narrativa. Capítulo 1 ao 6 – Anos Inocentes - Cena 9, capítulo 2: Apartamento de Maria Lúcia (INT DIA) Dia seguinte, domingo, Abre no Quarto de Maria Lúcia, mais bagunçado que nunca, os livros todos pelo chão, Edgar no alto de uma escada entregando livros a João, que os vai separando por assuntos. Maria Lúcia organizando 82 outra pilha. Damasceno vai entrar vindo da rua. Quando Damasceno falar com João, Edgar deve se relacionar a Maria Lúcia, levando pilha de livros. Edgar – Esse aqui do Caio Prado Júnior é história ou sociologia? Damasceno – História. Cumprimentos informais, beijo em Maria Lúcia. João – Como é que tão as coisas no jornal, seu Damasceno? Damasceno – Vou remando contra a maré. Corta para Edgar e Maria Lúcia, à parte. Edgar – Depois que arrumar vai sobrar tanto espaço no seu quarto, cê vai ver só... Maria Lúcia – Quando tiver grana o que precisava era fazer as obras que a gente sempre quis fazer. Corta descontínuo para, vários dias depois, final de tarde, Edgar e João terminando de arrumar os últimos livros, agora o quarto arrumadíssimo. João no alto da escada e Edgar entregando livros. Edgar – Teatro aí tão em cima, será que não vai ser ruim pra Maria Lúcia, não? João – Semana passada ela disse que tava bom. Acho meio engraçado, Edgar, a Maria Lúcia fala como se um quarto fosse a coisa mais importante na vida duma pessoa! Edgar – Nunca teve um quarto direito, João! Eu, se não tivesse o meu quarto, ia me fazer muita falta sim. (passa livro) Anda logo que eu tenho treino de basquete! Maria Lúcia entra com limonada e sanduiche pros três. Vê que os livros estão arrumados. Maria Lúcia – (contentíssima) Eu não acredito! Os três se servem, contentes. João – (paquerando) Pra comemorar a gente bem que podia pegar um cineminha. Maria Lúcia – Pra mim era ótimo. Edgar – (muito interessado, paquerando) Que filme que você tá a fim de ver? João – (sentindo–se traído) Você não tem treino de basquete, Edgar? Edgar – (inventa) Eu... Dei um jeito na perna, acho que pinçou um nervo, não vai dar pra jogar essa noite, não. João olha Edgar com um pouco de raiva do “traidor” (Braga, 2010, p. 132- 133) A cena acima se passa no quarto de Maria Lúcia, onde João, Edgar e Damasceno estão organizando livros. Inicialmente, retrata a bagunça no quarto, com livros espalhados pelo chão. Damasceno entra, cumprimenta João e Maria Lúcia, e a conversa se desenrola sobre o trabalho no jornal. Posteriormente, em outro momento, vários dias depois, João e Edgar estão terminando de arrumar os livros, e o quarto encontra-se organizado. Edgar comenta sobre a possibilidade de Maria Lúcia sentir falta do espaço que foi liberado com a organização. João, por sua vez, expressa surpresa pela importância que Maria Lúcia atribui ao quarto. A cena continua com Maria Lúcia trazendo limonada e sanduíches para os três, mostrando-se muito contente com a organização do quarto. João sugere comemorar indo ao cinema, e Maria Lúcia e Edgar concordam. No entanto, a atmosfera muda quando João percebe que Edgar mentiu sobre um treino de basquete para 83 passar mais tempo com Maria Lúcia. A cena termina com João olhando para Edgar com um pouco de raiva por se sentir traído. A dinâmica da cena destaca a relação entre os personagens, as diferentes perspectivas sobre a importância do quarto e o início de um conflito, pois João percebe a mentira de Edgar em relação ao treino de basquete. Galeno, interpretado por Pedro Cardoso, inicia sua trajetória na minissérie aos 19 anos e a encerra aos 27. Sendo colega do Colégio Pedro II, ele estabelece uma estreita amizade tanto com João Alfredo quanto com Edgar, tornando-se uma peça essencial na dinâmica do grupo ao longo dos anos. A peculiaridade de Galeno, evidenciada por sua habilidade em inserir toques de humor mesmo nas situações mais desafiadoras, não apenas proporciona momentos de alívio cômico à trama, mas também destaca sua notável resiliência. Seu senso de humor constante torna-se uma característica distintiva e resistente, moldando sua abordagem única diante das complexidades da vida. A perda precoce dos pais na infância e a convivência com uma irmã casada com um militar acrescentam camadas de melancolia à história de Galeno. Sua profunda nostalgia pela família, especialmente pelos pais e irmãos, revela um aspecto fundamental de sua identidade, alimentando suas aspirações artísticas, sobretudo no teatro e cinema. A dedicação de Galeno à escrita de peças teatrais durante os anos escolares e seu desejo de estabelecer um grupo de teatro evidenciam sua busca pela expressão artística e liberdade criativa. Sua participação no movimento hippie, culminando em uma cena de nudez na produção da peça Hair, destaca sua disposição em explorar novas formas de expressão e aderir a valores contraculturais. A revelação gradual de que Galeno não é tão excêntrico quanto inicialmente aparenta representa uma narrativa cuidadosamente construída. Isso permite que os valores positivos da era hippie permeiem sua personalidade ao longo da minissérie. Sua evolução para se tornar um renomado escritor de televisão destaca não apenas seu crescimento profissional, mas também sua capacidade de adaptar e incorporar ideais progressistas em seu trabalho. Sua habilidade de manter uma conexão próxima com ambos, apesar das divergências ideológicas entre eles, ressalta sua função como elemento unificador na narrativa. A decisão final de Galeno de escrever uma novela sem utilizar a palavra “escravo”, no último capítulo, demonstra uma consciência social e um posicionamento político tardio, evidenciando como os personagens da trama são afetados e moldados pelos eventos históricos em curso, neste caso a censura federal. A conversa entre Galeno e Waldir sobre o início do novo emprego cria uma ponte para a discussão de assuntos mais sérios, como o artigo que Galeno escreveu para o jornal sobre a obra do cineasta Visconti. O tópico sobre os problemas de censura enfrentados por Visconti na 84 filmagem de Rocco (Braga, 2010, p. 139-140) adiciona uma camada de profundidade ao diálogo, indicando a presença de questões sociais e políticas na trama. O momento em que João entrega seu artigo, abordando a fome no país, sugere que a narrativa do romance está intrinsecamente conectada a questões sociais e econômicas da época. A referência às gravações do filme Rocco e aos problemas de censura apontam para uma contextualização histórica e cultural mais ampla, enriquecendo a trama. Noutras palavras, os problemas de censura enfrentados na filmagem de Rocco, embora fora do país, convidam a pensar sobre a questão da liberdade de expressão e as restrições impostas pelo regime militar em território nacional. A censura era uma prática comum durante esse período, com o governo restringindo informações e tentando controlar a narrativa para manter o poder. A menção a Visconti, um cineasta que enfrentou obstáculos devido à censura, pode simbolizar as dificuldades enfrentadas por artistas e intelectuais em meio a um ambiente de repressão. O fechamento da cena com um close no artigo de Galeno, prestes a ser lido, cria uma expectativa e sugere que os temas abordados nesse momento de descontração terão repercussões mais sérias e relevantes no desenvolvimento da narrativa. Capítulo 1 ao 6 – Anos Inocentes - Cena 23, capítulo 2: Apto de Edgar – Escritório (INT DIA) Abre em João, com Edgar e Galeno, diante de Waldir. Waldir– (eufórico) Me ofereceu até cafezinho, quando cheguei no banco com o cartão me mandaram direto pra seção de pessoal, o dono do banco é assim com ele! Gozações amáveis dos outros três. Entra Regina com lanche para os quatro. Regina – Não vou atrapalhar não, só vim trazer um lanche (vai servindo) Galeno – (a Waldir) Começas quando? Waldir – (eufórico) Segundo–feira. Galeno – Quer ver o artigo que eu terminei pro jornal sobre a obra do Visconti? João – Você lembrou os problemas de censura que ele teve na filmagem de Rocco? Galeno – Claro! Cê terminou o seu? João – (entregando) Ficou um pouco longo, mas pra falar de fome, nesse país... Galeno – Xaver aqui (Braga, 2010, p. 139-140). O personagem Waldir, por sua vez, é o quarto integrante do grupo de jovens do Colégio Pedro II, começando aos 19 anos e encerrando sua jornada aos 27, abrangendo todo o período crucial da minissérie. Sua caracterização é notavelmente marcada por uma seriedade distintiva, dedicação acadêmica e uma reserva que adiciona complexidade à sua personalidade. 85 A história inicia-se com a revelação da origem modesta de Waldir, cujo pai trabalha como porteiro em um edifício em Ipanema e tem vício em bebidas. Essa contextualização socioeconômica destaca o contraste entre ele e seus colegas, acentuando as dinâmicas de classe social que permeiam a narrativa. Sua dedicação aos estudos e o forte senso de valor pessoal destacam-se como traços que evidenciam sua determinação em superar desafios, especialmente quando sua família enfrenta uma crise financeira nos primeiros capítulos. A crise financeira serve como catalisador para a mobilização do grupo de jovens, cuja generosidade se manifesta por meio da ajuda mútua para que Waldir possa continuar seus estudos. Esse episódio inicial não apenas sublinha a importância das relações interpessoais na trama, mas também destaca a solidariedade como um elemento crucial na superação de obstáculos. No entanto, à medida que a história se desenvolve, observa-se uma mudança na atitude de Waldir. Enquanto enfrenta a competição profissional, especialmente com seu ex-colega de escola Edgar, a reciprocidade e generosidade demonstradas por seus amigos no passado não são refletidas em suas ações. Essa reviravolta revela um conflito moral intrínseco, proporcionando uma reflexão crítica sobre a complexidade das relações interpessoais em contextos profissionais e competitivos. A trajetória de Waldir, portanto, não apenas aborda a superação de desafios socioeconômicos iniciais, mas também explora a complexidade das relações humanas, os efeitos do tempo sobre a dinâmica de amizades e as implicações éticas no cenário profissional. Essa dualidade entre a generosidade passada e a falta de reciprocidade no presente oferece uma perspectiva enriquecedora sobre as tensões e dilemas que permeiam as interações ao longo do tempo. A narrativa de Waldir contribui para a complexidade da trama, enriquecendo a discussão sobre amizade, solidariedade, ascensão social e ética profissional. Os jovens envolvidos na militância daquela época caracterizavam-se por sua solidariedade intrínseca, demonstrando uma disposição recíproca de assistência mútua, aliada a uma inquebrantável determinação em resolver as questões de seus pares. Abaixo, delineia-se a representação do cenário que marca a transição na vida da família de Waldir. Capítulo 1 ao 6 – Anos Inocentes - Cena 26, capítulo 2: Apto da Família de Waldir (INT DIA) O apartamento já desocupado, malas prontas para a mudança de Xavier, Zilá e os filhos, menos Waldir, que está lá com João, despedem – se dos outros. Waldir abraça a mãe, com emoção. Depois abraça o pai. Waldir – Domingo eu tô lá, para visitar. Vê se toma juízo, hein, pai. Xavier – Você é que num vai me fazer passar vergonha na casa desse professor... Waldir sorri, paternal. Abraça o pai, com emoção. Depois pega uma mala, João pega outra. 86 João – Deixa que a gente leva essas, seu Xavier. Waldir – Vão descendo, nós fechamos tudo. Abre em João, com Edgar e Galeno, diante de Waldir. Xavier, Zilá e os irmãos de Waldir se adiantam para fora, João e Waldir ainda se demoram um instante, verificando alguma coisa. Falam à parte. Waldir – Será que não tem problema mesmo, João, ficar no quarto que era dum homem que a polícia tá procurando? João – Cê acha que o Avelar ia deixar você correr algum risco? Só tavam mesmo atrás do Juarez, coitado. E aluguel barato assim, com gente tão bacana, onde é que você ia encontrar? (Braga, 2010, p. 141-142). A passagem revela um momento marcante na trama, quando a família de Waldir prepara-se para uma mudança significativa. A conversa entre Waldir e João, enquanto empacotam suas malas, destaca uma preocupação latente relacionada à segurança. A referência ao quarto anteriormente ocupado por um homem procurado pela polícia cria uma tensão perceptível. A resposta ponderada de João, tranquilizando Waldir sobre a ausência de riscos iminentes, destaca a confiança mútua entre os personagens e, ao mesmo tempo, insere um elemento de suspense na narrativa. A personagem Lavínia é a inseparável amiga de Maria Lúcia, sua colega no Pedro II. O pai de Lavínia é proprietário de uma modesta editora, que enfrentará dificuldades financeiras e será adquirida pelo império empresarial de Fábio em 1968. Lavínia é caracterizada por sua integridade e estabelecerá uma sólida amizade com Heloísa ao longo da trama. Lavínia, personificada pela atriz Paula Newlands. Sua jornada não apenas reflete as complexidades da juventude da época, mas também oferece uma lente perspicaz para examinar as transformações que marcaram o período. Como inseparável amiga de Maria Lúcia, sua colega no Colégio Pedro II. O contexto socioeconômico de Lavínia, com o pai sendo proprietário de uma modesta editora, introduz uma dimensão adicional à sua narrativa. A abordagem das dificuldades financeiras enfrentadas pela empreendimento do pai, culminando na aquisição pelo império empresarial de Fábio em 1968, destaca não apenas as complexidades do ambiente de negócios da época, mas também ressalta as tensões sociais e as mudanças estruturais que impactaram as empresas familiares, especialmente aquelas que se dedicavam aos livros, uma vez que as ideias, sobretudo à esquerda, eram impedidas de circular. Já a personagem Heloísa, interpretada por Cláudia Abreu, inicia a novela aos 17 anos e chega aos 25 ao final da trama. Filha de um empresário proeminente, Fábio. O segundo papel feminino na narrativa, Heloísa é colega de Maria Lúcia em um curso de francês no início da trama, e uma amizade forte se desenvolve entre as duas ao longo da história. No início da trama, Heloísa revela seu desejo por independência e respeito como indivíduo, desencadeando conflitos familiares típicos da década que testemunhou mudanças substanciais nas dinâmicas 87 entre pais e filhos. Sua maturidade precoce e anseio por liberdade contribuem para as transformações nas relações familiares características da época, transcendendo as fronteiras da adolescência. A amizade entre Heloísa e Maria Lúcia, que começa como colegas de curso de francês, vai além dos limites convencionais do enredo. Ao explorar essa relação, a narrativa expõe nuances das transformações sociais e da busca por independência, desencadeando conflitos familiares que refletem as mudanças nas dinâmicas entre pais e filhos. O desejo de Heloísa por autonomia desafia normas familiares, refletindo a maturidade precoce da personagem e servindo como uma representação simbólica das aspirações de uma geração imersa em um período de efervescência cultural e social. A jornada de amadurecimento de Heloísa, marcada por conflitos familiares e pela busca por autonomia, proporciona uma lente perspicaz para compreender as tensões entre tradição e modernidade, conservadorismo e progressismo. Cláudia Abreu, através de sua interpretação, confere à Heloísa uma profundidade que transcende estereótipos. Figura 4 - João Alfredo no Diretório da Faculdade de Direito Fonte: https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/minisseries/anos-rebeldes/noticia/curiosidades.ghtml. Acesso em: 11 jan. 2024. Família da personagem Maria Lúcia: Orlando Damasceno desempenha um papel intrincado e multifacetado que transcende as fronteiras de sua identidade como pai da protagonista Maria Lúcia. A trajetória de Orlando é complexa, representando uma síntese das dinâmicas políticas, literárias e familiares da década de 1960 no Brasil. O reconhecimento de 88 Orlando como um renomado jornalista e escritor afiliado ao Partido Comunista confere uma dimensão política crucial à sua persona. Sua adesão ao Partidão na década de 1930 e sua lealdade constante a essa causa oferecem uma perspectiva para a evolução do ativismo político ao longo do século XX no Brasil. O personagem personifica a integridade ideológica, mantendo-se fiel aos seus princípios mesmo diante de desafios profissionais e pessoais. Além de sua atuação política, Orlando destaca-se como autor de obras literárias significativas, incluindo um romance aclamado que aborda a delinquência juvenil e suas raízes sociais. Essa faceta artística amplia a complexidade de sua identidade, inserindo-o não apenas no cenário político, mas também na esfera cultural e literária da época. O fato de que tanto a literatura quanto o jornalismo não lhe proporcionaram rendimentos consideráveis adiciona uma dimensão realista e atemporal às lutas de um intelectual engajado. O emprego inicial de Orlando no fictício jornal Correio Carioca, com uma orientação ideológica conservadora-liberal, introduz um conflito central em sua narrativa. Esse confronto direto com a linha editorial do jornal leva- o a considerar a busca por outro emprego, desencadeando uma onda de insegurança na família, especialmente em sua filha Maria Lúcia. Essa tensão entre convicções pessoais e pressões profissionais ilustra de maneira aguda as complexidades enfrentadas por indivíduos envolvidos em ambientes ideologicamente divergentes. O falecimento de Orlando em 1967, durante o nono capítulo da trama, representa um ponto crucial na narrativa, simbolizando não apenas a perda de um patriarca, mas também um momento de transição e reflexão para os personagens restantes. A representação magistral de Geraldo Del Rey confere uma profundidade emocional e humanidade à figura de Orlando, tornando-o não apenas um elemento da trama, mas uma voz representativa de dilemas e desafios enfrentados por intelectuais engajados em um contexto histórico específico. Damasceno proporciona uma análise multifacetada das interseções entre política, literatura e vida familiar na década de 1960 no Brasil. A personagem Carmen, interpretada por Bete Mendes, inicia a minissérie com 44 anos e a termina com 52 anos. Ela é a esposa de Orlando e mãe de Maria Lúcia. Carmen é inteiramente dependente do marido e é uma figura extremamente frágil. Ela representa o tipo de mulher comum nos anos sessenta, caracterizada pelo medo até mesmo de assinar cheques, preferindo lidar com dinheiro em espécie. Sua natureza é profundamente humana e compassiva, o que faz com que todos os personagens simpatizem com ela e adotem uma postura paternalista. Após a morte de Orlando, Maria Lúcia assume o papel de chefe da casa, já que Carmen está longe de estar preparada para lidar com a dura crise financeira e emocional que a família está prestes a enfrentar. 89 A personagem Dagmar, interpretada por Stela Freitas, inicia a minissérie com 30 anos e a termina com 38. Ela é a empregada leal da família de Maria Lúcia. A personagem Leila, interpretada por Clara Cresta, inicia a minissérie com 4 anos e a termina com 12 anos. Ela é a filha de Dagmar, a empregada da casa. Leila é notavelmente afável e é tratada com um nível de familiaridade, como se fosse parte integrante da família. Já o personagem Teobaldo, cujo papel é desempenhado por Castro Gonzaga, encontra-se com 75 anos e termina a minissérie com 79. Ele é o pai de Orlando Damasceno. Teobaldo é um idoso amável, que desfrutou de uma carreira como funcionário público. A personagem Marta, interpretada por Lourdes Mayer, inicia a minissérie com 70 anos e a termina com 78 anos. Ela é a mãe de Orlando Damasceno. D. Marta possui uma personalidade menos expansiva em comparação com seu marido, mas é notável por sua natureza afetuosa. Após a morte de Damasceno e Teobaldo, ela passa a residir com Maria Lúcia e sua mãe. Família de João Alfredo: Abelardo, com a atuação de Ivan Cândido, tem 48 anos de idade e encerra a minissérie com 56. Ele é o pai de João Alfredo, o protagonista da história, e é o dono de uma papelaria modesta, porém bem estabelecida em Ipanema. Abelardo é um ardente defensor do partido udenista e enfrentará conflitos ideológicos intensos com seu filho ao longo da trama. Valquíria, interpretada por Norma Blum, possui 41 anos de idade e encerra a minissérie com 49. Ela desempenha o papel de mãe de João Alfredo e é dona de casa. A família é notavelmente convencional e bem adaptada à sociedade. Valquíria mantém uma forte conexão emocional com seu filho, mas enfrentará um sofrimento considerável devido à participação dele na luta armada. Família de Edgar: Regina, interpretada por Mila Moreira, cuja idade inicial na série é 39 anos e no final, 47. Desempenha o papel de mãe de Edgar, com quem mantém uma sólida e afetuosa ligação. Tornou-se viúva em tenra idade, com um filho pequeno para criar. É dedicada ao trabalho como advogada bem-sucedida. Família de Galeno: A personagem Idalina, interpretada por Fátima Freire, inicia a série com 26 anos e a encerra com 34, é a irmã de Galeno e é casada com um militar. Ela é conhecida por sua simpatia e bondade. No entanto, o marido está prestes a ser transferido para Brasília, e essa família tem uma participação relativamente discreta na trama. O pesonagem Capitão Rangel, interpretado por Roberto Pirilo, inicia com 30 e encerra a série com 38 anos. Ele é um oficial do Exército e é casado com Idalina, a irmã de Galeno, a quem ajuda a criar. Rangel é um personagem significativo, representando uma figura paterna e um elemento crucial na vida de Idalina e Galeno. 90 Família de Waldir: O personagem Xavier, interpretado por Benvindo Siqueira, tem 48 anos de idade e encerra a trama com 56. Ele trabalha como porteiro em um edifício e enfrenta problemas decorrentes do alcoolismo. Além disso, é o pai de Waldir. Inicialmente, Xavier reside no modesto apartamento do porteiro no edifício da família de João Alfredo, o protagonista. Em seguida, torna-se caseiro na propriedade dos pais de Lavínia, localizada em Itaipava. Mais adiante, após seu casamento com Maria Lúcia, Edgar adquire essa propriedade, mantendo Xavier como caseiro. A personagem Zilá, interpretada por Maria Rita, com 38 anos de idade e encerra a minissérie com 46 é a esposa de Xavier e mãe de Waldir. Ela desempenhará o papel de cozinheira e arrumadeira na propriedade rural. Zilá carrega consigo um histórico de uma personagem que, apesar de seu papel secundário, desempenha representação crucial na trama, proporcionando uma lente adicional para a exploração das complexidades das famílias na minissérie. Família de Lavínia, amiga de Maria Lúcia e Heloísa: Queiroz, interpretado por Carlos Zara, tem 49 anos no início da minissérie e no final, 57. Ele é o pai de Lavínia, a amiga de Maria Lúcia. Queiroz é o proprietário de uma pequena editora que enfrenta dificuldades financeiras e entra em falência em 1968, sendo posteriormente incorporada pela holding de um banqueiro. É um intelectual de inclinação liberal, conhecido por sua amabilidade e educação. Após o endurecimento político do AI-5, Queiroz e sua esposa optam pelo autoexílio e abandonam o país. A editora permanece operante, agora sob a direção do jovem Edgar, quem entra em uma disputa de poder com Waldir, filho do porteiro. Queiroz é uma figura marcante e multifacetada que desempenha um papel essencial na trama, proporcionando uma exploração rica das complexidades políticas e sociais do período. Sua caracterização como o pai de Lavínia, a amiga de Maria Lúcia, o coloca no epicentro das mudanças dramáticas que ocorrem durante a minissérie. Ao ser retratado como o proprietário de uma pequena editora, personifica a luta de muitos intelectuais e empresários diante das turbulências políticas e econômicas da época. Sua editora, inicialmente independente, enfrenta dificuldades financeiras e, em 1968, é absorvida pela holding de um banqueiro, ilustrando os desafios enfrentados por setores culturais e artísticos diante do cenário político conturbado. Sua amabilidade e educação, características notáveis do personagem, servem como contraponto às crescentes hostilidades políticas. A representação de Queiroz oferece uma visão detalhada das dinâmicas sociais e políticas da época, explorando as implicações pessoais e profissionais da radicalização política que culminou no AI-5. 91 O personagem Gustavo, interpretado por Maurício Ferraza, tem 20 anos no início da série e 28 no final. Inicialmente, um estudante de medicina e posteriormente formado médico, Mais adiante na trama, Gustavo planeja casar-se com Lavínia. O autoexílio escolhido por Queiroz e sua esposa, após o endurecimento político do AI- 5, representa uma resposta corajosa diante das ameaças à liberdade intelectual e às liberdades civis. Essa decisão também simboliza as profundas transformações vivenciadas pelos personagens em meio ao contexto histórico turbulento. O papel da editora após a partida de Queiroz é transferido para o jovem Edgar, desencadeando uma disputa de poder com Waldir, filho do porteiro. Essa trama secundária destaca as ramificações das mudanças políticas nos âmbitos pessoais e profissionais, oferecendo uma narrativa complexa e interligada. Em suma, Queiroz, como representação de um intelectual liberal durante os anos rebeldes, enriquece a trama ao explorar as tensões e transformações políticas da época. A pesonagem Yone, interpretada por Maria Lúcia Dahl, encontra-se com 41 anos no início da minissérie e com 49 no final.Este casal pertence à classe média alta, sendo caracterizado por sua intelectualidade, simpatia e inclinação liberal. Além disso, são entusiastas de viagens frequentes. Yone destaca- se como uma representação rica e multifacetada da mulher da classe média alta durante um período de transformações políticas e sociais significativas no Brasil. Família de Heloísa: Fábio, interpretado por José Wilker, tem 45 anos de idade no início da série e no final, 53. Ele é um poderoso empresário, o arquétipo capitalista em nossa história, e foi um fervoroso apoiador do golpe militar, inclusive ajudando a financiá-lo. Fábio é pai de Heloísa e Bernardo. Ele possui uma personalidade envolvente e afetuosa, embora às vezes revele uma frieza impressionante. No início da narrativa, é em seu amplo apartamento, localizado no bairro Flamengo, que os jovens se reúnem para as festas de bossa nova, cheias de amor, sorrisos e flores. Com o passar dos anos, essas festas transformam-se em canções de protesto, que o anfitrião ouve com um meio sorriso complacente. De maneira discreta, Fábio é conhecido por sua tendência a envolver-se com mulheres, o que acarreta sérias crises em seu casamento. Contudo, seu maior desafio surge quando ele descobre que sua filha, Heloísa, a partir do AI-5, envolveu-se na luta armada e, de forma indireta, participou no sequestro do embaixador norte-americano. Como resultado, ela foi detida e submetida a torturas por um regime repressivo que empresários como Fábio contribuíram para colocar no poder. Fábio, personagem interpretado com brilhantismo por José Wilker, é um personagem complexo e representativo do empresariado brasileiro durante um período turbulento de sua história. Sua trajetória ao longo da narrativa proporciona uma análise profunda das dinâmicas sociais, políticas e familiares que permearam aquela conjuntura. Fábio personifica o arquétipo do 92 empresário capitalista, retratando um perfil que, muitas vezes, esteve associado ao apoio do golpe militar. Sua posição de destaque na sociedade é enfatizada pela influência financeira que exerceu, inclusive participando do financiamento do golpe, um elemento que ressoa com a realidade da época. A dualidade na personalidade de Fábio é notável. Se por um lado ele exibe uma envolvente e afetuosa presença, por outro, revela uma frieza impressionante. Essa ambiguidade contribui para a construção de uma personagem rica em nuances, refletindo as contradições presentes na sociedade brasileira daquele período. O apartamento de Fábio no Flamengo serve como um espaço simbólico que testemunha as transformações ao longo dos anos. Essa metamorfose simboliza as alterações ideológicas e sociais que marcaram a minissérie. A vida amorosa de Fábio, marcada por relações extramatrimoniais, adiciona uma camada de complexidade ao personagem, destacando a tensão entre sua imagem pública e a realidade de suas escolhas pessoais. Essa característica revela um aspecto humano em meio à representação de uma figura empresarial. Figura 5 - Natália (Betty Lago), Heloísa (Cláudia Abreu) e Fábio (José Wilker) Fonte: https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/minisseries/anos-rebeldes/noticia/ficha-tecnica.ghtml. Acesso em: 11 jan. 2024. O grande dilema de Fábio surge quando descobre a participação de sua filha, Heloísa, na luta armada e no sequestro do embaixador norte-americano. Esse acontecimento dramático coloca-o diante das consequências diretas do regime repressivo que empresários como ele ajudaram a instaurar. A ironia dessa situação é representativa das contradições intrínsecas à sua posição social. Natália, interpretada por Betty Lago, é uma mulher atraente com 35 anos de 93 idade no início da minissérie e 42 anos no final. Ela desempenha o papel de mãe para Heloísa e Bernardo, enquanto é casada com Fábio. Natália se esforça consideravelmente para manter um casamento que é conveniente para Fábio, porém, ao mesmo tempo, é extremamente frustrante para ela. Em certo momento da história, ela inicia um relacionamento extraconjugal com Avelar, um jovem professor de história que é muito estimado por seus alunos adolescentes. Conforme a trama se desenrola, Natália se encontra, oscilando entre a busca pelo amor verdadeiro e a tentação do dinheiro. Natália personifica as tensões e desafios enfrentados pelas mulheres na sociedade brasileira. A sua jornada é um microcosmo das complexidades vivenciadas por muitas mulheres no período. Como esposa de Fábio, um poderoso empresário vinculado ao establishment da época, Natália é apresentada como uma mulher atraente que, à primeira vista, parece confortável em sua posição social. No entanto, a narrativa revela as tensões subjacentes e as frustrações pessoais que ela enfrenta em seu casamento. Sua função principal como mãe de Heloísa e Bernardo não é suficiente para preencher o vazio emocional resultante da natureza conveniente, mas não afetuosa, de seu relacionamento com Fábio. Natália é um retrato complexo da mulher brasileira na minissérie, que, apesar de sua beleza e posição social, encontra-se presa em um casamento opressivo. Natália é marcada pela busca por significado pessoal e afetivo além das restrições impostas pela sociedade patriarcal da época. O relacionamento extraconjugal de Natália com Avelar, um jovem professor de história, acrescenta uma camada adicional à sua caracterização. A escolha de um amante mais jovem, que é estimado pelos jovens da narrativa, pode ser interpretada como um desejo de escape das convenções estabelecidas e uma busca por uma conexão mais autêntica. O personagem Avelar, profundamente engajado na esquerda, sendo admirado como um ídolo por seus alunos. Ele leciona no Colégio Pedro II e em várias faculdades e cursinhos. Avelar é um teórico do socialismo, mas enfrentará dilemas éticos significativos quando soube que jovens alunos que ele formou estão sendo submetidos a torturas nas prisões. Bernardo, cujo papel é desempenhado por André Barros, no início tem 19 anos e 27 no final da série. Ele é o irmão de Heloísa e se destaca como um jovem de princípios conservadores, inicialmente envolvido com a universidade. Mais tarde, ele decide ingressar nos negócios do pai, assumindo a direção de uma empresa de navios pertencente à holding. O personagem Antunes, interpretado por Simon Khouri, assume o papel de mordomo na residência da família Montenegro, composta por Fábio e Natália. Com 45 anos de idade, Antunes desempenha uma função emblemática na trama, contribuindo para as dinâmicas sociais e oferecendo uma lente através da qual é possível explorar as complexidades das relações de classe na sociedade retratada. 94 Já a personagem Solange, interpretada por Sílvia Salgado na minissérie "Anos Rebeldes", desempenha o papel de uma amiga extremamente elegante de Natália. Com cerca de 35 anos de idade, Solange se torna uma figura relevante na trama, contribuindo para a riqueza das relações interpessoais e oferecendo uma perspectiva única sobre o contexto social da narrativa. A personagem Sandra, interpretada por Deborah Evelyn, tem 25 anos de idade e é uma estudante de direito que mais tarde se envolve na luta armada. É amiga de Heloísa. Sandra é filha de Salviano, um médico e amigo de Damasceno, membro do Partido Comunista, por quem ela sempre nutriu uma grande admiração. O personagem Ubaldo, interpretado por Tuca Andrada, tem entre 25 no início e 31 no final. Inicialmente, ele trabalha como fotógrafo no mesmo jornal onde o pai de Maria Lúcia é empregado e compartilha uma residência com os professores Avelar e Juarez. O papel desempenhado por Ubaldo, assim como o de Sandra, é de extrema relevância no contexto dramático da história. Em determinado momento, Avelar começa a suspeitar que Ubaldo possa ter se envolvido na luta armada, apesar de não compartilhar suas atividades com o amigo. Em 1969, Avelar fica ainda mais desconfiado quando surgem indícios de que Ubaldo pode estar relacionado ao sequestro do embaixador norte-americano, um acontecimento acompanhado pelo nosso programa por meio dos jornais, rádio e TV, como todo o Brasil. Um mês depois, os noticiários informam que Ubaldo foi preso. Na parte final da história, quando o sequestro do embaixador suíço é abordado, um elemento emocionalmente impactante é revelado: na lista de presos políticos exigidos como resgate, encontra-se o nome de Ubaldo. A personagem Ângela, interpretada por Élida L'Astorina, tem cerca de 30 anos de idade. Ela é uma jovem que atua como atriz de teatro e televisão. Angela é amiga de Avelar e namorada de Ubaldo. Ela é frequentadora assídua do Paissandu e das animadas noites de samba do Teatro Opinião, entre outros lugares, desempenha a sua personagem com e emerge como um elemento fundamental na representação da efervescência cultural e social do período histórico abordado. No desenlace significativo de Anos rebeldes, obra de Gilberto Braga em 1992, observa- se a convergência dos destinos intricados dos personagens em direção a uma conclusão marcante. Em um cenário permeado por reviravoltas políticas e sociais, evidencia-se o processo de amadurecimento e transformação dos protagonistas. As tramas intricadas atingem o ápice, revelando a repercussão das escolhas feitas ao longo da narrativa. Envolvendo momentos de redenção, despedidas tocantes e surpresas impactantes, a minissérie firma-se como um retrato memorável de uma época tumultuada, proporcionando aos espectadores uma profunda reflexão sobre a complexidade da condição humana. 95 Sendo assim, a importância histórica da minissérie reside na capacidade de reavivar a consciência coletiva sobre os desafios políticos, sociais e culturais enfrentados pelo país na transição para a democracia. Ela ainda contribui para a compreensão das lutas, tensões e dilemas enfrentados pela sociedade brasileira na busca pela liberdade e justiça. Destaca-se por humanizar a história, apresentando personagens fictícios que personificam as diversas perspectivas e experiências vividas nesse contexto. Essa abordagem permite que o público se identifique e se conecte emocionalmente com a narrativa, tornando-a mais acessível e memorável. 96 CAPÍTULO 3 - ANOS REBELDES – DIÁLOGOS ENTRE HISTÓRIA E FICÇÃO No Brasil, a década de 1960 foi marcada por intensas transformações políticas e sociais que reverberaram por toda a sociedade. Nesse contexto turbulento, a ditadura militar, que se estabeleceu em 1964, marcou um período de restrições às liberdades civis e perseguições políticas. Em resposta a esse regime autoritário, movimentos de resistência surgiram, protagonizando momentos que ficariam registrados na memória coletiva brasileira. Gilberto Braga trouxe à tela a minissérie Anos rebeldes (1992), com a intenção de retratar o referido período. Este capítulo propõe-se a analisar a obra televisiva, explorando-a a partir de sua própria divisão interna, a saber: os anos inocentes, rebeldes e de chumbo. Abrangendo desde os eventos que precederam o golpe que depôs João Goulart até o período de abertura com a anistia. Concomitantemente à exibição da minissérie, realiza-se uma contextualização do contexto histórico, fazendo uso de diversos materiais. Assim, é estabelecida uma dinâmica de exposição que possibilita uma catarse em relação ao conteúdo audiovisual recém-apresentado. São também abordados aspectos relacionados à produção e exibição da minissérie, visando compreender o contexto em que ela foi produzida. Segundo Patriota (1999, p. 120): O campo artístico, pouco a pouco, foi se redefinindo a partir de 1964. No universo da resistência democrática ficaram grupos como Opinião. Filmes como O Desafio (1965, Paulo Cesar Saraceni) e Terra em Transe (1967, Gláuber Rocha) já haviam causado discussões acirradas, entre os que discordavam e os que encampavam suas análises. As perspectivas críticas presentes na dramaturgia de Vianinha não foram para o palco, tampouco forma divulgadas. No ano de 1967, o Grupo Oficina, sob a direção de José Celso Martinez Corrêa, encenou, pela primeira vez, a peça O Rei da Vela de Oswald de Andrade escrita em 1933. No ano de 1964, houve mudanças significativas no campo artístico brasileiro, Patriota destaca o papel de grupos e obras no contexto da resistência democrática. No Contexto histórico, o ano de 1964 é um marco na história política do Brasil, marcado pelo golpe militar que instaurou uma ditadura no país. Esse evento teve profundos impactos em várias esferas da sociedade, incluindo o campo artístico, que passou por um processo de redefinição. Essa mudança pode estar relacionada a fatores como censura, repressão e uma nova dinâmica política que influenciou a produção cultural. No que diz respeito ao universo da resistência democrática, o texto menciona o grupo Opinião e filmes como O Desafio (1965, dirigido por Paulo Cesar Saraceni) e Terra em Transe (1967, dirigido por Gláuber Rocha), que geraram intensas discussões entre aqueles que concordavam e aqueles que discordavam de suas análises. Além 97 disso, destaca que as perspectivas críticas presentes na dramaturgia de Vianinha não foram encenadas no palco nem divulgadas naquele momento específico. Em 1967, o Grupo Oficina, sob a direção de José Celso Martinez Corrêa, encenou pela primeira vez a peça O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, escrita em 1933. Essa encenação pode ser interpretada como um evento marcante no cenário artístico, sugerindo uma conexão entre as obras do passado e as transformações sociopolíticas do presente. Nos “anos inocentes”, o enredo narra o período das turmas e dos romances no tradicional colégio carioca Pedro II, durante os primeiros momentos do golpe. É nessa fase que Maria Lúcia e João Alfredo cruzam seus caminhos e se apaixonam. Na fase denominada “anos rebeldes”, que se concentra no período a partir de abril de 1966, as manifestações contra os abusos do regime ditatorial tornam-se frequentes. Prisões, torturas e perseguições também se intensificam. Utilizando recursos cinematográficos, Tendler insere os personagens em cenas autênticas da época. Assim, João, Maria Lúcia, Edgar e outros participam de momentos cruciais de resistência ao regime, como a marcante passeata dos Cem Mil. Essa etapa culmina com o assassinato do estudante secundarista Edson Luís, evento que se revela decisivo para a radicalização política de João Alfredo. A ênfase da minissérie na morte do estudante concentra-se na repressão enfrentada por aqueles que ousaram homenagear o jovem. As cenas reais do velório e do corpo de Edson Luís, inseridas na trama, reforçam a magnitude desse evento. A incorporação dessas imagens de arquivo à narrativa, como uma colagem, transporta a juventude praticamente para o centro dos acontecimentos, construindo um retrato verossímil da sociedade da época, entrelaçando história e ficção. Após a implementação do AI-5, em 1968, inicia-se a fase conhecida como “anos de chumbo”. João Alfredo, a jovem Heloísa, que inicialmente, apesar da rebeldia característica da época, demonstrava ser pouco aceita às questõs políticas, e o líder estudantil Marcelo (interpretado por Rubens Caribé), decidem entrar na clandestinidade e adotar a luta armada como bandeira, em consonância com muitos militantes da época. Eles integram o grupo responsável pelo sequestro do embaixador suíço Ralf Haguenauer (interpretado por Odilon Wagner). No desfecho da série, já em 1979, Maria Lúcia, separada de Edgar, reencontra João Alfredo, que retorna ao país após a anistia. O casal tenta reavivar o relacionamento, mas Maria Lúcia percebe que o envolvimento de João com a mobilização dos sem-terra no sul do país tornará o engajamento político um obstáculo permanente entre eles. 98 3.1 Anos inocentes em contexto histórico Os anos inocentes englobam o intervalo de 1964 a 1965 João Alfredo frequenta o Colégio Pedro II, onde também estão matriculados Edgar, Galeno e Valdir. João e seus colegas estão tentando organizar uma série de palestras sobre carreiras profissionais. Entre os nomes sugeridos está o de um destacado jornalista de orientação comunista, Orlando Damasceno. Maria Lúcia, filha do jornalista, também é aluna no Pedro II. Munido dessa informação, João procura estabelecer contato com o jornalista, mas Maria Lúcia recusa. Apesar de frequentarem a mesma escola, João e Maria Lúcia são bastante distintos: enquanto ele se interessa por questões políticas, ela está mais focada em garantir melhores condições para si, a exemplo de sua extenuante reivindicação por um quarto individual. Apesar das diferenças, surge entre os dois uma paixão arrebatadora. Edgar, o melhor amigo de João, também se apaixona por Lúcia. Inicialmente, Lúcia evita seus sentimentos por João e chega a namorar Edgar. A principal diversão de Maria Lúcia é participar, junto com sua amiga Lavínia, das reuniões na residência de Heloísa, sua colega do curso de francês. Filha do banqueiro Fábio e da senhora Natália, Heloísa é uma jovem politicamente alheia, mas extremamente questionadora. Ela representa o arquétipo da mulher moderna dos anos 60, desafiando as convenções e normas sociais da época. João e Edgar começam a frequentar essas reuniões na tentativa de se aproximar de Lúcia. Galeno, outro amigo deles, demonstra interesse por Heloísa, mas ela não está interessada em romance. Como rebelde, ela deseja perder sua virgindade da mesma forma que os homens, sem envolvimento romântico. Lúcia tenta resistir ao que sente por João, mas, ao se decepcionar com Damasceno em seu aniversário, acaba se entregando a ele. Nesse período, a situação no Brasil se deteriora. Primeiramente, ocorre o Golpe Militar. Os proeminentes líderes ligados à oposição política da época começam a ser perseguidos, incluindo Damasceno, que, ao retornar de uma reunião política no aniversário de Lúcia, é preso. Gilberto Braga (2010, p. 77) relata que: Para mim, uma das cenas mais emblemáticas do começo da minissérie […] é aquela em que os quatro amigos – João Alfredo, Edgar, Galeno, vivido por Pedro Cardoso, e Waldir, interpretado por André Pimentel – voltam do colégio e andam pelas ruas de Ipanema. Nesta cena, faço a apresentação de espaço e de clima daqueles anos iniciais. Enquanto caminham, eles falam de trabalhos escolares e de Godard. Galeno carrega a revista Les cahiers du cinema debaixo do braço enquanto pessoas passam. É gente lavando carro, namorando, lendo um livro, sentada no banco de uma praça... Ao fundo, o instrumental de ‘Carta ao Tom’. Esse conjunto de elementos estabelece uma atmosfera tranquila e aberta, dando a sensação de que tudo corre bem e a vida é boa. Aliás, o título 99 do primeiro bloco da minissérie foi inspirado no filme de Martin Scorsese, A idade da inocência, marcando assim o início da saga dramática. A menção aos quatro amigos e suas interações enquanto voltam do colégio fornece um vislumbre das dinâmicas entre eles. A referência específica aos interesses de Galeno, como a revista Les cahiers du cinema e Godard, indicam o interesse de Galeno pelo teatro. A inclusão do instrumental de Carta ao Tom e a referência ao filme de Martin Scorsese, A idade da inocência, adicionam camadas à atmosfera da cena. A escolha da música e do título do primeiro bloco sugere uma sensação de inocência e tranquilidade, que pode ser contrastada com o que está por vir nas próximas cenas da minissérie. Segundo Mônica Kornis (2011, p. 184): História na ficção e ficção propriamente dita são mutuamente construídas por intermédio de uma articulação fundada nas tensões entre um conjunto de jovens da geração dos anos 1960, cada qual com um repertório bastante definido do ponto de vista político e comportamental. Os conflitos dramáticos vividos pelos personagens principais e secundários expressam genericamente algumas das grandes tendências, naquele momento, da luta política contra o regime, mas o desenlace da trama não aponta para um único caminho — ao contrário, abre um impasse, que é a impossibilidade de realização do casal João e Maria Lúcia, isto é, da resolução do conflito entre engajamento político e individualismo, que alavanca todo o desenrolar da trama. Impasses e opções dadas historicamente são elementos fundamentais da narrativa, muito embora não haja a explicitação direta do inimigo que alavanca dramaticamente a trama. O conflito político reside na luta exclusiva de elementos radicalizados das classes médias e altas contra um governo, sem identidade, sem nomes — há uma única menção ao presidente Ernesto Geisel, no ano de 1974 —, na qual as decisões políticas, tal como o Ato Institucional nº 5 (AI-5), não possuem autores; são como que uma ordem que emana de uma autoridade. O processo de radicalização é individualizado, sem que sejam explicitadas as propostas do movimento. A diversidade de tendências de esquerda também é reduzida à dicotomia entre o Partido Comunista — conciliador e com um militante adulto — e a luta armada — radical e jovem, apesar da adesão do pai de um dos jovens a essa vertente. A história apresentada na minissérie não é apenas um reflexo fiel dos eventos históricos, mas sim uma construção ficcional influenciada pelas complexidades e tensões da época. A trama é moldada pelas experiências e perspectivas dos jovens da geração dos anos 1960, cada um contribuindo com seu repertório político e comportamental específico. Os conflitos dramáticos vividos pelos personagens refletem genericamente as grandes tendências políticas da época, especialmente na luta contra o regime. O desenlace da trama não indica um único caminho claro, mas sim um impasse. Isso sugere que, apesar das influências políticas, a resolução dos conflitos individuais é complexa e não segue uma trajetória previsível. 100 A narrativa se inicia em 1964, época ainda permeada pela democracia e agitação, enquanto a presença de Jango instilava incertezas na elite governante e os jovens pertencentes à classe média residentes na zona sul ansiavam avistar Brigitte Bardot à sacada do apartamento de Bob Zaguri, na Avenida Atlântica. Para Ismail Xavier (2018, p. 155): Vale ressaltar aqui a forma como a relação entre cultura e política foi se redefinindo a partir de 1964, sendo a data emblemática de 1968 um dos pontos de inflexão, mas não o único, no denso processo cultural vivido no período 1964–1969.A tônica naquela conjuntura foi veloz sucessão de novas formas de expressar a crise dos referenciais políticos e estéticos do período anterior, a qual teve como um dos lances mais impactantes Terra em Transe. Esse filme deu enorme impulso à interação entre o cinema e os outros segmentos da cultura, uma riquíssima convergência que se pode dizer inédita na história brasileira. O texto enfatiza a rápida sucessão de novas formas de expressar a crise dos referenciais políticos e estéticos anteriores, com destaque para o filme Terra em Transe como um dos momentos mais impactantes desse processo. Ao mencionar a minissérie Anos rebeldes, a reflexão pode explorar o trabalho de Gilberto Braga, que se insere nesse contexto de redefinição cultural e política. Pode-se considerar como a série aborda e reflete as transformações e crises desse período, proporcionando uma visão artística e dramática dos eventos históricos. A interação entre a cultura, representada pela minissérie, e a política, manifestada nos eventos históricos mencionados, pode ser explorada como uma convergência rica e significativa, contribuindo para uma compreensão mais profunda do impacto desse período na sociedade brasileira. Na década de 1960, desafiando os costumes e normas sociais da época, João Alfredo começa a frequentar as reuniões de Heloísa para se aproximarem de Maria Lúcia. Galeno, um dos integrantes do grupo, interessa-se por Heloísa, mas ela não está a fim de um relacionamento amoroso: como uma mulher transgressora, de estilo moderno, deseja perder sua virgindade da mesma forma que os homens, sem envolvimento romântico. Enquanto isso, Maria Lúcia tenta fugir de seus sentimentos por João Alfredo, mas acaba se envolvendo com o jovem após ela se decepcionar, em seu aniversário, com o próprio pai. Edgar, melhor amigo de João, também se apaixona por Lúcia. Inicialmente, ela evita seus sentimentos por João e começa a namorar Edgar. A principal diversão de Maria Lúcia envolve frequentar as reuniões na casa de Heloísa, sua amiga do curso de francês, filha do banqueiro Fábio e da madame Natália. Heloísa, apesar de alienada politicamente, é 101 questionadora e representa o protótipo da mulher moderna dos anos 60, desafiando as normas sociais da época. Nesse cenário, a situação política entra em uma fase crítica. O golpe militar se inicia, e indivíduos envolvidos na política contestadora, conhecidos como dissidentes, começam a ser alvo de perseguição. Entre eles, está o pai de Maria Lúcia, que é detido após participar de uma reunião de urgência sobre os acontecimentos políticos do momento, justamente no dia do aniversário de sua filha. A seguir, apresenta-se uma cena de um momento tensionado, marcando o início das mudanças políticas no país. Capítulo 1 ao 6 – Anos Inocentes - Cena 17, capítulo 1: Apartamento de Maria Lúcia (INT NOITE) No quarto de Maria Lúcia, Dmasceno, Salviano e Pedro Paulo. Damasceno – O que eu acho duro é deixar o Correio num momento desses. Mal ou bem é um espaço meu! Quem é que pode garantir como vai estar o país daqui a um mês? Uma coluna de jornal não pode vir a ser importante, decisiva? Salviano – Se você ainda tiver a coluna daqui a um mês... Tempo. Os três refletem. Salviano – A situação do país pode tá braba, Damasceno, mas e a sua? Tem a família, filha moça para acabar de criar... Damasceno olha pra direção da sala, onde está dormindo a filha. Corta para SALA. Maria Lúcia, deitada no somiê da sala de jantar, separada da outra por um leve biombo, tenta dormir. Ouve as vozes das conversas. No início está folheando uma revista. Detalhar fotografia de Alain Delon. Maria Lúcia romântica. Fecha a revista. Tenta dormir. No ambiente de estar, Marta, Teobaldo e Dagmar veem televisão. À parte, conversam Carmen e Dolores, Adelaide já foi embora. (Nesta cena a luz deve ser muito fraca, bonita. A maior parte do diálogo em off, o importante é Maria Lúcia querendo dormir.) Carmen – Marcha da família com Deus pela liberdade? Dolores – Não vá falar pro seu marido que ele me solta os cachorros em cima, vai ter essa marcha no Rio e em São Paulo! (tom) Eu não vou, que não sou mulher de perder praia pra marchar com ninguém, mais a Zuleica, que é metida a entender de política , tá por aqui com o Jango, já garantiu que vai! Close de Maria Lúcia, tentando pegar no sono (Braga, 2010, p. 103-104). A cena acima faz a menção à liberdade de expressão e o papel da imprensa, Damasceno expressa sua preocupação em deixar o jornal Correio em um momento de incerteza política. Isso proporciona uma oportunidade para discutir a situação da imprensa e a liberdade de expressão durante o regime militar. A coluna de Damasceno é vista como uma forma de resistência e como um espaço que poderia influenciar a opinião pública. Salviano aponta para os conflitos éticos e pessoais enfrentados por Damasceno ao decidir entre sua carreira no jornalismo e as responsabilidades familiares. 102 A interlocução entre Carmen, Dolores e Maria Lúcia reflete as distintas perspectivas existentes na sociedade brasileira à época. A referência à “Marcha da família com Deus pela liberdade” evoca acontecimentos verídicos, notadamente as manifestações favoráveis ao golpe militar, sublinhando a polarização ideológica e as fraturas sociais vigentes no Brasil durante esse período histórico. Enquanto o cenário político nacional estava em vias de significativas transformações, alguns jovens, profundamente preocupados e engajados na luta, contrastavam com outros, inclusive indivíduos mais maduros, que pareciam indiferentes e imersos em suas perspectivas egoístas, desconsiderando as graves implicações políticas que se desenhavam para o país. A personagem Zuleica, que está envolvida com Jango, e a decisão de Dolores em não participar da marcha, revelam diferentes posturas femininas diante das questões políticas da época, a cena também destaca a atmosfera doméstica, uma vez que Maria Lúcia tenta dormir enquanto a família está dividida em suas perspectivas políticas. Essa dinâmica familiar pode ser explorada como um reflexo microcosmo da sociedade brasileira, evidenciando as tensões e divisões presentes no país. Maria Lúcia tenta resistir aos sentimentos por João, mas, desapontada com Damasceno em seu aniversário, acaba se entregando a essa paixão. Quatro jovens embarcam em seu último ano letivo no prestigioso Colégio Pedro II, enfrentando um dilema existencial: a escolha da carreira, uma vez que o exame vestibular se aproxima. O protagonista, João Alfredo, toma a iniciativa de instituir uma Semana da Carreira na instituição de ensino, convidando destacados profissionais de diversas áreas para proferirem palestras informativas sobre suas respectivas ocupações. Contudo, quando a administração da escola examina a lista de ilustres palestrantes, que inclui nomes como Oscar Niemeyer, Evandro Lins e Silva, Orlando Damasceno e Oduvaldo Vianna Filho, a direção desestimula o evento, justificando restrições de espaço e horário34. Naquele momento, talvez, não fosse o mais apropriado para essas reuniões no colégio Pedro II, João Alfredo e seus amigos estão tentando encontrar um local alternativo para realizar as palestras, e, honestamente, Edgar não parece muito confortável em trabalhar de forma voluntária. Galeno, por sua vez, só demonstra entusiasmo quando se trata de profissionais ligados ao teatro, cinema ou música. Quanto a Waldir, ele está bastante calado, provavelmente devido a uma crise pessoal que está enfrentando, mas optou por esconder dos colegas, o que podia explodir em algum momento posterior. 34 Importa destacar que exceto o nome de Orlando Damasceno, fictício, todos os outros evocam pessoas reais, com posturas críticas ao regime. 103 Na sequência da cena 2, observa-se a imagem dos quatro jovens posicionados diante do jornal mural, enquanto outros estudantes transitam pelo ambiente. É digno de nota o destaque conferido ao mural, que abriga um artigo intitulado “A indústria do vestibular”, assinado por João Alfredo Galvão. Essa contribuição específica será examinada em detalhes mais adiante. Figura 6 - Edgar, Galeno, Waldir e João Alfredo Fonte: Memória Globo. Anos Rebeldes | Anos Rebeldes | memoriaglobo Capítulo 1 ao 6 – Anos Inocentes - Cena 2, capítulo 1: Colégio Pedro II (INT DIA) Muitos alunos vêm descendo a escada porque para algumas turmas terminou a última aula do turno da manhã. O professor Avelar vem conversando com João, Edgar, Galeno e Waldir. - Galeno: - Aí o João teve a ideia de organizar essa semana de palestras... João entrega lista escrita de nomes a Avelar, que lê atento. -Avelar: - (impressionado)Poxa... Se vocês conseguirem trazer pro colégio essas personalidades todas... Corta descontínuo para um recanto em frente ao jornal mural, alunos passando. (No jornal mural, artigo assinado por João Alfredo Galvão, título: “A indústria do vestibular”. Detalhar.) - Galeno: - O Vianinha confirmou que pode vir. - Edgar: - E pra achar o Damasceno? Será que ele escreve lá mesmo na redação do jornal? - Galeno: - É o mais fácil de todos, João, a filha dele estuda aqui no colégio, no turno da tarde! Anda sempre com uma menina que eu conheço de vista, moram perto da gente! - João: - (sem ênfase) Poxa, a filha do Orlando Damasceno no Pedro II! (Braga, 2010, p. 93). João Alfredo faz uma descoberta surpreendente: a filha de um dos profissionais que ele mais admira, o jornalista e escritor Orlando Damasceno, uma figura conhecida no chamado Partidão, também é aluna do colégio, frequentando o curso clássico, embora em um turno https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/minisseries/anos-rebeldes/noticia/anos-rebeldes.ghtml 104 diferente. João e seus amigos decidem procurar Maria Lúcia, a filha de Orlando, na esperança de obter sua ajuda para uma apresentação de seu pai. No entanto, o encontro entre João e Maria Lúcia acontece em meio a um clima de grande antagonismo. Maria Lúcia desaprova a ideia de seu pai dar palestras e acredita que os rapazes estão interessados apenas em diversão, deixando-os falando sozinhos. No cerne desta história profundamente romântica, existe uma paixão ardente despertada entre o casal, duas pessoas que se sentem intensamente atraídas desde o momento em que se conhecem. A narrativa se desenrola ao longo de vinte capítulos, enquanto eles enfrentam desafios significativos para permanecerem juntos, mesmo sendo indivíduos com visões de mundo fundamentalmente diferentes, com ela sendo individualista e ele idealista. Sob a influência persuasiva de João Alfredo, claramente identificado como o líder do grupo quando se trata de assuntos de maior gravidade, decidem buscar novamente Maria Lúcia. Nesse contexto, ela demonstra uma oposição ainda mais veemente à participação de seu pai em eventos desse tipo. A situação ficou ainda mais tensa após o episódio ocorrido quinze dias atrás, quando o jornalista proferiu uma palestra semelhante em uma faculdade. Nessa ocasião, a conferência não havia sido oficialmente autorizada pelo diretor, que se recusou a disponibilizar o auditório principal para o evento. Orlando Damasceno concordou em participar do evento, mesmo diante da perspectiva de discursar no pátio, ao ar livre. Os estudantes tomaram a iniciativa de acessar o recinto vedado, o que resultou em uma denúncia oficial e na intervenção policial. Como consequência, o pai agora enfrenta um complicado processo burocrático por perturbação da ordem pública. Esse desdobramento acrescenta mais um elemento de insegurança na vida de sua filha, Maria Lúcia, e de sua esposa, cujas existências já eram profundamente marcadas pelos sacrifícios decorrentes do idealismo do marido. Portanto, não é por meio da influência de Maria Lúcia que os jovens terão a oportunidade de conhecer o renomado jornalista. Avelar, um amigável e jovem professor de história, que é adorado pelos estudantes do Pedro II, reside com Ubaldo, um jovem fotógrafo que também é colega de jornalismo de Damasceno. É graças à amizade com o professor que eles conseguem estabelecer contato com o intelectual, que prontamente concorda em ministrar a palestra. Isso apenas intensifica a rivalidade entre João Alfredo, o líder do grupo de estudantes, e Maria Lúcia, a filha do intelectual. Desde o início de sua convivência, os dois amigos, João Alfredo, o idealista comprometido com suas convicções, e Edgar, o individualista, encontram-se interessados sentimentalmente por essa jovem que combina encanto e uma personalidade forte. João Alfredo 105 e ela se envolverão em discussões ao longo de vários episódios. Enquanto a aproximação de Edgar é gradualmente aceita por ela, embora, desde o princípio, pareça existir uma forte atração da parte dela pelo rebelde, a qual ela suprime e transforma em hostilidade. Em 31 de março, os rapazes decidem fazer uma visita ao jornal Correio Carioca, onde o pai de Maria Lúcia trabalha, buscando conselhos sobre se deveriam prosseguir ou não com a semana de palestras planejada, dada a delicada situação política do momento. Maria Lúcia, que estava na cidade para uma consulta ao dentista e já tinha ouvido boatos sobre a possibilidade de um golpe, aparece no jornal ao mesmo tempo, esperando poder retornar para casa na companhia de seu pai. O clima no centro do Rio já se encontra bastante carregado de tensão. Quando Maria Lúcia nota a presença dos rapazes ali, sua reação é de profunda irritação, acreditando que pessoas como eles sempre foram um obstáculo para a já frágil estabilidade de sua família. Damasceno reconhece que as perspectivas de uma efetiva consumação do golpe militar são bastante substanciais. Ele se encontra desapontado, pois tudo indica que, caso Goulart seja de fato deposto, seu jornal irá endossar as ações dos militares, e ele deseja manifestar algum tipo de descontentamento. João Alfredo fica ciente da existência de uma vigília nas proximidades, na sede da União Nacional dos Estudantes, e isso lhe desperta interesse. Diante desse cenário, Damasceno prefere unir-se à vigília, resistindo ao lado de seus companheiros, em vez de passar a noite nas instalações do jornal. Maria Lúcia, a princípio, anseia que seu pai retorne para casa. No entanto, ao perceber que essa possibilidade é remota, ela tenta persuadi- lo, contando com o auxílio de Edgar, que prontamente se oferece para conduzir a jovem de volta a Ipanema e, assim, convencer seu pai a, pelo menos, permanecer nas dependências do jornal. O jornalista opta pela vigília, e João Alfredo e Galeno resolvem acompanhá-lo, mesmo diante das enérgicas objeções de Maria Lúcia. Damasceno passa a noite fora de casa, ao lado dos jovens da UNE no jornal. Finalmente, na manhã de primeiro de abril, como a maioria dos resistentes, ele se encaminha para a Faculdade de Direito da Praça da República, onde, efetivamente, ocorre uma repressão. Nas artes e cultura, no dia 31 de março de 1964, segundo Patriota (2018, p. 131), [...] provocaram, ‘como um raio em céu azul’, um grande hiato entre os desejos e as efetivas condições históricas. A imagem do prédio da União Nacional dos Estudantes (UNE) em chamas talvez seja a que melhor simboliza o impacto do golpe de 1964 sobre o teatro brasileiro nos anos subsequentes. No imediato pós–golpe, enquanto diversas associações e sindicatos foram colocados na ilegalidade, inúmeras pessoas tiveram seus direitos políticos cassados, e lideranças políticas foram presas e ou exiladas, a cena teatral manteve-se em aparente normalidade. 106 No Brasil, após o golpe de 1964, que teve impacto significativo nas condições históricas do país, houve um grande contraste entre os desejos expressos e as realidades efetivas. O texto sugere que a imagem emblemática do prédio da União Nacional dos Estudantes (UNE) em chamas reflete o impacto profundo do golpe sobre o teatro brasileiro nos anos seguintes. Mesmo diante da ilegalização de várias associações e sindicatos, da cassação dos direitos políticos de muitas pessoas e da prisão ou exílio de lideranças políticas, a cena teatral aparentemente manteve-se em normalidade no imediato pós-golpe. Essa informação contextualiza o ambiente político e social da época em relação à cena teatral brasileira. A cena da minissérie a seguir relata o início do Golpe de 64. Capítulo 1 ao 6 – Anos Inocentes - Cena 35, capítulo 1: Colégio Pedro II (INT OU EXT DIA) Movimento de alunos antes do início das aulas, dia 31. Clima tenso, agitado. Grupinhos cochichando, alguns professores neste clima também. João, Edgar, Galeno e Waldir estão diante do josrnal mural, com o artigo de João sobre aproveitamento de excelentes pendurado. Detalhar. (Título: ‘Queremos vagas’, assinatura, João Alfredo Galvão.) Daqui em diante o capítulo tem que ir num crescendo de tensão. João – (irritado) E eu não posso escrever sobre excedentes por quê? Edgar – (apreensivo) A ordem foi para tirar o artigo do mural, João, falaram que a hora não é boa. Galeno – O pessoal do grêmio tá dizendo que os militares vão tentar derrubar o Jango! Waldir – Acabam inventando é greve, fecham o colégio e a gente perde mais aula. João – Essa turma do grêmio exagera um pouco as coisas, como é que vão tirar presidente da República assim, sem mais aquela? Entra em off a primeira fala da cena seguinte. Ubaldo – (off) O golpe tá na rua, Avelar (Braga, 2010, p. 119). O golpe militar, consumado em 1º de abril de 1964, cortou o nó górdio de uma correlação de forças aparentemente equilibrada. Instalou uma ditadura militar e reforçou a hegemonia do capital internacional no bloco do poder (Reis, 1990, p. 22). Capítulo 1 ao 6 – Anos Inocentes - Cena 9, capítulo 3: Colégio (EXT NOITE) Clima de suspense. No pátio, os quatro rapazes terminando de pixar um muro branco. Marcelo é mais ágildo que os outros. Estão terminando de escrever: ABAIXO A DITADURA! GRÊMIOS LIVRES! ABAIXO A REPRESSÃO ! Marcelo já terminou sua frase, colocou um acento circunflexo na palavra ‘grêmios’, que o outro escreveu sem, enquanto fala. Marcelo – (baixo) Cavalgadura (Braga, 2010, p. 158). Essa cena retrata um momento de resistência e rebeldia contra a ditadura militar. Os jovens, representados pelos quatro rapazes, expressam sua insatisfação com o regime autoritário 107 por meio da ação de pixar um muro com mensagens de protesto. O clima de suspense sugere a tensão e o perigo associados a atividades de oposição durante esse período. Ao colocar um acento circunflexo na palavra “grêmios”, corrigindo o erro do outro rapaz, Marcelo demonstra um cuidado com a precisão da mensagem e uma atenção aos detalhes, ressaltando a seriedade do ato de protesto. Capítulo 1 ao 6 – Anos Inocentes - Cena 10, capítulo 1: Porta do Colégio – Rua Deserta (EXT NOITE) Clima de muito suspense. Mesmo local da cena 8, dois rapazes entrando no carro, João ao volante, motor ligado. O terceiro termina de pular o muro, está entrando no carro, já quase em movimento. Com close de João dirigindo, ouvimos a voz de um policial. Policial – Ei! Vocês! Reação dos cinco rapazes, apavorados, vendo a patrulhinha da cena 8, que voltou. João arranca violentamente, a porta do carro ainda aberta, joga o carro em cima, como se fosse bater na patrulha. O policial de pé joga–se para dentro do carro. O outro policial tapa a cara de susto. Corta rápido para rua deserta, câmera dentro do carro, João dirigindo em disparada. Muito rítmo, movimento, todos muito tensos. Marcelo – Cê é doido, rapaz? João – Isso eles não esperam, a gente ir em cima deles! Corta para fora do carro, o veículo se afastando pela rua deserta (Braga, 2010, p. 158-159). A fuga apressada da porta do colégio, quando confrontados por uma patrulha policial, adiciona mais intensidade à narrativa, pois transmite a atmosfera de medo e perigo que envolve qualquer forma de oposição política durante a ditadura militar. A reação dos rapazes, apavorados, e a ação ousada de João, ao jogar o carro em direção à patrulha, revelam a coragem e a disposição de desafiar as forças repressivas. A frase de João, “Isso eles não esperam, a gente ir em cima deles!”, evidencia a determinação e a estratégia dos jovens ao confrontar a repressão de maneira inesperada. Essa cena proporciona uma reflexão sobre a coragem dos jovens em desafiar a ditadura, mesmo enfrentando riscos significativos. Ela destaca a resistência popular e a busca por formas criativas e ousadas de manifestar o repúdio ao regime autoritário. Um contingente policial empreende um ataque armado contra os dissidentes. Tropas do exército, ainda leais a Jango, repeliram as forças policiais, assegurando a retirada dos estudantes. No tumulto, Damasceno foi alvejado, levando João Alfredo a acompanhá-lo até sua residência. Ao deparar-se com o pai ensanguentado, Maria Lúcia atribui ao nosso protagonista uma responsabilidade ainda maior por perturbar profundamente a estabilidade de sua família. 108 O jornalista compreende que, no presente momento, uma denúncia legal acerca de seu ferimento não é de grande utilidade; é o jovem João Alfredo quem se encarrega de procurar um médico de confiança para tratar da saúde do intelectual. Para desagrado de Maria Lúcia, surge uma sólida amizade entre o jornalista e o estudante, a qual perdurará por longo período. Ambos ex-colegas do Pedro II passam a figurar como visitantes frequentes na residência, com Edgar flertando com Maria Lúcia, enquanto João Alfredo, embora também o faça, destaca-se por ser mais bem-sucedido na conquista da amizade de seu pai, a quem prontamente auxilia na organização da biblioteca notoriamente caótica. Pouco a pouco, João Alfredo se metamorfoseia na imagem do filho que Damasceno desejaria ter tido. Essa relação cada vez mais estreita apenas intensifica a complexa mistura de medo e atração que Maria Lúcia nutre pelo jovem estudante idealista. Ismail Xavier (2003) aponta que quando se analisa o enredo da minissérie, percebe-se uma inclinação específica para destacar as tramas que giram em torno da personagem interpretada por Cláudia Abreu. O texto emprega estratégias de alusão que delineiam um movimento reflexivo, direcionando a atenção para os “papéis” desempenhados pela indústria cultural durante o regime militar. Nesse contexto, os jornalistas e a empresa editorial surgem como instâncias indiretas que remetem à própria televisão. Ao representar o movimento heroico dos jornalistas, concentrado em Damasceno, a minissérie assume posições de porta-voz da experiência e de resistência pacífica à censura e à repressão política. Essa representação emerge como um contraponto à luta armada. Assim, a abordagem adotada na trama não apenas destaca o protagonismo desses personagens, mas também lança luz crítica sobre a autopercepção, questionando, por conseguinte, a autojustificação que a indústria cultural possa buscar ao narrar eventos desse período histórico conturbado. Maria Lúcia é uma habitué das festividades típicas da temporada, onde jovens entoam harmonias da bossa nova e dialogam na residência de Heloísa, sua confrade do curso de língua francesa, que, por sua vez, é filha do influente magnata Fábio Andrade Brito, residente em um esplêndido apartamento no bairro do Flamengo. O promotor desses encontros é o irmão mais velho de Heloísa. Em virtude da presença de Maria Lúcia, os jovens do colégio Pedro II gradualmente começam a marcar presença nessas reuniões, as quais assumem o caráter de um open house sabatino. Edgar, que demonstra interesse amoroso por Maria Lúcia, vê-se irresistivelmente atraído por João Alfredo. Por sua vez, Galeno, desde o momento inaugural, nutre uma predileção pela filha do banqueiro, Heloísa, que, de maneira requintada e com um toque de comédia, o rejeita. 109 Heloísa, com apenas um ano de diferença em relação a Maria Lúcia, embora notavelmente precoce, vive constantes conflitos com seu pai, como é comum entre adolescentes rebeldes. Ela se ressente das restrições relacionadas aos horários de retorno ao lar e questões semelhantes. Enquanto isso, Maria Lúcia, em meio a esse contexto, decide iniciar um relacionamento amoroso com João. Waldir, um notável estudante pertencente ao grupo dos quatro jovens do Colégio Pedro II, caracterizado por sua extrema timidez e um comportamento exemplar, é filho de um humilde porteiro que reside no mesmo edifício de João Alfredo. Enfrentando uma grave crise pessoal, inicialmente oculta esse desafio de seus camaradas. Seu pai enfrenta problemas relacionados ao alcoolismo, resultando em sua demissão por justa causa. Diante dessa situação, Waldir e sua família aceitam a oportunidade de se mudar do Rio de Janeiro para se tornarem caseiros de um sítio em Itaipava. Para garantir a sobrevivência, Waldir encontra-se diante de uma decisão crucial: seguir com sua família ou abandonar seus estudos para entrar no mercado de trabalho. Nesse momento crítico, todos os jovens se unem em uma mobilização solidária na tentativa de prestar-lhes auxílio. A solução para a crise é engendrada pelo, até então, benevolente financista Fábio, pai de Heloísa, que consegue viabilizar para Waldir uma ocupação de meio expediente em uma instituição bancária e o agracia com uma substancial dotação financeira. Tal gesto possibilita a Waldir arrendar um recatado aposento no domicílio do professor Avelar. O financista persiste em seu compromisso de auxílio a Waldir ao longo da narrativa, reconhecendo nele um considerável valor intrínseco, além de vislumbrar a perspicácia de influenciar com discrição os movimentos da sua filha, percebida por ele como uma fonte de inquietação. No interlúdio de encontros juvenis, em que se entoam canções bossa nova ao acompanhamento de piano e abundantes acordes de violão, celebrações com danças twist, excursões ao teatro para assistir a espetáculos de "Opinião", repetidas vezes, nos casos em que as finanças o permitiam, e períodos de lazer nos domínios campestres dos progenitores de Lavínia, os jovens concluem o ano de 1964, preparando-se para os desafios do vestibular. O anseio preeminente de Maria Lúcia consiste em conquistar o privilégio de possuir um espaço íntimo, o qual, em seu atual contexto, lhe falta. O diminuto e desordenado apartamento que ocupa ostenta duas exíguas salas e dois quartos, sendo que um deles é destinado aos seus genitores. No quarto pertencente a Maria Lúcia, o progenitor mantém a sua coleção de livros e dispõe de uma escrivaninha. Com frequência, a nossa protagonista se vê compelida a recorrer ao espaço da sala para suas noites de repouso, em meio a constantes visitas de vizinhos e 110 amigos, com a incessante presença da televisão ligada, pois o senhor Damasceno necessita do quarto de sua filha para sediar reuniões de cunho político, que se tornaram ainda mais frequentes após a queda do governo de João Goulart, sobretudo entre os integrantes do Partido Comunista. A fim de ilustrar o cenário aprazível de desordem que impera na residência, é importante mencionar que o guarda-roupa de Maria Lúcia encontra-se localizado no quarto de seus pais. Essa situação torna consideravelmente complexa a tarefa de receber amigas para trabalhos em grupo e, por vezes, até mesmo estudar de maneira solitária. A conquista de um espaço verdadeiramente próprio, requer, sem dúvida, recursos financeiros para implementar pequenas reformas, como a criação de estantes no corredor destinadas à vasta biblioteca do pai, a instalação de um armário exclusivamente destinado à Maria Lúcia em seu próprio quarto e a eliminação do guarda-roupa embutido no quarto dos pais, a fim de acomodar a escrivaninha de Damasceno. De forma inesperada, o pai recebe um adiantamento financeiro decorrente de sua obra literária em andamento, o que torna possível a realização de todas as melhorias almejadas. O entusiasmo que acompanha a notícia é grandemente apreciado por sua filha, que há muito aguardava ansiosamente por tal conquista. Os procedimentos inaugurais para a concepção do novo aposento estão em marcha, com encomendas direcionadas a hábeis marceneiros e a seleção de materiais têxteis para a produção de uma cortina inovadora, concretizando, assim, os anseios que Maria Lúcia acalentava desde a infância. Em paralelo, João e seus colegas de colégio atravessam um período de turbulência. Estão às vésperas de lançar, na instituição de ensino, um periódico de teor cultural independente, destinado a ser compartilhado com vestibulandos de várias escolas, ou, como sugere Edgar, a ser comercializado. O primeiro exemplar encontra-se quase concluído e conta, inclusive, com uma comovente crônica escrita por Maria Lúcia, um artigo redigido por Galeno, no qual se aborda o movimento cinematográfico, e uma análise das oportunidades acadêmicas frente ao cenário político, elaborada por João Alfredo. Este último artigo é considerado notável por nosso venerável intelectual. Em síntese, o periódico é um empreendimento coletivo, no qual Maria Lúcia desempenha um papel ativo e que desperta a admiração de Damasceno. Resta apenas a etapa da impressão para sua concretização. Os jovens obtêm um mimeógrafo, gentilmente doado pela empresa do pai de Lavínia. Subitamente, poucos dias antes da entrega do mimeógrafo, um artigo escrito por João Alfredo é retirado do quadro de avisos da escola, justificado pelo diretor como uma matéria inoportuna. No mesmo dia, o diretor comunica aos estudantes que não poderá mais disponibilizar a sala que havia prometido para o mimeógrafo, argumentando que o espaço deverá ser alocado para a criação de uma nova sala de trabalhos manuais destinada 111 aos estudantes do ginásio. Surge a necessidade urgente de encontrar um local apropriado para a instalação do mimeógrafo, que será entregue no dia subsequente. A mãe de Edgar decide disponibilizar o escritório em sua residência. No entanto, ao compreender a inclinação ideológica de esquerda presente nos artigos de João Alfredo, Regina, a progenitora de Edgar, experimenta um receio agudo em relação às potenciais implicações com a repressão ainda incipiente e disfarçada. Como resultado, ela revoga sua decisão de ceder o espaço. Damasceno se entristece ao testemunhar esses jovens cheios de ideais com um mimeógrafo literalmente no meio da rua, e oferece, de forma temporária, o quarto de sua filha. No entanto, no momento em que Maria Lúcia retorna ao lar após uma expedição de seleção de tecidos para cortinas e colchas, acompanhada por sua mãe, depara-se com a invasão de seu quase novo quarto por um descomunal mimeógrafo. Os desentendimentos entre Maria Lúcia e seu pai se agravam ainda mais quando ela toma ciência de que o montante designado para o financiamento das reformas em seu quarto vem sendo dissipado, ora para socorrer um amigo em apuros, ora para cobrir as despesas decorrentes de uma súbita enfermidade do avô, que é pai de Damasceno. Como resultado, ela atribui, de maneira inerente, a responsabilidade de tais desvios a João Alfredo. Essa conjuntura exacerba o conflito entre os dois, em paralelo à intensificação da paixão subentendida que a acomete e que ela encara com apreensão. Em 1965, encontram-se todos eles matriculados em instituições acadêmicas diversas, cujas trajetórias cotidianas exploraremos de forma mais breve em comparação à meticulosidade com que examinamos suas vivências durante o período no Colégio Pedro II, que pode ser considerado, de fato, uma fase preambular e inocente em nossa narrativa. Maria Lúcia e sua companheira Lavínia frequentam a Faculdade de Jornalismo na PUC. Edgar e Waldir estão imersos nos estudos de Economia na UFRJ, na Praia Vermelha. João Alfredo, o protagonista da história, apesar de almejar uma carreira no jornalismo, opta por ingressar no curso de Ciências Sociais na Faculdade de Filosofia. Paralelamente, Galeno inicia o curso de Jornalismo, mais como uma concessão à sua irmã mais velha, que receia pelas incertezas inerentes à vida de artista. Esse curso parece nunca alcançar o seu término, pois, essencialmente, o indivíduo almeja expressar-se artisticamente, ou seja, não se dedica ao estudo de forma diligente. No plano sentimental, Maria Lúcia encontra-se em um estado de oscilação entre a amizade profunda de Edgar e João Alfredo. No âmbito ideológico, ela e Edgar constantemente se envolvem em disputas com João, alegando que este último direciona sua atenção de maneira excessiva para questões políticas estudantis em detrimento dos estudos. O pai de Maria Lúcia 112 experimenta uma invasão policial em sua residência, culminando no confisco de muitos de seus livros e quase resultando em sua detenção devido à vinculação com o mimeógrafo utilizado pelos jovens. A nossa personagem central vivencia uma considerável apreensão ao considerar envolver-se com um homem que compartilha notáveis semelhanças com o seu pai. Não obstante, a atração que Maria Lúcia nutre pelo jovem João é ostensiva. No que concerne ao jovem Edgar, que compartilha uma maior afinidade com ela, é indubitável que Maria Lúcia sinta simpatia, mas hesita em embarcar em um relacionamento de maior comprometimento. Em uma determinada noite, Maria Lúcia sucumbe aos seus impulsos e troca beijos com João Alfredo pela segunda vez. Eles adentram um estágio de envolvimento romântico e harmonia. Contudo, já na manhã seguinte, em lugar de aguardá-la na saída da faculdade, o protagonista falha no encontro, devido a um chamado repentino para participar de uma reunião envolvendo questões políticas estudantis. A insegurança acaba por impelir Maria Lúcia a estabelecer um relacionamento com o outro jovem, Edgar. O pai de Maria Lúcia exibe um entendimento aguçado quanto à dinâmica em curso e busca auxiliar sua filha no enfrentamento de suas apreensões. Ele percebe Edgar como alguém agradável, mas superficial, excessivamente orientado para questões de natureza material. Nesse contexto, Maria Lúcia prossegue com o relacionamento, porém, atravessando períodos de conflito recorrentes, dada a inquietante presença de João Alfredo em seu círculo familiar. Estamos inseridos na era da liberação sexual. Em contraposição aos jovens retratados na minissérie Anos dourados, até mesmo o convencional Edgar expressa o desejo de consumar relações íntimas com sua namorada, com quem planeja casar-se após a obtenção de seu diploma acadêmico. Maria Lúcia, por sua vez, resiste a essas pressões, motivada mais pelo temor de estar enamorada de João Alfredo do que por princípios morais estritos. A minissérie oferece uma exploração densa das complexidades nas relações interpessoais, conflitos familiares e mudanças sociais na época retratada. A percepção do pai de Maria Lúcia, os conflitos recorrentes no relacionamento e a presença inquietante de João Alfredo contribuem para uma narrativa rica em nuances. A discussão sobre a liberação sexual e os conflitos de valores ressalta a tensão entre tradição e mudança. A resistência da personagem Maria Lúcia, mais motivada pelo temor emocional do que por convicções morais, acrescenta uma camada psicológica intrigante ao enredo. Esse elemento revela a influência das emoções e das relações passadas na tomada de decisões, desafiando a superficialidade das aparências. Também ressalta a capacidade da minissérie de abordar 113 questões profundas e multifacetadas, proporcionando uma reflexão sobre as escolhas individuais em um contexto de transformações sociais e familiares significativas. A percepção do pai de Maria Lúcia sobre Edgar como alguém superficial e materialista problematiza a dinâmica do relacionamento. A escolha de Maria Lúcia de continuar o namoro, apesar dos conflitos recorrentes, sugere uma tensão entre suas próprias convicções e as expectativas familiares, a presença persistente de João Alfredo no círculo familiar de Maria Lúcia, adiciona uma camada de complexidade ao relacionamento, e essa dinâmica sugere possíveis conflitos entre as escolhas pessoais da protagonista e as expectativas da família em relação a um parceiro mais tradicional como Edgar. No contexto da "era da liberação sexual" destaca - se um conflito de valores entre a mentalidade mais conservadora representada por Edgar e as mudanças sociais em curso, as expectativas e pressões sociais sobre os personagens, especialmente considerando o desejo de consumar o relacionamento expressado por Edgar. A resistência de Maria Lúcia às pressões sexuais de Edgar pela motivação subjacente. A revelação de que a resistência está mais relacionada ao temor de estar enamorada de João Alfredo do que a princípios morais estritos adiciona uma dimensão psicológica complexa ao conflito. Inicia um conflito na cena em que o pai de Maria Lúcia precisa se ausentar no jantar de aniversário dela, devido as questões políticas. No mês de novembro, está agendada uma conferência da Organização dos Estados Americanos (OEA) no Hotel Glória, na qual estará presente o Presidente Castelo Branco, coincidindo com a data de aniversário de Maria Lúcia. Em uma iniciativa para demonstrar afeto por sua filha, ciente de suas necessidades emocionais, Damasceno a convida para um jantar fora, acompanhada pela mãe, avós, uma tia, seu namorado, Galeno, Regina (a cordial mãe de Edgar), Lavínia e seu noivo Gustavo. Algumas personalidades intelectuais que compartilham amizade com Damasceno, dentre elas Antônio Calado, Carlos Heitor Cony, Glauber Rocha e Mário Carneiro, promovem uma manifestação em frente ao hotel, segurando uma faixa com a inscrição: “OEA, Reivindicamos Liberdade”35. Ao regressar ao lar com a intenção de se preparar para o jantar agendado no restaurante, encontrando todos os convidados prontos e animados com a perspectiva desse compromisso, Damasceno recebe a notícia de que seus amigos foram detidos. Como consequência, é convocada uma assembleia de urgência em um teatro, com o propósito de deliberar sobre possíveis formas de protesto. 35 Importa salientar novamente que, em todo o desenrolar do enredo, todas as figuras reais são meramente mencionadas, pois não comparecem na trama; enquanto os demais nomes são personagens, ou seja, inteiramente fictícias, mas que evocam posicionamentos semelhantes aos das personalidades mencionadas. 114 João Alfredo está programado para assumir um papel de destaque como orador principal durante esse encontro, uma manifestação abrangente que reúne a elite intelectual da cidade do Rio de Janeiro. Maria Lúcia suplica ao seu pai que não substitua a celebração de seu aniversário pela participação nesse evento, onde há a possibilidade de ocorrerem problemas, tendo em vista que alguns de seus amigos foram detidos mais cedo naquele dia. Damasceno, encorajado de forma significativa por João Alfredo, para quem ele é uma figura admirada e reverenciada, envolve-se em uma acalorada discussão com sua filha. Ele assegura à Maria Lúcia que não enfrenta nenhum perigo iminente e decide comparecer ao teatro com João Alfredo, enquanto os demais convidados prosseguem para o restaurante sem ele. No restaurante, sob a liderança de Edgar, o grupo é envolto por uma atmosfera carregada de tristeza e tensão, em vez de celebrar o aniversário. Maria Lúcia está profundamente apreensiva com a possibilidade de algo adverso ocorrer com seu pai. Após o término do jantar, Edgar acompanha os avós da aniversariante até sua residência. Diante do prédio onde Maria Lúcia vive, desencadeia-se uma intensa discussão entre mãe e filha. A mãe de Maria Lúcia procura refúgio na casa de sua prima Dolores, que tenta acalmá-la. Posteriormente, Edgar acompanha sua namorada até sua residência. Ele aproveita a oportunidade para, mais uma vez, enfatizar seus avanços físicos, os quais são prontamente rejeitados por Maria Lúcia. Ela se encontra em um estado de melancolia, profundamente preocupada com o bem-estar de seu pai, optando por permanecer em solidão. Pouco após a partida de Edgar, João Alfredo chega, mostrando-se entusiasmado com a perspectiva de acalmar os ânimos na família do intelectual. Nesse cenário, Maria Lúcia permanece solitária, envolta em tristeza e tensão. A decisão de Damasceno, encorajado por João Alfredo, de participar do evento, apesar dos incidentes ocorridos no mesmo dia, destaca a complexidade das relações pessoais e políticas na trama. A reverência a figuras admiradas pode influenciar as decisões individuais, levantando questões sobre a responsabilidade individual e a ponderação adequada dos riscos envolvidos em contextos políticos turbulentos. Essa cena contribui para a profundidade temática da minissérie ao explorar os dilemas éticos e emocionais enfrentados pelos personagens. Segundo Alfredo Syrkis, (2014, p. 48): Desde 1965 havia manifestações estudantis, algumas brutalmente dissolvidas pela polícia. Inicialmente eu achava aquilo uma baderna, resultado da tal infiltração comunista sobre a qual papai não cansava de advertir–me e que o seu jornal, O Globo, denunciava amiúde em inflamados editoriais. Depois que entrei no Cap e conheci, pela primeira vez, os ‘terríveis esquerdistas’, fui nuanceando os juízos. A turma era mais divertida , mais livre, tinha conversas 115 mais interessantes . Pensava na vida e tinha preocupações diferentes da ociosa malandragem, futilidade, embotamento intelectual e agressividade desdenhosa dos meus amigos cocobóis de festinhas e praia. Apesar de o meu pai já achar, naquela época, que tinha um bolchevique em casa, eu ainda era um liberal, de centro, admirador de Kennedy, indignado com o Muro da Vergonha, mas também revoltado com o outro extremo que nos governava. Embora o pai de Syrkis já o considerasse um bolchevique naquela época, o autor ainda se identificava como liberal de centro, admirador de Kennedy e indignado tanto com o Muro de Berlim quanto com o governo de extrema direita que estava no poder. A assembleia transcorreu de forma bem-sucedida, sem a intervenção de forças repressoras. Damasceno proferiu seu discurso com notável brilhantismo. No entanto, Maria Lúcia indagava porque ele ainda não havia retornado para casa. João explica que o jornalista concordou em integrar uma comissão designada pela assembleia, e nesse exato momento, essa comissão está reunida na residência de um dos proeminentes intelectuais presentes, trabalhando na elaboração de um documento de protesto a ser encaminhado ao secretário-geral da OEA. A interlocução desencadeou uma acalorada contenda entre os dois indivíduos, com Maria Lúcia imputando a João a responsabilidade por ter perturbado o curso de vida de seu pai, enfatizando a ineficácia de suas tentativas em influenciar a transformação do mundo. Por outro lado, João recriminou Maria Lúcia por seu conformismo e pusilanimidade, destacando com ainda maior veemência o papel do jornalista na sociedade. O desenlace da acirrada argumentação culminou na consumação de um ato amoroso, ocorrendo sem uma explicação racional substancial, como se a atração entre os dois jovens estivesse predestinada desde o instante em que se conheceram, configurando um ambiente de completa entrega. Simultaneamente, nas proximidades da residência do erudito que Damasceno e seus colegas haviam decidido seguir, o contingente é abordado pelas forças policiais, resultando na detenção de alguns deles. Salviano, o médico com inclinações progressistas e amigo de Damasceno, figura entre os detidos. A repressão acompanhou de perto a reunião e optou por efetuar a captura dos principais participantes afastados da aglomeração. Damasceno é abordado com notável rigor por oficiais à paisana da Polícia Militar. Os agentes da polícia solicitaram que Salviano e Damasceno os acompanhassem. O coletivo manifesta sua recusa diante da pressão exercida. Damasceno replica com fervor: “Insisto em obter informações a respeito de sua identidade. Posso assegurar-lhe que estou agindo em conformidade com meu direito de cidadão. Ou será que chegamos a um estágio de inversão de valores tão extremo que me vejo compelido a acatar diretrizes de um indivíduo desconhecido?” 116 Os jornalistas na minissérie Anos rebeldes são fundamentais para a narrativa, representando as complexidades éticas, as pressões da censura, a diversidade de opiniões e o papel vital que a imprensa desempenhou na resistência e na preservação da memória histórica durante a Ditadura Militar. A censura imposta pelo regime militar é uma realidade presente na minissérie, jornalistas são confrontados com a difícil escolha entre publicar notícias verdadeiras e arriscar a censura, ou autocensurar-se para evitar represálias. Esse dilema é retratado como uma constante tensão na busca pela liberdade de imprensa. A minissérie explora o comprometimento ético dos jornalistas em meio à repressão. Alguns enfrentam dilemas éticos ao decidir entre reportar fielmente os eventos e proteger fontes, enquanto outros podem colaborar com o governo para evitar problemas. A prisão do jornalista Damasceno pai de Maria Lúcia, que ela de maneira inconsciente, associa à figura de João Alfredo, resulta em um período de considerável dificuldade para a família. Após um período de três semanas, Damasceno é finalmente libertado, porém sua saúde encontra-se debilitada, enfrentando sérios problemas físicos. Ele não dispõe de recursos financeiros suficientes para receber o tratamento adequado. Nesse contexto, João Alfredo inicia uma campanha de angariação de recursos, buscando apoio entre os círculos intelectuais, com o intuito de viabilizar a realização de uma cirurgia delicada para o estimado jornalista. Nesse estágio, Damasceno acidentalmente descobre que sua filha havia perdido a virgindade, ao vasculhar a bolsa da jovem em busca de um número de telefone, deparando-se com um frasco de pílulas anticoncepcionais. Ao contrário de sua esposa, a quem Maria Lúcia já havia compartilhado informações, como muitos intelectuais progressistas de sua geração, Damasceno é profundamente abalado por essa revelação, e empreende uma tentativa desesperada de compreender as transformações nos costumes para as quais não estava devidamente preparado. Após uma profunda manifestação de melancolia, ele finalmente se reconcilia com Maria Lúcia. Compromete-se com sua filha de que, quando tiver superado a crise de saúde, buscará uma postura menos idealista e se dedicará mais ao trabalho, com o objetivo de adquirir a casa de campo que há tanto tempo almeja. Planeja também empreender as reformas necessárias para conceder a Maria Lúcia o quarto que ela deseja há longos anos. Maria Lúcia, por sua vez, fortalece ainda mais seus laços com esse afetuoso pai. Entretanto, o estado de saúde do jornalista torna-se cada vez mais delicado. A década de 1960, na qual a minissérie se passa, foi marcada por significativas mudanças sociais e políticas no Brasil. A cena da perda da virgindade de Maria Lúcia pode ser vista como um reflexo dessas transformações, desafiando normas tradicionais e evidenciando 117 o desejo de liberdade individual em meio a um contexto de repressão política. Por outro lado, a cena também demonstra valores morais tradicionais. Os conflitos enfrentados por Maria Lúcia e as possíveis reações de personagens mais conservadores na trama podem servir como uma reflexão sobre as tensões entre as mudanças culturais e os valores estabelecidos. A minissérie explora a perda da virgindade é representada em termos de intimidade e afeto. A narrativa aborda as complexidades emocionais envolvidas nesse momento, oferecendo uma visão mais completa das experiências individuais e relacionamentos na trama, a cena também contribui para a desconstrução de estereótipos de gênero associados à virgindade feminina, questionando ideias preconcebidas sobre a pureza e autonomia das mulheres em suas escolhas sexuais. Isso pode ser parte de uma narrativa mais ampla de empoderamento feminino na minissérie. Considerando o pano de fundo da Ditadura Militar, a perda da virgindade de Maria Lúcia pode ser analisada como uma resposta pessoal às restrições impostas pelo regime. A liberdade sexual pode ser vista como uma forma de resistência individual contra as limitações políticas e sociais. Considerando o contexto da década de 1960, a utilização da pílula anticoncepcional por Maria Lúcia representa um desafio às normas sociais tradicionais. A contracepção era um tema tabu, e a personagem desafia essas normas ao buscar ativamente formas de evitar uma gravidez indesejada. A cena da pílula anticoncepcional pode ser vista como um reflexo das transformações culturais da época, especialmente no que diz respeito à revolução sexual. Maria Lúcia, ao optar por métodos contraceptivos, participa das mudanças de atitudes em relação à sexualidade que ocorreram nos anos 60. 3.2 Revelações e resistências: análise profunda dos anos rebeldes Os anos rebeldes abrangem o período de 1967 a 1968. A prisão de Damasceno o deixa bastante debilitado, sendo diagnosticado como possível candidato a um infarto e necessitando de recursos para realizar uma cirurgia de ponte de safena. Lúcia, agora envolvida romanticamente com João, enfrenta desestabilização emocional com a morte do pai. A família de Damasceno passa por dificuldades, levando João a buscar emprego para ajudar Lúcia. As personagens concluem a faculdade e iniciam suas carreiras profissionais. Heloísa começa a questionar a infelicidade de sua mãe, Natália, diante das traições do marido. Tentando viver de forma independente, Heloísa enfrenta a proibição de Fábio. Ela enxerga no casamento com um antigo namorado a oportunidade de se libertar da constante vigilância paterna. Nesse momento, há também uma aproximação entre Natália e Avelar, professor de história no Colégio Pedro II. Embora sintam atração, Natália rejeita a ideia, ao menos a princípio, de trair seu marido. 118 A situação no Brasil sofre uma transformação radical com a promulgação do Ato Institucional n. 5, que, entre outras medidas, eliminou a necessidade de mandado policial para investigações. Alguns personagens começam a se engajar em passeatas e outros aderem à luta armada. A morte do estudante Edson Luís, evento verídico retratado na minissérie, leva alguns personagens a se envolverem na guerrilha. Maria Lúcia e João tentam manter seu relacionamento em meio ao turbilhão que se tornou suas vidas. Heloísa, já separada, desaparece de maneira suspeita. Segundo Ventura (2018, p. 90-91): A conta nunca foi feita, mas é provável que os estudantes inscritos nas escolas e faculdades brasileiras de 66 a 68 tenham passado mais tempo na rua do que nas salas de aula. Somado o tempo gasto nas assembleias com as horas despendidas nas passeatas, os estudantes daquela época devem ter tido pouca disponibilidade para estudar. A direita se deliciava: ‘Os estudantes de hoje só querem fazer política’, dizia -se. ‘Por que eles não se preocupam com os estudos?’ Os que viveram intensamente aqueles tempos guardam a impressão de que não faziam outra coisa: mais do que fazer amor, mais do que trabalhar, mais do que ler, fazia–se política. Ou melhor, fazia-se tudo achando que se estava fazendo política. A moda era politizar – do sexo às orações, passando pela própria moda, que, durante pelo menos uma estação de 68, foi ‘militar’: as roupas mimetizaram a cor e o corte das fardas e das túnicas dos guerrilheiros. Fazia–se política nos campi, nas salas de aula, nos teatros, mas de preferência nas ruas – nas passeatas. ‘Há, em qualquer brasileiro, uma alma de cachorro de batalhão’, dizia Nelson Rodrigues. ‘Passa o batalhão e o cachorro vai atrás. Do mesmo modo, o brasileiro adere a qualquer passeata. Aí está um traço do caráter nacional’. Os anos rebeldes, situados entre 1967 e 1968, marcam um período crucial na trama. A prisão de Damasceno resulta em sérios problemas de saúde, pois foi diagnosticado como potencial portador de infarto, demandando recursos financeiros para uma cirurgia de ponte de safena, e não resiste e morre. Enquanto Lúcia, agora envolvida romanticamente com João, enfrenta a desestabilização emocional decorrente da morte de seu pai, a família de Damasceno depara-se com dificuldades financeiras. Nesse contexto, João decide buscar emprego para auxiliar Lúcia. As personagens graduam-se na faculdade e ingressam em suas primeiras experiências profissionais. A conjuntura sociopolítica no Brasil experimenta uma significativa metamorfose com a promulgação do Ato Institucional – AI-5, que, dentre outras disposições, suprime a necessidade de obtenção de mandado policial para condução de investigações. Nesse contexto, observa-se a participação de diversos personagens em manifestações pacíficas, enquanto outros optam pela insurgência armada como estratégia de resistência. A representação da morte verídica do estudante Edson Luís, veiculada na minissérie, serve como catalisador para que determinados personagens ingressem na guerrilha. Paralelamente, Maria Lúcia e João empenham-se em 119 manter seu relacionamento em meio a essa turbulência sociopolítica. Por outro lado, Heloísa, já separada, desaparece de maneira suspeita, acrescentando uma camada de complexidade a esse cenário em transformação. Para Sirkis (2014, p. 97-98): Maio de 68. A juventude francesa, revoltada, tomava Paris. Nos noticiários chegava o confuso reflexo do que alguns já chamavam o ‘poder jovem’. De Gaulle vacilava, Daniel Cohn–Bendit, ‘Dany – le – rouge’ era senhor da Sorbonne e das barricadas do Quartier Latin. Os operários se juntavam e faziam greve. Nos próprios Estados Unidos, a juventude e os negros se levantavam contra a guerra do Vietnã, as universidades e os guetos ardiam. Papai, depois de ler O Globo, dizia tudo ser culpa do satânico dr. Marcuse. Já que era assim, eu procurava algum livro dele para ler, mas ninguém tinha. O movimento estudantil explodia. E também no Uruguai, no México. Guerrilhas na Bolívia, na Venezuela e na Guatemala. E sobre aquilo tudo pairava o Vietnã, que resistia e vencia debaixo das bombas. O mês de maio de 1968 foi marcado por intensos movimentos sociais, protestos e revoltas em diversas partes do mundo. O autor menciona eventos emblemáticos, como os protestos estudantis em Paris, a liderança de Daniel Cohn-Bendit nas barricadas do Quartier Latin, as greves operárias na França e a oposição à Guerra do Vietnã nos Estados Unidos, destacando a efervescência política e social que caracterizou esse momento. O texto faz alusão à atmosfera global de contestação, manifestações estudantis, revoltas operárias e movimentos de resistência que se espalharam por países como Estados Unidos, Uruguai, México, Bolívia, Venezuela e Guatemala. Percebe-se ênfase na multiplicidade de eventos que compunham o cenário internacional, conectados por um sentimento de insatisfação e busca por mudanças sociais, políticas e culturais. A menção ao satânico Dr. Marcuse indica uma percepção disseminada na época de que intelectuais como Herbert Marcuse, filósofo associado à Escola de Frankfurt, exerciam influência nas ideias que alimentavam os movimentos contestatórios. O Vietnã é apresentado como um ponto focal, resistindo e vencendo sob condições adversas, simbolizando a tenacidade e a resistência em meio aos conflitos armados. Esse texto também menciona diferentes eventos e movimentos ocorridos em 1968, ao oferecer uma visão panorâmica do clima de efervescência política e social da época. Pode ser explorada em uma dissertação para analisar as interconexões entre os eventos globais, as motivações dos protestos e as implicações desses movimentos nas diversas regiões mencionadas. Além disso, ela proporciona um insight sobre as percepções e interpretações contemporâneas dos acontecimentos, como a atribuição de responsabilidade a figuras intelectuais, como Dr. Marcuse, na visão de Sirkis. 120 Rosângela Patriota relata em sua obra, a respeito dos movimentos de contestação, a atuação de Vianinha: Manifestou–se contra a censura, promoveu vigílias, denunciou o arbítrio, mas, em nenhum momento, advogou a proposta da ‘guerrilha a qualquer preço’, tanto que na passeata que acompanhou o corpo de Édson Luís até o cemitério ‘[...] Vianinha gritava feito um louco: O povo organizado derruba a ditadura!’ A poucos metros de distância, Hugo Carvana puxava o coro dos ‘revolucionários’ ou ‘porra–loucas’, conforme a ótica: ‘O povo armado derruba a ditadura’ (Patriota, 1999, p. 121). Há um destaque na divergência de opiniões, exemplificada pelos diferentes coros durante as passeatas. Enquanto Vianinha enfatizava a ideia de organização, Hugo Carvana defendia a ideia das vias armadas para derrubar a ditadura. Isso reflete diferentes perspectivas sobre a eficácia e os meios de resistência. De acordo com a análise de Zuenir Ventura (2018, p. 25): O que mais impressionava o político e psicanalista Hélio Pellegrino era o sentido ético desses jovens. Ele dava como exemplo o seu comportamento durante a guerra suja que seguiu a 68: ‘Conhecem–se deles muitas e inadmissíveis loucuras, inclusive execuções, mas nenhum ato de tortura.’ Esta, porém, é outra história. Serão os nossos anos de chumbo, quando essa geração solar, escancarada e comunicativa troca as ruas pela paisagem lunar da clandestinidade – para se enfurnar nos soturnos aparelhos, ou para mergulhar nos subterrâneos da droga. A nossa história é a de 68, ou melhor, uma das possíveis histórias de um período rico demais para ser apreendido em uma só visão. Por isso, aliás, é que o autor privilegiou, mais do que a própria vivência, o material de época e o testemunho dos protagonistas, sabendo como é difícil olhar para o passado sem ser assaltado pela vontade de promover um retoque aqui ou uma melhoria ali. A minissérie também retrata cenas reais, na formação dos movimentos. Embora muitos se opunha à ditadura, alguns, como Vianinha, optaram por forma de resistência que não envolvesse necessariamente a violência direta ou a “guerrilha a qualquer preço”, favorecendo a ideia de um povo organizado como agente de mudança. A divergência de opiniões durante a passeata ilustra as diferentes abordagens e perspectivas dentro do movimento de resistência na figura de reformistas e revolucionários. Essas atitudes públicas acarretaram-lhe dissabores e discussão sobre seu comprometimento revolucionário. De acordo com a análise de Luiz Carlos Maciel, ‘as divergências iriam se acentuar nas assembleias da classe, nos Teatros Jovem, Gláucio Gil e Opinião’. ‘Os revolucionários’ estreitariam seu intercâmbio com as lideranças estudantis, apoiando as manifestações de rua que daí em diante se transformariam em verdadeiros embates com a Polícia. Ser ‘reformista’ num ambiente tão apaixonado era tarefa das mais difíceis – até porque os adversários tinham inegável respaldo nas votações. ‘Nós éramos bons de retórica, mas o pessoal do Partidão era ótimo para vaiar’. Vera Gertel, 121 ao rememorar este período, revelo que ‘Vianinha não deixava transparecer, mas saía do Gláucio Gil deprimido. Se ele ou Gullar levantavam a voz, uma avalanche de impropérios era disparada pelo outro lado’ (Patriota, 1999, p. 121-122). No campo cultural, onde intelectuais, artistas e escritores desempenhavam papéis significativos, os reformistas, muitas vezes, enfrentavam críticas por não adotarem uma postura mais desafiadora em relação à censura e à repressão cultural. Aqueles que defendiam uma resistência mais direta viam os reformistas como sendo complacentes ou não suficientemente engajados na luta pela liberdade de expressão. Para Zuenir Ventura (2018, p. 71): Na verdade, o debate era mais sofisticado do que esse resumo. Discutiam-se um modelo de revolução, e como se chegar a ela. Pelo menos duas concepções se chocavam. Uma entendia a revolução como ruptura violenta, isto é, como uma explosão desencadeada por uma vanguarda que, ao ser logo substituída pela classe operária, criaria uma sociedade nova e um homem novo. Defendiam essa concepção as organizações que já se preparavam para a luta armada e os setores estudantis e culturais a elas ligados. A outra posição, defendia pelo PCB, via a revolução não como um objetivo imediato, e sim como um lento processo, que poderia até culminar com uma ruptura, desde que fosse o resultado da gradual organização da sociedade civil e da acumulação de forças. Uma boa iniciação política passava pela adoção de uma ou outra dessas linhas. Classificavam-se as pessoas como se classificam os torcedores: ‘fulano é revolucionário, fulano é reformista’; ou melhor: fulano é esquerdista, porra-loca; ou, ao contrário, ‘partidão, conciliador’. Mas era preciso não confundir revolucionário com rebelde, um tipo marginal de classe média, conscientizado, politizado, mas no fundo um adepto parcial da razão burguesa. Isso é o que ensinava o ‘revolucionário’ […] É destacado a complexidade das discussões, indo além de um simples resumo, e explora duas visões distintas sobre como alcançar a revolução. A primeira concepção, associada a organizações que se preparavam para a luta armada, via a revolução como uma ruptura violenta. Nessa visão, uma vanguarda lideraria uma explosão revolucionária, sendo posteriormente substituída pela classe operária para estabelecer uma sociedade e um tipo de pessoa completamente novos. A segunda posição, defendida pelo PCB, enxergava a revolução não como um objetivo imediato, mas como um processo gradual. Esse processo poderia eventualmente culminar em uma ruptura, mas apenas como resultado da organização lenta da sociedade civil e da acumulação de forças ao longo do tempo. Ventura destaca a polarização dessas ideias, sendo comum classificar as pessoas conforme sua adesão a uma dessas linhas, comparando-as, de certa forma, aos torcedores de times de futebol. Além disso, sobre a importância de distinguir entre revolucionário e rebelde, apontando para a complexidade das 122 identidades políticas e a necessidade de uma análise mais aprofundada para compreender as motivações e perspectivas de cada indivíduo envolvido no debate político. Durante as décadas de 1960 e 1970, especialmente no contexto político brasileiro, havia críticas aos chamados “reformistas” por diversas razões. Essas críticas estavam inseridas em um período de intensa efervescência política e social, marcado por eventos como o golpe militar de 1964 e o início de um regime autoritário que perdurou até meados da década de 1980. Algumas das razões para as críticas aos reformistas incluem a polarização política. Noutras palavras, o Brasil estava dividido entre correntes políticas radicais e moderadas. Enquanto alguns defendiam ações mais radicais, como a luta armada contra o regime militar, outros optavam por abordagens mais moderadas, buscando reformas graduais e trabalhando dentro das instituições existentes. Os reformistas eram frequentemente vistos como menos comprometidos com ações mais radicais, o que gerava desconfiança em alguns setores. No contexto do regime militar, que instaurou um governo autoritário, os reformistas eram muitas vezes criticados por não adotarem uma postura de confronto contra o regime. A busca por reformas dentro das estruturas existentes podia ser interpretada como uma aceitação tácita do sistema vigente, especialmente por aqueles que defendiam uma ruptura mais radical. Ademais, algumas críticas aos reformistas derivavam da desconfiança em relação à eficácia de suas estratégias. Muitos argumentavam que as mudanças graduais propostas pelos reformistas não eram suficientes para alterar as estruturas políticas e sociais fundamentais que alimentavam as injustiças e a repressão, sendo que grupos mais radicais, incluindo aqueles ligados à luta armada, muitas vezes exerciam pressão sobre os reformistas para que adotassem posturas de confronto. Essa pressão era intensificada em meio aos conflitos ideológicos e à dinâmica política do período (Gorender, 1990). Portanto, as críticas aos reformistas estavam profundamente enraizadas em divergências ideológicas, táticas políticas e no contexto de repressão autoritária que marcavam o Brasil naquelas décadas. A análise profunda desses elementos dentro do contexto da minissérie Anos rebeldes revela uma complexidade intrínseca às interações entre o pessoal e o político. A saúde comprometida de Damasceno, decorrente de sua atividade política, não apenas destaca os impactos individuais da repressão, mas também destaca as ramificações financeiras, lançando luz sobre as implicações mais amplas da perseguição política. As relações afetivas, notavelmente exemplificadas pelo relacionamento de Lúcia e João, são examinadas sob as pressões traumáticas do período, evidenciando como as adversidades políticas podem moldar e desafiar as conexões pessoais. A dinâmica familiar, refletida no conflito entre Heloísa, Fábio e 123 Natália, emerge como um microcosmo das tensões sociais e políticas do tempo, destacando os conflitos geracionais como reflexo das transformações em curso. A diversidade de formas de engajamento político e resistência, expressa pelas reações dos personagens ao Ato Institucional n. 5, ilustra a gama de respostas possíveis diante das mudanças políticas drásticas. Desde manifestações pacíficas até a adesão à luta armada, essas escolhas são profundamente influenciadas pelo contexto político e social da época. O desaparecimento suspeito de Heloísa, empregado como elemento de suspense na trama, pode ser interpretado como um dispositivo narrativo que transcende o entretenimento, proporcionando uma reflexão simbólica sobre a instabilidade política prevalente. Assim, a narrativa não apenas entretém, mas também comunica e comenta sobre os eventos históricos em um contexto mais amplo. De outro modo, a trama conseguiu explorar o clima da época. Na opinião de Sirkis (2014, p. 29-30): Por alguma razão a sociedade brasileira ainda não terminou de exorcizar a aventura da sua última geração de formação literária – as seguintes foram mais influenciadas pelo audiovisual – que foi contemporânea de um maravilhoso momento de criação cultural e artística. Tenho certa tendência a considerar que nós, jovens políticos radicais, fomos os ‘primos pobres’ de uma efervescência cultural, artística e comportamental, cujo epicentro foi 1968, a qual deixou marcas ainda hoje atuais, que mudaram o mundo muito mais profundamente que a nossa luta política. A revolução sexual, com o advento da pílula, foi um marco definitivo, que nem a Aids conseguiu fazer regredir. O cinema Novo foi um dado primordial no cinema brasileiro. A geração de músicos e poetas que despontou naquele período: Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque, Milton Nascimento, Gal Costa, Rita Lee e tantos outros reina até hoje, insuperada. Quando li o livro de Caetano sobre o tropicalismo (Verdade tropical), revivi aquele período pelo seu lado mais sensível, afetivo, imaginário. Se os setores mais veteranos da esquerda, na época nossos dirigentes, tendiam a torcer o nariz para aquilo que lhes parecia alienação pequeno–burguesa, influência imperialista e fuga aos cânones do realismo socialista, para nós, os secundaristas da luta armada, recém–saídos da adolescência, o tropicalismo foi e continua sendo divino maravilhoso. Era preciso estar atento e forte, não tínhamos tempo de temer a morte, exatamente como cantavam Gil e Cetano. Vinte anos depois, a partir de minha amizade com Gil, pude perceber melhor toda a teia premonitária que nos juntava aos tropicalistas. Que unia o que eles criavam artisticamente não ao que estávamos destinados a ser, pelo menos alguns de nós. É abordado a influência da última geração de formação literária no Brasil, que foi contemporânea de um momento de grande efervescência cultural e artística em 1968. O autor expressa sua perspectiva sobre essa geração, destacando que, por alguma razão, a sociedade brasileira ainda não conseguiu completamente exorcizar essa experiência literária que marcou a época. O autor sugere que a geração de jovens políticos radicais, à qual ele pertence, foram, 124 de certa forma, os “primos pobres” de uma efervescência cultural, artística e comportamental centrada em 1968. Ele argumenta que essa efervescência cultural teve um impacto mais duradouro e profundo do que a própria luta política dos jovens radicais. Destaca eventos marcantes desse período, como a revolução sexual com o advento da pílula anticoncepcional, que deixou marcas significativas na sociedade, resistindo até os dias atuais. Ressalta a importância do Cinema Novo no cenário cinematográfico brasileiro e destaca a geração de músicos e poetas que surgiram naquele período, incluindo nomes como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque, Milton Nascimento, Gal Costa e Rita Lee. Ele argumenta que essa geração artística permanece insuperada, tendo deixado uma marca indelével na cultura brasileira. Alfredo Sirkis compartilha sua experiência pessoal ao mencionar que, na época, enquanto setores mais veteranos da esquerda torciam o nariz para o que consideravam alienação pequeno-burguesa, influência imperialista e fuga aos cânones do realismo socialista, para os jovens secundaristas envolvidos na luta armada, o tropicalismo representava algo divino e maravilhoso. Ele destaca que, vinte anos depois, ao se aproximar de Gilberto Gil, percebeu melhor a conexão premonitória que os unia aos tropicalistas e como a criação artística daquela época estava intrinsecamente ligada ao que alguns deles se tornaram. Entre os movimentos culturais e políticos na década de 1960 no Brasil, destaca-se a complexa relação entre a efervescência artística e cultural e as lutas políticas da juventude da época. Além disso, ela oferece uma perspectiva única sobre como determinados eventos e movimentos culturais ainda ressoam e moldam a compreensão contemporânea da história brasileira. Esses elementos intricados proporcionam uma compreensão aprofundada das interconexões entre os aspectos pessoais e políticos, enriquecendo a análise das dinâmicas familiares, das relações afetivas e das formas de resistência durante um período crucial na História do Brasil. Gilberto Braga, por exemplo, revela uma profunda conexão pessoal que tinha com a época retratada na minissérie. Tal dado, a despeito de subjetivo, sugere que a obra pode ser influenciada por suas próprias experiências vividas durante aquele período em específico. A época em que se passa Anos rebeldes corresponde, como eu já disse, à minha juventude. Ou seja, eu tinha idade dos protagonistas. Por isso, houve uma intenção, às vezes exagerada, de descrever aqueles anos, de colocar tudo o que realmente estava acontecendo na época, em termos de cultura. Como sou muito metódico, para não dizer obsessivo, listava o que queria citar. Nessas listas, entre muitos outros, constavam nomes e anotações como Fellini, Kubrick, Cartola, Nara Leão, Grupo Opinião (Braga, 2010, p. 87). 125 Braga relata que há uma intenção, às vezes exagerada, de descrever aqueles anos. Como um desejo de retratar de forma minuciosa e fiel os eventos, ambientes e cultura da época, como ele os viveu. Ao descrever como metódico, quase obsessivo, Braga revela seu comprometimento em capturar todos os detalhes da cultura da época. O fato de ele listar cuidadosamente o que queria citar, incluindo os nomes de Fellini, Kubrick, Cartola, Nara Leão e Grupo Opinião, demonstra a importância atribuída a esses elementos na construção da narrativa, que indica a diversidade de influências que Braga incorporou em sua obra. Cineastas renomados, músicos e grupos teatrais foram selecionados de maneira consciente para enriquecer a representação da cultura da época na minissérie. Criando uma representação autêntica e detalhada da juventude e da cultura da época na minissérie utilizando suas próprias experiências e influências culturais como base. Para Daniel Aarão Reis (2018, p. 13) O que impressiona nos anos 1960, e especialmente em 1968, é a disseminação, a amplitude e a intensidade dos movimentos sociais e políticos. Um pouco por toda a parte, houve embates e lutas sociais e políticas de diferentes motivações e naturezas. Nos Estados Unidos, apareceram distintos movimentos com força imprevista: jovens contra a Guerra do Vietnã; mulheres, pela emancipação feminina; negros e chicanos por direitos civis e políticos; gays, pelo direito de exercer livremente sua sexualidade; povos originários, afirmando demandas identitárias. Eram novos atores que se apresentavam na cena política com demandas e reivindicações próprias, muitas das quais ignoradas ou subestimadas pelos partidos e sindicatos tradicionais. Vale registrar que algumas organizações tomaram, em 1968 e nos anos seguintes, o caminho da luta armada contra o poder. Houve uma notável efervescência dos movimentos sociais e políticos nos anos 1960, especialmente em 1968, tanto nos Estados Unidos quanto em diversas partes do mundo. Esse período ficou conhecido por ser um momento de intensa mobilização e protestos, caracterizado pela emergência de diversos grupos sociais que buscavam promover mudanças e reivindicar direitos específicos. No contexto dos Estados Unidos, vários movimentos surgiram com vigor surpreendente, a exemplo de: oposição significativa à participação dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã, liderada principalmente por jovens que questionavam a legitimidade e os impactos dessa guerra; movimentos feministas que buscavam a emancipação das mulheres, lutando por direitos iguais, acesso a oportunidades educacionais e profissionais, e o direito ao domínio do próprio corpo; negros e chicanos (latinos de origem mexicana) mobilizaram-se por direitos civis e políticos, lutando contra a discriminação racial e por igualdade de oportunidades; ativismo pelos direitos LGBTQ+ ganhou força, com destaque para a luta pela liberdade sexual e pelos direitos da 126 comunidade gay e a reivindicação de grupos indígenas, que afirmavam suas identidades e demandavam reconhecimento e respeito por seus direitos culturais e territoriais. A diversidade de novos atores políticos que surgiram nesse período, muitos dos quais não eram tradicionalmente representados por partidos políticos ou sindicatos convencionais. Além disso, destaca-se que algumas organizações adotaram a luta armada como estratégia de confronto contra o poder estabelecido, evidenciando a radicalização de parte desses movimentos. Um panorama abrangente das dinâmicas sociais e políticas da época, destacando a multiplicidade de demandas e a emergência de grupos que buscavam transformar a sociedade e desafiar as estruturas de poder existentes. O personagem Damasceno é libertado da prisão após sua detenção durante uma reunião de intelectuais, provocando uma mudança significativa no comportamento de Maria Lúcia, que, impactada pelo incidente, manifesta uma nova inclinação em direção à participação na luta política. Entretanto, é plausível argumentar que sua motivação subjacente possa ser, principalmente, o desejo de agradar a João e evitar que o engajamento político dele os separe. Curiosamente, quando Maria Lúcia altera sua postura, João retrai-se e demonstra hesitação, desencorajando, assim, sua namorada. A reação de Maria Lúcia a esse evento, resultando em uma mudança significativa em seu comportamento, uma conexão intrínseca entre experiências individuais e engajamento político. Contudo, ao examinar mais atentamente a transformação de Maria Lúcia, emerge uma possível ambiguidade em relação às verdadeiras motivações subjacentes à sua decisão de participar na luta política. A suposição de que o desejo de agradar a João e evitar uma possível separação motivam essa mudança introduz uma dinâmica complexa de relacionamento e influência mútua. A notável metamorfose que Maria Lúcia busca implementar em sua própria identidade revela-se como um fenômeno surpreendente. Esta transição meticulosamente elaborada é impulsionada não apenas pela paixão de Lúcia por um indivíduo envolvido no movimento político, mas também pelo profundo respeito que nutre por seu progenitor. Apesar da ausência de aptidão intrínseca e afinidade genuína com as atividades políticas, sua influência preponderante provém do fervor militante de seu pai, membro do Partido Comunista. Dessa forma, é possível inferir que Maria Lúcia, em determinados momentos, se questiona quanto ao seu posicionamento individualista, uma vez que a sua maior inspiração reside em um contexto de engajamento político. Braga (2010) relata que João repreende continuamente Maria Lúcia, apontando-lhe o comportamento egocêntrico. Entretanto, ao alterar sua atitude em relação à participação na luta 127 política, manifestando interesse na esfera de vida de João, ela é desestimulada por ele. Este fenômeno é ilustrado, por exemplo, na cena 30 do capítulo 7. Capítulo 1 ao 7 – Anos Rebeldes - Cena 30, capítulo 7: Apartamento de Maria Lúcia (INT DIA) João, Galeno e Marcelo esperando Maria Lúcia, que vai chegar durante a cena. Campainha vai tocar, Carmen vai abrir a porta e Maria Lúcia entrar durante o diálogo. No início, interessam–nos Damasceno e João com Caramuru e Dagmar. - Dagmar: - Ele tá querendo saber se é obrigado a opitá nesse tal de figeteésse! - João: - Se é obrigado não é opção! -Dagmar: - E Caramuru lá sabe o que é oupição? - Damasceno: - (a Caramuru) Faz quanto tempo que você trabalha no prédio? - Caramuru: - Pra mais de seis ano, eu acho. - Dagmar: - Que seis ano, Caramuru, só eu te conheço faz uns nove, dez! - Damasceno: - Você já deve ter estabilidade, Caramuru, não assina esse papel sem pensar porque você perde a sua indenização. O governo tá tirando um direito vital do trabalhador. - Caramuru: - O síndico falou preu oupitar senão eu perco o fundo. - João: - Você não tem nada nesse fundo, Caramuru, nunca depositou! - Caramuru: - (perdido) Ué? Tem que depositar antes? Maria Lúcia já entrou, relacionou–se a Marcelo e Galeno. João vai dirigir- se a eles e intervir. Corta para este grupo, assunto sério, um pouco tenso. Maria Lúcia: - Na reitoria? Na Praia Vermelha? Marcelo: - Da maior importância, dia nacional de luta no país todo. Maria Lúcia: - Marquei aula particular às três, vou ligar para desmarcar. João: - (ouviu) Não sei se tem necessidade, Lúcia, nós já tamos indo... Maria Lúcia: - Que horas começa a assembleia? Galeno: - Tá marcada pra logo depois das aulas da manhã. João: - Não vejo problema de você faltar não, só nós aqui já somos três, na volta eu te conto como foi... Os três rapazes vão saindo. Maria Lúcia chama João, um pouco tensa. Maria Lúcia – João! Ele se volta. Falam a sós. Maria Lúcia – Você acha que... pode ter repressão? João – Pensa nisso não, Lúcia, quem tá na chuva é pra se molhar (Braga, 2010, p. 268-269). Sobre a cena da Morte do estudante Edson Luís, Braga menciona que: Na ocasião da missa de sétimo dia do estudante Edson Luís, morto pela polícia numa confusão entre estudantes e policiais, novamente Maria Lúcia surpreende. Isso acontece no capítulo dez, cena 43, quando todos os amigos vão à casa de João para o chamarem ao evento que, devido ao enorme número de pessoas envolvidas, se tornou mais uma passeata do que propriamente uma missa. Gente de todo tipo fez questão de ir, não importava se era alienado ou até simpatizante da ditadura. Era uma questão de solidariedade (Braga, 2010, p. 243-244). A transformação do evento religioso em uma manifestação coletiva destaca-se como um reflexo da intensificação das tensões sociais na época, bem como da capacidade de mobilização 128 em torno de causas compartilhadas. A presença de pessoas com visões políticas divergentes indica uma convergência em torno do luto e da solidariedade, evidenciando a complexidade das interações sociais em um contexto marcado pela repressão política. Além disso, a reação de Maria Lúcia e de outros personagens diante desse acontecimento pode ser analisada em termos de suas motivações individuais e da forma como suas convicções políticas e sociais são moldadas pelas circunstâncias. A ambiguidade e a diversidade de participantes na “missa- passeata” sugerem uma pluralidade de perspectivas e sentimentos em relação aos eventos políticos da época. Nisso podemos perceber como as dinâmicas sociais, políticas e individuais desdobram-se em momentos de protesto e mobilização durante um período conturbado da história brasileira. Segundo Gabeira (2016, p. 57-58), A morte de Edson Luis no Calabouço foi um novo alento para um movimento de massas que já estava em ascensão. O encontro entre a PM e os secundaristas, que protestavam contra os preços e a comida do Calabouço, parecia que ia ser apenas mais um encontro: bombas pra cá, gritos e vaias pra lá e todos continuariam o dia dentro da maior normalidade.. O novo alento ressalta o impacto transformador que a morte de Edson Luís teve no movimento, indicando que esse trágico evento desencadeou uma nova energia, propulsora de mobilização e engajamento ainda mais intenso. Pois embora trágica, a morte de Edson Luís trouxe uma motivação renovada para as atividades do movimento de massas. Além disso, a descrição do encontro inicial entre a PM e os secundaristas como um evento que seguiria uma sequência previsível, com confrontos e protestos sem maiores desdobramentos, destaca a surpresa causada pela tragédia que se desenrolou. Essa abordagem sugere que a dimensão do evento ultrapassou as expectativas convencionais, alterando o curso esperado dos acontecimentos e elevando o movimento a um novo patamar de importância e urgência, o que obrigou o próprio governo a endurecer o regime, uma vez que nove meses depois foi instituído o AI-5. Para Gabeira, (2016, p. 59), As demonstrações que se seguiram à morte de Édson Luís deixaram para nós uma série de problemas e também indicavam uma série de soluções. Ficou evidente que o movimento estudantil não estava só. O processo de radicalização ia tocando todos os setores mais próximos, sobretudo os intelectuais, professores e trabalhadores na indústria da comunicação. Bancários e comerciários por sua vez a dar o ar da graça, com pequenas comissões de solidariedade. O enterro de Édson Luis havia transcendido àquelas pequenas multidões compostas apenas de estudantes enxertados pelos jovens trabalhadores dos escritórios do centro da cidade. 129 O enterro de Édson Luís ultrapassou as multidões compostas apenas por estudantes, integrando jovens trabalhadores dos escritórios do centro da cidade. Isso aponta para uma união mais ampla entre diferentes grupos sociais, indicando que o evento teve repercussões significativas, além de mobilizar uma base mais diversificada. A complexidade e as ramificações das manifestações após a morte de Édson Luís mostrou também que o movimento estudantil se conectou e influenciou outros setores da sociedade, gerando discussões sobre problemas sociais e sugerindo possíveis soluções. Ou seja, indica que o evento não apenas revelou problemas sociais, mas também instigou reflexões sobre como abordá-los e implementar mudanças. Após a morte do estudante Édson Luís, surgem questionamentos sobre a efetividade das soluções indicadas, a união entre estudantes, intelectuais e trabalhadores evidenciou uma convergência de ideias, mas será que essa aliança se traduziria em mudanças concretas? A presença de setores como bancários e comerciários, embora represente um sinal de solidariedade, levanta a incerteza sobre a extensão do engajamento desses grupos na causa. A radicalização que se disseminou entre os diversos setores aponta para uma mobilização ampla, as pequenas comissões de solidariedade indicam um suporte, mas será suficiente para enfrentar os desafios sistêmicos que levaram à morte de Édson Luís? Além disso, a transcendência do enterro para além das multidões estudantis sugere um despertar social, mas persistirá essa consciência coletiva diante das adversidades políticas e sociais. Sendo assim a complexidade do momento exige uma reflexão sobre a sustentabilidade do movimento pós-Édson Luís. As soluções apontadas podem ser um ponto de partida, mas a eficácia dependerá da coesão e do comprometimento contínuo dos diferentes setores envolvidos. O legado do estudante transcende seu sepultamento, tornando imperativa a busca por ações duradouras e transformadoras para a sociedade. Em uma era caracterizada pela busca por uma existência mais isenta de incertezas,a personagem Maria Lúcia, depara-se com a notícia do falecimento de seu pai. O ilustre escritor, jornalista e intelectual deixa como herança um intricado desafio de natureza financeira, que lança a família em uma teia de dificuldades econômicas. A minissérie Anos rebeldes destaca, por meio dessa narrativa, que eventos como a morte de uma figura central na família podem expor as deficiências nos sistemas de suporte social. A conclusão a ser extraída ressalta a necessidade de abordagens mais abrangentes para enfrentar as consequências econômicas e emocionais de eventos traumáticos, enfatizando a importância de estruturas de apoio social equitativas e acessíveis a todos os estratos da sociedade. Além 130 disso, a trama sugere a urgência de repensar as formas de amparo financeiro pós-eventos traumáticos, destacando a relevância do diálogo sobre políticas sociais que assegurem um suporte efetivo em momentos de crise. Diante dessa adversidade, Maria Lúcia obtém um emprego na editora pertencente ao pai de sua amiga Lavínia. Sua mãe, vulnerável e desprovida de preparação para tais circunstâncias, sendo obrigada a cuidar dos pais de seu esposo, também desprovidos de recursos econômicos, recai sobre ela o ônus das responsabilidades domésticas. Maria Lúcia, com significativo sacrifício pessoal, persiste na condução de seus estudos de jornalismo e na administração do lar. A editora na qual Maria Lúcia está empregada enfrenta uma severa crise, exacerbando ainda mais a situação. O proprietário da editora, Queiroz, que é pai de Lavínia, possui inclinações de teor humanista e acredita firmemente na responsabilidade social de sua empresa. Ele coloca ênfase particular na promoção do debate de ideias por meio da publicação de livros. Queiroz demonstra uma notável relutância em ceder à publicação de best-sellers, recusando-se a veicular o que ele considera literatura de qualidade inferior, facilmente vendável e a serviço de causas pouco profundas. Sua editora se dedica a publicar obras clássicas, tratados de história, sociologia e economia, tanto de autores de vertente direitista como esquerdista, dado que sua motivação primordial não está vinculada a agendas político-partidárias, mas sim ao fomento da discussão intelectual. Entretanto, sua abordagem não encontra amplo apoio no sistema e, após a ocorrência do golpe político, ele enfrenta crescentes desafios na obtenção de financiamento junto às instituições bancárias. O papel das editoras no Brasil nas décadas de 60 e 70 foi significativo, especialmente no contexto político e cultural. Muitas editoras, como a mencionada na citação, desempenharam um papel crucial na disseminação de conhecimento e na promoção do debate intelectual. No entanto, durante o período do golpe político, as editoras que adotavam uma abordagem menos comercial e mais comprometida com a qualidade literária enfrentaram desafios financeiros significativos. O contexto político adverso e a censura imposta dificultaram a obtenção de financiamento junto às instituições bancárias. Para Zuenir Ventura (2018, p. 64): Na verdade a geração de 68 teve com a linguagem escrita uma cumplicidade que a televisão não permitiria depois. O boom editorial do ano indica um tipo de demanda que passava por algumas inevitáveis futilidades, mas se detinha de maneira especial em livros de densas ideias e em refinadas obras de ficção. Nas listas de best–sellers, convivem nomes como Marx, Mao Guevara, 131 Debray, Lúkács, Gramsci, James Joyce, Hermann Hesse, Norman Mailer e, claro, Marcuse. A geração de 1968 manteve afinidade com a linguagem escrita, em contraste com a televisão. A explosão editorial desse ano é vista como indicativa de uma demanda que, apesar de incluir algumas futilidades inevitáveis, tinha um interesse particular por livros que apresentavam ideias densas e obras de ficção refinadas. A coexistência de nomes como Marx, Mao, Guevara, Debray, Lúkács, Gramsci, James Joyce, Hermann Hesse, Norman Mailer e Marcuse nas listas de best-sellers ressalta a diversidade e a profundidade intelectual desse período. Essa diversidade reflete um desejo de explorar uma gama ampla de pensamentos, ideias e formas literárias. Durante o ano de 1968, a linguagem escrita desempenhou um papel crucial na expressão e na busca por conhecimento por parte dessa geração, contrastando com a superficialidade percebida na televisão da época. Por influência do grupo de jovens, Maria Lúcia estabelece comunicação com o pai de Heloísa, resultando em uma conversa estimulante, visto que Fábio decide conceder crédito a ela. Contudo, na realidade, Fábio decide investir na editora, visualizando-a como uma oportunidade de negócio vantajosa para sua holding. Gradualmente, ele começa a fornecer recursos financeiros a Queiróz com a intenção deliberada de comprometer financeiramente a editora, visando sua posterior incorporação, com o objetivo de, ao adquirir ações da editora, optar por linha editorial oposta do que era feito até então. Na residência de Maria Lúcia, a crise se aprofunda com o falecimento do avô. A avó, agora viúva e enfrentando dificuldades financeiras, não dispõe mais de recursos para manter o aluguel de seu apartamento, o que a leva a se mudar para a casa de sua neta e sua nora. Nesse contexto, Maria Lúcia empenha-se em manter o sustento da família sem abandonar seus estudos. Embora não haja carência de recursos para as necessidades básicas, as avarias nos eletrodomésticos, como a televisão que requer a substituição do tubo de imagem, representam desafios intransponíveis. Consequentemente, durante vários meses, a avó e a mãe passam seu tempo diante do aparelho de televisão com a tela inoperante, limitando-se a ouvir as novelas e programas musicais. Além disso, a família é obrigada a suportar a falta de um aquecedor no inverno, resultando em semanas consecutivas de banhos frios. A rotina de Maria Lúcia não comporta a inclusão de um relacionamento amoroso com alguém que desperta nela sentimentos profundos, mas que prioriza suas investidas na esfera da política estudantil e na preocupação com os destinos nacionais. Simultaneamente, Edgar, que há muito tempo nutre um afeto apaixonado por ela, insiste em cortejá-la, oferecendo convites para eventos atraentes e expressando carinho, como a proposição de uma noite de dança no 132 terraço do Hotel Miramar. Notavelmente, ele se mostra capaz de compreender a situação, inclusive o fato de Maria Lúcia ter mantido relações íntimas com seu amigo. Conforme os conflitos se tornam cada vez mais intensos, ela acaba optando pelo isolamento. João Alfredo, apesar de seu idealismo, encontra-se mais apaixonado por Maria Lúcia do que nunca. Em uma tentativa desesperada de conquistá-la e de projetar uma imagem de um jovem mais convencional, ele aceita um emprego consideravelmente desinteressante, atuando como recepcionista noturno em um hotel de porte intermediário. Essa ocupação lhe permite proporcionar à amada experiências encantadoras, tais como passeios charmosos e a possibilidade de adquirir ingressos para espetáculos teatrais de alta qualidade. Além disso, ele discretamente auxilia com algumas despesas do lar da namorada, como a entrega de frutas à avó e biscoitos à mãe. Temporariamente, ele modera sua postura estudantil militante, adotando uma atitude mais responsável aos olhos de Maria Lúcia, culminando na construção de um relacionamento amoroso profundo e significativo entre os dois protagonistas. Com o decorrer do tempo, é inevitável que os conflitos ressurjam. Estamos situados em 1967, período que testemunha o início das manifestações de protesto. Maria Lúcia, no entanto, demonstra resistência em se envolver em tais manifestações, as quais João Alfredo considera de suma importância. Após longos e extenuantes dias, envolvendo suas obrigações acadêmicas, o emprego na editora e a constante pressão financeira, ela dá preferência a um breve interlúdio em uma sala de cinema em detrimento de encontros políticos. Todavia, a intensidade da paixão entre eles a impulsiona a realizar esforços para evitar conflitos. Ao final do ano, é Maria Lúcia quem aconselha João Alfredo a abandonar seu emprego no hotel, uma ocupação que não lhe proporciona satisfação, desde que ele prometa dedicar mais tempo aos estudos em detrimento da atividade política. Nesse contexto, ela procura conciliar suas ações com o idealismo de seu namorado, em uma tentativa de encontrar um ponto de equilíbrio. O ano de 1968, naturalmente, não é o quadro ideal para o fortalecimento do namoro entre nossos protagonistas de índoles tão diversas. Para ela, é o ano da formatura, as possibilidades do início de carreira, as chances de passar a viver uma vida mais segura. Para ele, é a morte chocante de Edson Luís, as passeatas, tudo o que vai culminar com o AI-5, no final do ano. João Alfredo faz parte de uma organização fictícia de esquerda, o CPR (Comando Popular Revolucionário). O maior sonho de Maria Lúcia é que o namorado abandone isso tudo para se casar com ela assim que se formar. Entre brigas e reconciliações, até o AI-5 A paixão supera as constantes conflitos. Uma das maiores brigas do ano é a noite do Festival Internacional da Canção em que João Alfredo vaia ‘Sabiá’, que Maria Lúcia defende com ardor, ainda mais por achar a outra canção concorrente muito sem graça, em termos estritamente artísticos (Braga, 2010, p. 54). 133 Essa passagem descreve o cenário do Brasil em 1968 e os desafios enfrentados por dois protagonistas com perspectivas e ideologias diferentes. Ela ressalta como o contexto político e social do ano afeta o relacionamento de Maria Lúcia e João Alfredo, cujas prioridades divergem. Maria Lúcia está ansiosa por sua formatura e as oportunidades de início de carreira, buscando uma vida segura e convencional. Enquanto isso, João Alfredo está profundamente envolvido nas questões políticas da época, sendo membro de uma organização fictícia de esquerda. Isso cria um conflito fundamental em seu relacionamento, uma vez que Maria Lúcia espera que ele deixe sua atividade política para se casar com ela. Menciona também uma briga significativa entre eles durante o Festival Internacional da Canção, na qual João Alfredo vaia a canção Sabiá, enquanto Maria Lúcia a defende apaixonadamente, sobretudo por razões artísticas. Isso destaca a tensão entre suas visões políticas e artísticas, mas, ao mesmo tempo, ressalta a força de sua paixão, que é capaz de superar esses conflitos constantes, pelo menos até a imposição do AI-5 no final do ano. Essa passagem ilustra de forma vívida a complexidade do relacionamento entre os protagonistas e como o contexto político e social da época molda suas vidas e desafios pessoais. Segundo Patriota (2018, p. 70): Corria o ano de 1968 e novos desafios se apresentavam para um país que, no ano anterior, vivenciara intensos debates, em especial aqueles decorrentes do impacto gerado pela encenação de O Rei da Vela e pelo filme Terra em Transe, ao lado das críticas à resistência democrática e da defesa da ideia de radicalização do processo de luta. No contexto histórico de 1968 destacam-se os novos desafios que se colocaram para o país naquele ano. O autor menciona que, no ano anterior, o Brasil experimentou intensos debates, notadamente relacionados ao impacto provocado pela encenação da peça O Rei da Vela e pelo filme Terra em Transe. Esses eventos foram acompanhados por críticas à resistência democrática e pela defesa da ideia de radicalização do processo de luta. O ano de 1967 foi marcado por acontecimentos culturais e políticos que contribuíram para moldar o cenário desafiador que o país enfrentaria em 1968. Ao relacionar essa citação com a minissérie Anos rebeldes, é possível identificar como os eventos mencionados pela autora podem ser representados e contextualizados na trama televisiva. Os diálogos entre os personagens podem abordar as críticas à resistência democrática e a defesa da radicalização do processo de luta. A minissérie explora os desafios que o país enfrentou em 1968, considerando as influências dos eventos culturais e políticos de 1967. Os personagens podem refletir sobre esses desafios em meio a suas próprias experiências e 134 envolvimentos nas transformações sociais da época. Ao articular esses elementos na minissérie, ela se torna não apenas uma narrativa ficcional, mas também uma representação visual e interpretativa dos eventos históricos e culturais destacados na citação, enriquecendo a compreensão do espectador sobre o contexto daquele período específico. Para Ventura (2018, p. 64-65), Na verdade, a geração de 68 teve com a linguagem escrita uma cumplicidade que a televisão não permitiria depois. O boom editorial do ano indica um tipo de demanda que passava por algumas inevitáveis futilidades, mas se detinha de maneira especial em livros de densas ideias e em refinadas obras de ficção. Nas listas de best-sellers, convivem nomes como Marx, Mao, Guevara, Debray, Lukács, Gramsci, James Joyce, Hermann, Hesse, Norman, Mailer e, claro, Marcuse. A Civilização Brasileira, investindo na qualidade, era capaz de audácias como o lançamento de O capital – em edição integral e pela primeira vez em língua portuguesa – e de Ulysses, de James Joyce, numa portentosa tradução de Antônio Houaiss. A editora não temia, além disso, alternar um pacote de quatro Norman Mailer com a memorável trilogia sobre Trotsky, de Isaac Deutscher. Até o imbatível general das tropas do Vietnã do Norte, Vo Nguyen Giap, obtinha surpreendentes vitórias no território dos mais vendidos aqui. Seu livro O Vietnam segundo Giap esgotou duas edições em dez dias. Lia–se como hoje se vê televisão. Uma das manias do ano era a ‘leitura dinâmica’, um revolucionário método que, dizia a propaganda, ensinava a decuplicar a velocidade da leitura. ‘Leia 2 mil palavras por minuto’, prometia o anúncio, citando leitores como Juscelino Kubitscheck e Abreu Sodré, dois alunos brilhantes, mais ou menos como fora, nos Estados Unidos, John Kennedy. Em outubro, Realidade publicava uma reportagem com o titulo ‘Os best–sellers de Deus’, sobre lançamentos, pode-se ter uma ideia da pluralidade do consumo. A efervescente atividade dos movimentos sociais e políticos durante a década de 1960, notadamente no ano de 1968, tanto nos Estados Unidos como em âmbito global, convidam a refletir que o período é amplamente reconhecido por sua intensa mobilização e protestos, marcados pela ascensão de diversos grupos sociais que aspiravam a promover mudanças significativas e reivindicar direitos específicos. Zuenir Ventura menciona que nos Estados Unidos, a diversidade de movimentos que surgiram com vigor surpreendente. Os jovens manifestaram uma oposição substancial à participação dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã, liderando uma contestação que questionava a legitimidade e os impactos desse conflito. O destaque do texto de Zuenir recai sobre a heterogeneidade dos novos atores políticos que surgiram neste período, muitos dos quais não encontravam representação nos partidos políticos ou sindicatos tradicionais. A adição significativa é a menção de organizações que optaram pela luta armada como estratégia de confronto contra as estruturas de poder estabelecidas, evidenciando uma radicalização em parte desses movimentos. 135 Essa exposição proporciona um panorama abrangente das dinâmicas sociais e políticas da época, sublinhando a multiplicidade de demandas e a emergência de grupos que buscavam reconfigurar a sociedade e desafiar as estruturas de poder preexistentes. Essa abordagem acadêmica reconhece a complexidade do cenário e a importância desses movimentos na configuração da narrativa histórica desse período. Os pensadores de esquerda tinham a preferência do público jovem universitário. Havia um interesse especial por aquelas obras que, de uma maneira ou de outra, traziam uma contribuição prática à pedagogia revolucionária. Revolução na revolução, de Régis Debray, Os pensamentos, de Mao, o Diário, de Guevara, funcionavam como manuais ou cartilhas. No Brasil, o chamado Poder Jovem ensaiava igualmente a sua tomada de poder e perseguia a sua utopia. Também aqui, em 68, ter menos de 30 anos era por si só um atributo, um valor, não uma contingência etária. Algumas evidências contribuíram para isso. Pelé, aos 28 anos, bicampeão mundial, preparava–se para o tri e já era o maior jorgador do mundo; Glauber Rocha, com 29 nos, já conquistara a admiração internacional com pelo menos dois filmes: Deus e o Diabo na terra do sol e Terra em transe; Chico Buarque e Caetano Veloso, se parassem de compor aos 24 e 26 anos, entrariam mesmo assim em qualquer antologia de música popular brasileira; Roberto Carlos tinha 25 anos e já era rei; Elis Regina e Gal tinham 23 anos; Nara Leão, 26 ; Maria Bethânia, 22 (Ventura, 2018, p. 54). Em 1968, um ano emblemático de movimentos sociais e transformações. Ela destaca a influência do chamado “Poder Jovem” no Brasil, que buscava assumir um papel ativo na sociedade e perseguia uma utopia. No ano de 1968, ter menos de 30 anos era visto como um atributo e um valor em si, não apenas uma contingência de idade. Ventura menciona figuras proeminentes da cultura brasileira da época, destacando conquistas e influências de personalidades como Pelé, Glauber Rocha, Chico Buarque, Caetano Veloso, Roberto Carlos, Elis Regina, Gal, Nara Leão e Maria Bethânia, todos representando, de alguma forma, a vitalidade e a expressividade da juventude naquele momento histórico. 136 Figura 7 - Reportagem da revista Veja no lançamento da minissérie em 1992 Fonte: anosrebeldes2011.blogspot.com. Acesso em: 12 jan. 2024. Vamos empreender aqui o relato da evolução da residência de Heloísa até o ponto presente, pois as narrativas, por sua própria natureza, transcorreram paralelamente. Heloísa, a graciosa descendente do eminente banqueiro, figura como a íntima confidente de Maria Lúcia e, invariavelmente, recusou-se a acatar a soberania paternal. A mãe, uma figura jovem e atraente, desempenha um papel quase análogo ao de uma camarada, que Heloísa nunca cogitou reverenciar, muito menos temer. Heloísa, de maneira constante, retornava a seu lar em horários tardios, frequentava espetáculos que não agradavam ao seu progenitor, e estendia convites para celebrações que acolhiam indivíduos cuja presença incomodava o seu pai, um empreendedor notório, ainda que manifestamente reacionário. Inicialmente, nossa intenção é relatar a história de Heloísa sob um viés que remete à comédia, para, posteriormente, introduzir uma mudança abrupta e impactante. Aos 18 anos de idade, no contexto de uma década caracterizada por mudanças profundas, conquistas individuais, contestação e desafio às convenções estabelecidas, Heloísa, consistentemente encarnando o papel de visionária, está plenamente ciente de que o matrimônio de seus progenitores é um autêntico naufrágio. Seu pai mantém relacionamentos extraconjugais, enquanto sua mãe, que contraiu matrimônio como virgem e nunca teve experiência com outro https://anosrebeldes2011.blogspot.com/2011/05/ 137 homem, opta por fechar os olhos às infidelidades do cônjuge. A principal aspiração de Heloísa é não seguir os passos de sua mãe, a quem ela considera como uma figura medíocre e carente de identidade própria. O passo inicial a ser tomado reside na transformação de sua identidade de mulher. Contudo, Heloísa não se encontra envolvida emocionalmente com alguém e não demonstra grande interesse nesse aspecto. Algumas de suas amigas, a exemplo de Lavínia, atualmente noiva de um estudante de medicina, já ingressaram em relações sexuais, enquanto outras, como Maria Lúcia, preferem aguardar o surgimento do momento oportuno, aquele que se reveste de um caráter quase mágico. Heloísa, por sua vez, sente-se um tanto incomodada com essa ideia de um momento mágico, pois o que ela realmente deseja é se despojar de sua virgindade. Eventualmente, ela namora um jovem atraente de sua mesma classe social, chamado Olavo, embora o considere um pouco tolo. Além disso, ela nutre uma intensa atração por seu professor particular de violão, Nelson, um homem atraente que já alcançou a marca dos 30 anos de idade. São esses dois primeiros pretendentes que Heloísa busca para essa transição. Entretanto, Olavo, o indivíduo mais convencional, não cogita a possibilidade de manter relações sexuais com ela sem que haja um compromisso mais sólido estabelecido. A personagem Heloísa mantém diversos relacionamentos amorosos, não explorados em profundidade na minissérie, destacando, desse modo, a figura um tanto quanto patética de seu pai prepotente, cujas preocupações se voltam para o horário em que a filha retorna para casa, seja às dez ou às onze da noite. O próximo passo na trajetória de Heloísa envolve sua determinação em emancipar-se e residir de forma independente, uma iniciativa que se concretiza com o financiamento evidente de seu pai, que, por sua vez, não cogita apoiar o que considera um empreendimento absurdo. Seu namorado tradicional, Olavo, sugere o noivado, uma proposta que conta com a simpatia de Fábio, levando Heloísa a optar pelo matrimônio, consciente de que a união dificilmente terá sucesso, mas com a convicção de que em caso de separação, sua condição será substancialmente favorável, dada a perspectiva de uma jovem divorciada, abastada e autônoma. Ela consegue persuadir sua mãe, superando as objeções do pai, e acaba por se casar, com apenas 20 anos, embora o empresário esteja cauteloso, apesar de aprovar o noivo. Com efeito, seis meses após seu matrimônio, Heloísa decide pela separação e inicia uma vida solitária. Durante um determinado período, ao longo desses poucos meses de sua vida conjugal, Heloísa distancia-se ligeiramente de Maria Lúcia, resultando, por conseguinte, em sua relativa ausência na narrativa da trama. Surgem rumores, circulando entre os jovens, de seu envolvimento com um indivíduo que João Alfredo reconhece como um ativista da luta armada, 138 logo após a implementação do AI-5. Procurada por Maria Lúcia, sua amiga preocupada e apreensiva, Heloísa assegura que tais insinuações são infundadas. Nesse período de separação do cônjuge, Heloísa parece revelar uma notável falta de responsabilidade, incapaz de seguir uma trajetória construtiva, como desejado por Maria Lúcia. Sua presença na narrativa, por diversos capítulos, torna-se enigmática e obscura. Maria Lúcia ocasionalmente a observa na companhia de uma outra jovem, Sandra, cujo envolvimento na luta armada é confirmado por João Alfredo. 3.3 Entre a trama e a história: reflexões sobre os anos de chumbo A participação política no Brasil durante o período conhecido como "anos de chumbo" foi influenciada por um evento fundamental: a Revolução de 1964 e suas consequências, notadamente o Ato Institucional nº 5. O movimento militar de 1964 representou, para os jovens daquela época, uma ruptura significativa e um obstáculo no caminho para a participação ativa na vida do país. Até o final da década de 1960, o engajamento na militância política não era encarado como uma escolha irrevogável; a meta predominante consistia na conclusão dos estudos e na inserção na vida profissional. Inicialmente, não havia uma tendência inata para transformar a atividade política, fosse no âmbito escolar ou universitário, em um comprometimento integral com a militância. Entretanto, fatores como a repressão, a limitação de espaços para a expressão de ideias e as restrições à liberdade para atuar politicamente em oposição às forças predominantes gradualmente conduziram essa geração em direção a formas de participação que transcendiam a negociação política, adentrando em ações de natureza violenta. Na minissérie “os anos de chumbo” têm início quando a organização à qual João Alfredo está associado decide ingressar na luta armada. Nesse cenário, João se vê diante da difícil escolha entre continuar sua luta pelos ideais que defende ou desistir de tudo por amor a Lúcia. O sequestro de um embaixador no Brasil resulta na prisão de Heloísa, sendo posteriormente libertada por meio dos contatos de seu pai, Fábio. Em uma confissão a Fábio, Heloísa revela ter sido torturada e fazer parte da luta armada. A opção pela luta armada como abordagem exclusiva para subverter o regime militar instaurado em 1964 resultou de cisões e dissidências, notadamente ocorridas predominantemente no Partido Comunista Brasileiro (PCB). Salienta-se, de maneira pertinente, que as veteranas lideranças do PCB, lideradas por figuras proeminentes como Carlos Marighela, Mário Alves, Joaquim Câmara Ferreira, Jover Teles, Apolônio de Carvalho, entre outros, foram 139 agentes catalisadores da ruptura política e organizacional dentro da mencionada agremiação partidária. Este grupo de líderes desafiou as teses e orientações emanadas do Comitê Central, emergindo como principais arquitetos da organização e implementação dos movimentos guerrilheiros que tiveram seu início no Brasil a partir de 1967. Importa destacar que tais líderes desempenharam papel preponderante na articulação e execução dos referidos movimentos guerrilheiros, que, por sua vez, obtiveram expressiva adesão por parte do movimento estudantil, notadamente no Rio de Janeiro e São Paulo. Para Ventura (2018, p. 10): No Brasil, uma ditadura militar que se instalara em 1964 canalizou contra si a rebeldia e a resistência dos estudantes. Em lugar da ‘sociedade de consumo’ ou do ‘sistema’ os jovens daqui tinham um inimigo mais concreto, que censurava, prendia, torturava e matava. O ano que se caracterizou por memoráveis manifestações de rua, como a Passeata dos 100 mil, acabou com um sisnistro ato, o AI–5, que cancelou todas as liberdades públicas. A resistência ao regime militar experimentou um acirramento notório no ano de 1968, um período que se caracterizou não apenas no Brasil, mas também nos Estados Unidos, França, Japão, Alemanha e em alguns países da América Latina, por movimentos estudantis de contestação à autoridade e às normas vigentes na sociedade. Neste contexto, tais movimentos no Brasil se materializaram em diversas manifestações, destacando-se a significativa passeata ocorrida em 26 de junho, na cidade do Rio de Janeiro, reunindo estudantes, intelectuais, artistas, religiosos e cidadãos comuns nas ruas para manifestar–se contra a ditadura. E destaca a repressão sistemática e violenta contra manifestações culturais e artísticas que contestavam o governo, e ao mencionar o Comando de Caça aos Comunistas (CCC), evidencia a atuação paramilitar e as estratégias repressivas adotadas pelas autoridades durante esse período. Esta manifestação, que congregou aproximadamente 100 mil participantes, teve como principal motivação protestar contra as violências perpetradas pela polícia dias antes no centro da cidade, as quais afetaram estudantes e membros da população em geral. A mencionada passeata foi organizada pelo movimento estudantil e contou com a adesão de uma diversificada gama de segmentos sociais, incluindo intelectuais, operários, profissionais liberais, religiosos e cidadãos comuns. No Brasil, em junho de 1968, o movimento estudantil atingiu seu ápice. As passeatas, as greves e as ocupações das faculdades se generalizaram. Rio de Janeiro foi seu cenário principal com a Passeata dos 100 Mil, no dia 26 de junho: estudantes, intelectuais, artistas, religiosos e populares foram às ruas para protestar contra a ditadura e a repressão policial. O governo não proibiu o ato por temor da pressão pública. Porém, logo depois, os militares iniciaram 140 uma contraofensiva dirigida a operários, professores, estudantes, parlamentares, jornalistas e artistas que se opunham ao regime. Em julho, sob a capa paramilitar do Comando de Caça ao Comunistas (CCC), invadiram e espancaram atores da peça teatral Roda viva, de Chico Buarque, montada por Zé Celso Martinez Corrêa [...] (Coggiola, 2018, p. 51-52). A situação se deteriora quando João opta por permanecer na organização. As preocupações de Lúcia passam a incomodá-lo, levando-o a inventar um suposto envolvimento amoroso com Heloísa. Em meio à raiva, Lúcia decide se casar com Edgar, agora diretor da editora onde trabalha. João entra na clandestinidade, deixando poucos vestígios. A organização, na qual Heloísa e João estão envolvidos, decide sequestrar o embaixador suíço, exigindo a libertação de uma lista de presos políticos. O sequestro é bem-sucedido, mas João é baleado ao ser reconhecido por um policial. Heloísa, acompanhando João, busca ajuda no prédio de Lavínia, encontrando Maria Lúcia, que, mesmo sentindo ciúmes e raiva, presta auxílio. Durante esse encontro, Heloísa revela a Maria Lúcia que tem uma filha. Ao abrigar os dois fugitivos, Lúcia inadvertidamente se envolve no plano de fuga da organização, descobrindo que Heloísa e João nunca tiveram um relacionamento. A personagem Heloísa pede a MariaLúcia que cuide de sua filha durante sua ausência no exterior. Fábio impede a fuga de Heloísa e João, inicialmente planejada em um dos cargueiros de sua empresa, forçando-os a fugir pela fronteira. No dia da fuga, o carro que os transporta é interceptado pela polícia. De longe, o policial que atirou em João reconhece Heloísa e ordena que atirem. Heloísa é alvejada e morre, enquanto João consegue escapar pela fronteira. Dez anos depois, com a anistia aos exilados políticos, João retorna ao Brasil. Ele se reencontra com Lúcia, agora separada, mas ela percebe que ele nunca abrirá mão de seus princípios. Essa constatação encerra qualquer possibilidade de reconciliação entre eles. Ao que tudo indica, o personagem João Alfredo foi inspirado em Syrkis, a partir do livro Os Carbonários, cujo relato do autor a respeito da luta armada é o seguinte: Não gostava do governo mililtar, brutal, truculento e antidemocrático. Adotei toda uma bateria de máximas liberais: ‘Não concordo com uma só palavra do que dizes, mas lutarei até a morte pelo teu direiro de dizê-las’ ou ‘A liberdade de um homem acaba onde a do outro começa’. Frases que eu deixava cair nos debates com a turma, sonhando ser igual a Pablo Ortega, aquele personagem do Senhor Embaixador, de Érico Veríssimo, que participava de uma revolução, mas mantinha os seus valores liberais. Eles, inteligetemente, não desdenhavam as minhas posições e não me discriminavam apesar dos nossos embates ideológicos (Syrkis, 2014, p. 48). As reivindicações estudantis eram fundamentadas no pleito pelo restabelecimento das liberdades democráticas, na suspensão da censura à imprensa e na alocação de recursos 141 adicionais para a educação, especialmente para as instituições universitárias. O não atendimento dessas reivindicações, juntamente com a imposição governamental de proibição de qualquer forma de manifestação em todo o território nacional, resultou na amplificação do movimento de contestação, uma conjuntura que, por sua vez, foi acompanhada pelo agravamento da repressão policial. Este contexto tornou-se ainda mais crítico com a promulgação, em 13 de dezembro de 1968, do Ato Institucional nº 5, o qual conferiu contornos marcadamente autoritários e centralizadores ao regime estabelecido em 1964. Nesse novo ambiente institucional, quando houve uma desaceleração do movimento estudantil e a retirada dos estudantes das ruas, muitos jovens, anteriormente líderes estudantis, optaram por integrar os grupos revolucionários de luta armada, ingressando na clandestinidade. Em 1969, a organização à qual João Alfredo está afiliado, o CPR, decide igualmente adotar a via da luta armada. O protagonista não dissimula nada de suas atividades para sua namorada, que se encontra exaurida da incessante apreensão que a acompanha diariamente, temendo a prisão e tortura de seu parceiro por envolver-se em atividades como a distribuição de panfletos ou a realização de grafites em um contexto de repressão exacerbada. Um fictício embaixador dos Estados Unidos no Brasil é alvo de um sequestro, um acontecimento que é acompanhado tanto pelo programa televisivo quanto pelo público em geral, através das notícias veiculadas na imprensa escrita, televisão e rádio. O local do cativeiro é identificado pelas autoridades, porém, por temor de colocar em risco a vida do embaixador, opta-se por não invadir o local imediatamente. O embaixador é posteriormente libertado, e uma intensa operação de perseguição aos sequestradores tem início, caracterizada pela violência. Alfredo Syrkis relata em seu livro como ficou sabendo do sequestro do Embaixador Americano, que, aliás, tinha como objetivo a negociação para soltar os presos políticos pelo regime ditatorial. Outro feito d’armas ocorreu no viaduto de Botafogo, entre os carros. Um grupo secundarista panfletava os veículos e pichava os ônibus, quando um coronel retido no engarrafamento saiu do carro e tentou prender um dos companheiros. Levou umas porradas e acabou afinando. O ruim da história é que reconheceu o namorado da filha entre os subversivos e várias pessoas tiveram que sair de casa. Saímos incólumes da Semana Rockefeller, o moral altíssimo. Subiu aos píncaros do Himalaia tempos mais tarde, quando, uma bela manhã, soube pelas manchetes dos jornais que haviam sequestrado o embaixador americano, Charles Burke Elbrick (Syrkis, 2014, p. 165). O objetivo da luta armada no sequestro do embaixador americano pode ser compreendido como uma tentativa de ampliar a visibilidade internacional para as reivindicações contra o governo militar. Comparando com as cenas da minissérie, percebe-se 142 que diferentes grupos de resistência adotaram estratégias variadas para expressar sua oposição ao regime, fosse por meio de manifestações mais diretas, como no viaduto de Botafogo, ou por ações mais extremas, como o sequestro na narrativa televisiva. Parece evidente que os indivíduos pertencentes à geração que se situava na faixa etária entre 14 e 25 anos em 1968, ao se engajarem nos movimentos de guerrilha, não experimentaram um confronto explícito com suas famílias. A narrativa desses ex-guerrilheiros, ao abordarem a reação de seus familiares, sugere que não havia uma concordância integral com as trajetórias políticas que eles escolheram adotar. Observava-se, portanto, um receio e apreensão em relação ao futuro dos jovens, entremeados, no entanto, por uma certa condescendência e, em alguns casos, cumplicidade. A dinâmica familiar predominante revelava uma postura de aceitação e compreensão tanto por parte dos progenitores quanto dos filhos. Apesar da luta da geração dos anos rebeldes contra as instituições autoritárias e a ditadura militar, observava-se a manutenção de um relacionamento familiar harmonioso. Cinco são os sequestradores que compõem este grupo heterogêneo: Heloísa, Marcelo, João Alfredo, Salviano, figura proeminente na liderança, e Pedro, um jovem de orientação extremamente radical, cujas convicções antagonizam com as de João Alfredo dentro da dinâmica da equipe de sequestro. Logram êxito no rapto do embaixador, um episódio repleto de situações cómicas. Primordialmente, ao adentrar o recôndito designado para o confinamento, o embaixador manifesta perplexidade perante a singularidade de sua seleção. Ele reconhece não possuir a relevância política de representantes americanos ou alemães, duvidando da capacidade de seu governo em exercer pressão significativa. Recorda-se, por exemplo, do presidente Nixon, que pessoalmente interveio ao ligar para o Brasil em 1969, convocando a liderança durante o período de governo da junta militar e referindo-se ao responsável como “the man in charge of this fucking country” (“o homem encarregado dessa porra desse país”). Segundo Jacob Gorender (1990, p. 166): Como se não bastasse o estupro da Constituição do próprio regime, a 4 de setembro, em plena Semana da Pátria, a junta Militar se viu colocada em xeque: um comando revolucionário sequestrou o embaixador norte– americano Charles Burke Ellbrick. No mesmo dia, chegou à Junta a amensagem dos sequestradores. Condições para o resgate do embaixador: libertação de quinze prisioneiros políticos com transferência segura para o exterior e difusão de um manifesto nos jornais e estações de rádio e televisão de todo o País. 48 horas para uma resposta pública. Caso contrário: justiçamento de Mr. Burke Ellbrick. Não podia ser maior o desafio. Como forma de preencher as lacunas temporais, ao longo de uma considerável porção do enredo, o diplomata e os sequestradores se dedicam a partidas de baralho. A organização 143 insurgente almeja uma permuta entre o embaixador e uma relação de setenta detentos, dentre os quais figura Ubaldo, o fotógrafo que mantém laços de amizade com o Professor Avelar, personagem previamente introduzido ao conhecimento do público. O governo brasileiro, de maneira deliberadamente morosa, retarda a divulgação do recebimento das exigências do grupo, notavelmente ambiciosas. Ao longo desse período, engaja-se em uma estratégia astuciosa, visando ganhar tempo hábil para que as forças de repressão identifiquem o local de refúgio, em um jogo perspicaz. Tudo sugere que, em contraste com a situação envolvendo o embaixador americano, a vida do suíço estaria em risco se o esconderijo fosse desvendado. O próprio embaixador, dentro do grupo, emerge como possivelmente a pessoa mais ansiosa pela segurança do refúgio. Figura 8 - Reportagem da revista Veja no lançamento da minissérie em 1992 Fonte: anosrebeldes2011.blogspot.com. Acesso em: 12 jan. 2024.) Finalmente, o governo acede à libertação de setenta detidos políticos, embora com alterações nos nomes propostos. O desenrolar das negociações estende-se em um processo demorado. Em um momento de considerável dramaticidade, os jovens se veem compelidos a decidir sobre o destino do embaixador caso as condições não sejam aceitas pelo governo. Na primeira deliberação, prevalece a opção pela execução, embora essa informação não seja compartilhada com o embaixador. Posteriormente, em uma segunda votação, uma corrente distinta conquista a maioria, eliminando qualquer consideração de morte. O que inicialmente 144 estava planejado para uma ação de duração máxima de uma semana se estende inesperadamente por intermináveis quarenta dias, sob o calor abrasador do verão suburbano. Inicialmente, apenas Heloísa e seu parceiro, já conhecidos pela vizinhança, podem circular pela região, visto que os demais não têm uma presença oficial na residência. A força policial empenha-se diligentemente em localizar a residência; entretanto, a natureza afável do jovem casal torna improvável qualquer suspeita por parte dos vizinhos. Gradualmente, os outros envolvidos no sequestro precisam ser apresentados à comunidade, com exceção de João Alfredo e do embaixador, que permanecem ocultos. As tratativas entre o governo e os sequestradores chegam a um desfecho, possibilitando a libertação do embaixador após um período de quarenta dias. O déficit de meios de locomoção, um desdobramento da precária infraestrutura associada à luta armada, apresenta-se como um entrave substancial quando o único veículo disponível experimenta uma falha mecânica. Esse contratempo impõe um atraso de três dias até que os jovens possam adquirir um novo automóvel para efetuar a libertação do embaixador. O próprio diplomata participa ativamente de todas as deliberações concernentes à segurança do grupo, levando à cogitação da possibilidade de sua liberação por meio de transporte público, mais especificamente um ônibus. Simultaneamente, prossegue a busca pelo esconderijo. No vigésimo primeiro dia do último mês do ano, 31 de dezembro, o grupo, com a intenção de manter uma fachada, decide promover uma recepção de Réveillon na residência, estendendo convites aos vizinhos. Contudo, somente o embaixador e João Alfredo permanecem ocultos em um recôndito aposento, sob o pretexto de alegar que uma criança estaria repousando no quarto durante a festividade. Para Rosângela Patriota (2018, p. 131): [...] 1968, no Brasil, cofigurou-se historicamente como o ano do assassinato do estudante Edson Luíz, no restaurante Calabouço no Rio de Janeiro, da Passeata dos 100 mil, na mesma cidade; da Batalha da Maria Antônia, entre estudantes da FFCL – USP (atual FFLCH) e da Universidade Mackenzie; e, por fim, do Ato Institucional n. 5 (AI – 5), decretado no dia 13 de dezembro pelo governo militar, sob a presidência do general Artur da Costa e Silva. Além dessas, o ano de 1968 tem inúmeras outras implicações. No âmbito cultural e artístico, é praticamente impossível falar sobre esse período sem considerar a vitalidade e o impacto da cena teatral. O ano de 1968 teve diversas implicações, não apenas em termos políticos, mas também no âmbito cultural e artístico, destacando a vitalidade e o impacto da cena teatral durante esse período. Na minissérie, segundo as informações do site Memória Globo, Gilberto Braga compartilhou um episódio que vivenciou durante a produção de Escrava Isaura. O personagem Galeno Quintanilha, interpretado por Pedro Cardoso, representava um novelista que abordava 145 temas abolicionistas nos anos 70 e enfrentou repreensões de uma censora em uma reunião em Brasília. A própria experiência de Gilberto refletiu essa situação, e ele utilizou a minissérie como uma oportunidade para ilustrar as dificuldades enfrentadas pelos autores durante os “anos de chumbo”. Segundo Patriota (1999, p. 25): A censura instaurou-se com todo vigor e capacidade destrutiva. Calou, mutilou, perseguiu e, consequentemente, tornou viável mecanismos de repressão. Entretanto, se por um lado os seus objetivos foram atingidos, de outro lado a sua presença permitiu que bandeiras fossem levantadas, lutas fossem traçadas e símbolos erigidos36 (Patriota, 1999, p. 25). Apesar da censura ter alcançado seus objetivos ao limitar a expressão e disseminação de ideias contrárias ao regime, sua presença também teve efeitos colaterais. A existência da censura incentivou o surgimento de bandeiras de resistência, a articulação de lutas contra as restrições impostas e a construção de símbolos que representavam a oposição ao regime autoritário. Pode mostrar como personagens lidam com as restrições à liberdade de expressão e como a censura contribui para o fortalecimento da resistência e a construção de identidades simbólicas que representam a oposição ao regime militar. 36 “Nesse período da história brasileira, diversos símbolos surgiram na luta contra a opressão que se instaurou após 1964. No contexto do movimento estudantil, destaca-se Alexandre Vannucchi Leme, estudante de geologia da USP, cuja vida foi ceifada pelas mãos dos órgãos repressivos. Outra figura de importância significativa é o ex- capitão do exército, Carlos Lamarca, que emergiu como uma referência na luta armada no Brasil. No cenário do movimento operário, as mortes de Santo Dias e Manuel Fiel Filho transformaram-se em símbolos de resistência contra os governos militares. Na esfera artística, compositores como Chico Buarque de Holanda e Geraldo Vandré assumiram o papel de ‘porta-vozes’ das denúncias contra o arbítrio. Canções como ‘Apesar de Você’ e ‘Para não dizer que não falei das flores’ tornaram-se verdadeiros ‘hinos’ da oposição, contribuindo para disseminar a voz da resistência por meio da música”. Informações retiradas de: Patriota (1995, p. 25), nota de rodapé. 146 Figura 9 - Reportagem da revista Veja no lançamento da minissérie em 1992 Fonte: anosrebeldes2011.blogspot.com. Acesso em: 12 jan. 2024. Na minissérie Anos rebeldes, sobre a cena da personagem Heloísa, uma das escassas pistas à disposição das autoridades para rastrear o grupo insurgente é representada por um casaco feminino que foi acidentalmente esquecido no local do cativeiro. Este casaco é vinculado a uma modista amplamente conhecida na cidade do Rio de Janeiro. A modista é capaz de identificar a pessoa a quem vendeu o casaco, estabelecendo, assim, um ponto de conexão que permite à repressão efetuar a detenção de Heloísa. Fábio, o pai de Heloísa, opta por iniciar um diálogo com as autoridades, com o intuito de buscar a libertação de sua filha. Ele reconhece que, em sua visão, Heloísa ainda é demasiada jovem para possuir convicções políticas profundas e considera que, na pior das hipóteses, ela pode ter sido induzida por algum militante revolucionário desprovido de escrúpulos. Efetivamente, durante o período de detenção, foi constatado que Heloísa não estava envolvida no sequestro do embaixador. O casaco em questão havia sido emprestado a uma jovem amiga, Sandra, cujo envolvimento na luta armada era desconhecido por Heloísa. Dessa forma, Heloísa foi liberada da prisão sob a companhia de seu pai. Contudo, durante um momento subsequente em que pai e filha se encontram a sós, ela revela ao banqueiro que foi submetida a torturas nos primeiros interrogatórios. Em um relato emocionado, Heloísa compartilha os detalhes da tortura, exibindo marcas em seu corpo. Diante dessa revelação, o 147 pai manifesta uma profunda indignação, expressando o desejo de retornar à prisão para saber mais detalhes do ocorrido. Apesar de ter conhecimento, como a sociedade em geral, acerca da possibilidade de a repressão, no ímpeto de servir à pátria, eventualmente ultrapassar limites aceitáveis, o banqueiro não pode concordar com a tortura infligida a jovens inocentes, especialmente a sua própria filha. A cena na minissérie, em que Heloísa mostra as marcas da tortura, é um momento intensamente impactante e revelador, essa sequência contribui para a profundidade da narrativa ao abordar as consequências brutais do regime militar no Brasil e suas implicações nas vidas dos personagens. A cena destaca o impacto físico e psicológico da tortura, fornecendo uma representação gráfica das atrocidades cometidas pelo regime, o relato emocionado de Heloísa e a exibição das marcas em seu corpo proporcionam uma visão visceral da violência infligida às vítimas, e com essa cena a minissérie mostra uma passagem da repressão política e das violações aos direitos humanos durante a Ditadura Militar e deixa evidente a crueldade do regime ao silenciar e subjugar aqueles que se opunham ao governo, e ao apresentar Heloísa como uma vítima da tortura, a narrativa busca humanizar aqueles que sofreram sob o regime autoritário. Viasndo gerar empatia por personagens que, de outra forma, poderiam ser estigmatizados ou reduzidos a estereótipos políticos. A cena transcende o âmbito pessoal de Heloísa e se torna um símbolo das consequências políticas mais amplas do regime. As marcas físicas refletem as cicatrizes duradouras na sociedade brasileira, evidenciando que as feridas da ditadura persistem além do âmbito individual, e ao abordar o tema da tortura de maneira explícita, a minissérie desafia implicitamente as restrições de censura que vigoraram durante o período. Além disso, contribui para a construção e preservação da memória histórica, documentando a realidade sombria da época. No que diz ao engajamento do espectador, a representação gráfica de tortura provoca uma resposta emocional forte por parte do espectador, promovendo o engajamento e a reflexão sobre as questões éticas e morais relacionadas ao tema. Isso amplifica o impacto da minissérie como uma ferramenta de conscientização. Sendo assim, essa cena foi um ponto crucial que evidencia o compromisso da produção em abordar temas sensíveis e promover uma reflexão crítica sobre a história política do Brasil. Essa abordagem cuidadosa contribui para a compreensão mais profunda das consequências humanas da repressão política e para a preservação da memória coletiva do país. Surge, então, um questionamento por parte de Heloísa: “Inocente?”, indaga ela. “Quem lhe disse que eu sou inocente? Você acreditou no que eu falei pros meganhas?”. Nesse 148 momento, Heloísa se apresenta diante do pai e dos espectadores como a jovem adulta que já é há considerável tempo, uma figura repleta de convicções. A cena acima oferece uma visão profunda sobre as interações entre ética, política e relações familiares em um contexto de repressão política. A tensão entre Heloísa e seu pai, Fábio, retrata os conflitos inerentes à busca pela justiça social e as consequências individuais desse comprometimento em um cenário autoritário. Essa análise contribui para uma compreensão mais ampla das dinâmicas sociais e políticas durante períodos turbulentos. O trecho aborda dilemas éticos fundamentais, como a tortura infligida em nome do estado, e destaca a complexidade de conciliar a lealdade à pátria com os limites morais aceitáveis. A reação indignada de Fábio evidencia a tensão entre o dever patriótico e a repulsa à violência injusta. A personagem Heloísa efetivamente, não esteve envolvida no sequestro do embaixador, mas foi uma participante ativa na luta armada por um considerável período e manifesta a intenção de prosseguir nesse engajamento, a menos que seu próprio pai decida extinguir sua vida ali mesmo, naquele instante. Heloísa refuta categoricamente todas as argumentações apresentadas pelo banqueiro, que sugerem seu envolvimento por influência de relacionamentos amorosos ou doutrinação por parte de professores. Em contraposição, sustenta que sua inclinação revolucionária se fundamenta na observação direta das precárias condições de vida enfrentadas pelos colonos nas propriedades agrícolas de sua própria família. Ao término desse diálogo tenso, Fábio se afasta do encontro com a convicção de que perdeu uma filha para as fileiras da revolução. Ao tomar conhecimento da detenção de Heloísa, Maria Lúcia, de maneira acentuada, nutre apreensões quanto ao desfecho que possa envolver seu namorado vinculado ao Comando Popular Revolucionário (CPR). A apreensão de Maria Lúcia em relação ao namorado vinculado ao Comando Popular Revolucionário (CPR) adiciona uma camada de complexidade, explorando como os vínculos afetivos são afetados pelo contexto político. Entre os círculos de amizade, observa-se um panorama de realização pessoal. Edgar, perenemente enamorado por Maria Lúcia, e Waldir concluíram seus estudos em Economia e obtiveram sucesso profissional ao integrar uma editora que outrora pertencera ao pai de Lavínia, que, em decorrência de falência, passou para o controle da empresa do empresário. Mesmo Galeno, apesar de haver abandonado a universidade, mantém sua busca por ascensão nas esferas teatrais ou cinematográficas, simultaneamente engajado em atividades políticas. Importante destacar que Maria Lúcia desmente qualquer vínculo amoroso entre Heloísa e Galeno, 149 esclarecendo que estavam simulando um relacionamento para facilitar uma operação conduzida pela organização, o que impossibilitava Galeno de compartilhar detalhes específicos com Maria Lúcia. Apesar da confiança mantida em João, que sempre lhe fornecera informações verídicas, Maria Lúcia decide confrontá-lo com um ultimato, que há tempos almejava: a escolha entre sua participação na luta armada e o relacionamento com ela. A narrativa apresenta uma aparente realização pessoal entre os personagens principais, mas a possível ambiguidade nas relações interpessoais, especialmente entre Heloísa e Galeno, levanta questionamentos sobre até que ponto as conquistas profissionais e pessoais são genuínas ou influenciadas por dinâmicas mais complexas. O sucesso profissional de Edgar e Waldir, vinculado à editora que antes pertencia ao pai de Lavínia, destaca como as trajetórias individuais podem ser entrelaçadas com questões familiares e econômicas. E isso suscita reflexões sobre a mobilidade social e as influências hereditárias nas carreiras profissionais. A dualidade na vida de Galeno, envolvendo sua busca por ascensão nas esferas teatrais ou cinematográficas e seu engajamento político, que levantam questões sobre as complexidades de equilibrar aspirações artísticas e atividades políticas em contextos desafiadores. A revelação de Maria Lúcia sobre a simulação de relacionamento entre Heloísa e Galeno introduz uma dimensão de falsidade, complicando as relações interpessoais. Isso problematiza a confiança dentro do círculo de amizade e sugere que as aparências podem ser enganosas, mesmo entre aqueles considerados próximos. Sendo assim existe a complexidade nas relações e trajetórias dos personagens, onde realizações pessoais e profissionais são permeadas por ambiguidades, falsidades e escolhas difíceis. As questões de confiança, a influência de dinâmicas familiares e econômicas nas carreiras individuais, e os desafios de conciliar aspirações artísticas com o comprometimento político contribuem para a riqueza da trama. Esses elementos sugerem que, mesmo em círculos aparentemente bem-sucedidos, as tensões e dilemas pessoais são intrínsecos, proporcionando uma exploração multifacetada das experiências dos personagens. Na minissérie Anos Rebeldes, a representação desse cenário proporciona uma reflexão profunda sobre o papel das editoras em um contexto de repressão política, como: na difusão de ideias e resistências culturais, pois as editoras foram plataformas essenciais para a difusão de ideias e obras que desafiavam a censura imposta pelo regime militar. Autores e intelectuais buscavam nessas instituições um meio de expressar pensamentos críticos e contestatórios, contribuindo para a resistência cultural e política, na preservação da memória histórica da época, livros, revistas e periódicos publicados nessas editoras documentavam os eventos, as lutas políticas e as vozes dissidentes, fornecendo um registro autêntico do que ocorria no período. Tinha um fomento à produção literária e jornalística, pois 150 apesar das restrições impostas pelo governo, as editoras incentivaram a produção literária e jornalística crítica. Autores, jornalistas e ensaístas encontravam nas editoras espaços para publicar trabalhos que exploravam questões políticas, sociais e culturais, muitas vezes de forma velada. Davam abrigo para novos talentos e vozes dissidentes como nas obras publicadas por editoras, e assim desempenhavam um papel significativo na formação da opinião pública, com livros e publicações que questionavam o regime militar, contribuíram para a conscientização da população sobre questões políticas e sociais, incentivando o pensamento crítico. A atuação das editoras desafiava diretamente os mecanismos de censura vigentes. Ao publicar obras que confrontavam o governo, as editoras se tornavam agentes de resistência, promovendo a liberdade de expressão em um contexto onde a censura e a autocensura eram prevalentes. O tempo para mais esclarecimentos é escasso. Heloísa e João são aguardados para dar início à operação de evasão pela fronteira. No exato momento em que se dirigem a um veículo que os conduzirá rumo ao sul, surge a presença policial, desencadeando uma troca de disparos, resultando na ferida a tiros de Heloísa, enquanto João e Marcelo conseguem efetuar sua fuga do território nacional. Ao receber a trágica notícia do falecimento de sua filha, Natália atribui culpa ao cônjuge, lamentando profundamente não tê-lo abandonado para empreender uma fuga ao lado do jovem amante, Avelar. Pela primeira vez em sua existência, Natália logra relegar a prioridade financeira, estabelecendo comunicação telefônica com Avelar na Europa e, sem hesitação, embarca em sua busca. Conforme assinalamos em Os anos de chumbo, é comum entre os militares a avaliação de que, se venceram a guerra contra as organizações da esquerda revolucionária, foram derrotadas na luta pela memória histórica do período. Se normalmente a história esquecida é a dos vencidos, na questão do combate à guerrilha teria ocorridos o inverso: a história ignorada seria a dos vencedores. Dessa forma, teria predominado uma situação peculiar em que o vencido tornou-se o ‘dono’ da história. Na Nova República, os militares estariam, no seu entender, enfrentando ideologicamente essa mesma esquerda, agora atuando na imprensa e no Parlamento, mas ainda em busca de desforra e recusando–se a aceitar a ‘anistia para os dois lados’ (Castro; D’Araújo, 2006, p. 26). Ao avançar para ano de 1979, a música de Elis Regina é entoada, ou seja, um encantador samba que aborda o retorno do irmão de Henfil e tantos outros que partiram para livrarem-se das perseguições. O país abriga a esperança da anistia, permitindo o regresso dos exilados. Maria Lúcia tem conhecimento de que João Alfredo passou pelo Chile e posteriormente pela Europa: França, Inglaterra, Suécia, Alemanha... Ela aguarda ansiosamente seu retorno, que 151 eventualmente ocorre. Nutre grandes expectativas de que os anos de exílio tenham moderado o idealismo de João. A minissérie Anos Rebeldes apresenta um desfecho carregado de tensão e tragédia, deixando questões éticas e morais em evidência. O dilema de Heloísa e João, envolvidos em uma operação de evasão, culmina em um confronto com as autoridades, resultando na ferida a tiros de Heloísa e na fuga bem-sucedida de João e Marcelo. A partir desse ponto, a trama se desdobra em um cenário complexo, onde a responsabilidade e as consequências das escolhas feitas pelos personagens se tornam temas centrais e importantes para a minissérie. O desfecho da minissérie "anos rebeldes" ilustra de forma impactante as ramificações das decisões tomadas pelos protagonistas. A tragédia da morte de Heloísa desencadeia uma série de eventos que vão além das fronteiras nacionais. A reação de Natália, atribuindo culpa ao cônjuge e lamentando não ter escolhido o caminho da fuga com Avelar, coloca em xeque valores como lealdade, responsabilidade e amor. Ao optar por buscar Avelar na Europa, Natália quebra a barreira das prioridades financeiras e mergulha em uma jornada de autodescoberta. Essa reviravolta na narrativa ressalta a complexidade das relações humanas e a capacidade de transformação diante de situações extremas. Dessa forma, "Anos Rebeldes" encerra-se não apenas como uma narrativa histórica, mas como um profundo estudo sobre as escolhas individuais e suas repercussões, questionando os limites da ética em tempos de conflito e revelando a força motivadora por trás das ações dos personagens. O desfecho de Natália, buscando redenção e significado em meio à tragédia, adiciona uma camada emocional e reflexiva à trama, elevando a minissérie para além dos eventos históricos que a inspiraram. 3.4 Sons de resistência: a relevância das letras musicais em Anos rebeldes A musicalidade assume papel destacado na teledramaturgia, frequentemente empregada para estabelecer um diálogo eficaz com as imagens e a trama apresentada na tela. Ela funciona como um recurso capaz de espelhar os estados emocionais e os sentimentos dos personagens ao longo de sua jornada. Assim, a meticulosa seleção musical para uma obra dramatúrgica torna-se crucial, pois configura toda uma trajetória narrativa. Gilberto Braga é um dos escritores que participa ativamente na seleção da trilha sonora. Apesar de sua renomada posição como autor, não possui a autonomia para escolher as músicas que comporão a trilha de suas telenovelas. Contudo, seu poder de veto é amplamente 152 valorizado. Na emissora, ele é altamente respeitado devido ao seu refinado gosto musical, sendo reconhecido por sua atenção meticulosa às relações dramatúrgicas entre música e personagens. Conforme expresso por Lisandro Nogueira (2002, p. 109): Com Gilberto Braga ocorre uma situação semelhante à de todos os escritores na televisão. Apesar do prestígio, o autor não escolhe as músicas de sua telenovela como faz com o elenco. Ele também entra no processo de ‘negociar’ com a direção musical. É caminho de duas vias: a emissora sugere, ele pode aceitar ou não. O seu poder de veto é considerável. Entre todos os consagrados, Gilberto Braga é aquele que mais participa da trilha sonora. Essa maior participação é atribuída ao seu gosto musical apurado e ao interesse particular pela interação música e personagens: Essa maior participação é atribuída ao seu gosto musical apurado e ao interesse particular interação música e personagens: ‘Há autores mais ou menos interessados nas trilhas de suas telenovelas. O Gilberto é certamente o mais interessado de todos. Ele tem um senso profissional invejável’. A relação entre Gilberto Braga e a escolha da trilha sonora em suas telenovelas levanta questões intrigantes sobre a dinâmica entre autor e emissora na televisão. Embora goze de prestígio, Braga não tem autonomia completa na seleção musical, sendo sujeito a um processo de “negociação” com a direção musical. Essa situação destaca a complexidade do poder decisório na produção televisiva, onde a emissora sugere músicas e o autor pode aceitar ou vetar. O considerável poder de veto de Braga sugere uma influência marcante, mas até que ponto essa negociação impacta a integridade artística da obra, e como essa dinâmica reflete na relação entre música e personagens, considerando o interesse particular do autor nessa interação. A fala de Lisandro Nogueira, destacando o profundo interesse musical de Braga, levanta questões sobre o grau de envolvimento dos escritores nas trilhas sonoras de telenovelas e o impacto desse envolvimento na qualidade da produção televisiva. Segundo Zuenir Ventura (2018, p. 85): A moderna música popular brasileira apresenta dois marcos: 1958 – Bossa Nova. 1968 – TROPICÁLIA. No segundo momento de renovação da música popular brasileira não havia duas posições. Era estar com Caetano e Gil, ou contra eles. Quem não esteve com eles, naquele momento, para mim não viu nada, não viu nada. Não tem registro na minha memória musical. E não me arrependo. O cenário musical do Brasil naquela época experimentava uma divisão apaixonada, como frequentemente ocorre em situações radicais. Com a perspectiva do tempo presente, torna-se evidente que essas divisões, por vezes, refletiam mais intenções do que resultados concretos. Os rótulos de “novo” e “velho”, usados para sistematicamente polarizar o país, nem 153 sempre capturavam toda a complexidade de um panorama que escapava à percepção limitada de olhares sectários, conclui Zuenir Ventura (2018). A trilha sonora de Anos rebeldes encapsula de maneira expressiva o contexto histórico dos anos 60. A música possui o poder singular de transportar as pessoas de volta àquele período, evocando de forma nostálgica os eventos, os lugares, as festividades, as danças e as contestações característicos desses anos considerados rebeldes. A minissérie evoca, de maneira nostálgica, o surgimento da Bossa Nova, com os acordes simples de Chega de Saudade37do baiano João Gilberto. No contexto específico de Anos rebeldes, o cenário musical se destaca como um elemento notável da minissérie. Sob a direção de Gilberto Braga, o universo sonoro dos anos 60 revela-se como um dos mais ricos na história da música popular brasileira. O Rock and Roll, personificado pelos Beatles, os quatro jovens de Liverpool cujas letras contestadoras e revolucionárias amplamente inspiraram a juventude nos anos 60, deixou uma marcante influência no Brasil. Essa influência alcançou Roberto Carlos e seus companheiros na formação da Jovem Guarda, que mesclou letras românticas e descontraídas com as icônicas guitarras elétricas, estabelecendo um novo padrão de comportamento direcionado à juventude. A minissérie proporciona uma representação vívida da época dos renomados festivais, retomando a memória de um período em que diversas vozes e novos compositores emergiram, muitos dos quais se tornaram proeminentes representantes da Música Popular Brasileira. Esses festivais, assemelhados a finais de Copa do Mundo, engajavam intensamente a população, vibrando pela performance de seus cantores favoritos. A produção também destaca a efusiva torcida que as pessoas manifestavam diante da televisão, apoiando fervorosamente seus artistas preferidos. Eram momentos de intensa exaltação, nos quais aqueles que não assistiam às apresentações ao vivo se reuniam com amigos e familiares, discutindo na frente da televisão sobre quem havia se saído melhor, qual canção era superior e qual compositor criava as letras mais destacadas. Em decorrência das mudanças políticas ocasionadas pelo Golpe Militar de 1964, as composições passaram a explorar temáticas sociais. Os artistas engajados na produção musical, que refletia o cenário político da época, foram identificados como integrantes do movimento da 37 Este é o álbum inaugural do cantor e compositor brasileiro João Gilberto, lançado em formato de LP no dia 8 de março em 1959.Começou a ganhar vida no sítio da família de Tom Jobim, em Poço Fundo, na região serrana do Rio. Foi lá que, em 1956, o maestro, então com 27 anos, compôs ao violão uma espécie de samba-canção em três partes. Ao regressar ao Rio, confiou a melodia aos cuidados do poeta Vinícius de Moraes. Surpreendentemente, o disco manteve-se disponível no catálogo por um período impressionante de 31 anos consecutivos, permanecendo à disposição do público desde o seu lançamento até o ano de 1990 (Bernardo, 2019). 154 “música de resistência”. Direta ou indiretamente, a música assumia o papel de difundir mensagens discordantes do regime. A título exemplar, a interação entre Maria Lúcia e João Alfredo foi representada. Nesse contexto, torna-se perceptível os debates acalorados que os festivais instigavam, assim como a maneira como algumas composições criadas se tornariam emblemas daquela geração (Braga, 2010). Em 1968, durante o auge do governo militar, Geraldo Vandré concebeu a composição Pra não dizer que não falei das flores (também popularmente conhecida como “Caminhando e Cantando”) para participar do III Festival de Música, transformando-se em um hino para os manifestantes que enfrentavam restrições à liberdade de expressão, contribuindo para a precipitação da promulgação do Ato Institucional nº 5. Por meio dos mecanismos de vigilância estatal, a mencionada música foi alvo de censura, levando seu autor a deixar o país. O cerne da canção reside no apelo para que a população abandonasse a passividade e defendesse seus direitos e garantias constitucionais (Pereira; Morillas; Santos, 2023). As consequências acerca dessa música, diante de um período de supressão da liberdade de expressão no país, foram, especialmente, em relação a artistas e à mídia, muitos foram compelidos a buscar refúgio no exterior, visto que pairava sobre eles o iminente perigo de detenção pelas instituições repressoras do governo, sob a justificativa de perturbar a ordem social. Geraldo Vandré, em particular, viu-se obrigado a deixar o território nacional, residindo em diversos países, como França, Bulgária, Alemanha, entre outros. Ao retornar ao Brasil em 1975, optou por seguir uma carreira como advogado e servidor público. Mesmo após o exílio, o compositor permanecia sob a vigilância constante dos órgãos de controle e das forças militares dispositivo que estabeleceu a censura total nos meios de difusão e nas expressões criativas, especialmente na música. No entanto, de maneira intrigante, essa época destacou-se por uma prolífica produção, uma vez que os criadores musicais, confrontados com a necessidade de contornar a censura, conceberam numerosas letras carregadas de significado político expresso por meio de metáforas poéticas. Quanto à trilha sonora da minissérie, ainda que tal informação já seja conhecida do público especialista, há de se dizer que a utilização da música para demarcar momentos específicos da narrativa relaciona-se de maneira perspicaz em cada cena em particular. A minissérie utiliza a trilha sonora de maneira estratégica para dar forma a momentos cruciais da narrativa, selecionando com precisão músicas que se harmonizam perfeitamente com cenas específicas. Como exemplo, destaca-se a representação das notícias relacionadas ao governo Médici, momento em que a música Pra frente Brasil serve como pano de fundo, 155 enquanto manchetes de jornais são exibidas, realçando o sentimento de otimismo e progresso que o governo gostaria de transmitir, especialmente após a vitória na Copa do Mundo. Da mesma forma, a canção O bêbado e o equilibrista, de Elis Regina, considerada o hino do exílio, retrata vividamente o retorno daqueles que foram forçados a deixar o país devido às suas convicções ideológicas. Com um vasto acervo musical, Anos rebeldes incorpora um total de 117 músicas, das quais 15 são selecionadas para fazer parte da trilha sonora oficial da minissérie. As faixas musicais que compõem o disco da minissérie são as seguintes38: Tabela 1 – Músicas da minissérie Anos rebeldes e seus respectivos intérpretes Música Intérprete Baby Gal Costa e Caetano Veloso Sapore di Sale Gino Paoli Carta ao Tom Toquinho e Vinícius de Moraes Can’t take my eyes off you Frankie Valley e The Four Seasons Mascarada Emilio Santiago Alegria, alegria Caetano Veloso Going out of my head Sérgio Mendes Monday monday The Mamas & The Papas There’s a kind of hush Herman’s Hermites Soy loco por ti America Caetano Veloso Discussão Silvinha Telles Call me Chris Montez Seza fine Ornella Vanoni Guantanamera (instrumental) Edom e Felipe The house of the rising sun (instrumental) Edom e Felipe Fonte: Trilha Sonora | Anos Rebeldes | memoriaglobo. Acesso em: 13 jan. 2024. Organizada pela autora. A canção Alegria, alegria foi a que mais se destacou em Anos rebeldes, principalmente porque serviu como a vinheta da minissérie. Com uma duração de 53 segundos, a abertura da vinheta evoca visuais psicodélicos da época. Apresentando-se como um caracol, desenrola-se com cores vibrantes, exibindo imagens que incluem os Beatles, a bandeira da Inglaterra, uma pomba branca, motocicletas, o espaço, a palavra “love” e conclui com a pergunta “por que não?”. Originada da mente talentosa do jovem Caetano Veloso, Alegria, alegria destaca-se como uma das peças fundamentais em sua carreira e na história da música brasileira. Essa canção serviu como o catalisador para o advento da Tropicália, marcando o início de uma abordagem inovadora na criação musical. Oficialmente lançada em 1967, durante sua 38 Trilha Sonora Oficial de Anos rebeldes está disponível em: www.memoriaglobo.globo.com. https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/minisseries/anos-rebeldes/noticia/trilha-sonora.ghtml 156 apresentação no III Festival de Música da TV Record, Alegria, alegria emergiu como um embrião de um movimento musical revolucionário. Composta por Caetano, a canção trazia em sua melodia um caldeirão de inspirações musicais que viriam a deixar uma marca duradoura no cenário musical brasileiro. Com uma letra memorável e elementos inovadores, essa canção, juntamente com Domingo no Parque, de Gil, iniciou a onda do Tropicalismo no Brasil. Tornou-se uma das músicas mais representativas da história musical do país, sendo até mesmo eleita a 10ª canção mais significativa pela revista Rolling Stone. Em um período de acirramento daditadura, Alegria, alegria se erguia como um apelo à liberdade, desafiando as convenções do padrão musical tradicional. A letra expressava as inquietações da juventude da década de 60, refletindo uma aspiração por inovação e superação de limites. Nessa composição, a melodia disruptiva e a letra enigmática fundiam-se à expressividade artística de um ícone em ascensão, cujos alicerces modestos de um novo estilo musical se faziam presentes. Essa união representou uma revolução que tomaria forma em um futuro próximo39. A composição musical da minissérie foi conduzida por Mariozinho Rocha, contando com a produção a cargo de Edom Oliveira e a coordenação sob a responsabilidade de Gilberto Braga. Este trabalho amalgamou êxitos provenientes das décadas de 1960 e 1970. O tema de abertura, Alegria, alegria, foi selecionado como peça inaugural. Ademais, pontuaram as cenas de Anos rebeldes composições como Can't Take My Eyes Off You, de Frankie Valli, interpretada por Frankie Valley & The Four Seasons; Baby, de Caetano Veloso, na voz de Gal Costa; Soy loco por ti América, também de Caetano Veloso, e Carta ao Tom, composta por Toquinho, Vinícius de Moraes e Tom Jobim. No primeiro capítulo da minissérie, na cena em que a personagem Heloísa dança na boate, Braga (2010, p. 81-82) menciona: Adoro as músicas desta cena. Quis que Anos rebeldes tivesse músicas características de minha juventude, por volta de 1964. Na boate, uma das canções é ‘Cha cha cha dela segretaria’, com Harold Nicholas, numa gravação que foi dificílima de conseguir. Encontrei-a no acervo da Rádio Nacional. A outra canção que coloquei nessa cena foi um twist bem típico da época e que também me tomou um tempo danado para conseguir. Na década de 1980 e no início dos anos 90, ainda era muito difícil localizar uma música. Passei cinco anos em busca dessa, porque já a queria antes de começar a escrever o programa. Esse twist chama-se ‘Guarda come dondolo’ e aparece no filme Aquele que sabe viver (II sorpasso), de Dino Risi, com Vittorio Gassman e 39 História da música Alegria, Alegria, de Caetano Veloso disponível em: versoseprosas.com.br. Acesso em 21 nov. 2023. https://versoseprosas.com.br/historia-da-musica/historia-da-musica-alegria-alegria/ 157 Jean–Louis Trintignant no elenco. Eu nunca tive essa música em casa, twist não era o tipo de coisa que eu comprava, mas como adoro o filme, passei a gostar da música também. Nem sabia o nome dela, fui descobrir certa vez em Milão. Estava numa loja de discos e cantarolei a canção, cara de pau que sou. Chamaram um vendedor mais velho, que localizou a versão de Edoardo Vianello. Traduzido, o título da canção é ‘Olhe como eu rebolo’. Nada melhor para caracterizar uma época do que uma canção praticamente esquecida O autor revela seu empenho ao buscar a trilha sonora desejada mesmo antes de iniciar a escrita do programa, enfrentando desafios na empreitada. Essa experiência ressalta o valor sentimental atribuído à música e como ela desempenha um papel crucial na reconstrução da atmosfera histórica. A narrativa ilustra a busca por essas músicas específicas, destacando o significado pessoal e a importância cultural que elas têm para o autor, além de sua contribuição na caracterização da época retratada na minissérie. Para Braga (2010, p. 82): Além da música, esta cena é importante por definir os personagens. Na cena 29, capítulo 1, quando chegam à boate, Edgar e Galeno veem que não têm dinheiro para pagar, mas enquanto Edgar vai embora por causa disso, Galeno usa um truque: como a boate era cara, ele pede para o amigo que está indo para casa que ligue para o estabelecimento dali a duas horas, informando que a mãe de Galeno Quintanilha estava passando muito mal. Assim, ninguém impediria Galeno de sair às pressas sem pagar pelos drinques que consumira. Repreendido pelo amigo, Galeno afirma que pode fazer isso porque sua mãe já está morta. ‘Quando a mãe tá viva fica chato.’ Temos então o amigo responsável e bom-moço e o amigo mais safo e malandro. Essa cena da minissérie é rica em nuances, utilizando a situação na boate para caracterizar os personagens Edgar e Galeno. O momento em que eles percebem que não têm dinheiro para pagar os drinques revela aspectos distintos de suas personalidades. O comportamento de Edgar, que decide ir embora ao constatar a falta de recursos, sugere uma postura mais responsável e talvez conservadora, porque fiel a limites estabelecidos. Ele demonstra uma atitude ética ao não querer aproveitar o momento sem condições financeiras para arcar com os custos. Por outro lado, Galeno mostra-se mais sagaz e astuto ao empregar um truque para escapar do pagamento. O artifício de inventar a situação urgente com a mãe já falecida evidencia sua malandragem, indicando uma inclinação para soluções rápidas e menos convencionais. Essa cena explora questões como a representação das diferentes classes sociais, as estratégias utilizadas para lidar com adversidades financeiras e as características morais e éticas dos personagens. Além disso, a atitude de Galeno em relação à mentira e ao uso de artifícios 158 pode suscitar reflexões sobre os valores éticos em contextos específicos, como os retratados na minissérie. Anos rebeldes é, primordialmente, um relato acerca do amor entre duas personalidades completamente díspares. João Alfredo e Maria Lúcia são indivíduos que buscam superar suas convicções singulares para manter viva a chama do amor. Contudo, é inegável que a minissérie também aborda um período histórico relevante do Brasil, como enfatizado nas palavras do autor Gilberto Braga. A estrutura dramática da série se fundamenta inteiramente nas divergências do casal protagonista. Contudo, não se pode ignorar os inúmeros eventos que, de maneira direta ou indireta, influenciaram as ações das personagens. A abordagem adotada por Gilberto Braga e sua equipe consistiu não apenas em integrar alguns eventos à rotina das personagens, mas também em incorporar o que ele próprio denomina como “painel”. Similar a pequenos videoclipes, sempre acompanhados de música, esses painéis apresentam eventos reais entrelaçados a situações fictícias, conferindo maior dinamismo à narrativa e até ares de aproximação com a realidade. Dentro dos 20 capítulos de Anos Rebeldes, encontramos um total de 19 painéis. Dos capítulos totais, apenas sete deles não incorporam painéis, havendo casos em que mais de um painel é apresentado. As músicas que permeiam esses painéis são sempre emblemáticas de uma situação específica no conjunto de imagens correlatas, proporcionando ao espectador uma imersão precisa no contexto histórico da trama. Segue a lista das 19 músicas que acompanham os painéis da minissérie, dispostas na ordem de sua apresentação. Tabela 2 – Músicas que acompanham painéis em Anos rebeldes e seus respectivos intérpretes Música Intérprete I wanna hold your hand The Beatles Prelúdio – Bachianas Brasileiras 4 Heitor Villa Lobos Carcará Maria Bethânia Arrastão Elis Regina Fibra de Herói Personagens A banda Nara Leão Alegria, alegria Caetano Veloso Roda viva Chico Buarque Prelúdio – Bachianas Brasileiras 4 Heitor Villa Lobos Soy loco por ti America Caetano Veloso Sá Marina Wilson Simonal Pra não dizer que não falei das flores Geraldo Vandré Heróis da liberdade Escola de samba Império Serrano Danúbio azul Johann Strauss Sun King The Beatles 159 Age of aquarius The Fifth Dimension Pra frente Brasil Coral Som Livre Carta ao Tom Toquinho e Vinícius de Moraes O bêbado e o equilibrista Elis Regina Fonte: Trilha Sonora | Anos Rebeldes | memoriaglobo. Acesso em: 13 jan. 2024. Organizada pela autora. O início dos painéis ocorre no episódio inaugural, embalado pela melodia de I wanna hold your hand, êxito da banda The Beatles, cuja autoria é creditada a John Lennon e Paul McCartney. Abaixo, destaca-se um trecho da letra que é perceptível nessa inserção: A melodia da canção, com uma tonalidade adolescente e vibrante, persiste em expressar algo à amada. Ao criar um breve momento de suspense em torno de seu pedido, gera a expectativa característica dos apaixonados. Ao finalmente revelar que seu desejo é apenas segurar a mão da amada, ele explicita o quanto esse gesto simples o inundará de felicidade, revelando que o amor que sente não pode mais ser mantido em segredo. Nesse painel, ocorre com a concordância de Damasceno em integrar o ciclo de palestras organizado por João em sua escola. Nesse ponto, o protagonista está no término da adolescência, o que, por si só, já justifica a escolha da canção. Além disso, I wanna hold your hand foi um enorme sucesso do grupo britânico no ano de 1963, chegando ao Brasil quase em concomitância, aproximadamente em 1964, coincidindo com o período retratado na minissérie. Ao desempenhar seu papel principal de entretenimento, a minissérie veiculada pela Rede Globo desencadeou uma série de discussões significativas, contribuindo assim para incentivar a sociedade brasileira a revisitar momentos históricos na busca por uma compreensão mais profunda do presente. Segundo a obra Anos rebeldes: os bastidores da criação de uma minissérie (Braga, 2010), fornece uma visão abrangente dos capítulos escritos por Gilberto Braga para a minissérie, acompanhado do mapeamento das inserções musicais conforme delineado no roteiro. A análise deste trabalho se baseia na versão disponibilizada pela Som Livre em DVD, composta por 3 discos e totalizando mais de nove horas de conteúdo. Ao estudar os capítulos, foi possível observar as cenas e tramas que foram omitidas, como a quase totalidade da subtrama envolvendo a diferença social entre Natália e Avelar, que foi excluída, focalizando o problema do casal na condição dela ser casada. Outras cenas eliminadas geralmente envolviam repetição de situações ou reações de personagens. Apesar de ser uma obra fechada, a minissérie ainda retém a estrutura de repetição típica das telenovelas. A versão em DVD foi editada pelo próprio Gilberto Braga, assegurando a integridade da narrativa. Atualmente, as minisséries lançadas em DVD não têm sido mais submetidas a edições, sendo disponibilizadas em sua totalidade. https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/minisseries/anos-rebeldes/noticia/trilha-sonora.ghtml 160 A música desempenha um papel crucial em Anos rebeldes, como, aliás, em toda obra cinematografica, explorando as conexões narrativas de maneira análoga ao cinema. Ela atua como um elemento reforçador na compreensão das cenas, adicionando nuances e cores às sensações subjetivas que não poderiam ser totalmente transmitidas apenas pelas ações das personagens. Em Anos rebeldes, não há distinção entre as músicas nacionais e internacionais; devido à natureza da minissérie, não há lançamento de coletâneas separadas. Um aspecto interessante é a inclusão de canções internacionais em línguas não inglesas, o que difere da norma, já que a maioria das trilhas sonoras de telenovelas consiste predominantemente em músicas nessa língua, a menos que a trama esteja ambientada em universos específicos, influenciados por grupos étnicos nos quais a música desempenha um papel significativo. A trilha sonora em Anos rebeldes desempenha um papel distintivo, atuando como componente ambiental, voz narrativa ou personificação, e desempenha um papel crucial na compreensão do momento, contribuindo diretamente para a veracidade dos eventos narrados. Apesar da natureza fictícia da trama, os eventos políticos retratados na minissérie conferem um caráter historicamente relevante à saga de João Alfredo e Maria Lúcia. A música emerge como um meio eficaz para reforçar alguns desses elementos, considerando inegável o legado musical significativo deixado pela década de 1960 para a humanidade. 161 CONSIDERAÇÕES FINAIS Anos rebeldes incorporou um painel geracional que refletia intensamente uma crítica política e social, alinhada ao contexto da época. Coincidentemente (ou não), quando foi transmitida em 1992, o Brasil experimentava um período de desencanto na sua história política. A relevância da minissérie perdurou ao longo do tempo. Em março de 1995, foi reapresentada, e em 2003, 11 anos após seu lançamento original, foi lançada em DVD, mantendo a duradoura presença do produto e cultivando uma base sólida de fãs da minissérie e críticos do período histórico retratado. O reconhecimento da minissérie também foi consolidado por meio de duas premiações da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA). Anos rebeldes recebeu o prestigiado Grande Prêmio da Crítica, enquanto Cláudia Abreu foi laureada como melhor atriz por sua interpretação da personagem Heloísa. Outro elemento crucial para a consolidação dessa minissérie foi o lançamento do livro homônimo pela Editora Globo, adaptado pelo escritor Flávio de Campos durante a exibição da série, em 29 de julho de 1992. Em um contexto específico, marcado pela queda de Fernando Collor de Mello, a minissérie introduziu valores contrapostos à agenda neoliberal que predominava no Brasil em 1992, ressurgindo novamente após o impeachment de Collor, no governo FHC. Esses valores, por assim dizer, eram anti-hegemônicos e, no âmbito da produção simbólica, efetivamente promoveram conceitos bem-sucedidos de democracia, cidadania, participação política, movimentos sociais, solidariedade e interesse no destino do país (civismo). Embora o produto televisivo em si não gere capital político, a experiência proporcionada pela atividade de extensão, que envolve a leitura crítica da mídia, debates e a alfabetização audiovisual crítica, incluindo análises estéticas, políticas e históricas, possibilita a transformação de um produto audiovisual em capital social. Em síntese, os rituais delineados na representação da cultura política, tais como a “vontade de transformação”, o inconformismo diante da situação e a ação política contra os desmandos governamentais, evidenciam-se como formas de “intervir na realidade”, especialmente em um contexto politicamente marcado por imposição da força e da repressão. Essas manifestações, como pichações, panfletagens, manifestações, marchas e passeatas, não apenas configuram uma intervenção na realidade social, mas também representam uma política de transformação, capaz de desencadear eventos que permitam vislumbrar um futuro distinto daquele delineado pelos detentores do poder. Nesse universo “ficcional”, onde a polaridade maniqueísta prevalece, Anos rebeldes emerge não apenas como um agente inadvertido, mas 162 também como um componente significativo nas disputas pela memória da ditadura, aliando-se aos militantes e contribuindo para disseminar expressões de uma cultura política de esquerda, que marcou profundamente os anos revolucionários da juventude brasileira nas décadas de 1960 e 1970. Na minissérie, ocorre uma notável reconstituição histórica que vai além da criação de cenários, abrangendo também os eventos culturais que deixaram sua marca no país. Os personagens não apenas habitam um ambiente de época, mas também participam ativamente dos acontecimentos que podem influenciar o desenrolar da trama e de suas vidas fictícias. O chamado realismo, característico da teledramaturgia da Rede Globo, levou a direção de Anos rebeldes a construir verdadeiros painéis temporais. Tratou-se de lançar mão de imagens da época, organizadas em sequências, provenientes de arquivos e utilizadas pela primeira vez na televisão. Mais do que buscar apenas a verossimilhança ou ampliar o efeito de realidade na obra, essas imagens instigam o público, especialmente aqueles que testemunharam os eventos da época, a engajar-se em diálogos com diversos discursos presentes na cultura e política nacionais. Ao participarem ativamente da narrativa e explorarem aspectos cruciais para a construção da história na minissérie, os painéis demandam uma análise mais profunda no que diz respeito à formação da memória nacional sobre o período da ditadura. O emprego da “impressão de realidade” pelos realizadores não apenas intensifica a sensação de “verossimilhança” para a audiência, mas também potencializa as emoções, um elemento fundamental no domínio simbólico, onde a imaginação, as representações, os mitos e os ritos atuam: um local privilegiado da memória. Assim, Anos rebeldes, para além de ter desempenhado um papel significativo, mesmo que inadvertidamente, nas disputas pela memória da ditadura, também contribuiu para disseminar de maneira mais nítida expressões de uma cultura política de esquerda romântico- revolucionária, que marcou os anos rebeldes da juventude brasileira, a qual, agora no poder, parece ter envelhecido. Nesse contexto, é possível afirmar que a criação de Gilberto Braga e Sérgio Marques transcendeu as limitações do melodrama, assumindo um lugar de destaque na história da teledramaturgia nacional. Esta obra não apenas proporciona entretenimento, mas também se destacou como uma peça que mereceu ser explorada, refletida e interpretada para além da esfera da ficção. 163 REFERÊNCIAS Artigos de jornais, revistas e sites ANOS Rebeldes revê anos 60. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 21 abr. 1992. Caderno 2. BENTES, Ivana. Gilberto Braga e os vilões do Brasil. Mídia Ninja, [S. l.], 27 out. 2021. Disponível em: https://midianinja.org/ivanabentes/gilberto-braga-e-os-viloes-do-brasil/. Acesso em: 10 maio 2023. BERNARDO, André. Os bastidores de ‘Chega de Saudade’, clássico de João Gilberto que completa 60 anos. Folha de S. Paulo, São Paulo, 9 mar. 2019 [atualizado em: 11 mar. 2019]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/03/os-bastidores-de-chega-de- saudade-classico-de-joao-gilberto-que-completa-60-anos.shtml. Acesso em: 13 jan. 2024. COGGIOLA,Osvaldo L. A. Brasil}: do golpe ao caos. REVISTA – O OLHO DA HISTÓRIA , v. 27, 2018. DE PAIVA, Cláudio Cardoso. 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