UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE ANA LÚCIA MACEDO NOVROTH A CONSTRUÇÃO DO DUPLO EM RODRIGO TERRA CAMBARÁ E FLORIANO TERRA CAMBARÁ NAS OBRAS O RETRATO E O ARQUIPÉLAGO DE O TEMPO E O VENTO, DE ERICO VERISSIMO São Paulo 2016 0 ANA LÚCIA MACEDO NOVROTH A CONSTRUÇÃO DO DUPLO EM RODRIGO TERRA CAMBARÁ E FLORIANO TERRA CAMBARÁ NAS OBRAS O RETRATO E O ARQUIPÉLAGO DE O TEMPO E O VENTO, DE ERICO VERISSIMO Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras. Orientadoras: Profa. Doutora Lilian Lopondo (in memoriam) Profa. Doutora Maria Luiza Guarnieri Atik. SÃO PAULO 2016 1 N945c Novroth, Ana Lúcia Macedo. A construção do duplo em Rodrigo Terra Cambará e Floriano Terra Cambará nas obras O retrato e O arquipélago de O tempo e o vento, de Erico Verissimo/ Mari a Aparecida Fernandes Martin – São Paulo, 2016. 189 f. : il. ; 30 cm. Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2016. Orientador: Profa. Dra. Maria Luiza Guarnieri Atik Referência bibliográfica: p. 185-190 1. Verissimo, Erico. 2. Cr ise identitária. 3. Fragmentação 2 do eu. 4. Alteridade. Dialogismo. 5. Duplo. I. Título. CDD 891.7 ANA LÚCIA MACEDO NOVROTH A CONSTRUÇÃO DO DUPLO EM RODRIGO TERRA CAMBARÁ E FLORIANO TERRA CAMBARÁ NAS OBRAS O RETRATO E O ARQUIPÉLAGO DE O TEMPO E O VENTO, DE ERICO VERISSIMO Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras. Linha de Pesquisa: Literatura e Suas Linguagens. Orientadoras: Profa. Dra. Lilian Lopondo (in memoriam) e Profa. Dra. Maria Luiza Guarnieri Atik Aprovada em 25/02/2016 BANCA EXAMINADORA: ___________________________________________________________________ Profa. Dra. Maria Luiza Guarnieri Atik Universidade Presbiteriana Mackenzie ___________________________________________________________________ Profa. Dra. Elisabeth Brait Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Profa. Dra. Aurora Gedra Ruiz Alvarez Universidade Presbiteriana Mackenzie 3 A Deus, sem Ele nada seria possível. À Professora Lilian Lopondo (in memoriam), por me conduzir nos primeiros passos. Onde quer que esteja... 4 AGRADECIMENTOS Lutar com palavras é a luta mais vã. Entanto lutamos mal rompe a manhã. Elas são muitas, eu pouco. Carlos Drummond de Andrade A Deus, pela capacidade. Ao meu marido, pelo companheirismo. Às minhas filhas, pela espera. À professora Maria Luiza, pela confiança. À professora Aurora, pelo carinho. À professora Brait, pelo início. Aos meus pais, pelo amor. À Suely, pelo incentivo. À Solange, pela conversa. À Claudinha, pelo amparo. Ao meu irmão, pela solicitude. À minha irmã, pela compreensão. Aos verdadeiros amigos, pela ajuda. Ao senhor Godoi, pelo estudo. A Erico Verissimo, por tudo. 5 O menos que um escritor pode fazer, numa época de atrocidades e injustiças como a nossa, é acender a sua lâmpada, fazer luz sobre a realidade de seu mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos assassinos aos tiranos. Sim, segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do horror. Se não tivermos uma lâmpada elétrica, acendamos o nosso toco de vela ou, em último caso, risquemos fósforos repetidamente, como sinal que não desertamos nosso posto. (Erico Verissimo) 6 RESUMO A presente dissertação é um estudo crítico de base interpretativa que tem como proposta analisar como se dá a duplicidade – entendido o termo como consciência que se multiplica– entre as personagens Rodrigo Terra Cambará e seu filho, Floriano Terra Cambará, especificamente nos volumes de O retrato e O arquipélago, que compõem a trilogia O tempo e o vento, de Erico Verissimo. Partimos do pressuposto que o escritor se preocupou em dar densidade ao protagonista fato que o distingue de uma personagem que funciona apenas como força motriz da ação. Podemos afirmar que o escritor gaúcho, por meio de sua proficiência literária, realizou a difícil tarefa de representar a crise identitária vivenciada pelo homem moderno, segundo a qual o ser duplicado é signo de um eu fragmentado. Dentre os estudiosos mais representativos que embasaram estes objetivos, foram de fundamental importância as elaborações de Mikhail M. Bakhtin e Volochinov que versam sobre dialogismo, ideologia, discurso individual e coletivo, passando pela questão da identidade. Como suporte teórico para exame do duplo, utilizamos autores que transitam pela filosofia como Clément Rosset, pela psicologia e psicanálise como Otto Rank, Sigmund Freud, Carl Gustav Jung, C.F.Keppler. Embora os teóricos adotem juízos distintos no reexame do duplo, a abordagem foi possível uma vez que a maioria admite certa correspondência quanto à questão da alteridade. Constatamos que as obras em questão se expandem a múltiplas análises e, com isso, pudemos atualizar a literatura de Erico Veríssimo e ressignificar o mito do duplo adequando-o ao contexto histórico, embora sem alterar, em sua essência, o símbolo da busca da identidade. PALAVRAS-CHAVE: Erico Verissimo. Crise identitária. Fragmentação do eu. Alteridade. Dialogismo. Duplo. 7 ABSTRACT This dissertation is an analytical study on the basis interpretivist, and its goal is to analyze the generation of the dual self-understood as consciousness multiplying itself -between the character of Rodrigo Terra Cambara, and his son Floriano Terra Cambara, as narrated in the Erico Verissmo’s trilogy O tempo e o vento, more specifically retreated in the books O retrato and O arquipélago. We based our assumption on the fact that the author gave certain emphasis on the main character, in an attempt to distance him from being a mere action figure. We can ascertain that this southern Brazilian author (Gaucho) through his literary proficiency, was able to complete the difficult task of representing modern man’s identity crisis, where the second self is the product of the fragmented self. Amongst the scholars that best support this subject, of greater importance were the works of Mikhail M. Bakhtin and Volochinov, whose papers concentrate more on dialogism, ideology, individual and collective discourse, and also focus on the question of identity. As a theoretical support for better understanding of the second self, we reviewed the studies of authors that bear a philosophical basis such as Clement Rosset, and also others devoted to the study of psychology and psychoanalysis such as Otto Rank, Sigmund Freud, Carl Gustav Jung and C.F. Keppler. Although many of the studies characterize the subject of the second self in different manners, the overall concept ascertain similarities on the subject of alterity, and therefore, we were able to update Erico Verissimo’s literature realm and conceptualize in a historical manner the significance of second self, maintaining in its essence, the meaning of one self’s identity search. Key Words: Erico Verissimo. Identity crisis. Fragmentation of self. Alterity. Dialogism. Second self. 8 SUMÁRIO COMO TUDO COMEÇOU...................................................................................10 CONSIDERAÇÕES INICIAIS: SOBRE ERICO VERISSIMO............................ 13 FORTUNA CRÍTICA............................................................................................16 A GÊNESE E A RECEPÇÃO DE O TEMPO E O VENTO..................................22 FULCRO DA TEMÁTICA.....................................................................................25 1 DOS CONCEITOS DE BAKHTIN ÀS TEORIAS PSICANALÍTICAS................31 1.1 O FENÔMENO DO DUPLO NO ROMANCE: UM ESPELHO DO HOMEM MODERNO............................................................................................................31 1.2 ALGUNS CONCEITOS BAKHTINIANOS.......................................................35 1.3 TEORIAS SOBRE O DUPLO..........................................................................49 2 MANIFESTAÇÕES DO DUPLO NA CONSTRUÇÃO DO PROTAGONISTA: DIFERENTES PERSPECTIVAS...........................................................................61 2.1 O ENTRECRUZAR DE DISCURSOS............................................................ 61 2.2 O RETRATO DE RODRIGO TERRA CAMBARÁ: O EU NA FRONTEIRA.....81 2.3 O RETRATO: O DUPLO ANTAGÔNICO DE NARCISO.................................93 2.4. AS MÚLTIPLAS FACES DE RODRIGO TERRA CAMBARÁ: O HERÓI MODERNO SEGUNDO A PERSPECTIVA PSICANALÍTICA.............................105 3 OLHARES SOBRE FLORIANO E A APREENSÃO DE SUA ALMA..................................................................................................................126 3.1 FLORIANO: O EU NA FRONTEIRA.............................................................126 3.2 FLORIANO: O DUPLO DE RODRIGO, SEGUNDO A PERSPECTIVA PSICANALÍTICA.................................................................................................157 3.3 FLORIANO: JANO OLHANDO PARA FRENTE...........................................160 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................181 REFERÊNCIAS...................................................................................................185 9 Como tudo começou Como professora de Português do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, há alguns anos procuro adotar, como leitura obrigatória, os romances Ana Terra e Um certo capitão Rodrigo, da série O continente, primeira parte da trilogia O tempo e o vento, de Erico Verissimo, publicados, separadamente, em edição de bolso, pela Companhia das Letras. Nessas ocasiões, percebo boa receptividade pelos alunos − fato pouco comum nos dias atuais − já que os livros dividem a atenção com muitos outros interesses, tais como mídias sociais, jogos de computador ou até mesmo a TV. O surpreendente é que inúmeras vezes cheguei a emprestar os volumes todos da primeira parte da trilogia. Se, por ventura, adoto apenas o primeiro título, muitos dos jovens perguntam sobre a sua continuação. E compram. E leem. E nesses momentos, como docente, sinto-me realizada. Esse fato despertou minha atenção sobre o autor e sua obra. Por curiosidade, pesquisei os livros recomendados para o processo seletivo entre 2009 e 2013, nas quinze mais importantes universidades brasileiras1. Autores como Guimarães Rosa e Graciliano Ramos figuram em quase todas as listas de obras literárias indicadas para os vestibulares, fato que não acontece com Erico Verissimo. Apenas em 2009, a Universidade Federal de Santa Catarina, incluiu a obra Incidente em Antares nas indicações para o exame. Concluí que a obra do escritor gaúcho praticamente é ignorada nesse meio. Uma dúvida assolou-me: o que teria acontecido, então, para que o autor sul-riograndense se tornasse hoje quase um esquecido (salvo no caso de aparecer em alguma transposição intersemiótica para a televisão ou para o cinema)? Será em virtude de sua extensão? Mas, se fosse o caso, a obra mais longa é O tempo e o vento, e as 1 http://www.webometrics.info/en/Latin_America/Brazil - acessado em 28/02/2013. Desde 2004, este ranking on-line de excelência acadêmica publica a listagem duas vezes ao ano com dados coletados durante as primeiras semanas de janeiro e julho. Cobre mais de 20 mil instituições de ensino superior do mundo todo com a intenção de motivar universidades e pesquisadores a terem uma presença na web que reflita suas atividades. A ponderação se dá a partir do volume e da qualidade dos conteúdos disponibilizados na Rede. Tais conteúdos têm de ser obrigatoriamente originados na própria instituição, sendo proibido utilizar conteúdos externos para melhorar a classificação. 10 outras tantas que o autor publicou? Será que sua obra, no âmbito literário, não teve muita importância? E se for o caso, por que não? Comecei, então, a ler sobre o que o autor falava de si, de sua produção artística, e o que os críticos literários, no geral, diziam sobre ele. Não posso afirmar que fiquei surpresa com o resultado: Veríssimo se autodefinia como um simples “contador de histórias”. E a crítica coetânea não o desmentiu, ao contrário, colocou-o nessa posição, e esse lugar-comum estabeleceu-se como verdade absoluta. A partir daí busquei a fortuna crítica do autor e fiquei surpresa com a gama de trabalhos acadêmicos que abarcavam a disciplina de História. A trilogia O tempo e o vento, em especial, é um dos corpus mais prolíficos nessa comunidade acadêmica. E não é à toa. Segundo Regina Zilberman (2004, p. 46), a trilogia custou a Verissimo mais de dez anos de trabalho, 2.200 páginas escritas e uma narrativa que compreende o período de duzentos anos de história do Rio Grande do Sul. Seu arrojado projeto já mereceria ser argumento para conquistar um nível mais elevado entre os críticos brasileiros, assim como a tessitura narrativa, a construção das personagens, a diversidade de recursos estruturais, os domínios de diferentes níveis de temporalidade também deveriam atestar a sua competência literária. O curioso é que, na época, O continente, foi uma das obras latino-americanas mais lidas na Alemanha, por exemplo. Seus romances foram traduzidos para várias línguas e chegaram a vender mais de dois milhões de exemplares. Esse aspecto também deveria alavancar o autor no panorama literário brasileiro. Outra questão veio a minha mente: será então que, por ser uma obra de fácil leitura, marcada por um doce fluir da diegese, na qual o leitor se deixa embalar pelos acontecimentos e segui-los com interesse, fundamentaria a resistência a uma boa qualificação do artista por parte dos críticos? Um bom escritor, portanto, seria aquele que apresenta uma linguagem altamente elaborada ou aquele que trata de assuntos impenetráveis? Voltei à trilogia. A narrativa, fluente, não era assim tão elementar. Havia muitos aspectos da obra que, a meu ver, mereceriam estudo mais aprofundado. Entretanto, o que sempre chamava a minha atenção era a personagem Rodrigo Terra Cambará, bisneto do capitão Rodrigo: poderia classificá-la como herói ou 11 anti-herói? O que mais eu poderia descobrir sobre ela? E a sua relação com o Retrato? Poder-se-ia dizer que há uma relação de duplicidade entre Rodrigo Terra Cambará e o Retrato e entre Floriano e Rodrigo? Essas e outras indagações levaram-me ao estudo que apresentarei com pormenores nas páginas deste trabalho. 12 Considerações iniciais Sobre Érico Veríssimo: apenas um contador de histórias? Tenho dito e escrito repetidamente que me considero, antes de mais nada, um contador de histórias. Ora, nos tempos que correm contar histórias, parece ser aos olhos de certos críticos o grande pecado mortal literário. A chamada ‘boa crítica’ considera a história ou estória, como queiram, uma forma inferior de arte. Na minha opinião isso é, por um lado, uma atitude esnobe e, por outro, um equívoco semântico segundo o qual a história passa a ser sinônimo de anedota, enredo, intriga (Aspas do autor). Erico Veríssimo Um contador de histórias. Quando algum repórter pedia a Erico Verissimo que se autodefinisse, era com essas palavras que o fazia. Talvez por modéstia, talvez por não achar tão desprezível esse predicativo. O fato é que essa característica retumbou de maneira muitas vezes negativa, como se “contar histórias” fosse algo menor, simples, não complexo, acessível. Creio que já não é possível determinar quando surgiu pela primeira vez a expressão “um contador de histórias”. O próprio Erico Verissimo adotou-a e, com uma modéstia exagerada, passou a chamar-se assim sempre que lhe exigiam uma autodefinição. A crítica míope – que não é tão modesta – também adotou o rótulo que o escritor permitira ou inventara. Mas empregou-a pejorativamente [...] (CHAVES, 1972, p. 71). Esse lugar-comum estabelecido passou por verdade absoluta, e o escritor, em sua modéstia, reduziu a sua produção artística. Alguns críticos, por sua vez, corroboraram essa visão, dando ao autor uma posição inferior na listagem dos principais escritores do país. Devemos considerar que o período inicial de produção de Erico Verissimo deu-se na década de 30, e foi nessa época que a ficção brasileira voltou seu olhar à temática social, ou seja, a literatura voltou a ser instrumento de análise da sociedade, em um dos movimentos mais importantes da ficção brasileira. Desse 13 modo, os romances tinham como tema as relações entre o meio e o indivíduo. Em função disso, os autores, cada qual com seu estilo, criavam ou narravam situações que ocorriam na sua região natal, adquirindo a sua obra um caráter regionalista. Figuram entre os grandes autores da geração de 30 Jorge Amado, que escreveu sobre a Bahia, José Lins do Rego, que expôs a problemática dos latifundiários na Paraíba, Rachel de Queiroz, que falou sobre a seca no Ceará, Graciliano Ramos, que abordou a migração nordestina, e Erico Veríssimo, que enfocou o Rio Grande do Sul de um modo contundente em seus romances. Segundo Flavio Loureiro Chaves, a obra de Erico Veríssimo é significativa inclusive pelo seu pioneirismo, precedendo os escritores citados: [...] pertencendo em perspectivas modernistas, à geração consolidadora, ele é um dos escritores fundamentais do movimento, por haver feito, fora de São Paulo, o que nenhum dos revolucionários de 22 conseguiu fazer: romance urbano moderno [...] (CHAVES, 1976, p. 34). Como já explicitamos anteriormente, as obras dos primeiros são indicadas como leitura obrigatória para o processo seletivo de grandes universidades brasileiras. O mesmo não ocorre com o último, mesmo sendo o escritor um contemporâneo dos escritores nordestinos mencionados. O que pretendemos salientar é que o autor gaúcho, ao tratar de problemas sociais e de questões inerentes ao homem, aproxima-se do leitor, alcançando um público maior, e esse estilo lhe rendeu o rótulo de escritor mediano, especialmente por Alfredo Bosi. Para o crítico literário, o romance de Verissimo “ficava entre a crônica de costumes e a notação intimista” (BOSI, 2008. p. 408.). Do ponto de vista de Maria da Gloria Bordini, “Erico Veríssimo estava associado à imagem de um romancista bem-sucedido, viajado e culto, responsável por histórias que caíam no gosto do público” (BORDINI, ZILBERMAN, 2004, p. 14). Aliás, era objetivo de Verissimo “não participar do desejo orgulhoso e aristocrático de ‘hermetismo’ porque achava desonesto o truque de turvar as águas para dar impressão de profundidade” (CHAVES,1976, p. 150). [...] nunca estamos livres do perigo de ver as palavras usadas não como um meio de comunicação entre o autor e o leitor, mas como peças de um jogo esotérico, hermético e, portanto, um fim 14 em si mesmas. Creio que o enigma da vida já é tão complicado que o escritor não deve criar em torno dele outro enigma, nem mesmo de natureza verbal. A poesia sim, é o reino das palavras, o campo próprio para experiências imagísticas, metafóricas (Revista Realidade, São Paulo, novembro de1966). Por sua escrita mais acessível, o que se observa é um certo descaso, parece que sua obra ficou em segundo plano em relação aos outros escritores, como se contar histórias fosse uma atividade menor na literatura. Mas o que os grandes escritores fizeram não foi exatamente isso, contar histórias? Segundo Otto Maria Carpeux, o narrador de Erico Veríssimo era “um homem que sabia narrar acontecimentos como se fossem realmente acontecidos” (CARPEAUX, 1972 p. 37). Ao contrário do que o autor dizia sobre si e do que a crítica de sua época corroborava, Erico Veríssimo dominava os procedimentos narrativos. Na editora Globo, o autor trabalhava como tradutor, fato que influenciou profundamente o seu estilo. Até então a técnica do contraponto era inédita na literatura brasileira e bastante comum na literatura inglesa. Esse procedimento era bastante desenvolvido por Aldous Huxley e consiste na sobreposição dos protagonistas e dos acontecimentos narrados sem, no entanto, haver um centro narrativo. Apesar de os fatos serem simultâneos, não possuem pontos convergentes, o que significa que cada núcleo narrativo é independente. Em O tempo e o vento, por exemplo, há um jogo temporal entre o passado e o presente narrativo, cujo efeito é demonstrar uma visão em perspectiva: afirma Donaldo Schüller (1972) que, à medida que o autor se aproxima do presente, a ação se desenvolve com lentidão; nos capítulos que versam sobre o passado remoto, a ação se desenvolve com rapidez. O domínio dessa técnica narrativa revela que Erico Verissimo não foi apenas um simples contador de histórias. Sua linguagem mais acessível não diminuiu a propriedade narrativa de seus textos, tampouco foi suficiente para encobrir seu pioneirismo, tanto no plano literário nacional quanto regional. Por que tais considerações a respeito do autor teriam alguma relevância para este trabalho? Muitos aspectos da diegese já mereceram diversas publicações, como o tempo, o espaço, ou as personagens, por exemplo. O nosso enfoque, no entanto, 15 será para a construção das personagens Rodrigo e Floriano Terra Cambará, nos volumes II e III especificamente. Verificaremos se a proficiência literária do escritor gaúcho garante a expansão da obra a múltiplas análises e, dessa forma, atualizar e aprofundar o significado da literatura de Erico Verissimo. Pretendemos mostrar que a criação literária pode proporcionar não só momentos de prazer, mas também reflexões sobre o indivíduo e a sociedade. Fortuna Crítica É necessário esclarecer que, paradoxalmente, embora desmerecido por alguns, a crítica coeva a Erico Verissimo suscitou inúmeros trabalhos acadêmicos e publicações, uma vez que a problemática tratada nas obras do escritor é o confronto do indivíduo com a sociedade. Flávio Loureiro Chaves equipara a fortuna crítica de Erico Verissimo aos acervos de Machado de Assis, Mário de Andrade e Guimarães Rosa, pois, segundo o biógrafo, “O último levantamento feito subia a cerca de 1,3 mil títulos”, (CHAVES, 2005, p. 4). Veríssimo lança críticas sobre o indivíduo, situado diante da História, situação em que se dá a conspurcação de uma gama de valores éticos. É ampla a quantidade de trabalhos que abordam os aspectos histórico-sociais, notadamente nas áreas de história, sociologia, filosofia e educação. Inúmeras produções acadêmicas e artigos foram publicados em instituições internacionais. Nas últimas décadas, sobretudo na área de Letras, apareceram muitos trabalhos – dissertações, teses, artigos e ensaios – que investigam as qualidades literárias do escritor. Os autores que mais contribuíram com estudos analíticos sobre a obra de Veríssimo são Regina Zilberman, Maria da Glória Bordini, Flávio Loureiro Chaves, Ligia Chiappini, Robson Pereira Gonçalves; a historiadora Sandra Jatahy Pesavento; o filósofo e sociólogo Jacques Leenhart, Orlando Fonseca. Os pesquisadores, críticos e estudiosos publicaram diversos artigos e ensaios, abordando aspectos não só sobre a trilogia, como também acerca de outras obras do autor, lançando um olhar investigativo sobre os aspectos que tangem as diversas áreas do conhecimento. Vale ressaltar que pesquisamos no Acervo Literário Erico Verissimo (ALEV), nas bibliotecas virtuais, especialmente nos bancos de teses e 16 dissertações das Universidades USP, UNESP, PUCSP, PUCRS, UFRGS, UNISINOS, UFSM, UNICAMP, no site Domínio Público, no Google Acadêmico e não encontramos, até o momento, uma pesquisa que tratasse do duplo em qualquer obra do autor. Além do mais, trabalhos a respeito de O retrato, como já dissemos, é em pequeno número e, apesar de serem objetos de citação, não enfocam exatamente as questões que abordaremos ao longo desta pesquisa. Para procedermos à investigação, apresentaremos alguns estudos mais relevantes para o nosso trabalho; por isso daremos destaque ao que os autores citados apontaram a respeito de O retrato e O arquipélago. O livro que contém mais estudos a respeito da segunda parte da trilogia é O romance da História (PESAVENTO, LEEHARDT, CHIAPPINI, AGUIAR, 2001) e O tempo e o vento: História, invenção e metamorfose, (BORDINI, ZILBERMAN, 2004). A tese de doutorado Erico Verissimo e a urdidura da ficção com a História em O retrato, de Célia Doris Becker, também merece destaque neste levantamento. Muitos foram os artigos a respeito da obra verissiana escritos por Regina Zilberman. Entre eles, “Erico Verissimo, memória, História, e tempo recuperado”, publicado pela Revista da USP, em 2005- 2006. A autora discorre a respeito do narrador de trilogia, que é revelado somente na última página do romance, tornando a narrativa cíclica. Essa descoberta obriga o leitor a reiniciar a leitura, pois “graças a esse artifício tudo muda”. Antes o narrador, por ser anônimo, deixava a narrativa com um aspecto mais impessoal. Passando a ter nome e sobrenome, deixa marcas de subjetividade, já que é um membro da família. Essa estratégia, segundo Zilberman, “compromete a linearidade do tempo, seja na cronologia, seja da própria leitura” A autora traça um paralelo entre a trilogia e o romance de Marcel Proust, Em busca do tempo perdido, cuja palavra final também retoma a inicial, tornando a narrativa cíclica. Zilberman faz essa analogia a fim de discutir a regressão do tempo no romance, bem como o papel da memória diante da história. Sobre O retrato, em O tempo e o vento: História, invenção e metamorfose, Zilberman explica que o projeto do autor era preencher uma lacuna apresentada na História oficial do Rio Grande do Sul nos livros didáticos. Juntamente com Maria da Glória Bordini, coautora desse projeto, aponta quais símbolos estão presentes em O retrato: o quadro – obra-prima de Pepe García – e o galo – 17 personagem da peça Chantecler, de Rostand, os quais contribuem para caracterizar o protagonista e revelam as tendências narcisistas da personagem central que é a representação do caudilho. Em relação ao galo da peça Chantecler, Bordini, ao lado de Zilberman, acrescenta que “Chantecler” sugere a soberba da figura do herói que se assemelha ao personagem da peça homônima do dramaturgo francês, Edmond Rostand. Bordini reconhece nessa imagem a figuração do burguês. Nesse sentido, o retrato tem um sentido político e representa a ascensão da classe burguesa, do “momento de transição” da evolução econômica do Rio Grande do Sul de “uma sociedade rural” – originada em latifúndios adquiridos “pela lei da força” e exploradora da pecuária – para “um regime burguês” – fundado no direito e caracterizado por “atividades urbanas, em que o comércio se destaca, cabendo aos serviços um papel agregador da diversidade no todo” (BORDINI e ZILBERMAN, 2004, p. 105). Outro aspecto que a autora acentua é o recurso, empregado por Verissimo, ao estabelecer um diálogo com a obra de Oscar Wilde, O retrato de Dorian Gray, só que de maneira contrária: “Erico tira da narrativa de Gray o lado fantástico, mas conserva a tragicidade da história da personagem Sybil ” (BORDINI; ZILBERMAN, 2004, p. 112-113). Ainda em O tempo e o vento: História, invenção e metamorfose, Bordini aponta os três eixos narrativos do romance: um ideológico, um literário e um histórico, formando um painel de uma parte da história política, regional e nacional da literatura gaúcha. Bordini alista os capítulos intitulados “Reunião de família”, entremeados por outros a fim de explicitar os eixos narrativos. A autora faz uma análise do antagonismo entre Rodrigo e Toríbio e entre Rodrigo e Floriano. O último, ao criar seu romance, usa estratégias como o testemunho, a crítica, a reportagem, para mostrar aos leitores que os fatos históricos que são relatados, na verdade, estão impregnados de subjetividade. Bordini acrescenta, ainda, que “um escritor, para visar o bem comum e tornar-se um político no sentido aristotélico, precisa, acima de tudo, de introspecção da própria existência e ascendência” [...] (2004, p. 138). No artigo “O retrato e a identidade” (2000), Orlando Fonseca, também conduz a sua análise para o estudo da metáfora: o retrato é a combinação entre o passado e o presente do médico: no passado, o jovem Dr. Rodrigo Terra 18 Cambará era uma “personalidade política identificada com uma identidade nacional” (FONSECA, 2000, p. 117). Fonseca salienta ainda que o retrato remete Rodrigo ao perfil ditatorial de Getúlio Vargas. Ligia Chiappini, no ensaio intitulado “O campo e a cidade no retrato” (2001), conforme o título sugere, destaca o espaço narrativo da obra, apontando, inicialmente, a tensão – campo versus cidade – identificável já no primeiro capítulo e que se estende ao longo de toda a segunda parte da saga. No sobrevoo que Eduardo Cambará realiza surge “uma primeira visão de Santa Fé, rasteira e rápida, mais sonora que visual” (2001, p. 105); em seguida, o foco amplia-se para a vista dos arredores. Segundo a autora, a chácara de Babalo representa as perdas materiais dos grandes fazendeiros arruinados e, nos arredores, situa-se “a nova força do campo gaúcho: Nova Pomerânia e Garibaldina, núcleos de agricultores alemães e italianos que, ao longo do romance, vão-se desenvolvendo e tornando-se cada vez mais influentes. ” (2001, p. 106). Nesse espaço, há marcas antagônicas: as características de uma cidade que está se modernizando em função de alguns recursos como telefone, telégrafo, rádio, luz elétrica, automóvel, avião, mas que ainda mantém aspectos provincianos, “com ruas de terra e campo ao redor” (2001, p. 105 -106). O latifúndio cede lugar às pequenas propriedades. No ensaio, Chiappini faz uma analogia entre o retrato e o espaço: a obra executada por Pepe Garcia representa o encontro entre campo e cidade, entre passado épico, presente e futuro promissores. Chiappini afirma que Rodrigo constitui a transição entre o espaço da economia rural e o da urbana que é uma alegoria de “dois Rio Grandes [...], dois Brasis” (2001, p. 110). Além desses contrastes, Chiappini também considera o espaço como elemento caracterizador da personalidade do protagonista: cosmopolita – considera Paris como símbolo da civilização e do progresso –, não se desapega de sua origem rural. Em outro ensaio intitulado “Flora-Floriano: impasses do escritor dos anos 30”, Chiappini defende que o escritor Floriano é o alter ego do escritor além de ser uma metáfora no sentido mais estrito da palavra já que dentro do nome Floriano encontra- se a palavra Flora, revelando ambivalência da personagem, que tem um lado feminino e um masculino, conflitando-se a todo instante. O lado Floral de Floriano é hesitante, medroso, admirador e defensor das mulheres. O lado masculino é aquele que se 19 assemelha ao do pai, mas que não quer se revelar. O espelho é um elemento importante, pois é o anjo da guarda que incomoda a todo momento, não permitindo que Floriano deixe emergir o seu lado Cambará. Sandra Jatahy Pesavento também diz que a metáfora é uma maneira de explicitar-se a teoria da identidade, em busca da qual Floriano sempre está. A autora finaliza apontando em Floriano a metáfora que “vive a desmanchar as metáforas que inventa, esquecendo que propunha a deixar muitos etcs... entre seus parágrafos para o leitor preencher, novas metáforas se criam, permitindo que leiamos o romance como a metáfora das metáforas” (2001, p. 156). Pesavento, no mesmo livro, especificamente acerca de O retrato, assina o ensaio “A temporalidade da perda” (2001) e considera que a narrativa pendular de Erico Verissimo “sobremontando posições polares, relativizando diferenças”, permite “a convivência de opostos” (2001, p. 51). A autora também destaca os conflitos armados que se desenrolam ao longo da trilogia, provocando diferentes percepções às personagens femininas e masculinas: sob a perspectiva masculina, a guerra é percebida como “contingência da vida, traço permanente do cotidiano do pampa ou prática a pautar os valores da conduta do homem do Sul” (2001, p. 45), diferentemente do que as mulheres pensam. Sobre o tempo narrativo, Pesavento aprofunda-se no que diz respeito à interposição temporal em O retrato. Nesse livro, o tempo assume a função de revelar como o passado tem força na sequência narrativa. Além disso, sugere a descrença do narrador ante o novo e o futuro. A técnica narrativa utilizada para marcar esse aspecto é a inversão temporal, e o efeito de sentido obtido é o de acentuar o ceticismo em relação ao novo, colocando em xeque a possibilidade ou não de salvar o tempo passado. [...]Nesse processo de estruturação/desestruturação que acompanha o fluir da narrativa e que assinala a temporalidade da mudança, uma linha persegue a trama e é marcada pela tragédia, fazendo com que cada elemento do novo contenha em si os germes da sua destruição, e que cada avanço implique uma perda (PESAVENTO, 2001. pp. 89-90). Ao referir-se a perdas e derrocadas, a autora considera a ambiguidade de posicionamento político do Dr. Rodrigo Cambará: ele defende a bandeira do liberalismo e da democracia, mas acaba apoiando o Estado Novo. 20 Sandra Pesavento, no mesmo livro, escreve o ensaio “Floriano no espelho: o mágico e o lógico”, no qual propõe o resgate de metáforas que Verissimo utiliza em suas obras. Com esse estudo, sugere que, ao servir-se desses recursos estilísticos, expõe questões universais, demonstrando que o escritor deveria ocupar uma posição superior que o de simples contador de histórias. Para tanto, analisa os três livros que compõem o terceiro volume da obra no que tange à metáfora do espelho. Floriano Terra Cambará mira-se no espelho em uma atitude de questionamento e distanciamento da realidade. O espelho seria uma metáfora da busca da identidade, e do desabrochar do seu ofício de escritor que, como tal, deve distanciar-se e tentar captar as emoções e sentimentos dos indivíduos. Floriano o tempo inteiro faz indagações sobre o que escrever e como: escrever a história do Rio Grande ou um romance? A estudiosa conclui que “escrever é, pois tarefa difícil, o que equivale dizer que se entrecruzam e evidenciam a fragilidade das fronteiras entre estratégias discursivas, que ora incidem pelo caminho da ficcionalidade, ora pelo da veracidade” (2001, p. 181). Ainda nesse livro, Jacques Leenhardt, em “O retrato de Rodrigo Cambará” (2001), defende a tese de que a busca do Dr. Rodrigo por novidades representa a tentativa de o protagonista libertar-se das influências do passado. Flávio Loureiro Chaves, biógrafo de Érico Veríssimo, escreveu inúmeros ensaios, artigos, livros a respeito do autor e de sua obra. Não é o escopo deste trabalho realizar todo esse levantamento. No entanto, entre a diversidade de textos assinados pelo pesquisador, o que vale destacar para o momento é o capítulo intitulado “O narrador, testemunha da História”, presente no livro Erico Verissimo: o escritor e seu tempo (2001). Chaves considera que a personagem Doutor Rodrigo se arvora herdeiro da tradição gaúcha de bravura, hombridade e firmeza de princípios. No entanto, observa que essa personagem pretensamente liberal não alia a teoria à prática, não passando de um oportunista lacaio do Estado Novo getulista, versão brasileira do fascismo. O que vemos não é a reencarnação do seu heroico homônimo, Rodrigo Cambará, mas um fracassado pai, marido e político, conduzindo inexoravelmente sua família à decadência e desagregação. O estudioso conclui que a existência de dois Rodrigos marca o início e o fim de um ciclo: a família Terra/Cambará 21 reflete a ascensão e queda de uma aristocracia rural que, não obstante participar ativamente da formação do Rio Grande do Sul, viu-se decadente e superada por novas realidades políticas, econômicas e sociais. Maria Cristina de Matos Rodrigues, em 2006, publicou o artigo “O tempo e o vento: literatura história e desmistificação” na revista MÉTIS: história & cultura, no qual explora as concepções de Erico Verissimo a respeito da sociedade e o papel social que a literatura cumpre ao representar a realidade, especificamente a do Rio Grande do Sul. Rodrigues parte das considerações pessoais do autor sobre a forma como as escolas abordam a História, especialmente como são registrados os fatos nos livros escolares, manifestando, desde então, o desejo de desmistificar a história regional. Para finalizar, Célia Doris Becker, em sua tese de doutorado Erico Verissimo e a urdidura da ficção com a História em O retrato, estuda os procedimentos adotados por Erico Veríssimo no entrelaçamento da ficção com a História, na segunda parte de O tempo e o vento. A autora salienta a pouca representatividade do segundo tomo do romance para a crítica em geral. O seu objetivo é demonstrar a estratégia que o escritor utiliza para transformar a realidade histórica em fatos estéticos e como a “narrativa obedece à verossimilhança externa sem ferir a concepção estética” (BECKER, 2006, p. 18). Becker defende que o romance é o espaço que expõe os problemas sociais. No trabalho, Becker considera não só a representação do homem, como também a do contexto do Rio Grande do Sul – e por extensão do Brasil – nas décadas iniciais do século XX. Nesse percurso, interessou-se pelo entrecruzamento de vozes: a do narrador e a das personagens, as quais interligam diversos conflitos. Por meio dessa estratégia, Becker consegue identificar, na narrativa, os valores político-ideológicos norteadores da sociedade. A gênese e a recepção de O tempo e o vento A trilogia O tempo e o vento é considerada a obra mais representativa de Erico Veríssimo e um dos romances mais longos da Literatura Brasileira. Achava-me eu com firme intenção de começar a escrever um massudo romance cíclico que teria o nome de Caravana. Seria um trabalho repousado, lento e denso a abranger duzentos anos 22 de vida do Rio Grande. Começaria numa missão jesuítica em 1740 e terminaria em 1940. Levei a máquina de escrever portátil para a beira de um lago artificial, debaixo do copado, pinheiros, decidido a escrever a primeira linha do romance-rio [...]. Silêncio. Tudo tranquilo. Tudo menos eu. Não sei que secreta intuição me dizia que não tinha chegado a hora de escrever Caravana (VERISSIMO apud BORDINI; ZILBERMAN, 2004, p. 24). O escritor já esboçara um desejo de escrevê-lo em 1930 em O resto é silêncio, quando a personagem Tônio, escritor, manifesta a vontade de mostrar às pessoas a história do Rio Grande do Sul. Quantos milhares de homens tinham lutado, sofrido e morrido para manter as fronteiras da pátria? Que soma de sacrifício, de fé, esperança e coragem havia sido necessária para que o Brasil continuasse como território e como nação? [...] A essas reflexões o espírito de Tônio se enchia de quadros e cenas, vultos e clamores. Ele via o primeiro trigal e a primeira charqueada. Pensava na solidão das fazendas e ranchos perdidos nos escampados, nas mulheres de olhos tristes a esperar os maridos que tinham ido para a guerra ou para a áspera faina do campo.... Cresceram as cidades e os cemitérios. Os primeiros trilhos da estrada de ferro foram deitados no solo do Rio Grande. Ergueram-se os primeiros postes telegráficos. E o vento levou para as nuvens a fumaça das locomotivas... (VERISSIMO, 2005, p. 378). No ensaio “O continente: um romance de formação? Pós-colonialismo e identidade política”, Maria da Glória Bordini (2004, p. 67) esclarece que Erico Veríssimo inicia, em 1947, o livro O tempo e o vento. Previsto para ter um só volume, com aproximadamente 800 páginas, chamar-se-ia Caravana, e seria escrito em três anos. Acabou ultrapassando as 2.200 páginas, sob a forma de trilogia, consumindo quinze anos de trabalho. O continente, primeiro livro de O tempo e o vento, é finalmente publicado, em 1949. Dividido em cinco partes – “A fonte”; “Ana Terra”; “Um certo capitão Rodrigo”; “A teinaguá”, “A guerra” e “Ismália Caré” – interligadas por episódios e por um elemento central que é “O Sobrado”. O romance narra a história da formação do Rio Grande do Sul e também da família Terra Cambará e foi muito elogiado pela crítica. O mesmo não aconteceu com o segundo livro. Lançado em 1951, O retrato não é tão bem recebido como o primeiro livro. A propósito de O retrato, vejamos o que foi escrito a seu respeito. Segundo Flávio Loureiro Chaves, biógrafo de Erico Veríssimo: 23 [...] Sérgio Buarque de Holanda [...] que tinha escrito uma crítica altamente positiva a O Continente. Quando sai O Retrato, ele publica uma análise devastadora, na qual diz literalmente o seguinte: “Não se pode construir Roma ubi Troia fruit (no lugar em que estava Troia)”. Wilson Martins faz a mesma leitura. Mas a obra não caiu. O projeto de O Tempo e o Vento é a crônica do Rio Grande, que começa no século 18 como epopeia e se degrada na corrupção política do Brasil. Trata-se de uma obra que sempre foi mal avaliada, ou por acharem que era uma epopeia (e não o era), ou por considerarem que a epopeia da primeira parte não se sustentou na segunda e na terceira (CHAVES, entrevista ao Jornal Zero Hora, 14/12/2012). O próprio Erico Veríssimo pareceu concordar com tais opiniões, como pode ser observado em Solo de clarineta: A despeito do prazer com que o escrevi, achei-o literariamente inferior a O continente. Para principiar, falta-lhe o elemento épico. Nas críticas que se fizeram a esse segundo volume da trilogia, notei um tom quase generalizado de desapontamento. Sérgio Buarque de Holanda escreveu um ensaio crítico muito simpático sobre O retrato, no qual, no entanto, não escondeu sua decepção ao comparar esse livro com O continente sobre o qual manifestara publicamente seu entusiasmo. Conclui o artigo com a reflexão de que meu erro talvez tenha sido o de querer construir outra cidade ubi Troia fuit. Diante disso restou-me o consolo, ou melhor, a ilusão de ter construído Tróia” (VERÍSSIMO, 2005, p. 278 - 279). Merece atenção o fato de o segundo livro da trilogia ter sido subavaliado, tornando-a um material fecundo para investigações. A despeito desse assunto, Luis Fernando Verissimo, nas publicações acerca do cinquentenário da trilogia declarou: Em O tempo e o vento não se sabe o que é mais espantoso, a ambição do autor ou o fato de que conseguiu realizá-la. É o único exemplo que eu conheço na literatura mundial de uma obra que se dobra sobre si mesma, se olha e se desmitifica enquanto está sendo feita. O terceiro volume da trilogia é uma repetição do primeiro, com o épico sendo substituído pelo introspectivo, e o admirável é que nem o épico é falso nem a introspecção que o desmente é menos, bem épica. Acho que nunca se deu a devida atenção à carpintaria revolucionária de O tempo e o vento (VERISSIMO, 2000, p. 22). O arquipélago, terceiro livro da trilogia O tempo e o vento, começa a ser escrito em 1958 e, devido ao frágil estado de saúde do autor, vitimado por um 24 ataque cardíaco, foi lançado quinze anos mais tarde, em 1962. Os fatos narrativos ocorrem entre 1937 e 1945. Neste trabalho pretendemos delimitar o corpus, especificamente, os volumes de O retrato e O arquipélago, já que nosso enfoque será a análise das personagens Rodrigo Terra Cambará e Floriano Terra Cambará. O retrato traz a gênese da personagem Rodrigo Terra Cambará, a sua formação desde jovem até a construção de sua personalidade, por diferentes pontos de vista. Todas essas questões irão se desdobrar no tomo final de O arquipélago, sendo essenciais para o desfecho da obra. O que Rodrigo era, tornou-se e gerou, redundará no próprio O tempo e o vento, pois, como salientamos, as últimas linhas de O arquipélago são as primeiras linhas de O continente, escrito por Floriano Terra Cambará. Fulcro da temática Uma das necessidades fundamentais do homem é dar sentido ao mundo e a si mesmo. Por esse motivo, ele procura e suscita respostas satisfatórias, não só para buscar algum sentido sobre os acontecimentos que observa e vivencia, mas também para se conhecer. A literatura permanece como veículo primordial para esse diálogo. O texto literário transita pela esfera do real – expressando-o, interpretando-o – e do imaginário. Massaud Moisés afirma que a linguagem literária “diz explicitamente certas coisas do homem e da vida humana” (1987, p. 35). Portanto, é por meio da Literatura que o homem busca conhecimento sobre as coisas do mundo e tenta apreendê-las. Para Regina Zilberman, “é por meio da Literatura que o indivíduo abandona temporariamente sua própria disposição e preocupa-se com algo que até então não experimentara. Traz para o primeiro plano algo diferente dele, momento em que a vivencia como se fosse ele mesmo. ” (1999, p. 84). Em outras palavras: a literatura pode desvelar o homem, e os conflitos dele consigo mesmo. Maria Correa Silva diz que “[...] um texto literário é bom porque é bem escrito, porque trabalha a linguagem de forma criativa, porque utiliza ‘os espaços em branco’ para enriquecer as possibilidades de leitura e permite que o social 25 trabalhe em conjunto com outros elementos como os psicológicos, linguísticos, religiosos dentre outros [...]” (SILVA, 2003, p. 123, grifo nosso). Tais considerações são relevantes para justificarmos o tema escolhido: o duplo na literatura, torna-se um assunto instigante, porque questiona a vida do homem, uma vez que está relacionado à construção da sua identidade. Com origem na Antiguidade Clássica, a temática expande-se até a atualidade, encontrando terreno inexaurível em vários momentos da literatura, como, por exemplo, a literatura fantástica do século XIX, uma vez que esse gênero se sustenta da incompreensão de um fato que não pode ser explicado racionalmente. Esse tipo de texto literário permite que se explorem episódios insólitos e inexplicáveis, como o desdobramento da personalidade e a existência do duplo. No entanto, o tema do duplo, como mencionamos, não se restringe só ao fantástico ou ao horror, mas transita, também, pelas literaturas moderna e contemporânea, nas quais está centrado o nosso objeto de estudo. Circunscreve- se nesses casos à questão da identidade do homem moderno: quem é esse ser? A duplicidade desvela especialmente os embates entre o eu e o outro, os conflitos inerentes ao homem, à sua fragmentação, às tensões que constringem a sua existência de ser cindido. Diante do exposto, constatamos um confronto de posicionamentos a respeito da produção literária de Erico Verissimo, especialmente entre a crítica coetânea ao autor e a do final do século XX e começo do XXI. Partilhamos do entendimento da crítica atual que reconhece um trabalho literário consistente desenvolvido por Erico Verissimo. Nossa hipótese de pesquisa é a de que em O retrato e em O arquipélago, livros de O tempo e o vento, há uma preocupação do escritor em dar densidade ao protagonista Rodrigo Terra Cambará, o que o distingue de uma personagem que funciona apenas como força que movimenta a ação, como é comum nas narrativas dos contadores de histórias. O objetivo do nosso trabalho é investigar como a duplicidade do sujeito se manifesta entre as personagens Rodrigo Terra Cambará e Floriano Terra Cambará nos volumes de O retrato e de O arquipélago. Cada personagem desdobra-se em três: Rodrigo Terra Cambará – na sua autoconsciência, no Retrato e no seu filho Floriano Terra Cambará. Floriano, por sua vez, desdobra- se no Outro, no espelho e no pai. 26 Para atingir esses objetivos, serão de fundamental importância as elaborações teóricas do Círculo de Mikhail M. Bakhtin para o estudo da personagem que versam sobre o dialogismo, ideologia, discurso individual e coletivo, passando pela questão da identidade. Como suporte teórico para examinarmos o duplo, utilizaremos também autores que transitam pela filosofia, como Clément Rosset, pela psicologia e psicanálise, como Otto Rank, Sigmund Freud, Carl Gustav Jung, ao lado de outros estudiosos que complementarão as referências teóricas nesta dissertação. Apresentaremos, portanto, uma abordagem da obra verissiana sob duas perspectivas: à luz da filosofia da linguagem – já que se trata de um objeto estético –, e à luz das teorias psicanalíticas – já que a literatura reflete os anseios e conflitos do homem moderno. Desse modo, analisaremos quais posicionamentos enunciativo-discursivos o protagonista assume na narrativa para evidenciar a duplicidade do sujeito. Observaremos que tal desdobramento se torna estratégia de autoconhecimento e, ao mesmo tempo, se dá como projeção identitária no outro. Examinaremos a manifestação do duplo como representação artística dos conflitos que configuram a psique humana: subjetividade/objetividade, igualdade/diferença, bem/mal, racional/selvagem, antigo/moderno, passado/presente, individual/social, urbano/rural, beleza/feiura, efemeridade/permanência, entre outros. O tratamento em duas perspectivas teóricas distintas também é um aspecto que consideramos relevante. Embora os teóricos mencionados acima adotem juízos diferentes no exame do duplo, será possível conciliar esses estudos, uma vez que a maioria admite certa correspondência quanto a algumas representações assumidas pelo tema que, em geral, tem se apresentado por elementos como: sósias, irmãos (gêmeos ou não), pai e filho, a sombra, o reflexo, a imagem captada pelo quadro/retrato/fotografia, a autoconsciência, e consideram que o duplo é gerado como consequência da relação eu /outro. Cabe ressaltar que Erico Verissimo era um ávido leitor – conforme pode ser constatado em suas memórias nas páginas de Solo de clarineta – que se interessava em estudar algumas teorias psicanalíticas. Leu várias obras de Freud, entre elas O estranho e Totem e Tabu, além de Melanie Klein, Inveja e gratidão. Na obra O arquipélago, (2004, p. 25) aparece, por exemplo, o termo 27 Doppelgänger (será explicitado mais adiante). De acordo com Luiz Carlos Meneghini, psicanalista e amigo do autor, essa curiosidade devia-se ao fato de preocupar-se com a verossimilhança de suas personagens, “penetrando no inconsciente e no mundo interno onde convivem os contraditórios e o Bem caminha a par com o Mal” (1990, p. 59). Ou seja, não foi por acaso que as personagens examinadas entram em conflito, são contraditórias, têm receio de ver a sua personalidade revelada, de não se perceberem como autossuficientes, aptas a tomarem o controle de si. O próprio autor discorre acerca dos contraditórios do indivíduo como podemos comprovar: A gente bota um espelho, e fica com o outro do espelho, que é o outro eu. [...] se a gente coloca um espelho diante de si, a gente se multiplica por muitos. E aí aparecem todas as contradições. [...]comecei a descobrir aos poucos, através das ações que foram aparecendo, os diversos eus que tenho dentro de mim e dos quais eu sou a síntese. É claro que predomina sempre um. Tem o superego, [...] o id[...]. E tem, finalmente, uma série de outros eu, maiores ou menores. Uns, às vezes, prevalecem sobre os outros. Mas há uma constante. Que se revela no temperamento de uma pessoa (VERISSIMO, 2003, p. 42, grifo nosso). A justificativa pela escolha desse corpus reside no intento de mostrar a importância da contribuição do escritor para a literatura nacional em virtude de criar uma obra que não se restringe apenas ao universo regional, mas também apresenta a complexidade do ser humano, dividido entre diferentes apelos, sofrendo as tensões que lhe cobram um autoquestionamento diante do mundo e de si mesmo, humanizando-se. Desse modo, embora não ocupem lugar de destaque entre a crítica, as obras O retrato e O arquipélago possibilitam-nos descortinar temáticas que se constituem na humanidade as quais merecem ser trazidas à luz. A obra literária, por apresentar o cenário de uma época e o modo como esse ser vê o seu mundo e a si, constitui um meio para compreendermos o homem em suas dimensões mais abrangentes e verdades mais íntimas. A dissertação desenvolver-se-á em três capítulos. O primeiro capítulo “Dos Conceitos de Bakhtin às teorias psicanalíticas” está dividido em três seções: Na seção 1, O fenômeno do duplo no romance: um espelho do homem moderno, prelecionaremos brevemente acerca das percepções que se tinham do herói antigo e a que se tem do herói moderno. Expomos, ainda, algumas teorias sobre 28 o romance a fim de referendar o motivo de a literatura ser objeto profícuo de análise. Na seção 2, Alguns conceitos bakthinianos, discorreremos sobre alguns conceitos propostos por Bakhtin e Voloshinov, tais como o dialogismo, a construção do herói, a questão da identidade do sujeito e a relação do Eu e o Outro, que serão de suma importância, já que a palavra é o material semiótico da consciência e é proferida de alguém para o outro. Ademais a identidade do sujeito é construída a partir de discursos alheios em um determinado momento histórico e em um determinado espaço. Na seção 3, Teorias sobre o duplo, enfocaremos alguns conceitos da psicanálise considerados relevantes para a nossa investigação. Como suporte teórico, utilizaremos autores que transitam pela filosofia, como Clément Rosset, pela psicologia e psicanálise, como Otto Rank, Sigmund Freud e Carl Gustav Jung, que se debruçaram sobre o tema do duplo. A análise centra-se em torno do problema do desdobramento da personalidade, da fragmentação e da busca da identidade. Veremos que tanto pelo viés da filosofia da linguagem, quanto pela psicanálise, pode-se dizer que a manifestação do duplo está relacionada diretamente com a busca da identidade a partir da alteridade, uma vez que o sujeito só se constitui na relação com o Outro. O segundo capítulo desta dissertação denominado “Manifestação do duplo na construção do protagonista: diferentes perspectivas” foi subdividido em quatro seções: Na seção 1, O entrecruzar de discursos, aplicaremos os conceitos do Círculo de Bakhtin que dizem respeito à formação da identidade na análise dos diferentes discursos das personagens e como esses discursos são representativos na formação da consciência e autoconsciência. Trataremos também do conceito de cronotopo, exotopia e olhar extraposto em alguns excertos da obra, uma vez que o romance reflete e refrata as vozes sociais em um determinado tempo/espaço. Na seção 2, O retrato de Rodrigo Terra Cambará: o eu na fronteira, discutiremos especificamente a questão do duplo proposto por Bakhtin em Estética da criação verbal, e da formação da consciência e autoconsciência da personagem, apoiando-nos na obra Problemas da poética de Dostoievski. Nessa seção examinaremos também os confrontos, os posicionamentos das outras personagens, sobretudo de Dom Pepe, o executor da obra-prima. Na seção 3, O Retrato: o duplo antagônico de Narciso, passaremos a analisar a personagem sob o viés da psicanálise, especificamente 29 acerca do narcisismo, da construção do ego, da persona e da sombra, da relação entre o duplo idêntico e o duplo antagônico. Na seção 4, As múltiplas faces de Rodrigo Terra Cambará segundo as perspectivas psicanalíticas, examinaremos como se dão os desdobramentos de Rodrigo e a percepção do sujeito para si e para os outros e os duplos de Rodrigo: o Retrato, Floriano e a sua consciência. O capítulo 3, “Olhares sobre Floriano e apreensão de sua alma”, apresenta três seções e faremos o mesmo percurso do capítulo anterior. Na seção 1, Floriano, o eu na fronteira, examinaremos a duplicação da personagem sob a perspectiva da Filosofia da Linguagem examinando como se dá constrói e duplicação de Floriano no que tange aos aspectos da consciência e autoconsciência do herói, conforme fizemos no capítulo 2. Na seção 2, Floriano: o duplo de Rodrigo, segundo a perspectiva psicanalítica, analisaremos a duplicação de Floriano no espelho, norteando-nos sob o prisma da psicanálise a fim de esclarecer os conflitos de identidade do herói moderno. Na seção 3. Floriano: Jano olhando para frente, finalmente explicaremos como Floriano e Rodrigo fundem-se, gerando os duplos. 30 1 Dos Conceitos de Bakhtin às teorias psicanalíticas 1.1 O fenômeno do duplo no romance: um espelho do homem moderno O romance é um espelho que passeia por uma grande estrada. Stendhal Ao explanarmos acerca do romance, parece-nos imprescindível relembrar a figura dos heróis presentes nas mais remotas obras literárias. Embora o romance seja um gênero mais recente, ele se filia à epopeia da Antiguidade Clássica. Em cada época, e a seu modo, a literatura narra os grandes feitos de seres idealizados e dotados de grandes virtudes. Em contextos específicos, o mundo grego e romano criaram os heróis, símbolos de seu povo ou de sua cultura. Nesse sentido, encontramos filhos de deuses unidos a seres humanos que apresentavam uma faceta sobrenatural (infalível e imortal), e humana (falível e mortal). Aquiles, Ulisses, Perseu, reconhecendo as suas fraquezas, realizavam toda sorte de proezas a fim de comprovarem a sua força e seu caráter. Na Idade Média e na Renascença aparecem os heróis de carne e osso que enfrentavam situações de perigo, de conflitos, de guerras. Não sendo filhos de deuses, possuíam virtudes acima da média e defendiam ideais de liberdade, paz, justiça, realizavam grandes feitos em prol da humanidade carente de salvação, como os cavaleiros da Távola Redonda e o carismático Dom Quixote. Todos eram movidos pela honra e pelo desejo de se tornarem heróis por seus grandes feitos. Ao comparamos o herói clássico ao herói moderno, verificaremos que há um distanciamento tanto no que diz respeito ao conceito de herói quanto no papel que ele representa na contemporaneidade. Algumas teorias do romance são importantes para compreendermos a figura do herói moderno, cerne deste trabalho. O romance, como forma de expressão artística surge por volta do século XVII, com a ascensão da burguesia, e uma de suas principais características é a preocupação com os conflitos político-sociais e os conflitos internos do homem. Segundo Aguiar e Silva, “estuda-se a alma humana, ou seja, os conflitos internos 31 que perpassam a realidade do ser humano”. (AGUIAR E SILVA, 1983, p. 671). Alguns teóricos como Georg Lukács, Walter Benjamin e Mikhail Bakhtin relacionam as mudanças estruturais do gênero às transformações ocorridas na sociedade. Em 1920, em sua obra Teoria do romance, Lukács propõe uma análise do comportamento humano nas sociedades grega e ocidental. A idade moderna surge, em oposição à sociedade grega, com aspecto extremamente angustiante, individualista e complexo, buscando a totalidade do ser. Diferentemente do mundo grego ─ no qual havia um equilíbrio entre Homem e Mundo ─, o mundo moderno rompe com esse equilíbrio, revelando a busca da totalidade em meio a um ambiente fragmentado e caótico. Para o teórico, o herói moderno seria um indivíduo problemático, “um indivíduo que está em luta com o mundo que ele não conhece completamente, nem é capaz de dominar” (LUKÁCS apud AGUIAR E SILVA, 2009. pp. 179-180). Desse modo, o romance “é a forma de aventura própria da interioridade; seu conteúdo é a história da alma que sai a campo para conhecer a si mesma, que busca aventuras para por ele ser aprovada e, pondo- se à prova, encontrar a sua própria essência” (LUKÁCS, 1963, p. 91). Entre 1930 e 1940, Walter Benjamin baseia a teoria do herói a partir do ponto de vista do narrador. Para o teórico, a arte de narrar na esfera da modernidade encontra-se em crise, devido à falta de comunicação entre as pessoas. Assim, o autor não tem mais onde buscar as ideias para as suas narrativas. Isolado, torna-se o novo herói da modernidade, pois, por meio de sua obra, exprime seu posicionamento de perplexidade frente à vida. Além do mais, esse novo herói passa a ser o homem comum, que caminha, observa, faz considerações e, devido a sua insegurança em relação à realidade adversa, isola-se, tornando-se melancólico e destituído de sonhos. A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los. Escrever um romance significa, na descrição de uma vida humana, levar o incomensurável a seus últimos limites (BENJAMIN, 1994, p. 201). 32 Theodor Adorno, indo pelo mesmo preceito de Benjamin, chama a atenção para o que ele denomina de nova barbárie da sociedade moderna: a alienação do homem e a maquinização das relações humanas impostas pelo sistema capitalista, ou seja, o sujeito passa a ficar à mercê do progresso e da tecnologia, tornando-se escravo das máquinas e de um sistema massificador, representado por uma sociedade, cujas engrenagens precisam funcionar bem. Quando Lukács, em sua teoria do romance, há quarenta anos atrás perguntou se os romances de Dostoiévski eram as pedras basilares das narrativas futuras, caso já não fossem eles mesmos essas narrativas, então efetivamente os romances de hoje que contam – aqueles em que a subjetividade liberada passa da força de gravidade que lhe é própria para o seu contrário – se assemelham a epopeias negativas. São testemunhas de um estado de coisas em que o indivíduo liquida a si mesmo e se encontra com o pré-individual, da maneira como esse um dia pareceu endossar o mundo pleno de sentido. Estas epopeias partilham com toda a arte presente a ambiguidade de que não compete a elas decidir se a tendência histórica que registram é recaída na barbárie ou, pelo contrário, visa à realização da humanidade – e algumas sentem-se demasiado à vontade no barbarismo [...] (ADORNO, 1983, p. 273). Para Mikhail Bakhtin, em Questões de literatura e estética: Teoria do romance, o romance “é o único gênero que ainda está evoluindo e é o único gênero nascido e alimentado pela era moderna da história mundial” (BAKHTIN, 2014, p. 398). Segundo o filósofo da linguagem, ao contrário dos outros gêneros da Antiguidade Clássica, o romance não apresenta forma definida, e sim estrutura mista. Surgiu, então, como forma de renovar os conteúdos, a linguagem e o estilo, adequando-se às exigências da modernidade e do indivíduo moderno. O romance é um gênero em que nada é fixo: nem tempo, nem as personagens, nem a própria forma romanesca. Segundo Bakhtin, “o romance romancizou os demais gêneros resultantes, em maior ou menor grau, ou seja, as linguagens convencionais dos gêneros canônicos começam a ter uma ressonância diferente” (BAKHTIN, 2014, p. 399). Para o teórico russo, o romance é um gênero inacabado, está sempre em evolução, uma vez que reflete mudanças da realidade, acompanhando as transições e adequando-se a elas. 33 O romance é o único gênero em evolução, por isso ele reflete mais profundamente, mais substancialmente, mais sensivelmente e mais rapidamente, a evolução da própria realidade [...] é o único gênero nascido naquele mundo em que tudo é semelhante a ele. Deste modo ele contribui para a renovação de todos os outros gêneros [...] por meio de sua própria evolução e pelo seu próprio inacabamento (BAKHTIN, 2014, p. 400). Bakhtin afirma que a literatura é onde o contexto da vivência espaço- tempo é representado. A literatura tanto diz sobre o real, quanto o real é dito na Literatura, num processo constante de renovação. Na literatura, [...] a obra e o mundo nela representado penetram no mundo real enriquecendo-o, e o mundo real penetra na obra e no mundo representado, tanto no processo da sua criação como no processo subsequente da vida, numa constante renovação da obra e numa percepção criativa dos ouvintes-leitores (BAKHTIN, 2014, p. 358). Até aqui pretendemos esboçar de maneira breve alguns posicionamentos acerca da teoria do romance abordados por aqueles teóricos ao longo das décadas de 20 a 40 do século XX. Destacamos que o romance moderno tem a preocupação de mostrar a busca de valores que foram se perdendo ao longo da história. O herói moderno não se destaca mais pelas suas façanhas ou virtudes heroicas, ele é mais humano. É um ser individual, partido e hesitante cuja missão é se aventurar pelo desconhecido em busca da sua própria essência. Como consequência, o herói está em constante busca de si mesmo; é um ser dividido entre um ‘eu’ (ego) e um ‘outro eu’ (alter ego). A cisão do ser, a personalidade oscilante, o universo conflituoso do homem moderno e a busca da identidade foi um tema muito explorado na literatura no século XIX. Nesse sentido, o tema do duplo se inscreve nas narrativas e nelas desvela as contradições humanas e sociais. Como não poderia deixar de ser, já que se trata de um romance moderno, esse conflito ontológico também será observado na obra de Érico Veríssimo. Verificaremos que um dos problemas que marcam a obra é o da identidade das personagens fulcrais Rodrigo Terra Cambará e Floriano Terra Cambará. 34 1.2 Alguns conceitos bakhtinianos A produção teórica de Bakhtin pode se mostrar eficiente para nossa investigação uma vez que, para o estudioso, a palavra se reveste de uma dimensão social e, por conseguinte, se estende à linguagem que oferece a imagem que o sujeito da enunciação tem de si e do mundo. O romance, para Bakhtin, é espaço privilegiado. Nele, o homem, sua linguagem e seu mundo representam-se por meio de diversos discursos sociais que se desenvolvem no tempo/espaço da experiência humana. É a representação da voz na figura “dos homens que falam, discutem ideias e procuram posicionar-se no mundo” (MACHADO, 2005, p. 153), portanto é o simulacro do real. Desse enfoque, parece-nos ser de grande relevância apresentar algumas elaborações teóricas da obra bakhtiniana que nos orientarão para o estudo das personagens, como o dialogismo, ideologia, discurso individual e coletivo, construção da identidade, relação eu-outro. Em seguida, articularemos tais fundamentos com o exame das obras O retrato (2004) e O arquipélago (2004), de Erico Verissimo. É importante ressaltar que Bakhtin em sua obra Estética da criação verbal faz várias considerações acerca da pintura, do espelho e da fotografia a fim de levantar aspectos da relação eu / outro. Em outra publicação intitulada Problemas da poética de Dostoiévski, o autor analisa a questão do duplo nas narrativas de Dostoiévski, “a presença de vozes que se espelham, que se mimetizam, que se antagonizam, expondo os conflitos existentes entre o mesmo e o outro” (BRAIT, 2001, p. 13). Em Problemas da poética de Dostoiévski, Bakhtin apresenta um novo conceito de literatura que compreende a palavra como objeto atravessado pelos discursos. Nessa obra, ele examina como se dão esses diálogos com os textos da cultura e introduz um novo procedimento narrativo que implica uma novidade no ponto de vista autoral e na representação das personagens: a polifonia. Mikhail Bakhtin dedicou a vida à reflexão sobre noções, conceitos e categorias de análise da linguagem com base em discursos cotidianos, artísticos e filosóficos. Ele considerava que não existia uma verdade única, era contra as teorizações. 35 Bakhtin e seu Círculo dialogaram com as principais correntes de pensamento de seu tempo. Na Rússia da década de 1920, tinham destaque as teorias de Karl Marx (1818-1883), com as quais o Círculo queria contribuir no tocante à criação ideológica e à construção da consciência. Para os estudiosos, impunha-se a questão crucial que diz respeito à natureza social da enunciação, bem como à relação entre a linguagem e a consciência, ou, em outros termos, à questão concernente aos quadros axiológicos do sujeito como elementos determinantes de sua linguagem. A língua sofre influências do contexto social, da ideologia dominante e da luta de classes. Por isso é, ao mesmo tempo, produto e produtora de ideologias. Em Marxismo e filosofia da linguagem (2009), os autores concebem que todo signo é vivo e é um fragmento material da realidade. O signo e a situação social estão indissoluvelmente ligados. Tudo que é ideológico possui um significado e tudo que é ideológico é um signo. Os signos refletem e refratam a sociedade e estão sujeitos aos critérios de avaliação ideológica. Sem signos não existe ideologia. Todo fenômeno que funciona como signo ideológico possui uma materialidade: “toda a imagem artístico-simbólica ocasionada por um objeto físico em particular já é um produto ideológico” (BAKHTIN; VOLOCHINOV, 2009, p. 31). A palavra é um signo, pois é o material semiótico da consciência, que se transmuta em significado e adquire significação; no entanto, ela não substitui nenhum signo ideológico. Os signos só emergem, decididamente, do processo de interação entre uma consciência individual e uma outra. E a própria consciência individual está repleta de signos. A consciência só se torna consciência quando se impregna do conteúdo ideológico (semiótico) e, consequentemente, somente no processo de interação social. [...] (BAKHTIN; VOLOCHINOV 2009, p. 31). [...] tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo fora de si mesmo. Em outras palavras, tudo que é ideológico é um signo [...] e passa a refletir e refratar a realidade[...]” (BAKHTIN; VOLOCHINOV 2009, p. 34). Usando a figura do deus Jano, Bakhtin e Volochinov demonstram que a palavra contém duas faces: ela procede de alguém e é dirigida a alguém; logo, é por meio dessa interação que a relação eu/outro se constitui. Uma elocução 36 escrita ou falada sempre expressa um ponto de vista e é a partir dele que moldamos os valores como formas, no caso, com as palavras. Na realidade, toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apoia sobre mim numa extremidade, na outra apoia-se sobre o meu interlocutor (BAKHTIN; VOLOCHINOV, 2009, p. 113, grifos do autor). A palavra do outro funde-se na nossa palavra e no mesmo momento em que ela é direcionada a nós, já se constrói uma réplica. No dicionário, ela é neutra, pois encontra-se sem uso, mas, no momento em que fazemos escolhas lexicais, em um enunciado concreto, nós a semiotizamos. Em cada contexto sócio-histórico a palavra terá um significado, uma vez que a língua se ressignifica, interagindo com outros enunciados, em constante mudança. Por conseguinte, a palavra está impregnada de conteúdos ideológicos, o que significa que as relações por meio da linguagem são feitas de signos e são depósitos de valores. As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios. É, portanto, claro que a palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais, mesmo daquelas que apenas despontam, que ainda não tomaram forma, que ainda não abriram caminho para sistemas ideológicos estruturados e bem formados. A palavra constitui o meio no qual se produzem lentas acumulações quantitativas de mudanças que ainda não tiveram tempo de adquirir uma nova qualidade ideológica, que ainda não tiveram tempo de engendrar uma forma ideológica nova e acabada. A palavra é capaz de registrar as fases transitórias mais íntimas, mas efêmeras das mudanças sociais (BAKHTIN; VOLOCHINOV, 2009, p. 41 grifos do autor). A palavra que o indivíduo emite não produz sentido no vazio, sozinha. Ela está veiculada a si própria e ao outro, é o que Bakhtin chama de enunciação concreta que é, por sua vez, determinada pelas relações sociais e só existe na 37 relação eu/outro. A identidade, portanto, se constrói mediante a relação com o outro. Nós somos o que somos para o outro e por intermédio dele. É importante ressaltar que o dialogismo está presente também nos pensamentos, ele acontece na relação eu/comigo. O ser humano dialoga consigo mesmo por meio da consciência. A palavra, portanto, é o material semiótico da consciência, já que esta não poderia ser exposta a não ser por palavras. Ademais, “consciência só se torna consciência quando impregnada de conteúdo ideológico” (BAKHTIN; VOLOCHINOV, 2009, p. 34). Toda tomada de consciência implica um discurso interior. Para elaborar um enunciado, o indivíduo pensa: signos diferentes, conteúdos ideológicos divergentes, revisita o passado, ressignifica fatos que ficaram marcados na memória, projeta o futuro, enfim, promove um diálogo interno antes de enunciar a palavra. Ao enunciá-la ele instaura o outro. Pode-se dizer que esse movimento gera outros sujeitos, em um contínuo vir a ser. Eu não sou o eu, mas o eu e tu, pois sou a fusão de diversas vozes sociais que, por sua vez, localizam-se em um determinado tempo e em um determinado espaço. Ainda em Marxismo e filosofia da linguagem (2009), para Bakhtin e Volochinov, o diálogo só é possível entre as diversas vozes sociais – que podem ser reais ou virtuais – com diferentes pontos de vista acerca do mundo. O discurso é sempre orientado para um sujeito e para a sua provável réplica. As relações dialógicas resultam desses dois encontros: entre o discurso do locutor e o outro. Em outras palavras, o indivíduo elabora seu discurso e escolhe o que e como dizer, já prevendo a resposta do interlocutor. Fiorin (2008) explica que na existência do ser humano atuam o presente (os múltiplos enunciados em circulação), o passado (discurso da tradição) e o futuro (enunciados que falam das utopias da contemporaneidade). Nele se encontram duas forças opostas básicas num exercício constante: as forças centrífugas – que se empenham em manter as coisas desunidas umas das outras; que compelem ao movimento que desejam a mudança, a vida nova – e as forças centrípetas – que se empenham em manter as coisas juntas e unificadas, resistem ao futuro, abominam a história. O grande diálogo entre essas forças se transverbera em outras categorias de diálogos: nas relações sociais, nas classes econômicas e em culturas inteiras. 38 Diante do exposto, entende-se que “a apreensão do mundo é sempre situada historicamente, porque o sujeito está sempre em relação com o(s) outro(s)” (FIORIN, 2008, p. 25). O sujeito, ao longo de sua existência, apreende várias vozes sociais em interação de concordância ou discordância. Está sempre em relação com o mundo e com o outro em um constante vir a ser. É por isso que o conteúdo discursivo da consciência vai se alternando, as vozes são assimiladas de diferentes maneiras. “Quanto mais a consciência for formada de vozes de autoridade, mais ela será monológica (ptolomaica). Quanto mais constituída de vozes internamente persuasivas, mais será dialógica (galileana)” (FIORIN, 2008, p. 56). Segundo Faraco (2013), o sujeito, em uma situação discursiva, faz parte de uma tríade (sujeito ideológico, interação, novas vozes). A relação desses elementos é fundamental e formam a concepção de heteroglossia: há um sujeito consciente que, carregado de ideologias, interage com um outro e dá vida a novas vozes. Esse sujeito, por meio de uma atitude responsiva ativa, desenvolve novos enunciados e dá acabamento a eles. É preciso ressaltar que damos acabamento a partir de um ponto de vista condicionado ao meio social, político, religioso etc. Cada indivíduo opera no mundo em um quadro de valores, que são os princípios éticos e morais estabelecidos ao longo de sua existência e moldados de acordo com a sua história. Ele assimilará as suas verdades a partir de um filtro, e frente a uma determinada situação agirá de acordo com a sua natureza “evêntica”, nome cunhado por Bakhtin. A eventicidade diz respeito ao fato de que diante de um evento, não existe neutralidade, há sempre uma tomada de posição que será inteligível na entoação do sujeito. As palavras são moldadas e revelam como o sujeito lida com a vida e com o mundo. Essa escolha das palavras abre espaço para a atividade autoral, seja quando falamos seja quando escrevemos. Essa é a ideia de autor para Bakhtin. Na prosa literária, o teórico russo encontra elementos para exemplificar as suas formulações. A reflexão do Círculo sobre a linguagem não destacou o romance como objeto de estudo. De acordo com Irene Machado, essa eleição se deve ao fato de que "o romance só interessou a Bakhtin porque este viu nele a representação da voz na figura dos homens que falam, discutem ideias e procuram posicionar-se 39 no mundo" especialmente a prosa do autor russo Fiodor Dostoiévski (1821-1881) (MACHADO, 2005, p. 153). Segundo Fiorin, esse gênero ocupou lugar central na obra de Bakhtin, pois representava a expressão do dialogismo no seu mais alto grau, pois resulta do embate de muitas vozes sociais, dando lugar mais destacado à diversidade, à diferença, à heteroglossia. O romance permite-nos conhecer o mundo e a linguagem. [...] a obra e o mundo nela representado penetram no mundo real enriquecendo-o, e o mundo real penetra na obra e no mundo representado, tanto no processo da sua criação como no processo subsequente da vida, numa constante renovação da obra e numa percepção criativa dos ouvintes – leitores (BAKHTIN, 2014, p. 358). A produção intelectual do teórico a respeito do romance é profícua e não será possível explorar todos os aspectos de seus pressupostos. Para a nossa pesquisa enfocaremos aqueles que estão mais relacionados aos nossos objetivos e constam em algumas publicações dos livros Estética da criação verbal (2011), Questões de literatura e de estética: A teoria do romance (2014) e Problemas da poética de Dostoiévski (2013), no que tange às noções de heteroglossia, cronotopo, autoconsciência, autor/herói, exotopia, excedente de visão, acabamento, alteridade, e a personagem na obra de Dostoiévski. Em Questões de literatura e de estética: A teoria do romance (2014), Bakhtin considera que o romance é a expressão de uma percepção dialógica da linguagem, uma vez que é um gênero literário plurilinguístico e plurivocal, pois engloba uma pluralidade de vozes, de línguas, de discursos. Para o filósofo da linguagem, o romance incorpora diversos gêneros e alterna diversos estilos. Bakhtin discute a natureza do romance e estuda a sua evolução a partir de duas variáveis: a expressão da linguagem e a representação do espaço e do tempo. Sobre o primeiro, o romance é o gênero que explora melhor a heteroglossia, ou seja, as diferenças existentes em uma língua. É nesse gênero que diálogos de todos os tipos são apresentados e os falares produzem sentido. Em relação ao segundo, Bakhtin criou o conceito de cronotopo (tempo/espaço). As narrativas são cronotópicas na medida em que traduzem a sociedade e estabelecem a ligação entre o mundo real e o representado, determinando a 40 imagem do indivíduo na literatura. Quando conseguimos identificar o cronotopo de uma determinada produção discursiva, poderemos dele inferir uma determinada visão de homem. Ainda nessa obra, o filósofo da linguagem esclarece que o princípio do dialogismo até aqui exposto fundamenta-se no romance, já que é o simulacro do mundo em que vivemos: um mundo constituído por diferentes vozes e por diferentes consciências. Para Bakhtin, o romance reflete a sociedade e, ao mesmo tempo, nele são refratadas diversas vozes sociais que foram enraizadas ao longo da História. Tais vozes se defrontam e se entrechocam manifestando diferentes pontos de vista nos quais estão implícitas a visão de um mundo inacabado e uma multiplicidade de consciências. O autor e as personagens representam essas consciências do mundo real. No que tange a estas últimas, referimo-nos ao não acabamento do herói enquanto ser humano. Ao analisarmos o romance, estaremos analisando o homem no mundo. A criação estética (a obra), portanto, constitui-se em um tipo de relação humana. O que singulariza o romance – e por isso o filósofo debruçou-se sobre esse gênero – é que ele pode apresentar o lado direito e avesso do discurso. Parafraseando Faraco (2013), no mundo concreto é impossível pensar no homem fora das relações que o ligam ao outro e que se transformará dialogicamente em um outro de novos Eus, ou seja, um sujeito deve passar pela consciência de outro para existir. É dessa forma que se dá a realização da própria humanidade de si mesma quando percebida pelo outro. O eu só existe relacionado a um tu e que, por sua vez, é um tu para o outro. Isso quer dizer que cada indivíduo tem um ponto de vista em relação ao outro. Nós nos constituímos como sujeito pela relação com o outro e, na vida, essa relação opera transformações: pensamentos, opiniões, visões de mundo, consciência sempre através do outro, pelas relações dialógicas. “É impossível alguém defender a sua posição sem correlacioná-la a outras posições” (BAKHTIN, 2011, p. 297). Bakhtin definiu essa relação de alteridade. Em Estética da criação verbal (2011), ao dissertar sobre as relações dialógicas, Bakhtin não deixa de lado a autoconsciência (a consciência, como já foi citado, é ideológica), uma vez que se trata das relações (também dialógicas) eu-outro, eu-para-o-outro e o outro-para-mim. São representações que o sujeito 41 faz de si mesmo e que o outro devolve ao sujeito. Para tratar dessa questão, Bakhtin fala de dois planos da pessoa humana: o primeiro é o do corpo e o segundo é a alma. O primeiro ocupa lugar único no mundo. Para o nosso problema, é de extrema importância o lugar único que ocupa o corpo no único mundo concreto em relação ao sujeito. Meu corpo é, basicamente, um corpo interior, o corpo do outro é basicamente um corpo exterior (BAKHTIN, 2011, p. 44). Sobre a alma, Bakhtin se refere à interioridade do sujeito, que está ligada ao conceito de autoconsciência, pois é a percepção que o indivíduo tem de si mesmo. A alma é a experiência de si, não do outro. Como dois corpos não ocupam o mesmo espaço, o horizonte de um nunca coincide com o horizonte do outro, logo, não compartilham da mesma alma. Não conseguimos compartilhar exatamente o que o outro está sentindo, pois essa experiência é própria da alma de cada um. A alma é um aqui, o outro é um ali. Unindo essas duas perspectivas, ele propõe a vivência do próprio corpo como autoconsciência e aparência. Entendemos que, se o indivíduo ocupa um lugar único no mundo, então só ele é capaz de dizer da sua unicidade. Não se pode examinar o mundo com os olhos do outro. Só é possível ao indivíduo pensar e dizer sobre o seu lugar já que não se consegue enxergar o mundo pelos olhos do outro. Portanto, o fundamental compromisso humano é ato de pensar que, para Bakhtin, se põe como uma necessidade ética. Logo, a ética refere-se ao ato de comprometer-se, de arriscar-se, de assinar responsavelmente seu ponto de vista, e seu viver. Não podemos falar sobre a ética sem deixarmos de relacioná-la à estética, pois uma está em diálogo com a outra. A estética diz respeito ao acabamento do agir do sujeito. O ato estético é a reflexão elaborada, com acabamento. A concepção estética resulta de um processo que busca representar o mundo do ponto de vista da ação exotópica do sujeito, fundada nos contextos social e histórico. A estética é a forma do dizer na arte, a reflexão posterior e exotópica do ato, a fim de dar-lhe acabamento. Em “O autor e a personagem na atividade estética”, em Estética da criação verbal (2011), Bakhtin explora a ideia de acabamento quando discorre acerca da criação romanesca. Nesse ponto desenvolve sua teoria a respeito do 42 autor e a obra. É importante acrescentar, antes de adentrarmos essa questão, que o pensador diferencia dois tipos de autores: o primeiro é o autor-pessoa, que é a pessoa física; ele direciona as palavras para as vozes alheias e dá a voz ao autor-criador que é o regente do texto, responsável por cada linha e criador de uma linguagem que lhe é própria. É a voz social que dá unidade ao texto e direciona o olhar do leitor. O autor-criador é componente da obra, é parte integrante do objeto estético, “não é nem uma instância gramatical, nem uma instância narrativa abstrata do texto. É a consciência de uma consciência, uma consciência que engloba a consciência do herói e do seu mundo” (TEZZA, 2011, p. 210). Ele aparece como a apropriação de uma voz social e refrata as vozes sociais que são direcionadas como resposta a outros discursos. O autor-criador assume uma posição axiológica em relação ao seu herói. “É esse posicionamento valorativo que dá ao autor-criador a força para constituir o todo: é a partir dela que se criará o herói e seu mundo e se lhe dará acabamento estético” (FARACO, 2012, p. 38). A relação entre o autor e o herói, portanto, é um ato estético uma vez que dá acabamento à sua obra. Ele consegue isso porque está numa posição privilegiada, ou seja, ocupa uma posição exterior. Ainda em “O autor e a personagem na atividade estética”, para tratar dessa questão, Bakhtin serve-se dos conceitos de extraposição e excedente de visão que serão mobilizados para descrever a relação do autor com as personagens no romance. Considerando, ainda a atitude estética, Bakhtin, em Estética da criação verbal (2011), define a posição do autor como uma posição de extraposição em face às personagens. É preciso estar de fora, é preciso um excedente de visão para consumar o herói e seu mundo. O autor-criador conhece a sua obra e faz suas escolhas no ato de criação, excedendo ao que está disposto na textualidade. O autor não só enxerga e conhece tudo o que cada personagem em particular e todas as personagens juntas enxergam e conhecem, como enxerga e conhece mais que elas. E ademais enxerga e conhece algo que por princípio é inacessível a elas (BAKTHIN, 2011, p. 11) 43 Se transpusermos o excedente de visão ao mundo real, ele deixa de ser um ato estético e passa a ser ético, pois é somente o excedente de visão que permite completar o indivíduo naqueles elementos em que ele não pode completar-se; aqui mais uma vez está presente a noção de dialogismo. No universo bakhtiniano nenhuma voz é sozinha porque a natureza da linguagem é continuamente dupla: A palavra dita está sempre contaminada pelo olhar de fora, do outro, que lhe dá sentido, que lhe completa e que lhe dá acabamento. O excedente de visão também pode revelar os múltiplos dizeres sociais presentes na obra. O meu olhar tem uma limitação e só pode ser preenchida pelo outro (TEZZA, 2011, p. 211). A característica essencial da linguagem romanesca é o modo e a intensidade das relações entre linguagens e visões-de-mundo, entre o autor e o seu herói. O sujeito ocupa um lugar único no mundo, mas estabelece uma relação de complementariedade com o outro que lhe serve de espelho. Para discorrer acerca desse tema, Bakhtin fala dos dois planos da pessoa humana, já citados anteriormente: o do corpo e o da alma. Sobre o primeiro, ele discorre que só podemos observá-lo de fora, ou por um espelho. Sobre o segundo, ele se refere ao tempo: apenas o nascimento e a morte constituem-se num todo. Cada plano é o complemento necessário para o outro. Quando o sujeito se olha no espelho, não olha o mundo com os seus próprios olhos (uma vez que só vê o reflexo) e sim com os olhos do outro. Nesse sentido, ele nunca está sozinho diante do espelho, ou seja, há sempre um outro participante envolvido no ato da contemplação, a alma alheia. Imagina sempre como os outros o veem: faz expressões que lhe parecem agradáveis e atraentes para os outros, ou seja, não se avalia para si. Ao mirar-se no espelho, tem de passar pela consciência dos outros para se constituir. A ideia que faz de si diante do espelho é falsa e fragmentada, não diz respeito ao todo da alma, afinal, pode não gostar desse outro que está diante dele. Para tentar avaliar como os de fora o veem, ele deve ir ao lugar do outro e voltar, como se fosse um duplo. Esse afastamento pode gerar mudanças, já que o ser está em constante mudança, em um vir a ser. Um exemplo que ilustra essa questão é o texto O Mito de Sísifo, de 44 Albert Camus. Sísifo carrega a pedra montanha acima; quando a vê rolando montanha abaixo, toma a consciência de como o seu trabalho fora inútil. Nesse momento, Sísifo tem uma visão exotópica de si. [...] permanecemos dentro de nós mesmos e vemos apenas o nosso reflexo, que não pode tornar-se elemento imediato da nossa visão e vivenciamento do mundo: vemos o reflexo de nossa imagem externa; a imagem externa não nos envolve ao todo, estamos diante e não dentro do espelho [...] Nossa situação diante do espelho é sempre meio falsa [...] (BAKHTIN, 2011, p. 30). Se, por acaso, ao invés do espelho, o sujeito for retratado por um pintor, então saberá qual ideia que o outro faz dele, pois verá a sua imagem pelo olhar do outro. O artista, por sua vez, vivencia o interior do outro: seus sofrimentos, desejos, paixões, podendo idealizá-lo, compreendê-lo. A esse processo Bakhtin deu o nome de exotopia. Diante do outro, o sujeito ocupa um lugar externo: ele não pode viver a vida do outro, assim como o outro também não pode viver a dele. Para compreender o outro, o indivíduo vai até ele e volta ao seu lugar, que é único, singular e só ocupado por ele. É só do seu lugar que compreende o mundo, o outro e pode estabelecer com ele uma inter-relação. Se ele ocupar o mesmo lugar que o outro, viver as coisas que ele vive, então deixaria de pensar, expressar seu olhar único sobre as coisas e a vida que dá a possibilidade de resposta. Ser responsivo e responsável são decorrentes da exotopia que se tem em relação ao outro e essa posição é uma questão ética. O excedente de visão é o broto em que repousa a forma e de onde ele desabrocha como flor. Mas para que esse broto efetivamente desabroche na flor da forma concludente, urge que o excedente de minha visão complete o horizonte do outro indivíduo contemplando sem perder a originalidade deste. Eu devo entrar em empatia com esse outro indivíduo, ver axiologicamente o mundo de dentro dele, tal como ele o vê; devo colocar-me no lugar dele, e depois, retornando ao meu lugar, completar seu horizonte dele com o excedente de visão que desse meu lugar se descortina fora dele, convertê-lo criar para ele um ambiente concludente, a partir desse excedente de minha visão, de meu conhecimento, da minha vontade e do meu sentimento (BAKTHIN, 2011, p. 23). 45 A exotopia designa uma relação de tensão entre pelo menos dois lugares: o do sujeito que vive e olha de onde vive e daquele que, estando de fora, tenta mostrar o que vê no olhar do outro. A criação estética implica sempre um movimento duplo: o de tentar enxergar com os olhos do outro e o de retornar ao seu lugar. Bakhtin lembra-nos que, para o sujeito, assim como para as personagens, é importante o modo como os outros o enxergam, inclusive após a morte. Aliás, o nascimento e a morte são muito importantes, pois, a vida de um indivíduo abarca a existência do outro. Quando de sua morte, o todo (a vida) está acabado. E isso é uma questão de estética. A palavra do autor é dialógica em relação à da personagem; isso porque cada uma delas procede de diferentes vivências. Aquilo que constitui o campo de visão de um, excede o campo de visão do outro. Cada um, no sentido espacial e temporal tem sempre apenas um horizonte; está na fronteira do mundo onde vive – e só o outro pode completar o que falta a esse olhar. Pelo princípio da exotopia, o sujeito só pode imaginar-se, por inteiro, sob o olhar do outro, é o princípio de alteridade: o eu-para-mim se constrói a partir da relação do eu-para-os-outros (grifos conforme o autor utiliza). No vivenciamento do corpo a partir de si mesmo, o corpo interior da personagem é abarcado por seu corpo exterior para o outro, para o autor, em cuja resposta axiológica ganha encorpamento estético. Cada elemento desse corpo exterior, que abarca o interior, tem, como manifestação estética, uma dupla função – uma impressiva e outra expressiva –, a qual corresponde uma dupla diretriz ativa do autor e do contemplador (BAKHTIN, 2011, p. 56). A relação entre o autor e o herói é uma relação entre o eu e o outro, fundada na dialogia, na relação de responsividade. Um herói só pode sê-lo para outro sujeito, somente no discurso do outro, para aquele que o representa e o totaliza. O outro que está de fora é o que pode dar uma imagem acabada, e o acabamento é dar aquilo que somente sua posição permite ver e entender. Ao contrário do autor, o herói não tem um excedente de visão do todo da obra em que está inserido. “De fato, a personagem vive de modo cognitivo e ético. Seu ato 46 se orienta em um acontecimento aberto e ético da vida ou no mundo dado do conhecimento” (BAKHTIN, 2011, p. 11). Se o herói vive de modo cognitivo e ético, o autor se orienta no mundo estético. Em “A personagem e seu enfoque pelo autor na obra de Dostoiévski”, em Problemas da poética de Dostoiévski (2013, p. 81), de acordo com o pensamento de Bakhtin, no romance tradicional, como o de Tolstói, por exemplo, o herói não tem autonomia. A consciência da personagem é cerceada pela consciência do autor; as autocaracterizações das personagens são realizadas pelas descrições delas feitas pelo autor. O autor-criador fala sobre elas, ou expressa o que os outros pensam delas ou sobre a relação delas com o outro. Nos romances de Dostoiévski, por sua vez, o herói passa a ter autonomia, tem consciência de si mesmo e do mundo, tem um excedente de visão que lhe vem pela interação tensa do olhar dos outros sobre ele. Antes, o autor é que dava acabamento, este domínio em relação ao todo acabado passa a ser relativizado. As vozes do romance passam a ter mais autonomia e revelam um outro “eu para si” infinito e inacabável. O autor é o organizador e, sendo ele a “consciência das consciências”, constrói personagens que se colocam ao seu lado, podem discordar dele ou até mesmo rebelar-se. Ele é o responsável pela arquitetônica, ou seja, pela criação de um todo integrado. A narração está voltada ao leitor, mas tem-se a impressão de que está voltada ao próprio herói. A personagem interessa como um ponto de vista específico sobre o mundo e sobre si mesma, como posição racional e valorativa do homem em relação a si mesmo e à realidade circundante (BAKHTIN, 2013, p. 52). Se antes se considerava essencial o que a personagem era no mundo, isso passa a ter outro valor; em Dostoiévski “importa o que é o mundo para a personagem e o que ela é para si mesma” (BAKHTIN, 2013, p. 52). A análise da autoconsciência constitui-se elemento fundamental para evidenciarmos as diversas vozes na instância narrativa. A personagem passa a ter total independência em relação ao discurso do outro. Em Dostoiévski, o importante não é a imagem da personagem e os traços de realidade de sua ambiência descritos na obra. Importa é o valor que ela 47 mesma dá a esses traços. Todos os traços que o autor coloca para construir a personagem são objetos de reflexão de sua autoconsciência. Além do mais, os costumes e o mundo exterior são transferidos do campo de visão do autor para o da personagem: ao lado de uma dada concepção de mundo, apresenta-se outra concepção. Isso revela que a personagem tem um ponto de vista sobre o mundo e sobre si mesma expondo sua consciência e sua autoconsciência. O herói sempre está atento ao que dizem sobre ele. Há um caráter polêmico da consciência de si mesmo e das afirmações sobre si: O herói do subsolo dá ouvidos a cada palavra dos outros sobre si mesmo. Olha-se aparentemente em todos os espelhos das consciências dos outros [...] e leva em conta o ponto de vista de um “terceiro” (BAKHTIN, 2013, p. 59). Essas várias opiniões sobre si estão em suas mãos e esse herói pode torná-las inadequadas ou não, uma vez que ele detém a última palavra, pois é um herói inconcluso. Bakhtin vai examinar no discurso do herói as várias formas de presença da palavra do outro, pois o discurso dele sobre si mesmo se constrói sob a influência do discurso do outro. “A atitude do herói em face de si mesmo é inseparável da atitude do outro em relação a ele” (BAKHTIN, 2013, p. 237). Especificamente na novela O duplo, de Dostoiévski, Bakhtin vai examinar a relação Eu/Outro, em que a personagem Goliádkin trata de si como se fosse um outro. A palavra e o ponto de vista do Outro tornam-se essenciais para ele. Em um mesmo sujeito fragmentado, há duas consciências, duas vozes em fusão, duas réplicas criando uma consciência decomposta e enunciada por um só emissor. A autoconsciência do herói penetra na consciência que o outro tem sobre ele, mesmo que o outro seja o próprio sujeito. Portanto, nos romances do autor russo, o tema é a orientação do homem em relação à consciência e ao discurso do outro. O processo dialógico fundamenta-se pela interação entre as várias vozes discursivas presentes também no universo romanesco. Em Dostoiévski, o diálogo entre as personagens apresenta uma luta entre pontos de vista e juízos de valor, cada qual tenta fazer prevalecer o seu ponto de vista sobre si e sobre o mundo. Esse universo nada mais é que a representação das relações humanas: há 48 interações, pontos de vista, juízos de valor, conflitos, dúvidas, contradições – essa representação é, essencialmente, dialógica. Até aqui expusemos as fundamentações dos conceitos de Bakhtin e Volochinov para fundamentarmos a escolha do romance, objeto estético, como forma de representação da sociedade. A partir daqui abordaremos o que dizem as teorias psicanalíticas e a filosofia a respeito da construção da identidade e da relação Eu/Outro. 1.3 Teorias sobre o Duplo [...] então meu próprio reflexo no outro, o que sou para o outro, transforma-se em meu duplo, em duplo que força a entrada na minha consciência. Turva-lhe a limpidez, e me desvia de uma relação direta comigo mesmo. O medo do duplo. O homem que, em seu desejo de representar-se a sua imagem externa, habituou-se a sonhar de uma forma concreta, que se apega à impressão externa que ele provoca, sem jamais confiar nela [...] (BAKHTIN, 2011, p. 55) Não é de agora que o desdobramento do eu é tema literário. Há registros desse assunto desde a Bíblia, no Gênesis, passando pela Antiguidade Clássica. No século XVII, foi um tema fecundo na literatura romântica e no século XIX, surge, em especial, na literatura fantástica, e é retomado, inúmeras vezes, na contemporaneidade. A recorrência do tema expande-se por diferentes épocas, pois é nas artes em geral que se resgata com mais expressividade a inquietude da alma humana. A obra de arte abre-se para pelo menos dois sentidos: o que é comum e o que é imprevisível. Desse modo, a arte destrona o habitual e redireciona o nosso olhar para a possível ambiguidade das coisas. É nesse âmbito que é possível revelar a estrutura contraditória do homem. Na literatura, por exemplo, deflagra-se o que é proibido, velado. Ao irromper o que está encoberto, pode-se compreender melhor o ser humano. O tema da duplicação nos remete a alguns textos antológicos tais como O homem de areia, de E.T. A. Hoffmann, O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, 49 ou O médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson, o conto “Willian Wilson”, de Edgar Alan Poe, O duplo, de Dostoiévski. A representação do duplo pode aparecer em uma única personagem que se projeta em outra, ou a um outro que é um perfil antitético do primeiro. Mas a questão mais emblemática do duplo é a ambivalência que pode se consubstanciar sob o formato do bem/mal, bom/mau, racional/irracional, loucura/equilíbrio, belo/horrível, entre outros. Nesse contexto, a questão “emerge como personificação dos antagonismos humanos, trazendo a dualidade como uma impressão de estranheza entre os limites do racional e do irracional, do real e do supra-real, do natural e do sobrenatural, explicitando-se assim as contradições do indivíduo” (LAMAS, 2004, p. 46). Nicole Fernandez Bravo trata do tema do duplo no Dicionário de Mitos Literários, organizado por Pierre Brunel. A autora aborda cronologicamente diversas obras literárias que utilizaram o duplo na construção de suas narrativas e salienta que o termo alemão doppelgänger foi consagrado no romantismo alemão e se traduz por “duplo” ou “segundo eu” e significa “aquele que caminha ao lado, companheiro de estrada” (BRAVO, 2005, p. 261). Segundo a pesquisadora, “o duplo é uma metáfora ou símbolo de uma identidade que leva ao interior [...] O conflito essencial transfere-se para a luta por um melhor eu na escolha entre o bem e o mal” (BRAVO, 2005, p. 168). Otto Rank, em seu trabalho Der doppelgänger (O duplo), publicado na revista Imago (Alemanha, 1941), introduziu tal conceito na literatura psicanalítica. Partindo do estudo de alguns textos literários, o psicanalista chegou à conclusão de que em alguns enredos são “abordados profundos problemas humanos”, especificamente àqueles relacionados ao “eu” (KALINA; KOVADLOFF, 1989, p. 17). Rank pesquisou a origem da duplicação em várias lendas e mitos, bem como nos costumes de muitas civilizações orientais e ocidentais, e chegou à conclusão de que a manifestação do duplo tem o intuito de superar a inevitabilidade da morte, é uma maneira encontrada para se preservar do desaparecimento total. Certamente o medo justificado da morte, que é vista como um dos principais males da humanidade, tem sua raiz mais profunda no instinto de autopreservação cuja maior ameaça é a morte (RANK, p. 130, 2013). 50 O duplo é a cisão do eu, e pode se manifestar por meio de processos como a metamorfose ou o narcisismo. Ademais, pode ser representado de diversas formas: pela sombra, pela imagem no espelho, pelo retrato, pelo reflexo, pelo sósia, pelo irmão ou pelo pai. Rank cita várias fontes que também pesquisaram sobre essas representações. Segundo Negelein, “faz parte da crença no duplo, a convicção de que o espelho revela coisas ocultas, daí decorrendo o uso mágico do espelho para a predição do futuro. Dizem que em Oldemburgo, por exemplo, é possível ver o futuro no espelho colocando-se diante dele à meia noite” (apud RANK, 2013, p. 110). Em alguns povos antigos, a reprodução da imagem no espelho, na água ou no retrato está relacionada a tabus. Segundo Frazer, o medo do retrato ou da fotografia da própria pessoa é comum, podendo ser encontrado entre os esquimós, índios americanos, tribos da África Central, da Ásia, das Índias Orientais e na Europa. Eles relacionam a imagem da pessoa com sua alma e por isso temem que a reprodução em mãos alheias possa ser um meio de trazer-lhe influências danosas até mesmo a morte (RANK, 2013, p. 112). Outras sociedades julgavam que podiam morrer imediatamente se fossem reproduzidos em um retrato. Na África, acredita-se que as fotografias podem ganhar vida e perseguir as pessoas, por isso estas não ficam sozinhas em lugares em que há fotos de mortos. Segundo crenças de várias sociedades mais antigas como na Alemanha, Grécia, Rússia, Albânia, se a pessoa se deixasse pintar também poderia morrer. O reflexo no espelho e a imagem reproduzida em um retrato constituem-se duplos. Não há como falar da imagem refletida sem nos remetermos ao mito de Narciso. Ao se deparar com seu reflexo na água, encanta-se com aquele que para ele e é outro, torna-se perceptível uma existência até então invisível. Refletido, apaixona-se por si, despertando um interesse sensual que nunca experimentara. Segundo Rank, a duplicação apresenta-se como um conflito interno, um confronto que “torna reais os desejos secretos e reprimidos da alma” (2013, p. 128). O medo do duplo seria um senso de culpa (distância entre o eu mesmo e o eu ideal) que faz com que o sujeito transfira a responsabilidade de certos atos 51 egoicos para um outro. O indivíduo que se desdobra deve se proteger das perseguições de seu ego, por isso o assassinato do duplo nada mais é que um suicídio. Na literatura, o acabamento do duplo pode ser interpretado também como uma alegoria à eliminação do passado. Clément Rosset tem outro posicionamento a respeito do duplo: a duplicidade ocorre não exatamente em função da imortalidade, ao contrário, a existência do sujeito que é duvidosa. O desdobramento é a negação da vida, e isso é pior que a própria morte. O indivíduo só conseguirá reconciliar-se consigo quando exorcizar seu duplo. Para o teórico, o sentimento do desdobramento acontece apenas na sensação, pois o indivíduo é único, são os acontecimentos que se desdobram. Ele diz que “o duplo está presente no espaço de qualquer ilusão” (ROSSET, 2008, p. 23). Para discorrer sobre esse tema, apresenta pelo menos três processos de percepção do real: ou de ignorá-lo, ou enxergar somente a sua sombra, ou apoiar-se no passado. Sobre o primeiro, Rosset argumenta que é difícil para alguns indivíduos aceitar a realidade em que vivem, e fazem como fez Édipo: simplesmente furam os olhos para não enxergar, dizendo que aquilo que perseguem e julgam não existe. Uma das maneiras de se desenlaçar do real é ignorá-lo, mantendo o mesmo comportamento anterior, como se não houvessem visto nada: “Eu olhei, mas mantenho o meu ponto de vista e não mudo nada” (ROSSET, 2008, p. 16). A segunda forma de se lidar com a realidade é deixar esse real de lado e ver somente o que se quer enxergar. O iludido vê perfeitamente, mas como quer ver. Essa escolha significa que ele tem a percepção da realidade deformada: ao recusar em aceitá-la, cria duas percepções sobre o mesmo fato. A ilusão é transformar um único fato em dois fatos divergentes, uma mesma ideia em duas ideias distintas ─ uma desagradável, mas a outra “muito diferente” (ROSSET, 2008, p. 23) Rosset lembra o mito da caverna de Platão: o mundo que vemos é só a sombra daquele em que vivemos, é o seu duplo. “A imagem da realidade para o iludido, é uma interpretação enganadora do real, uma sombra” (2008, p. 61). Em uma entrevista ao jornalista Raphael Enthoven, Rosset esclarece que o indivíduo foge para uma realidade menos dura, mais suportável, e desse 52 afastamento resulta o duplo, já que passam a surgir outros mundos, outras personalidades, outras atitudes: Para escapar do medo da morte, os seres humanos fogem da realidade e de algo que não existe. No lugar do mundo como ele é, nós inventamos um duplicado ou um duplo, um universo paralelo que funciona como um fantasma rival ao mundo que existe, uma desesperada compensação pelo sofrimento que está associado com uma aceitação da realidade. Este duplicado tem todos os tipos de forma, desde o marido traído, que não suporta a verdade convencendo-se de que sua esposa é fiel, para o crítico da globalização, que pensa que ‘outro mundo’ é possível e, finalmente, incluindo a metafísica dos filósofos (ENTHOVEN, 2007). A terceira forma de fuga é apoiar-se no passado ou no futuro: o sujeito projeta a coisa de que quer se desligar para um desses tempos, pois é uma forma daquilo não ficar mais ali incomodando, o passado e o futuro apagarão o presente. “Um duplo, por piedade, parece buscar a pessoa que o presente sufoca. O duplo encontra seu lugar natural um pouco antes ou um pouco depois” (ROSSET, 2008, p. 67). Sigmund Freud, no ensaio intitulado “Das Unheimlich” (“O estranho”), publicado em 1919, retomando algumas ideias de Otto Rank, afirma que, além das representações citadas por Rank, o duplo também se constitui como a projeção do ego “como algo estranho a si mesmo” (FREUD,1976, p. 295). Antigamente, o homem acreditava ter pleno domínio de si, sem sequer imaginar que havia o inconsciente. No século XIX, o pai da psicanálise trouxe à luz que no sujeito coexistem três instâncias: o ego, o superego e o id. O primeiro é a consciência, o segundo regula a moral e os valores, e o terceiro, o nível mais profundo, é onde habita o inconsciente, o “caldeirão de pulsões”; é no id que estão escondidos os mais obscuros desejos, regulados pelo superego. Em algumas situações, essas pulsões vêm à tona e, nesse momento, o indivíduo não se reconhece, pois não crê que possa ser capaz de tal proeza, sente um estranhamento. Em seus estudos sobre o medo e o horror, Freud aponta que há situações inesperadas ou funestas, e aquilo que até então era familiar torna-se assustador, e passa a representar os fantasmas do inconsciente. Para referir-se a esse 53 assunto, após pesquisar em várias línguas, chegou à conclusão de que o termo alemão unheimlich (não familiar) seria o mais adequado por ser mais abrangente e por ser ambivalente a heimlich (familiar). Portanto, Freud usa esse vocábulo para se referir ao estranho, cujo sentido está vinculado diretamente ao que provoca medo e pavor. No entanto, o estranhamento pode vir de algo conhecido, comum, alguma coisa que ficou reprimida na mente humana e retorna provocando uma sensação desagradável. O sentimento de estranheza provém de determinadas reações que são despertadas a partir do encontro com certas pessoas, coisas, impressões sensoriais, experiências e situações. “Segundo Schelling, unheimlich é tudo que deveria ter permanecido secreto e oculto, mas veio à luz” (FREUD,1976, p. 284). O psicanalista cita também alguns textos literários, defendendo que o escritor, com sua “licença poética”, tem certos privilégios, como a liberdade de escolher o seu mundo de representação e criar “efeitos estranhos”. Ressalta que “a ficção oferece mais oportunidades para criar sensações estranhas do que aquelas que são possíveis na vida real” (FREUD, 1976, p. 308). Freud afirma que um dos fenômenos mais inquietadores relacionados à estranheza é o duplo e, dependendo das formas e graus de desenvolvimento, é percebido em três situações distintas refletidas nas personagens: duplicação – os personagens podem ser considerados idênticos porque aparecem semelhantes, iguais; divisão – o sujeito identifica-se com outra pessoa, de tal forma que fica em dúvida de quem é o seu eu; e o intercâmbio – que consiste em substituir o eu por um estranho. Para Freud, se o homem é dotado de consciência, então terá um duplo. Em outras palavras, o indivíduo passa por uma situação que não lhe é desconhecida, mas aquilo que está oculto no id vem à tona, sem a censura do superego, fato que causa estranhamento, já que o sujeito não se reconhece naquela situação. O indivíduo toma consciência ou repensa sobre si, na observação do seu duplo. Os psicanalistas Eduardo Kalina e Santiago Kovadloff, citando Freud e Melanie Klein, tratam da questão do duplo como uma cisão do ego que ocorre no momento do nascimento do indivíduo. Ao nascer, o ego, que está ligado ao mundo intrauterino, tem de tomar contato com o mundo externo. Ou seja, há 54 divisão entre o ego bom, que está ainda interno e o ego mau, que será projetado para fora. No início, as vivências do bom e do mau não são integradas, aparecendo como seres diferentes. Nos primeiros meses de vida do bebê, existem alguns momentos de integração. Mas em seguida, as partes voltam a se separar. Esse curso é contínuo e lento, dando lugar a uma personalidade madura que é aquela que mantém ou tolera todas as ambivalências. Conforme o indivíduo cresce, o ego amplia suas capacidades através das boas experiências. O núcleo sadio da personalidade se vê cada vez mais fortalecido. Isso é maturidade: a ambivalência dará lugar à racionalidade (KALINA; KOVADLOFF, 1989, p. 16). Dissociação consiste em separar o fora do dentro, passando da discriminação à integração. O indivíduo integrado é aquele que conta com bons recursos de dissociação. São aqueles que desenvolvem juízo de realidade, capacidade de síntese, entre outros. Se por um acaso houver alguma falha nesse processo, essa dissociação não consegue reverter-se, podendo dar lugar a um ego frágil que não consegue resistir às situações dolorosas e frustrantes. Em algumas situações, quando esse desenvolvimento não foi pleno, o objeto mau passa a ficar dentro e o bom, fora. Essa incapacidade de integração resulta no fenômeno do duplo, que nada mais é que uma maneira de enfrentar a realidade. Eduardo Kalina e Santiago Kovadloff argumentam que existem dois tipos de duplo: o idêntico e o antagônico: Uma das primeiras evidências da existência de um duplo é a impossibilidade que cada uma das partes dissociada experimenta para aceitar a outra. Ambas se manifestam como se não tivessem relação entre si; ou, em outras palavras, como se não fossem o verso e o reverso de uma mesma problemática. Portanto, se bem que nem toda dissociação implica no fenômeno do duplo, este exige como base facultadora um determinado tipo de dissociação. Pode-se, em consequência, afirmar que se está ante o fenômeno do duplo ─ segundo a terminologia de Otto Rank ─ sempre que a escala de valores de cada uma das partes cindidas seja incompatível com a escala da outra parte. Esta concepção do duplo antagônico não contradiz ao do duplo idêntico, pois ambas partes são necessárias no processo do fenômeno do duplo (KALINA; KOVADLOFF, 1989, p. 23, grifos do autor). 55 Kalina e Kovadloff assinalaram que Thomas Hyde, em 1700, foi o primeiro a empregar a palavra “dualismo”, na obra História da Religião dos Antigos Persas. Esse conceito foi empregado para designar a doutrina religiosa que dizia que dentro do ser havia duas forças antagônicas, o BEM e o MAL que disputavam o mesmo segmento de tempo e espaço. “É o ‘ser’ e o ‘não ser’, duas forças divergentes que, ao tentarem se separar, ou provocam a destruição de ambos ou provocam a redução de uma a outra” (KALINA; KOVADLOFF, 1989, p. 103). Carl Jung na obra O homem e seus símbolos (1961) discorre a respeito da integração eu/outro. Nessa obra, a Doutora Marie Louise von Franz, uma das colaboradoras, no artigo “O processo de individuação”, diz que é pelos sonhos que se percebem alguns aspectos da personalidade humana. Assim como Freud e Klein, Jung fala sobre o mundo interior, que é consciente, e o mundo interior, o inconsciente. O responsável pela mediação entre um e outro é o ego. Para representar os papéis sociais, o ego veste uma máscara a qual Jung chamou de persona ─ como referência às máscaras utilizadas no teatro na antiguidade ─, ela esconde a verdadeira essência do indivíduo, e expõe somente o que quer e como quer que a enxerguem, ou seja, é a imagem que o “eu” passa ao outro. Por outro lado, a persona indica que o sujeito é capaz de se relacionar com o outro, uma vez que tem a noção da representação externa da identidade e da sua responsabilidade no mundo. O eu tentará se adaptar às expectativas do outro em busca da sua valorização. O desenvolvimento da persona só é possível com o desenvolvimento do ego. O ego maduro é aquele capaz de se adaptar às suas expectativas e às expectativas sociais, imprimindo à sua persona social a sua individualidade, a sua essência. Cavalcanti (1992), ao analisar o narcisismo, diz que a personalidade narcisística constitui um falso ego, pois a persona assume o lugar dele, o outro social ocupa o lugar do individual. O narcisista identifica-se com a persona na busca da autoestima. Ele quer ser reconhecido exatamente pelo papel social que representa para os outros. É comum ao narcisista ocupar uma posição social de prestígio, pois vale o que os outros pensam dele. 56 Geralmente, a personalidade narcisística se identifica com a imagem, a persona, por não ter feito a diferenciação adequada entre o eu e o não-eu. Constituindo um falso- ego, em que a persona assume o lugar deste. A personalidade se expressa em termos de imitação estereotipada do que é esperado, numa atuação cuidadosa do papel (CAVALCANTI,1992, p. 76). Para o narcisista, o princípio da realidade está ligado à noção do eu e do outro, não tem consciência de sua responsabilidade, nega o seu eu. Ao eu negado, Jung denomina de sombra. A sombra é o outro que o ego não deseja ter nem ser. É a parte inaceitável e desconhecida do ego e projetada em outra pessoa como, o egoísmo, a negligência, as fantasias irreais, as intrigas, as tramas, a indiferença, entre outros. Portanto, seja qual for a forma que tome, a função da sombra é representar o lado contrário do ego e encarnar, precisamente, os traços de caráter que mais detestamos nos outros (FRANZ, 1999, p. 173). O eu vê no outro aquilo que nega em si e atribui ao outro, mas é uma parte que não quer admitir. Sua crença é de que só será amado se for perfeito, por isso busca ter reconhecimento e admiração pela imagem perfeita que quer que os outros tenham dele. Com isso, esconde as suas partes negativas, sua fragilidade, a vulnerabilidade do seu ego, a sua sombra. No fundo, o narcísico é frágil e inseguro, são as sombras que ele nega, dando lugar à força e poder. Esses indivíduos possuem uma excessiva preocupação com a imagem, tendem a desenvolver uma imagem impecável, impenetrável da perfeição. Atrás da imagem de perfeição, da persona, pelo medo de ser rejeitado e desamado pelo outro (CAVALCANTI, p. 79). Pode-se dizer que a teoria psicanalítica de Jung, revela a existência de um outro lado da personalidade, um lado indistinto, não muito bem compreendido porque remete aos sentimentos mais ignotos, aos atos impulsivos ou a comportamentos negativos do ser humano. Segundo o psicanalista, o “eu” geralmente não admite esses comportamentos, com a desculpa: “Não tem importância; ninguém vai perceber e, de qualquer modo, as outras pessoas são assim” (JUNG apud FRANZ, 1999, p. 198). 57 Para um ego mais estável, o encontro com a sombra pode ser doloroso, pois a estabilidade do ego está ligada à ideia de que os outros o veem de maneira positiva. Jung viu o confronto com a sombra como uma condição essencial para o encontro do “eu” verdadeiro. Além do confronto da persona com a sombra, o psicanalista discorre a respeito de outro tema, que está associado ao primeiro: anima e animus, que representam a polaridade feminina e masculina, dois opostos complementares. Relacionamos ao feminino a intuição, a receptividade, falta de preconceito, por exemplo; ao masculino relacionamos a força, o ato, o verbo. Portanto, a tendência do animus é argumentar e de anima são os sentimentos, os humores. O anima está presente na mulher e o animus no homem, cada um traz em si essa polaridade, num processo que Jung chamou de individuação. A individuação é a realização do Self, que é um sistema autorregulador que medeia as duas polaridades, e a dicotomia existente entre as polaridades implica na formação de dois sujeitos em um, isto é, em um duplo. Em cada um de nós há uma voz que escuta e a outra que responde e, muitas vezes, esse desdobramento ocorre de maneira tensa. Segundo Jung, é a maldição do homem moderno. Também versou sobre o duplo o psicanalista Carl Francis Keppler no seu livro The literature of the second self (1972). O pesquisador fez um inventário das obras que também trataram dessa questão. Verificou lendas de vários países e chegou a alguns tipos de duplos, entre eles o duplo perseguidor (o malvado) que pode ser um animal, um monstro, a imagem no espelho, o retrato, a fotografia, os gêmeos; o duplo como visão de horror (que nem sempre é perverso como o primeiro), podendo passar a ser um duplo salvador; o duplo bem-amado, que faz referência aos polos opostos atraídos por uma força magnética; o duplo temporal (também remete ao espacial), que significa estar em espaços diferentes ao mesmo tempo, por exemplo, o sujeito transita do passado para o futuro ou do futuro para o passado; o duplo tentador, com sua sutileza e persuasão, leva o seu opositor à autodestruição . Para o teórico, o duplo tem sua origem em um momento de fragilidade do indivíduo que apresenta dificuldade em aceitar o seu lado obscuro, a sua sombra, retomando Jung. 58 Keppler cita Carl Gustaf Jung e Ralph Tymms em Doubles in literary psychology (1949) e Robert Rogers em The double in literature (1970). Para esse último, o duplo na literatura é o “resultado da decomposição ou fragmentação do autor” e que “os duplos são uma projeção do seu criador, que através deles expressa e tenta lidar com seus conflitos interiores” (1972, p. 186). Tymms afirma que o duplo é dividido em duas vertentes: a psicológica – ligada ao realismo subjetivo e tratada pelos escritores românticos – e a alegórica – ligada ao mundo objetivo, é a luta entre o bem e o mal da alma humana. Para Tymms, o duplo é o lado consciente e o lado inconsciente do indivíduo e “representam perfeitamente as duas faces da cabeça de Jano”: These two aspects, then, together determine the evolution of the double; the one a product of the unconscious, and the other of the conscious mind, they appropriately present the twin faces of its Janus-head” (KEPPLER, 1972, p. 188). 2 Por fim, o duplo nada mais é que o diálogo interior entre o consciente – a persona – e o inconsciente – a sombra. Chegar ao equilíbrio é elevar a franqueza da persona e dissipar os conteúdos reprimidos pela sombra. Em uma sociedade em que certos padrões de comportamento são estabelecidos, cada vez mais o indivíduo se vê cindido entre o que ele é, o que representa e o que desconhece de si. Muitas vezes percebe-se que o homem está perdido, destituído de autonomia, aflorando as crises de identidade, ao buscar o encontro consigo mesmo, o cotejo com todos os seus temores secretos. A literatura representa a tomada de consciência dessa dualidade do “eu”, recrudescendo as contradições e hipocrisias na oposição entre a sombra e a persona que deve vestir para desempenhar seu papel na sociedade. Segundo Bravo: "Quanto mais avançamos no século XIX, mais chega ao primeiro plano – umas das características que se delineiam no romantismo – a representação do dilaceramento vivido pelo eu até em seus aspectos patológicos". (BRAVO, 2005, p. 276). 2 Esses dois aspectos juntos determinam a evolução do duplo: um, produto do inconsciente e o outro, do consciente, ambos apropriadamente presentes nas duas faces de Jano (tradução nossa). 59 Apoiados nesses fundamentos teóricos, analisaremos o duplo no corpus eleito para estudo nesta dissertação, orientando-nos tanto pela perspectiva bakhtiniana – já que a obra é um objeto estético que reflete e refrata o universo conflituoso do homem moderno – quanto pelas teorias psicanalíticas. Neste sentido, o estudo do tema do duplo pode apontar para outra forma de ler as narrativas de O retrato e de O arquipélago, livros de O tempo e o vento, de Erico Verissimo, e trazer à luz as contradições humanas e sociais inscritos nos discursos de Rodrigo Terra Cambará e Floriano Terra Cambará, personagens dos livros mencionados. 60 2 Manifestações do duplo na construção do protagonista: diferentes perspectivas Uma geração vai, e outra geração vem; porém a terra para sempre permanece. E nasce o sol, e põe-se o sol, e volta ao seu lugar donde nasceu. O vento vai para o sul, e faz o seu giro para o norte; continuamente vai girando o vento, e volta fazendo seus circuitos. – Eclesiastes1,4-6 (O continente, 2005) 2.1 O entrecruzar de discursos Analisar um romance sob uma perspectiva bakhtiniana significa debruçar-nos sobre questões como: que discursos sociais estão presentes? Como esses discursos são reveladores de uma determinada ideologia? Que signos ideológicos são encontrados? Como são caracterizadas as linguagens de personagens de diferentes grupos sociais? Que intersecção com outros discursos suas falas revelam? De que modo essas vozes atuam na composição do discurso romanesco? Como é caracterizado o herói? Como ele se vê e como os outros o veem? São muitos pontos que merecem ser investigados. No entanto, devido à extensão da obra O tempo e o vento e ao número considerável de personagens, não será possível explorarmos todos esses aspectos do romance. Pretendemos examiná-los em passagens mais reveladoras e, para tanto, enfocaremos especialmente a personagem Rodrigo Terra Cambará nos livros O retrato (2004, vol. I e II) e O arquipélago (2004, vol. I, II, III). Tendo em vista o aparato teórico apresentado no capítulo anterior, analisaremos a posição responsiva de Rodrigo Terra Cambará em face dos diferentes momentos de sua trajetória, destinando maior atenção aos pontos de tensão, dados reveladores dos seus embates ideológicos com o outro. Lembremos, ainda, que a obra foi escrita em um determinado tempo e, consequentemente, em determinado contexto histórico-social, diferente daquele do analista, o que implica uma necessidade de o pesquisador despender um esforço para compreender que estruturas sociais e ideológicas comparecem na narrativa e como o escritor as recria no âmbito ficcional. Como devemos incidir o olhar para a obra em sua totalidade, não será possível afastar os volumes em questão da primeira parte da trilogia. 61 Embora, vez por outra, possamos citar O continente (2004), deixaremos este livro da trilogia para futuras pesquisas e centrar-nos-emos no exame de O retrato e de O arquipélago, como mencionamos. Podemos dizer que O tempo e o vento (2004) tem como pano de fundo a formação territorial, étnica e econômica daquele que hoje é o Estado do Rio Grande do Sul, narrada por intermédio da trajetória da família Terra Cambará ao longo de duzentos anos. Os substantivos que denominam a trilogia, “continente”, “arquipélago” e “retrato”, são reveladores: enquanto os dois primeiros são acidentes geográficos, o outro é um objeto. O continente narra a trajetória da família Terra Cambará até a obtenção de um lugar expressivo na aristocracia rural gaúcha das primeiras décadas do século passado; é a síntese que culmina com um protagonista representativo da evolução dessa família, Rodrigo Terra Cambará. O arquipélago descreve exatamente a decadência, ou fragmentação do indivíduo (Rodrigo/Floriano), cada um em sua ilha, onde a grande massa continental fraciona- se em várias pequenas e isoladas unidades tal qual um arquipélago. O retrato, localizado cronológica e estrategicamente entre ambos os livros citados, descreve a personagem fulcral que, por causa de seus atos e omissões, conflitos e contradições, é responsável pela desagregação da família. Rodrigo, paradoxalmente, conduz a família tanto ao apogeu quanto à decadência. Entre os acidentes geográficos, “continente” e “arquipélago” situa-se O retrato, ou melhor, um quadro que exibe o jovem Rodrigo Terra Cambará em sua juventude. O retrato focaliza o bisneto do legendário Rodrigo Cambará, cuja história desenrola-se entre 1910 – seu retorno a Santa Fé, recém-formado em Medicina até 1915, ano em que uma tragédia pessoal e moral (o suicídio de sua amante grávida) abate-se sobre ele, maculando sua imagem de bom pai de família, bom filho, líder ascendente, modernizador e defensor da igualdade, liberdade e fraternidade. O livro compõe-se de quatro capítulos “Rosa-dos-Ventos”, “Chantecler”, “A Sombra do Anjo” e “Uma Vela para o Negrinho”. O primeiro e o último apresentam dois cortes temporais como recurso narrativo que abrem e fecham o volume. Essa estratégia possibilita projetar a narrativa para 1945, quando Rodrigo Terra Cambará, enfermo e em desgraça pela queda de Getúlio Vargas, retorna do Rio de Janeiro a sua terra natal. 62 “Rosa dos ventos” narra a chegada de Rodrigo Terra Cambará a Santa Fé, por causa da deposição do presidente Getúlio Vargas. Sabe-se a respeito do protagonista por meio da opinião das outras personagens. É nessa parte que aparece a explicação para o título do livro: Rodrigo é retratado aos 24 anos por seu amigo, o pintor Don Pepe Garcia, na única obra representativa do artista. Nessa primeira parte, são apresentadas as aspirações, desejos e a inconstância da personagem. O plano político é o que movimenta a narrativa, já que o jovem é imbuído de ideais políticos e sociais. Por meio de flashbacks, o capítulo “Chantecler” conta a chegada do Doutor Rodrigo Terra Cambará a Santa Fé já formado em Medicina, no final de 1909, justamente no ano passagem do cometa Halley. O título desse capítulo deve-se a uma peça homônima de Rostand cuja personagem principal, um galo pretensioso, achava que o sol não nasceria sem o seu cantar. Estabelece-se uma comparação com Rodrigo que, assim como o galo, considera-se a única pessoa capaz de corrigir todos os males de Santa Fé. Nesse episódio, Rodrigo, galanteador, enamora-se de Flora, com quem pretende se casar. “A sombra do anjo” apresenta Rodrigo exercendo medicina, casado, e o nascimento dos herdeiros do clã Terra Cambará. Chega a Santa Fé uma família de músicos austríacos, os Weber. Num primeiro momento, Rodrigo nutre uma antipatia pelo fato de serem da pátria aliada à Alemanha, naqueles tempos de guerra. No entanto, esse sentimento transforma-se em paixão, e em uma das visitas à família de músicos, Rodrigo finalmente conquista Toni. O desfecho é o trágico suicídio da moça por ter engravidado, e Rodrigo, desesperado diante da atitude da moça, foge para Angico. Em “Uma vela para o negrinho”, a narrativa tem como foco os filhos de Rodrigo Cambará que aparecem mais velhos, em uma situação político-familiar bastante tensa. A trama inicia-se com a visita do escritor Floriano Terra Cambará, o primogênito de Rodrigo, ao cemitério da cidade, fazendo conjecturas a respeito de uma jovem, cujo nome estava inscrito na lápide: Toni Weber. Sem conhecer a sua biografia, imagina uma história para escrever. Nesse capítulo, toma-se conhecimento dos outros filhos de Rodrigo a partir do inventário de Floriano, que pensa no irmão mais novo, o militante Eduardo o qual, em dado momento, discursa sobre a causa comunista, em frente ao Sobrado onde Rodrigo convalesce. Lembra- 63 se ainda dos outros irmãos, Alice, Bibiana e Jango, cada um deles com características muito distintas e pouco unidos. Notamos que Rodrigo Terra Cambará está presente já no primeiro volume da trilogia, durante o cerco imposto pelas forças inimigas de seu pai, Licurgo, na Revolução Federalista de 1895. O continente trata da ascendência de Rodrigo Terra Cambará, desde os primórdios da formação de sua família até sua infância. Mais adiante, alguns capítulos de O arquipélago contarão ainda com Rodrigo Terra Cambará como protagonista entre os anos de 1922 e 1945, período em que participa ativamente de movimentos políticos, que o levam à capital federal durante os quinze anos de poder de Getúlio Vargas. Rodrigo Terra Cambará é, pois, a personagem central de O tempo e o vento. Ao longo do romance são apresentadas sua ascendência e descendência, além de sua própria trajetória de vida, entremeada por introspecções. O retrato constitui o eixo central do desenvolvimento narrativo, uma vez em que nele se apresentam os aspectos seminais que tanto nos fazem compreender a formação da personagem, como são estabelecidas as bases que nos permitirão acompanhar com clareza a trajetória posterior de Rodrigo Terra Cambará. No final da obra, em O arquipélago III, descobrimos que Floriano, o intelectual da família Cambará, é o narrador. Assim, é por intermédio da voz do filho que conhecemos a história do pai, Rodrigo Terra Cambará, e sua importância em diferentes acontecimentos familiares, sociais e políticos. Entendemos que, para melhor compreensão das ideias que desenvolveremos, é necessário tecer breves comentários sobre algumas características dos elementos humanos que foram agentes da história, já que refletem e refratam a realidade ficcional. A importância destes reside no fato de que, como tipos humanos, eles elaboram discursos que se originam em um contexto, disseminam-se, são complementados, geram contradições e, por fim, originam novos discursos sociais carregados de ideologia. Com isso, depreendemos a presença de vozes sociais que se entrechocam, formando os diferentes discursos, inscritos em um ciclo de vida do protagonista. Como já expusemos, o romance é a representação da voz social na figura de personagens que falam, que se posicionam. É a representação de um espaço discursivo que abriga um interdiscurso. Nele se simula o funcionamento real da 64 linguagem, pois o gênero revela um universo discursivo que se constitui numa dada formação social. A historicidade no romance não incorre exatamente nos relatos históricos, e sim na evidência dos muitos espaços discursivos da formação social de uma época tais como o das relações humanas, o papel da mulher, o papel do gaúcho, o das relações entre classes, o significado da vida, entre outros. “No mundo romanesco a ação da personagem, associada a um discurso, é iluminada ideologicamente, pois ela vive e age dentro de sua própria concepção de mundo, personificada em sua ação e em sua palavra” (CAMPOS, 2012, p. 127) Em suas origens, o gaúcho era um tipo rústico, que trabalhava no campo, que fundou povoados e tinha orgulho de suas origens rudes. Com o passar do tempo, as atividades agropecuárias provocaram um acúmulo de capital. As antigas povoações transformaram-se em cidades e o fenômeno da urbanização sincronizou-se com o desejo de abandonar a rudeza dos hábitos campesinos e evoluir a um comportamento educado, intelectual e refinado. Para isso, as elites buscavam suas referências em costumes socioculturais europeus, fomentados pelo crescimento e modernização das cidades. Paris era o farol de onde se irradiava o que de mais avançado existia em cultura, ciência, filosofia, artes, gastronomia e comportamento. Os caudilhos mandavam seus filhos para uma educação exemplar e, com isso, constituíram uma elite que, além de endinheirada, era também intelectualizada. Notam-se, portanto, três tipos de gaúchos: o que trabalha no campo, o caudilho endinheirado e o caudilho letrado. Esse processo cultural configura no imaginário um ethos gauchesco. Além do homem da terra, os imigrantes desempenharam um papel importante na formação do Estado do Rio Grande do Sul. Vieram ao Brasil com um projeto de vida futura, embora soubessem que se tratasse de um empreendimento arriscado e sem retorno. Confiavam somente no próprio trabalho e na proteção divina, as únicas duas forças que poderiam acompanhá-los. Alguns imigrantes não se dirigiam às áreas rurais (alguns deles vieram como refugiados políticos) e trabalhavam como operários, professores, entre outros. A mão de obra especializada que chegou ao Brasil foi de grande importância para o desenvolvimento da industrialização do sul do país. Algumas personagens retratam o discurso do caudilho conservador, que é o dono da terra; outras retratam a figura do gaúcho, o trabalhador do campo, viril e 65 corajoso; outras representam a mudança, a modernidade, a transformação, a saída do centro. Cada qual espelha um tipo humano da sociedade rio-grandense e as suas ideologias. Entrementes, a mulher é o elemento estabilizador entre uma ideologia e outra, é ela quem mantém a ordem e a serenidade em meio ao caos e perpetua o status-quo. A mulher é a parte integrante de um código de valores em que é depositada a honra do gaúcho. Representa a continuidade da vida, pois é ela quem dá à luz, numa tarefa repetida até o fim dos dias das mulheres como força de conservação da descendência. Além do caudilho conservador, outras personagens descerram o conservadorismo, tais como o padre, a professora, o militar e os fazendeiros. Os imigrantes configuram o desenvolvimento do Estado, ou seja, representam a transição do paradigma social. Rodrigo Terra Cambará encarna essa evolução entre o campo, a elite e a elite intelectualizada. Jovem letrado, primeiro de sua família a adquirir um diploma universitário, filho de um gaúcho da velha cepa, Licurgo Cambará, fortemente influenciado pela cultura francesa, mas que não se liberta por completo das influências de sua terra e suas gentes. Formou-se em Medicina na capital do Rio Grande do Sul, está a par das vanguardas artísticas e filosóficas francesas. Refinado, traz a sofisticação dos modos e trato social para um ambiente até então marcado pela frugalidade e rusticidade. Progressista, é a favor da democracia e defende a modernização daquela cidade agrária e atrasada com a instalação da eletricidade, cinemas e aquisição de automóveis. Mesmo com toda essa adesão ao progresso, ainda está ligado às suas origens: descendente de um aristocrata rural, não conseguirá desligar-se desse fato e também será um estancieiro típico. Percebemos, então, que Rodrigo está ligado ao passado e ao futuro. Ele é a personificação de uma geração moderna e politizada e que traz marcas dos tempos de outrora, marcas de seu bisavô Rodrigo Cambará, por exemplo. Toríbio caminhava de cabeça baixa, olhando para as pedras da calçada. – Me deem uma boa caninha e eu fico me lambendo todo. – Uma boa caninha destilada em alambique também tem seu valor. Por que não? – respirou fundo, ergueu os olhos piscos para o sol e disse: – Precisamos mudar de vida, Bio. O Sobrado é uma casa triste. Temos de fazer lá umas tertúlias, uns serões, convidar gente interessante, conversar ouvir música, dar mais alma àquele casarão. 66 E para animar uma festa não há nada como uma boa vinhaça, bons charutos e um caviarzinho... – Eu só queria saber o que é que o velho vai achar de tudo isso. – Está claro que no princípio vai desaprovar, dizer que é um desperdício de dinheiro e até – quem sabe? – uma indecência. Mas acabará se entregando. Ele e eu pertencemos a épocas diferentes, Bio. O mundo do papai é um mundo que está morrendo. Eu pertenço ao século XX (VERISSIMO, 2004a I, p. 135). [...] Quando se viu à frente da casa da estância a contemplar a campina, redescobriu a terra e ficou comovido. Sentiu-se leve, puro, criança: concluiu que a verdadeira vida estava no campo (VERISSIMO, 2004a I, p. 222). A obra verissiana manifesta um coro de vozes sociais que estão em consonância ou discordância, visto que o sujeito sempre está em relação com o outro, e nós o absorvermos por meio dos discursos elaborados. Por se tratar de um romance, podemos examinar, simultaneamente, variadas concepções de mundo que, situadas historicamente, constituem a realidade em que o sujeito está inserido. É importante lembrar que o autor-criador a que Bakhtin se refere não é Erico Verissimo, o escritor. É um ente interno ao romance, uma voz social refratada esteticamente, ocupando uma posição axiológica construída por meio de recordações e cortes temporais para abarcar a passagem de duzentos anos de história. O autor-criador fornece às suas personagens a palavra que, ao ganharem autoria, tornam-se discursos. As palavras são permeadas por uma infinidade de fios ideológicos, contraditórios entre si, pois frequentam e se constituem em todos os campos das relações e dos conflitos sociais. O signo verbal possui acentos ideológicos que manifestam as contradições ideológicas coexistentes entre o passado e o presente. Nesse sentido, ao dar a palavra às suas personagens, os discursos que elas pronunciam não são neutros. [...] esses produtos ideológicos constituídos conservam constantemente um elo orgânico vivo com a ideologia do cotidiano; alimentam-se de sua seiva, pois, fora dela, morrem, assim como morrem, por exemplo, a obra literária acabada ou a ideia cognitiva se não são submetidas a uma avaliação crítica viva. [...]. Esta coloca a obra numa situação social determinada. A obra estabelece assim vínculos com o conteúdo total da consciência dos indivíduos receptores e só é apreendida no contexto dessa consciência dos indivíduos receptores e recebe dela uma nova luz. É nisso que reside a vida da obra ideológica. Em cada época de sua existência histórica, a obra é levada a estabelecer contatos estreitos com a ideologia cambiante do cotidiano [...] (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2009, p. 119). 67 Como é um espelho da realidade, na narrativa a classe dominante também se impõe na relação com a ideologia do cotidiano. A ideologia dominante é aquela que reproduz a ordem social vigente e empenha-se, o máximo possível, em submeter as coisas a um estado inalterado. É o discurso conservador, ou seja, são as forças centrípetas que operam. A ideologia do cotidiano é aquela que contesta, discute e subverte o estado atual das coisas. Cada palavra pronunciada pelas personagens revela essas forças centrípetas e/ou centrífugas. É possível reconhecer tais embates em várias situações, especialmente quando Rodrigo Terra Cambará recebe os amigos em sua casa. Nessas ocasiões, há diálogos polêmicos regados a finas bebidas e a iguarias normalmente trazidas de outro país, revelando o gaúcho caudilho e letrado já citado. Nessas conversações, por serem íntimas, há um rebaixamento de hierarquias sociais, criando um clima de descontração, confiança e boa vontade. Essa quebra de hierarquia e de formalidade leva à ruptura de fronteiras entre o que é certo e o que é errado, entre o verdadeiro e o falso. [...] Eram oito e quarenta da noite quando o próprio Rodrigo foi à cozinha buscar a bandeja onde estava a travessa com pão e caviar. Voltou para a sala de visitas, radiante. – Vejam só quanta coisa aconteceu através do tempo e do espaço para que este simples momento fosse possível! – Parou no meio da peça e passeou o olhar pelas faces dos convivas [...]. [...] Foi até a cozinha e voltou com uma garrafa de champanha. Rodrigo encheu a primeira taça e entregou-a ao coronel [...]. Rodrigo foi buscar as salsichas de Viena, trazendo com elas uma garrafa de vinho branco e cálices, que encheu generosamente. Liroca não pôde deixar de murmurar: – Que desperdício... – Que ceia régia! – exclamou Jairo (VERISSIMO, 2004a II, p. 18). Estão presentes nesses jantares representantes de vários estratos sociais: o anarquista Pepe Garcia, o comunista Arão Stein, militares, grandes proprietários rurais e também membros de uma classe média incipiente, como médicos, juízes, e funcionários públicos que manifestam posições conflitantes como se pode verificar nos posicionamentos de Liroca e Jairo. Notamos que convivem tanto aquele que mantém a ordem vigente quanto aquele que a subverte. 68 Nos exemplos que daremos a seguir estão presentes um tenente, um coronel, um anarquista e Rodrigo. O diálogo é face a face, ou seja, uma forma composicional escrita em discurso direto, que é uma maneira de expor abertamente o discurso do outro. Nessas formas composicionais, cada interlocutor profere um discurso de acordo com seu quadro de valores, são réplicas à situação enunciativa em que se encontra o presente, sem perder de vista o seu passado, e são ecos de um discurso, consoante Bakhtin: Os enunciados não são indiferentes entre si, nem se bastam cada um a si mesmos; uns conhecem os outros e refletem-se mutuamente uns nos outros. Esses reflexos mútuos lhes determinam o caráter. Cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela identidade da esfera de comunicação discursiva. Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo aqui concebemos a palavra resposta no sentido mais amplo) ela os rejeita, confirma, completa, baseia-se neles, subentende-se como conhecidos, de certo modo os leva em conta (BAKTHIN, 2011, p. 297, grifos do autor). Segundo Faraco (2013), um dos significados da palavra “diálogo” é “solução de conflitos”, já “dialogismo” pode ser tanto “acordo”, quanto “desacordo, um espaço de luta entre vozes”. Portanto, no nosso exemplo, há diálogo e dialogismo, pois há embates entre vários discursos que semiotizam o mundo. Encontram-se quatro interlocutores, cada um com a sua ideologia. Há uma luta entre vozes gerada após Rodrigo proferir que sairá da vida política. Ao fazer esse pronunciamento, Rodrigo escolhe o material semiótico, o público, o momento, e o tom emocional, a fim de surpreender os convivas. – É para comemorar a minha retirada da vida política... – disse Rodrigo, um pouco por brincadeira e um pouco a sério. Don Pepe lançou-lhe um olhar que exigia explicações. – Não me olhes assim, Pepito. Aqui onde me vês, sou um homem mudado. – Sentia-se tonto, aéreo, irresponsável. – Santa Fé não merece o nosso sacrifício. Os povos têm o governo que merecem, não é, coronel Jairo? Sejamos egoístas. Bebamos vinhos estrangeiros e comamos caviar. A vida é curta. – Ergueu a taça. – À saúde... de quem? (VERISSIMO 2004a II, p. 20). A resposta ao enunciado foi o embate acerca do Brasil e sua administração: como deveriam ser o governo e governante ideais. A partir daí são delineadas as 69 concepções políticas de cada personagem, que variam, se opõem e foram moldadas ao longo das suas existências. Pepe, por exemplo, é um imigrante fugido da Espanha por suas convicções. Rodrigo, influenciado por seu pai, prega o liberalismo. Cada qual apresenta seu quadro de valores, pois os sujeitos não se fundem, cada um com a sua extraespacialidade, e um vai se opor ao outro. Pepe ergueu-se, teatral. – A la salud de todos los que muneran en vano por sus ideales! – Vai mesmo desertar a arena? – perguntou Rubim. E acrescentou. – Não acredito. Qual é a sua opinião, coronel? O comandante do regimento de infantaria coçou o queixo e olhou para Rodrigo (VERISSIMO, 2004a II, p. 20). Ademais, é por meio desses diálogos que entremeiam o romance que se apresentam o contexto sócio-histórico da época e as visões de mundo vigentes no período que as personagens estão vivenciando e que não correspondem, exatamente, à época em que foi escrito. O discurso das personagens é uma forma de introdução e organização da heteroglossia no romance, ou seja, os múltiplos e heterogêneos dizeres sociais arranjados na obra. – O homem se agita e a humanidade o conduz. Os vivos são sempre cada vez mais governados pelos mortos. O Dr. Rodrigo não poderá fugir ao seu destino. Rodrigo desenvolvia para Jairo e Rubim uma tese que se poderia intitular "O Brasil, país perdido". – Perdido qual nada! – protestou o coronel. – O Brasil tinha um futuro fabuloso (VERISSIMO, 2004a II, p. 20, grifo nosso). Nesta passagem verificamos uma citação de Augusto Comte: “Os vivos são sempre cada vez mais governados pelos mortos”. Comte foi um dos principais idealizadores do positivismo, corrente filosófica surgida na França no começo do século XIX que defendia a ideia de que o conhecimento científico era a única forma de conhecimento verdadeiro. A mudança da sociedade passaria, fundamentalmente, por um refazer dos costumes, uma reforma intelectual do homem, e menos pela transformação de suas instituições. A sociedade se modifica através da visão de Progresso como um mecanismo da própria Ordem, sem destruição da ordenação vigente, num processo evolutivo. Para o filósofo, a evolução da inteligência humana comanda o desenrolar da história, ou seja, o conhecimento conduz e transforma o 70 mundo. Assim, só poderia governar o indivíduo que fosse preparado intelectualmente. Os positivistas não consideravam os assuntos ligados às crenças, superstição ou qualquer outro que não pudesse ser comprovado cientificamente. Essa doutrina era um culto de amor e reconhecimento pelos grandes homens, pelas instituições sociais, pela pátria e pelos antepassados. Predizia um sistema de vida moralizador, sem distinções de classe, cor e raças; uma vida sem conflitos, tendo como principal interesse o coletivo e não o individual; e a organização da sociedade pelos moldes científicos. Coronel Jairo era adepto dessa corrente filosófica, o que seria de se esperar, já que era um coronel, e na bandeira brasileira aparece a frase “Ordem e Progresso” como uma referência a essa doutrina. Para essa personagem haverá progresso se houver um governo forte, e esse governo só poderia ser encabeçado por uma pessoa intelectualizada e capaz. Ele é o discurso da tradição, uma vez que, como militar e positivista, acreditava na inscrição da auriflama. Já no discurso de Rubim, há uma citação a Nietzsche, pensador alemão que desenvolveu uma série de escritos que o colocaram ao lado dos antidemocratas, dos antissocialistas, e contra todo e qualquer tipo de pregação que visasse à igualdade, tornando-o um apologista da distinção. Argumentou que a ética cristã era uma moral de escravos, de gente fraca e vil e que havia, através do cristianismo, o espírito senhorial e dominante dos aristocratas. Para o filósofo, tudo aquilo que era “débil", "humilde", "medíocre", os cristãos apresentaram como "bom", enquanto palavras tais como "nobreza', "honra", "valor", foram vistas como "mal”. Como consequência, os homens deveriam buscar valores que transcendessem a moral convencional divulgada pelo cristianismo; um retorno à ordem de castas, à ordem hierárquica para a conservação da sociedade, para que fossem possíveis tipos mais elevados, tipos superiores – a desigualdade dos direitos seria a condição necessária para que houvesse direitos. Rubim sacudia a cabeça. Achava que o progresso não pode ser nunca o resultado do esforço coletivo, mas sim a obra magnífica duma casta superior, a qual só poderá existir à custa do trabalho escravo das massas, cuja missão é mourejar a fim de que os super- homens se possam entregar ao cultivo do espírito, das artes e da ciência. 71 – Mas que absurdo! – protestou Rodrigo. – Para principiar: como pôr em prática esse individualismo aristocrático? – Muito simples – replicou Rubim, com sua voz de flauta. Tomou um gole de champanha. – Nietzsche preconiza, e nisso estou plenamente de acordo com o mestre, a formação do Estado militar. – Tenente! – repreendeu-o Jairo, sorrindo. – Estamos entre amigos, coronel. Mas, como dizia, só esse Estado militar é que poderá consolidar o domínio da casta superior, usando da força para organizar disciplinarmente todos os recursos sociais... – Mas será uma ditadura insuportável! – atalhou-o Rodrigo. E tomou com fúria um largo gole de champanha, enchendo logo em seguida a taça com vinho branco. – Isso mesmo. Uma ditadura. E insuportável, sim, para as classes inferiores. Porque será preciso esmagar sempre todas as tentativas de insurreição das massas (VERISSIMO, 2004a II, p. 21). Para Rubim, um governo forte seria aquele que dominasse os mais fracos, logo, a ditadura seria o caminho para se chegar a esse ideal. O tenente vai no rastro de que o cristianismo seria uma doença, pois pregava a mansidão, a igualdade. Para o tenente, a população deveria ser alienada e submetida. Ao pregar a superioridade, indiretamente está a favor do Nazismo. Rubim, indo contra o coronel Jairo, que era positivista, não acreditava que o progresso fosse importante para o país. Observamos que nesse fragmento os discursos perseguem dois movimentos: um centrípeto, o do tenente Rubim, que defende um governo centralizador, ditatorial, e um centrífugo, liderado por Rodrigo. Don Pepe levantou-se, avançou para o tenente de artilharia e, erguendo a mão que segurava o copo, como se fosse atirar vinho na cara do militar, bradou: – Pêro no hay fuerza humana que pueda detener las masas! Rubim limitou-se a lançar para o espanhol um rápido olhar neutro. – O Brasil – continuou – é um país novo e informe, que só poderá ser governado mediante uma ditadura de ferro. Jairo estava escandalizado. – Tenente, o senhor está se excedendo! Rubim sorriu e encheu o cálice de vinho. – Coronel, estou apenas dizendo o que penso. – Deus nos livre de ter o tenente um dia na presidência da República! – exclamou Rodrigo. Olhou para Pepe, que começava já a dar seus passinhos para diante e para trás, e viu nos olhos do anarquista duas bombas prestes a explodir. – Essa casta superior – prosseguiu Rubim, cruzando as pernas – não deverá de maneira nenhuma preocupar-se com a educação das classes populares. O cultivo das massas pode prejudicar os objetivos mais altos do Estado, isto é, a formação da aristocracia... Rodrigo já não sabia ao certo o que o embriagava mais, se o vinho ou as ideias do tenente de artilharia. 72 – A cerrar todas las escuelas! – exclamou Don Pepe, abrindo os braços como um crucificado. – A quemar todos los libros! El senor tenente quiere para su clase el monopólio de la cultura! Rodrigo, que estava curioso por ouvir toda a tese do oficial, fez um sinal para que o espanhol se calasse. – E qual é a finalidade dessa tua esplêndida, mirabolante aristocracia? – perguntou. – Produzir a raça superior, o super- homem, que está para o homem atual assim como este para os animais. – Tenente! – advertiu Jairo. – Não beba mais. A dentuça avançou, nua e cintilante. – Nunca em toda a minha vida, coronel, estive mais lúcido que agora. Continuou: – No mundo primitivo o bom era o audaz, o forte; o mau era o débil, o impotente. Depois veio o cristianismo e subverteu tudo. – Me cago en la leche del cristianismo! Liroca arrancou do fundo do peito um longo suspiro, e seus olhos se dirigiram para a sala contígua, por onde passara, havia pouco, vago e aéreo como um espectro, o vulto de Maria Valéria. – Então não acreditas na concepção evolucionista da história? – perguntou Rodrigo, que se sentia como suspenso no ar. Rubim sacudiu vigorosamente a cabeça. – Acho a concepção erradíssima. É um otimismo tolo acreditar no progresso ininterrupto da humanidade. [...] (VERISSIMO, 2004a II, p. 22). Pepe Garcia, um anarquista que fora ativista na Espanha, opõe-se ao discurso do Tenente Rubim, e não é à toa que a personagem é um espanhol. No Brasil, a ideologia foi introduzida no final do século XIX pelos imigrantes europeus, principalmente os italianos e espanhóis. O anarquismo é um movimento político que defende a supressão de todas as formas de dominação e opressão da sociedade moderna, dando lugar a uma comunidade mais fraterna e igualitária, fruto de um esforço individual a partir de um árduo trabalho de conscientização. O anarquismo seria apontado como uma ideologia que nega os valores sociais e políticos prevalecentes no mundo moderno como o estado laico, a lei, a ordem, a religião e a propriedade privada. Sua base foi fundamentada nos princípios de que todo o indivíduo é único e possui um conjunto de direitos naturais; todo indivíduo deve agir diretamente na realidade social; ninguém deve ter preconceitos ideológicos e morais; todos têm direito a uma educação libertária, ninguém deve ser submetido às relações de poder do Estado; todos devem ter o direito de ir e vir, podendo circular livremente por qualquer país. 73 Por esses motivos, reconhecemos um tom colérico e indignado quando Rubim expõe que todas as escolas devem ser fechadas. O espanhol contra- argumenta, assegurando que a sociedade deve organizar-se e não pode ser submissa, assim será forte e poderosa, contrariando qualquer regime ditatorial. Dom Pepe é contra o cristianismo, já que o ideal anarquista é a conquista de um Estado laico. Nesse excerto, a posição do herói não foi proferida, ele se encontra mais observante, reflexivo, sendo apenas o responsável por provocar o debate, por desabrochar novos entendimentos, respostas acerca do assunto em questão. Nesse confronto de vozes, Rodrigo orquestra o conflito, atuando como um provocador, permitindo, assim, que cada um expanda livremente o seu pensamento; segundo Bakhtin, preza-se que o indivíduo lute contra o assujeitamento. O herói é aquele que suscita as perguntas, querendo saber as diversas opiniões das personagens ali presentes: ao mesmo tempo que se exaspera com as opiniões do tenente, instiga-o a desenvolver suas ideias, que são proferidas sem rodeios, talvez porque esteja alcoolizado, ou porque aproveite aquele momento intimista para revelar seu ponto de vista. Nesse pequeno excerto, cujo espaço é familiar, verificamos o embate de forças centrífugas e centrípetas que revelam os jogos de poder entre as vozes sociais presentes. O discurso do tenente, assim como o do coronel, é centrípeto. O discurso de Dom Pepe é centrífugo. Uma voz contradiz a outra, evidenciando discursos sociais que se cristalizaram e outros novos que se inscreveram naquele contexto cultural, formando novos enunciados. No entanto, tais verdades não são absolutas, são como um coro heteroglótico acerca do governo ideal. Cada personagem representa sujeitos sociais situados em espaço e tempo diversos e que, por sua vez, reproduzem discursos de outros, formando um emaranhado de fios ideológicos. A partir daqui encaminhamo-nos para o estudo do cronotopo na obra verissiana. O cronotopo designa espaço e tempo em que as várias histórias se inscrevem. Na trilogia, o tempo é o elemento privilegiado, pois opera mudanças, é histórico e concreto; já o espaço só é modificado pela ação dos homens, permanecendo quase inalterado. É por meio das personagens que apreendemos a realidade de uma determinada época, assim como as relações de poder das 74 diversas esferas ideológicas. Essa conjunção realizada entre tempo e espaço repercute artisticamente nas noções de indivíduo e sociedade, representadas no romance pelas imagens do narrador e das personagens. Cada personagem apresenta em si um todo espacial e um todo temporal, os quais lhe imprimem forma e conteúdo e são indissolúveis. O cronotopo são os centros organizadores dos principais acontecimentos do romance. Segundo Bakhtin, “O tempo condensa-se, comprime-se, torna-se artisticamente visível, o próprio espaço intensifica-se, penetra no movimento do tempo, do enredo e da história” (2014, p. 211). Quanto ao todo espacial, é ele o responsável pela formação da imagem e das máscaras que cobrem a personagem; quanto ao todo temporal, é a imagem real do outro. Essas fronteiras de experiências reais e imaginadas são articuladas na personagem que carrega consigo a unidade espaço-temporal da vivência e da memória. É importante salientar que o espaço se configura tanto externa quanto internamente e é influenciado pelo tempo, e permanentemente essa vivência dentro- fora interage. “A obra e o mundo nela representado penetram no mundo real, enriquecendo-o, e o mundo real penetra na obra e no mundo representado [...]” (BAKTHIN, 2014, p. 358) Comecemos pela Epígrafe da trilogia extraída do Livro Eclesiastes (I, 4-6). Ela é a própria representação da passagem do tempo e das transformações operadas por ele em determinado espaço. Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que opera mudanças, há elementos que são permanentes e que passam de uma geração a outra evidenciando a imutabilidade repetitiva do tempo histórico. É o caso, por exemplo, da terra (espaço) e dos elementos nela inseridos: o punhal, o crucifixo carcomido, a tesoura, e a roca de fiar. Esses três elementos cronotópicos aparecem no início de O continente. O crucifixo e a roca de fiar eram peças da mãe de Ana Terra, portanto, tataravó de Rodrigo. O punhal de prata foi uma relíquia deixada pelo trisavô do herói, Pedro Missioneiro. É interessante notar que a tesoura e a roca são passadas de mão em mão pelas mulheres, enquanto o punhal é passado pelos homens. Notam-se, portanto, um universo masculino e outro feminino coexistindo. A tesoura representa a vida, já que é manuseada por Ana para cortar o cordão umbilical dos recém-nascidos; o punhal, por sua vez, representa a morte, pois foi usado em muitas guerras e permaneceu até o final da obra, nas mãos do filho de Rodrigo, Eduardo. 75 Outro constituinte que marca a permanência é o sobrenome Terra. Ana Terra é uma metáfora e representa a posse da terra, conquistada com sacrifício pelas mulheres da família, é a acepção da força, da espera, que representam o elemento de continuidade e estabilidade na História, cumprindo o seu destino. Ana Terra rompe com essa temporalidade cíclica, ao dizer que quando morresse não voltaria para fiar na roca que fora de sua avó e não assombraria mais os que estavam vivos. Já o sobrenome Cambará remete a uma espécie de árvore nobre cujo tronco, bastante resistente, aguenta as adversidades da natureza. Esse sobrenome perpassa as gerações, encarna valores como valentia, domínio, firmeza, resistência, ou seja, o protótipo do gaúcho que lutou em muitas guerras ao longo de sua história. Rezava a tradição que Cambará macho nunca morria em uma cama, e sim, em combate. Desses dois sobrenomes emerge a linhagem de Rodrigo Terra Cambará. Os descendentes de Rodrigo irão encerrar esta ou aquela característica em maior ou menor intensidade. O título O tempo e o vento compõe uma oposição temática e ideológica. Segundo Jacques Leenhardt (2001), os vocábulos do título representam o valor sociopolítico que permitiu que se acumulassem, ao longo dos anos, as vantagens dos poderes que se instituíram na sociedade. Segundo o pesquisador, a linhagem do tempo é a dos poderes instituídos. O tempo cronológico estrutura o universo dessas instituições de poder. A linhagem do vento é aquela que não pode ser ordenada nem pelo relógio, nem pelo calendário. É um princípio aleatório e natural, é a alegoria do ciclo que leva os homens e as coisas, portanto, ele também é temporal. O vento minuano percorre o sul gaúcho sem piedade, carregando consigo o frio e a umidade do inverno. Para Ana Terra e depois para Bibiana, toda vez que ventava, acontecia alguma coisa: “Sempre que me acontece alguma coisa importante está ventando” (VERISSIMO, O continente I, 2004, p. 102), ou “Noite de vento, noite dos mortos” (VERISSIMO, O continente I, 2004, p. 189). Sobre os espaços, é em Santa Fé que a ação do tempo é inscrita, desde sua formação: primeiramente um povoado, depois ganhou o status de vila e, por último, de cidade. Em O retrato I, a cidadela vai sendo desenhada do alto, o narrador enxerga-a pelo ponto de vista de Eduardo, que avalia o quão está mudada, modernizada e, ao mesmo tempo, ainda tem muito de provinciana. A descrição da 76 cena direciona o olhar do leitor sobre o espaço da cidade, em constante mudança pela ação do tempo – elemento agregador e destruidor no romance. Olhou para baixo. Estava de novo sobrevoando sua cidade natal. Como Santa Fé tinha crescido naqueles últimos anos! Lá estava ela esparramada sobre suas três colinas, com seu casario esbranquiçado, os telhados antigos e pardacentos a contrastar com o coral vivo das telhas francesas das construções mais novas; as faixas cinzentas das ruas calçadas de pedra-ferro a seguirem paralelamente ou a cortarem nítidas, a sanguínea das ruas de terra batida [...]. A cidade estava cercada de coxilhas que fugiam na direção de todos os horizontes, cortadas pela fita de ocre avermelhado das estradas. Era uma verde e impetuosa amplidão onde se desenhavam chácaras e fazendolas com suas casas brancas, moinhos de vento, pomares, hortas, cercados, pastagens, açudes [...]. Aqui e ali, como remendos de diferente tecido naquele tapete ondulado, recortavam-se os quadriláteros cor de ferrugem das roças de terra recém-virada ou os contornos simétricos dos bosques de eucaliptos [...]. (VERISSIMO, 2004a II p. 27). Em Santa Fé, a riqueza e a pobreza conviviam lado a lado – mas de cima, do olhar extraposto do narrador, essa dicotomia desaparecia. Tudo se tornava igual. Como tudo na terra parecia limpo e simples! A própria carniça perdia sua sordidez, porque à distância a tornava invisível, sem cheiro e sem horror. Até o Rosa-dos-Ventos não chegava o perfume dos ricos que viviam nos melhores palacetes de Santa Fé, nem a fedentina dos miseráveis que vegetavam nas malocas do Barro Preto, do Purgatório e da Sibéria. Voar – concluiu Eduardo – é mau, porque nos dá uma perspectiva errada das pessoas e dos fatos sociais, levando-nos a considerar mais as coisas limpas dos céus do que as coisas podres da terra. Será por olhar o mundo dum ângulo tão remoto que o velho Deus perdeu por completo o senso de proporção e de justiça (VERISSIMO, 2004a II, p. 27-28). Eduardo, filho de Rodrigo, tem ideais comunistas. Do ângulo em que se encontra, não vê a miséria e pensa que a sociedade seria melhor se não houvesse distinção entre as classes sociais. Sua voz instaura-se de maneira centrífuga ao discurso dominante. O avião aponta para uma nova direção e um novo tempo. O cronotopo que se observa nesse instante da narrativa é pós- queda da ditadura de Getúlio Vargas, em 1945, e a cidadela vista do alto, de um avião. No entanto, contrariando a ideia de avanço, embaixo, contemplando o avião pilotado por seu 77 neto, está Aderbal Quadros: o passado e o futuro concorrendo em um mesmo espaço. A narrativa é circundante e observada de diferentes formas: pelo olhar, do alto, de Eduardo, e pelo olhar de baixo do seu avô Babalo. Cada qual de seu olhar extraposto enxerga o progresso de diferentes formas. Inversamente ao seu neto, Babalo rejeita as modernidades da sociedade que estão sendo instituídas em sua pequena Santa Fé, incluindo o aeroplano. O avião, força centrífuga, elemento cronotópico da modernidade, sobrevoa uma cidade mudada, mas com traços daquilo que ainda permanece. O avô, que naquele momento tentava acender um cigarro de palha com a pederneira, elementos cronotrópicos da tradição, opera como força centrípeta e representa uma geração com poucos representantes, que quase não existe mais, ou está prestes a desaparecer. Esse fato revela que, para nascer o novo, o velho deve ser substituído. O cronotopo é o presente, o passado e o espaço são o alto e o baixo. O ruído dos motores não o incomodava, pois ele era surdo, mas não se sentia bem quando via aquelas engenhocas passarem por cima de sua cabeça. Ninguém lhe tirava da ideia que aeroplano era uma coisa contra a natureza. Depois, estava vendo o dia em que um daqueles aparelhos ia cair-lhe no quintal ou em cima da casa. Nos primeiros tempos, sempre que os teco-tecos cruzavam seu território, Babalo erguia os punhos e bradava: "Vagabundos! Isto não é serviço pra homem! Venham pegar no cabo duma enxada, seus lorpas!" (VERISSIMO, 2004a II, p. 23) Para discorrermos acerca do espaço na obra de uma maneira mais clara, estabeleceremos uma relação de hiponímia e hiperonímia. Podemos dizer que Santa Fé é o hiperônimo, ou seja, é o espaço que engloba outros núcleos. É naquele local que se encontram espaços particulares importantes para o desenrolar da narrativa, os hipônimos. Esses hipônimos, por sua vez, ainda podem ser subdivididos. Essa relação semântico-espacial pressupõe que haja um espaço maior, que engloba outro, que engloba outro, e assim por diante. Em Santa Fé, hiperônimo, encontramos diversos núcleos com diversas variantes, entre as quais a regionalista, pois são descritos os ambientes, assim como os usos e costumes daquela gente. Há pessoas de posse que moram nos bairros privilegiados, e as pobres que vivem na cidade baixa. As personagens 78 comem, bebem, tecem mexericos, têm amantes, sentam em bares, dançam, vão a festas, discutem posições políticas e filosóficas, em tempo cíclico, habitual, cotidiano, que passa lentamente, fragmentado, recortado por cortes temporais. Notamos os seus indícios nas particularidades (hipônimos) dos espaços público e privado: as casinhas, as ruas, o coreto, a praça, a figueira da praça, o barbeiro, o padeiro, o dono da funerária, a mulher que olha a cidade e as pessoas pela janela de sua casa. No espaço do clube, ao qual somente pessoas da aristocracia podiam se associar, aconteciam as festas de Réveillon, as quais assinalavam a passagem de um ano a outro. Pelas músicas e a forma como as pessoas dançavam, ficamos com a ideia de uma sociedade multicultural. Pelo aspecto de suas caras germânicas e pelo entusiasmo com que dançavam, Jacob Spielvogel e sua Frau davam ao baile um ar de Kerb colonial, ao passo que Chiro Mena, com suas batidas de calcanhares com esporas hipotéticas e com seu ar de monarca, parecia esforçar-se para transformar o réveillon num fandango de terreiro (VERISSIMO, 2004a II, p. 198). A igreja matriz da cidade delineia o ciclo do nascimento, do casamento e da morte. Paradoxalmente, o cemitério é o espaço simbólico em que a eternidade sobreleva o fim. Seja da perspectiva interior ou exterior, aérea ou terrestre, pública ou privada, individual ou coletiva, iluminada ou sombria, esse elemento se une a outros símbolos da cidade. Santa Fé é um lugar coletivo em que as várias histórias se inscrevem. Como afirma Bakhtin, “O cronotopo determina a unidade artística de uma obra literária no que ela diz respeito a uma realidade específica” (2014, p. 211). No entanto, o espaço mais representativo do romance é o sobrado, ou seja, o núcleo familiar dos Terra Cambará. Nele há marcas do passado, do presente e do futuro. No início da trilogia, em 1895, aparece sitiado pelos federalistas. Com a vitória do primeiro, consolida-se o domínio dos Cambarás. Em 1945, a situação se inverte, com a decadência da família. Nesse espaço há alguns elementos vitais como o relógio, a roca de fiar, e a cadeira de balanço que perpassam gerações. O ritmo do balanço da cadeira assemelha-se ao tique-taque do relógio, que remete à roca de fiar e também ao pulsar do coração. Conforme disse Floriano nas últimas páginas de O arquipélago: “O sobrado está vivo” (VERISSIMO, 2004b III, p. 457). 79 Agora que os homens estavam ausentes, as mulheres do Sobrado prestavam uma atenção especial ao grande relógio de pêndulo, que no passado havia marcado o tempo de tantas guerras e revoluções. Sua presença no casarão tinha algo de quase humano. (VERISSIMO, 2004b I, p. 235). O sobrado é paradoxal, pois traz em si o novo e o velho, o término e a permanência: o passado com as suas guerras, cercos, mortes, discussões, choros, bailes, festas; o futuro com a concepção de modernidade de Rodrigo, nascimentos, derrocadas. É ao mesmo tempo fortaleza, hospital, cemitério; é onde são debatidas ideias políticas, filosóficas, artísticas e literárias. É o reduto de transformação. O sobrado também é um símbolo do feminino, da proteção e do refúgio maternos. O próprio autor diz que era “um símbolo uterino de aconchego, tradição e fortaleza” (VERISSIMO, 2005, p. 174). O local tem um em cima e um embaixo. Em cima estão os quartos e a água-furtada, cronotopo do refúgio e proteção. Nos quartos os moradores, em sua intimidade, choram seus mortos. É da água-furtada que Rodrigo e Floriano observam a cidade de Santa Fé, que ora estava adormecida, ora estava em guerra. Pai e filho, cada um a seu tempo e com seus propósitos, observam, do mesmo lugar, a mesma cidade e, para cada um, há uma concepção de mundo e um ponto de vista. Pelo olhar exotópico, o sujeito que vive dentro olha os de fora, e os de fora olham para os sujeitos de dentro. Cada um contempla o outro do lugar em que se situa e cada um vê o outro com a sua percepção, dando- lhe acabamento. Santa Fé resumia-se em duas ruas que corriam de norte a sul ─ a do Comércio e a dos Voluntários da Pátria ─ cortadas por outras cinco de menor importância, ruas esbarrancadas de terra batida e sem calçadas, onde pobres meias-águas e casas de madeira se erguiam num precário alinhamento, entremeadas de terrenos baldios, onde cresciam ervas daninhas e os moradores das vizinhanças iam atirando dia a dia seu lixo (VERISSIMO 2004a II, p. 132). Eram cinco horas menos um quarto, quando Cuca Lopes chegou à praça da Matriz. Parou a uma esquina e ficou a contemplar o Sobrado. Lá estava o casarão com suas paredes caiadas, os caixilhos das janelas e o da grande porta pintados dum azul de anil, os azulejos do portão a reverberar à luz da tarde. As copas de algumas das árvores do quintal apontavam acima do telhado, e, entre o muro e a parede lateral da casa, havia um pé de três-marias todo carregado de flores purpúreas (VERISSIMO, 2004a II, p. 52). 80 Foi também naquele ano que Rodrigo se sentiu tomado do desejo de realizar grandes coisas. Um dia, da janela da água furtada do Sobrado, contemplando as ruas e telhados de Santa Fé [...] (VERISSIMO, 2004b II, p. 243). Naquela mesma tarde, por volta das cinco, estava sentado no peitoril da janela da água furtada, a olhar para a praça. [...]. Naquele momento Floriano sentia-se estranhamente tranquilo e seguro de si mesmo [...] (VERISSIMO, 2004b III, p. 60). Embaixo há o convívio social entre os familiares e amigos. É ali que estão a cozinha com as negras e as donas da casa sempre trabalhando; a sala de jantar em que todos se reuniam durante as refeições sob o olhar perscrutador de Maria Valéria, madrinha da Rodrigo, e ouviam as batidas do relógio; o escritório onde eram guardados os livros que tanto embeveciam Floriano, onde aconteciam os serões acompanhados de intermináveis debates; a sala de visitas, cenário de várias festas e confraternizações; os recônditos onde Rodrigo levava as suas amásias; e, por fim, era na sala de visitas do sobrado, no alto, em destaque, que se encontrava o retrato. 2.2 O retrato de Rodrigo Terra Cambará: o eu na fronteira O retrato é um elemento cronotópico, pois é o todo concreto da união dos índices de espaço e tempo. Ele foi pintado em um determinado tempo e dele podemos inferir uma determinada visão de homem que, por sua vez, se renova a cada tempo. Dom Pepe quis retratar Rodrigo, pois achava que os retratos fotográficos tirados em Porto Alegre3 não diziam a verdade a respeito do seu amigo, ele não se conformava com a falta de similitude, parecia-lhe que lhe faltava alma, substância, que a máquina não conseguia revelar. De seu lugar, Rodrigo era visto como herói para o retratista e, consoante Bakhtin em Estética da criação verbal (2011), ninguém é herói de sua vida, pois um sujeito só se constitui herói pelos olhos do outro, pelo excedente de visão do outro, que o representa e o totaliza. 3 Na segunda metade do século XIX europeu, essa questão ocupou um espaço de polêmica entre os fotógrafos e os pintores de retratos, que se sentiam ameaçados pela nova tecnologia. No Brasil, esse debate aparece no início do século XX, como o escritor gaúcho Luiz Antonio de Assis Brasil (1945 -) mostra no seu romance O pintor de retratos (2001), cuja narrativa está contextualizada nesse período, no Rio Grande do Sul. 81 Anarquista, para estampá-lo, rejeita a postura convencional, típica do que classificava de burguesia rio-grandense, normalmente retratada em ambientes fechados, em um interior da casa. Dom Pepe não quer um local com cortinas, colunas ou um ambiente parecido. O pintor situa seu herói no alto de uma coxilha, ao ar livre, para o esplendor. O retratado mostra-se como força que, deste espaço, se sobreleva e projeta-se para além dele, escapando desse tempo-espaço da enunciação plástica, na medida em que o retratado lança o olhar para o futuro, para a notoriedade. Nessa figuração, o retrato passa a ser semiotizado, já que é um signo impregnado de ideologia. E toda imagem artístico-simbólica ocasionada por um objeto físico particular que é por si um produto ideológico e que se converte em um signo que, sem deixar fazer parte da realidade material, passa a refletir e refratar uma outra certa realidade (BAKHTIN/ VOLOCHINOV, 2009, p. 31). Essa representação ultrapassa as convenções de um retrato tradicional e passa a manifestar o bem-estar do indivíduo e o espaço mais amplo de sua atuação. Esse modo de posicionar o sujeito no retrato exibe-o integrado no cenário, mas com pleno domínio sobre ele. Dom Pepe realça as características positivas de Rodrigo, idealizando-o. A transformação do retrato em signo gera ambivalências que em torno dele gravitam: foi desenhado com amor e carinho e, ao mesmo tempo, essa valoração retorna negativamente, desestabilizando a imagem do doutor. Verifica-se, nesse momento, que o retrato tem um duplo aspecto: mostra a figura grandiloquente e a realidade das ações e paixões da personagem. O pintor executa a sua obra de um ponto de vista histórico e único, segundo o seu ponto de vista e não o do retratado. Para Bakhtin “Outra coisa é meu retrato executado por um artista que tem autoridade para mim: aí temos uma janela para o mundo onde eu nunca vivo” (2011, p. 32). – Vi tudo em meus olhos, como vi o futuro de Rodrigo, quando pintei o Retrato. Está tudo lá no quadro. Vai a ver. Tudo: a glória, sua carreira, suas viagens, a Revolução de 30, o Estado Novo, as mulheres que ele amou, e também este final desastroso. (VERISSIMO, 2004a II, p. 51) [Fala de Dom Pepe] Pepe faz o quadro de acordo com seus valores. Não cobra pela obra-prima, declarando que seu trabalho era fruto de amor, e aceitar qualquer pagamento seria o 82 mesmo que se prostituir. Ao referir-se à pintura, trata-a com R maiúsculo. Pepito, como era chamado carinhosamente, deu acabamento ao seu herói. Ninguém consegue ver do mesmo lugar que o retratista, nem mesmo o retratado, pois este só consegue se ver pelo olhar dos outros, no caso, do artista. A visão exotópica do espanhol criou um homem sui generis, uma situação particular, um sentido abstrato e transcendental de sujeito, em que Rodrigo não se encontra. Rodrigo retratado tornou-se outro indivíduo, e cada pessoa que o conhece identifica-o de uma maneira, de sua extraposição. Desse modo, cada personagem tem uma percepção diferente do herói. É um retrato tão revelador que chega a ser indiscreto (VERISSIMO, 2004a II, p.125). Flora contemplava o Retrato, sacudindo a cabeça lentamente, como uma mãe diante de um filho travesso e levado. (VERISSIMO, 2004b I, p. 333). Eduardo voltou-se para o Retrato de Rodrigo Cambará que pendia da parede da sala, dentro de sua moldura de ouro velho. – Ali está o símbolo das coisas que nós comunistas combatemos. O dono da vida, o moço do Sobrado, o morgado, a flor de várias gerações de senhores feudais, muitos dos quais começaram como ladrões de gado e foram aumentando seu patrimônio por meio do saque, do roubo, da conquista à mão armada e à custa do suor e do sangue do trabalhador rural. Olha só a empáfia, a vaidade.... Parece que ele está dizendo: “Eu sou o centro do mundo, o sal da terra! ” (VERISSIMO, 2004a I, p. 348-349). No início do primeiro volume de O retrato, o leitor é apresentado à personagem, indiretamente, a partir de diversos depoimentos dos santa-fezenses, cada qual, de seu lugar, tecendo argumentos em cima de argumentos incontestáveis, que desenham um perfil antitético da personagem. Nesses discursos, que refletem a posição de sujeitos sociais, são expostas as contradições e a personalidade multifacetada do Doutor. Parecem ser revelados vários Rodrigos, cujas existências se manifestam a partir das visões construídas dos outros. Para Bakhtin, a identidade se constrói mediante a relação com o outro, todo ser humano é único, mas ele não existe senão em sua relação com o outro, pois é somente pelo outro que consegue dar sentido a ele mesmo. “Considerar o excedente de visão como parte de significação de um signo corresponde ao dialogismo, é possível 83 apreciarmos os pontos de vista divergentes que estão implicados no signo” (MACHADO, 2011, p. 131-132). Esse retrato vai-se desenhando, à medida que Cuca Lopes, oficial de justiça e também mexeriqueiro oficial da cidade, vai de um lugar a outro para falar do assunto mais comentado: a volta do Dr. Rodrigo a Santa Fé, após permanência de quinze anos no Rio de Janeiro. A conversa é transcrita em discurso direto. Em cada ambiente por onde passa, ouve-se um juízo de valor a respeito do herói, portanto, diferentes entoações. Nos exemplos que seguem, o discurso é que Rodrigo é um camarada bom, até a sua forma de brigar é emocionalmente exagerada. A entoação efusiva dada pelas personagens não deixa dúvida de que Rodrigo é um homem amável, generoso, ético, corajoso e justo. O senhor me desculpe, doutor, mas eu perco as estribeiras quando vejo uma injustiça ou uma ingratidão. Sou e sempre fui amigo do dr. Rodrigo e devo muitos favores a ele. Não é amizade de ontem, não senhor, é coisa que vem de longe. E depois, doutor, não há homem que tenha feito mais benefícios pra esta cidade que ele. No tempo que clinicava, quase ninguém pagava consulta. O dr. Rodrigo nunca fez questão. O hospital dele estava aberto pra todo o mundo, fosse rico ou fosse pobre. Tem dinheiro pra pagar? Então paga. Não tem? Pois então não paga. O dr. Rodrigo foi sempre o pai da pobreza, a casa dele sempre viveu de porta aberta, qualquer vagabundo entrava lá... – Aqui Neco lançou um olhar enviesado na direção do oficial de justiça. – ...sentava na mesa dele, comia a comida dele, bebia os vinhos dele. Hoje ninguém se lembra mais disso. O senhor já tratou com o dr. Rodrigo? É uma moça, doutor, uma flor. Quando fica brabo, é um deus-nos-acuda, é preciso quatro pra agarrar o homem. Mas quando está de boa veia, tira até a camisa pra dar pros outros (VERISSIMO, Verissimo, 2004a I, p. 37-38). Como brigava lindo o Rodrigo! Brigava dando risada e dizendo gracinhas. Pra encurtar o caso, o fervo durou uns dez minutos e quando a coisa terminou, um dos sujeitos saiu fedendo pela janela e os outros dois estavam no chão, sem sentidos. E já o Rodrigo pediu arnica e iodo pra dona da pensão e foi fazer curativos nos inimigos. Eu estava todo rasgado, com um galo na testa, um talho na mão esquerda, os beiços sangrando. Quando olhei pro Rodrigo bem de perto, vi que a camisa dele estava toda manchada de sangue. "Que é isso, Rodrigo? Te feriram?" "Não é nada", respondeu, "foi só um arranhão." E continuou rindo. Depois chamou a dona Annunciata, botou na mão dela uma pelega de cinquenta mil-réis, que naquele tempo era muito dinheiro, e disse: "Muito obrigado por não ter chamado a polícia". Ajudou a botar os dois homens numa cama e em seguida gritou: "Onde estão as raparigas?” (VERISSIMO, 2004a I, p. 39). 84 – Um homem como esse não devia morrer nunca, Cuca. É a maior injustiça do mundo. Por que será que Deus não leva um pobre-diabo como eu e deixa viver um homem como o dr. Rodrigo? (VERISSIMO, 2004a I, p. 54) Em outro momento, a avaliação que fazem de Rodrigo é de uma pessoa traidora, que foge aos seus princípios somente para levar vantagem, não importando se causaria o mal ou decepcionaria alguém. Nessa altura da narrativa, até Pepe Garcia se revolta diante da transformação de seu herói, que não ocupa o mesmo lugar que ocupara quando moço, cheio de ideais. A entoação dada é de indignação, o tom é colérico e o sujeito é descrito sem princípios morais ou éticos. Os exemplos dados mostram que a existência do indivíduo diverge e é definida à sua revelia, pois existe a impressão que ele causa nos demais, e a verdade na boca dos outros é um julgamento, afetando o juízo que o indivíduo tem de si. – E tu não vais visitar o dr. Rodrigo? – perguntou ele, só para dizer alguma coisa. Don Pepe tomou a pôr o copo em cima da mesa e, antes de responder, soltou um arroto explosivo. – Só que seja para matá-lo. – Ué? Por quê? – Porque Rodrigo é um traidor (VERISSIMO, 2004a II, p. 52). Não tem nada pra contar. O dr. Rodrigo me fez mal e eu caí na vida. (VERISSIMO, 2004a II, p. 44). Pergunte pro Mané Lucas o que é que ele pensa do Rodrigo, e ele te dirá que o Rodrigo é um miserável, um infame. E sabes por quê? Porque um dia o Mané Lucas convidou o Rodrigo para batizar-lhe a filha... O Rodrigo batizou, a menina cresceu e quando ela chegou ali pelos dezesseis, o padrinho meteu-se com ela e desonrou-a. (VERISSIMO, 2004a, II, p. 59). Tu te recordas daquele fiscal do imposto de consumo que andou por aqui em novecentos e dezenove ou vinte? Não me lembro do nome dele. Pois um dia o homem chamou o Rodrigo pra ver a mulher que estava adoentada, e deixou os dois sozinhos no quarto. Quando voltou e entrou sem bater, encontrou o Rodrigo deitado na cama com a paciente, aos beijos e abraços. Não deu um tiro nos dois por falta de coragem (VERISSIMO, 2004a I, p. 59-60). Esses diálogos apresentam o lado direito e o lado avesso da personagem, ouve-se um ressoar de entoações. Há uma relação dialógica que está em acordo ou desacordo, cada personagem tem a sua percepção, pois cada qual ocupa um lugar único no mundo e para cada um há um Rodrigo. As vozes presentes nesses 85 diálogos permitem-nos reconhecer que, mesmo que o enunciador leve em conta os discursos dos outros para formular os seus, cada indivíduo é livre para expor as suas ideias, portanto, não está assujeitado. Os exemplos citados até aqui nos permitem criar uma imagem do herói que até então não tinha aparecido na narrativa. Por meio do retrato-falado dos habitantes de Santa Fé, o leitor é levado a conceber uma feição complexa do herói: é justo, generoso, é também egoísta, só pensa em tirar proveito da situação, é ético e antiético ao mesmo tempo. Tal condição só é possível, pois, conforme esclarece Bakhtin, o ser humano está sempre em devir. O herói, portanto, é inacabado e a imagem que se faz dele não é completa. Tal inacabamento é perceptível no início de O retrato I, quando o narrador apresenta Rodrigo Terra Cambará em sua juventude, por meio da narrativa pendular. Era dezembro de 1909, Rodrigo voltava de Porto Alegre, onde cursara Medicina, e agora, já formado, dirige-se a Santa Fé. Está no interior de um trem em movimento, observa afetuosamente e cheio de entusiasmo a estrada que lhe é muito familiar. Segundo Bakhtin, a estrada é o cronotopo do encontro e esses encontros mudam a personagem: Rodrigo encontra sua querida Santa Fé, encontra os seus familiares, os seus projetos e também os pobres do Purgatório – que não são seus. Rodrigo está em um espaço diferenciado, ele se sente no seu espaço, planejando realizar grandes obras, inscrevendo-se nesse discurso de reformista benemérito. Rodrigo é o próprio Chantecler da cidadela, o galo que anuncia a chegada do dia: o tempo é idílico e ao mesmo tempo utópico. Quantas vezes, no decorrer dos séculos, sábios, santos e profetas haviam predito o fim do mundo? No entanto a Terra ali estava inteira, bela, tranquila e farta – refletiu ele, debruçado à janela do carro, a contemplar a paisagem nativa com os olhos de namorado. O fim do mundo? Não. Para ele era o princípio do mundo. Estava formado, era moço, tinha pai rico, amava a sua casa e a sua gente, sua terra, adorava a vida. Com a cabeça para fora e achando um sabor ríspido e quase heroico em receber na cara o bafo do forno da soalheira e a poeira da estrada, Rodrigo ficou a pensar nas grandes coisas que pretendia fazer (VERISSIMO, 2004a I, p. 76). O trem avança, Rodrigo atravessa paisagens, mas o ângulo de visão ainda permanece o mesmo: o vagão de um trem, em um lugar fechado. Seu campo de 86 visão é limitado, vê o mundo através de uma janela, ou seja, os de fora lhe são inacessíveis. Ao voltar seu olhar para o exterior, depara-se com aquele espaço indiferenciado cheio de miséria e sujeira. Em um mesmo tempo/espaço, concorrem duas visões de mundo distintas, a do eu daqui e a do eu dali. O herói, assim como Dom Pepe, nesse momento é o retratista e os de fora são os retratados, de forma que nenhum dos dois tem uma visão completa do outro. A exotopia, ou olhar distanciado, diz respeito ao fato de que só o outro pode dar acabamento, “Quando contemplo no todo um homem situado fora e diante de mim, nossos horizontes concretos efetivamente vivenciáveis não coincidem” (BAKHTIN, 2013, p. 21). O trem diminuiu a marcha ao entrar nos subúrbios de Santa Fé. Sentado de novo junto à janela, Rodrigo olhava para os casebres miseráveis do Purgatório e para as suas tortuosas ruas esbarrocadas de terra vermelha. E aqueles ranchos de madeira apodrecida, cobertos de palha ou capim; aquela mistura desordenada e sórdida de molambos, panelas, gaiolas, gamelas, latas, lixo; aquela confusão de cercas de taquara, becos, barrancos e quintais bravios – lembraram-lhe uma fotografia do reduto de Canudos que ele vira estampada numa revista, [...] Quanta miséria – repetiu Rodrigo, sem atentar bem no que dizia. Sempre que em Porto Alegre pensava em Santa Fé e em seus subúrbios miseráveis, prometia a si mesmo tornar-se médico dos pobres, fazer em sua terra a caridade numa proporção até então nunca vista. Enchia-se dos mais nobres propósitos. Faria visitas constantes às populações do Barro Preto, do Purgatório e da Sibéria; levaria àquela gente infeliz medicamentos de boca e dinheiro, além de palavras de conforto. Agora, porém, frente a frente com a miséria que tanto o comovia quando apenas lembrada, ele esquecia os planos para sentir apenas o que o Purgatório oferecia como quadro. Aquelas gentes molambentas, maceradas e raquíticas, vistas da janela dum trem em movimento, não o comoviam simplesmente porque pareciam fazer parte duma pintura: não eram de carne e osso, mas de tinta. E havia entre o céu e a terra tamanho contraste, que o firmamento parecia ter sido pintado a aquarela por um artista lírico e a terra a têmpera e sangue por um pintor trágico (VERISSIMO, 2004a I, p. 93-94). De sua posição é permitido ao retratista ver e entender o mundo, entretanto, para Rodrigo aquela realidade estava tão distante, tão abstrata, que ele só imaginava como um objeto estético, os pobres eram apenas representações de um pintor; o olhar de um e o do outro não coincidem. Rodrigo busca (re)conhecer o outro que só existe nas páginas de um livro. Ele tenta passar pela alteridade para entender aquela situação, ver do campo de visão do outro, passar pela conjuntura 87 daqueles que se encontravam ao lado de fora. O Doutor tem acesso a partes inacessíveis àqueles sujeitos de fora, vê axiologicamente o mundo deles tal qual eles veem. Percebemos, nesse excerto, concomitantemente, um tom de comiseração e de revolta diante daquela cena. O doutor faz planos, em monólogo interno e em discurso magnânimo, haveria de tirar aqueles cativos daquela miséria que os prendia. Os verbos utilizados estão no futuro do pretérito, indicando fatos hipotéticos, em um momento posterior ao da enunciação. Esse excedente de visão só será possível a partir do momento em que o eu daqui interagir com o eu dali, dando-lhe acabamento e, posteriormente, retornando ao lugar originário. Ao longo da narrativa, esse acabamento, contudo, não é consumado. Rodrigo entra em conflito com o seu projeto ideológico, pois se conserva no seu espaço diferenciado, não consegue interagir com o outro; o outro continua sendo o eu dali. Sua generosidade torna-se utópica, aquele quadro que tanto o impressionara se mantém apenas nas tintas de um pintor trágico. Os ideais nobres chegam ao presente só por tempo limitado. O mesmo doutor que prometera para si fazer medicina social é aquele que não suporta o cheiro da pobreza: a complacência cede lugar à irritação, ao nervosismo. Tal fato se deve porque o herói está em constante vir a ser, ou seja, a cada tempo nasce um novo homem, ao que Bakhtin denomina de eventicidade do ser. “O Rodrigo que foi ontem não é mais hoje. O que era há dois minutos não é mais agora e não será no dia seguinte” (VERISSIMO, 2004b II, p. 111). Naquela terceira semana de março, abriu o consultório. Os primeiros doentes que lhe apareceram foram pobres-diabos do Purgatório, do Barro Preto e da Sibéria. Entravam humildes e acanhados, contavam seus males, mostravam onde sentiam suas dores, iam como que amontoando todas as suas queixas sobre a mesa do médico. Rodrigo examinava-os – bote a língua... respire forte... diga trinta e três – aplicava-lhes o estetoscópio no peito, nas costas, auscultava- lhes o coração, os pulmões, e, enquanto fazia essas coisas, procurava conter o mais possível a respiração, pois o cheiro daqueles corpos encardidos e molambentos lhe era insuportável (VERISSIMO, 2004a II, p. 28). Claro, havia momentos em que simplesmente não podia aguentar o ambiente do consultório, que cheirava a suor humano, pus, sangue, éter, fenol, iodo... Era com ansiedade que esperava a hora de voltar para casa. Havia também os dias de mau humor em que lhe era difícil suportar com paciência, e mantendo o ar paternal, as longas conversas dos clientes, que nunca iam direto ao assunto, que faziam intermináveis rodeios, contando doenças passadas, não só próprias 88 como também de pessoas da família, vizinhos e conhecidos. Detestava os chamados à noite, principalmente quando o levavam a algum rancho das zonas conhecidas pela denominação geral de "pra lá dos trilhos", e nas quais se metia em bibocas, às vezes com barro até meia canela, entrando em ranchos fétidos e miseráveis, iluminados a vela de sebo (VERISSIMO, 2004a I, p. 39). No entanto, Rodrigo é o Chantecler de Santa Fé e valoriza o que as pessoas dizem a seu respeito. Por essa razão, retoma seu projeto e tem a convicção de que conseguirá atingir os seus propósitos. A entoação que dá nesses dois momentos é diferente; por um momento Rodrigo volta a ser aquele homem caridoso, cheio de piedade, que se importa com os outros. [...] Rodrigo Cambará fez um silencioso juramento. Cumpriria seus propósitos, acontecesse o que acontecesse. Sentiu-se forte, nobre e bom. Se realizasse todas as belas coisas que projetava, sua passagem pela terra não teria sido em vão. E se de algum ponto do universo Deus pudesse vê-lo e ouvi-lo... Mas Deus existia mesmo? Tornou a olhar para o céu e, tocado pela tranquila e profunda beleza da noite, concluiu que Deus não podia deixar de existir. A vida era boa, a vida era bela, a vida tinha um sentido. Estava comovido, e sua comoção era uma febre que lhe queimava o corpo e ao mesmo tempo lhe produzia calafrios (VERISSIMO, 2004a II, p. 160). O doutor leva em conta o valor de sua imagem externa do ponto de vista da possível impressão que venha a causar no outro. Rodrigo parece trazer sempre em seu interior o que os outros dizem a seu respeito, pois cada opinião é relevante para o herói, ele luta contra as imagens que o disforizam. Confundimos a voz do herói com a de outras pessoas, pois ele já imagina a réplica do outro. Notamos a coexistência de duas vozes, dois discursos em um só enunciador. Essa polêmica interna é revelada por meio do discurso indireto livre, que permite reconhecer duas vozes distintas nas mesmas palavras. A fronteira entre o que pensa a personagem e o que diz o narrador é tênue: um tom é mais calmo, o outro é de repulsa. [...]. Muitos outros – pensava Rodrigo, rodopiando com seu par numa velocidade cada vez maior – e outros. Um estroina! Um libertino! Mas um bom partido, mil vezes melhor que qualquer deles que ali dançavam. Apesar de minhas loucuras, aposto como essas mamas são capazes de me agarrar com ambas as mãos para genro! Ah, se são! (VERISSIMO, 2004a I, p. 177). As comadres estão reparando..., mas o que me importa? (VERISSIMO, 2004a I, p. 178). 89 [...] Agora – refletiu – esta bruaca é capaz de sair a espalhar que eu lhe faltei com respeito – e todas as mamas vão ficar escandalizadas e as moças não quererão mais dançar comigo. Estúpido! Por que não ficas de boca fechada? (VERISSIMO, 2004a I, p. 179). Assassino, Eu, um assassino. Nunca pensei que isso me pudesse acontecer. Meu nome nos jornais, em todos os jornais do país. Estão vendo aquele sujeito que vai ali? É o doutor Rodrigo Terra Cambará. Matou um homem. Foi absolvido, mas o remorso está acabando com ele aos poucos. Não tem trinta anos, mas está com a cabeça completamente branca (VERISSIMO, 2004a I, p. 308). Como Chantecler, o protagonista deseja ser a centralidade em Santa Fé. Ele é a vaidade que quer ser adulada. Rodrigo muitas vezes contempla-se no espelho, e nesses momentos, nunca está sozinho, pois sempre imagina a impressão que causará aos outros. Ao olhar-se no espelho, não se enxerga como realmente é, mas como crê que os outros o veem, e o que os outros veem é o corpo exterior que, por sua vez, precisa de reconhecimento e forma. A imagem do espelho é falsa, pois cada um contempla de um campo de visão: os de fora têm acesso a aspectos de Rodrigo que lhe são inalcançáveis: sua expressão, sua cabeça, seu rosto, o mundo, suas costas, partes inacessíveis ao herói, mas acessíveis aos outros, portanto, só a partir do outro é que se pode enxergar-se como totalidade. O herói quer que os outros tenham a mesma visão que ele tem de si; para tanto, precisa sair do seu lugar e assumir o lugar do outro em relação a ele, ainda que, para isso, seja necessário imaginar esse outro, produzido ficcionalmente: [...] Postou-se diante do grande espelho de moldura dourada e mirou-se nele, lembrando de muitos outros instantes do passado em que ficara naquela mesma postura. [...] a negra velha acercou-se de Maria Valéria e disse: – Sinhá, nunca vi um moço tão bonito em toda minha vida, benza-o Deus! Rodrigo ouviu essas palavras e sentiu-se feliz. Não era indiferente ao juízo que as outras pessoas – fosse quem fosse – pudessem fazer dele. Os elogios dos outros à sua inteligência e à sua aparência física, davam-lhe um grande contentamento, eram uma espécie de tônico que lhe aumentava a vontade de viver e ao mesmo tempo o desejo de portar-se de maneira a não decepcionar seus admiradores. A certeza de ser querido e admirado dava-lhe uma cálida e reconfortante sensação de confiança em si mesmo e na vida, um comovido desejo de ser bom e fazer coisas grandes e belas (VERISSIMO, 2004a II, p. 99-100). 90 Já completamente vestido, ficou ainda por longo minuto diante do espelho a mirar-se de frente, de lado, de três quartos, e a dar retoques na gravata, no penteado, no peitilho engomado e no lenço de seda [...] (VERISSIMO, 2004a I, p. 157). A imagem que ele tem de si é e não é real ao mesmo tempo. O herói busca a sua identidade que, por sua vez, se constrói na relação com o outro: o que o herói é realmente, o que é para si e que é para os outros. “[...] só pode coexistir no mesmo plano outra consciência, ao lado do seu campo de visão, outro campo de visão, ao lado de sua concepção de mundo, outra concepção de mundo” (BAKHTIN, 2013, p. 57). Rodrigo estava revoltado. Aquele cinismo cruel, aquela indiferença ante um assunto tão sério, fizeram que, pelo menos por um curto instante, ele pudesse transferir para o outro toda a indignidade de seu ato. A sensação de culpa, porém, continuava a pesar-lhe dum modo que ele queria achar insuportável. Não havia ele lido e amado a Ressurreição de Tolstói? Não falara muitas vezes nos humilhados, nos ofendidos, nos desprotegidos da sorte, prometendo a si mesmo ser seu paladino, seu templário? Apesar de todos esses propósitos, havia desonrado uma pobre menina de dezesseis anos (VERISSIMO, 2004a I, p. 231). O que realmente o preocupava – reconhecia ele, muito a contragosto, era ter de enfrentar o pai e a tia, caso estes viessem a saber do que se passara. Era-lhe detestável a ideia de cair do pedestal que com tanto cuidado erguera e em cima do qual se sentia tão bem (VERISSIMO, 2004a I, p. 233). Depois se descobrissem a coisa que seria dele? Ficaria desmoralizado (VERISSIMO, 2004a I, p. 229). No seu íntimo, o herói tem a consciência de si com um excedente de visão que lhe vem pela interação dos outros sobre si. Usando as palavras de Alvarez e Lopondo, podemos dizer que se “instala o diálogo no limiar: a personagem encontra- se entre o simulacro que constrói para esconder de si a verdade e a nova percepção dos fatos. [...]” (2012, p. 11). Verifica-se um homem dividido entre o que ele é, um sujeito que reconhece “a indignidade de seu ato”, que se sente culpado, e o sujeito que ele quer ser, um aristocrata, que não aceita a possibilidade de ter um filho com alguém que não seja de sua casta. 91 O herói está em divergência consigo mesmo e essa polêmica desenvolve-se pelo monólogo interior: No seu interior há uma voz que chama para a aventura e a outra que pondera. Se ela aparecesse, podia trazê-la para a rede: precisava de alguma coisa que o ajudasse a passar aquela noite de insônia. Estupidez, pura estupidez! Como podia conciliar seu remorso e seu arrependimento com tal desejo? O homem é um animal ilógico, um feixe de contradições (VERISSIMO, 2004a II, p. 234). O acontecimento serve para acionar as vozes interiores, que apenas aprofundam o conflito da personagem. Percebemos que não há dois diferentes emissores, e nela estão inscritas as réplicas com os valores do sujeito que enuncia. Há, portanto, duas vozes em uma só enunciação, como se fossem duas pessoas diferentes dialogando. Rodrigo entra em conflito com o tu que aparece no discurso. Não sabemos se é Rodrigo pensando ou o narrador que se dirige ao leitor ou à própria personagem. Nesse solilóquio, a personagem instala um diálogo com a sua consciência, que dá a réplica aos seus desejos: Estava tudo bem, concluiu, parado no toldo duma coxilha, sentindo no rosto a fresca brisa da manhã. Dentro de poucos dias voltaria para a cidade e Ondina seria uma apagada lembrança do passado. Se ela aparecesse grávida... Bom, mas não era quase uma tradição no Angico não terem os filhos das Carés pais certos? Ora, o conde Tolstói é o conde Tolstói e eu sou eu. Romance é uma coisa, vida é outra muito diferente. E, meu caro dr. Rodrigo, há momentos em que precisamos ter a coragem de ser cruéis e empedernidos, em benefício dum bem maior. O essencial, meu amigo, é não reincidir no erro. Faz de conta que a Ondina morreu, sumiu-se, nunca existiu. Prometo a mim mesmo que não me meterei mais com essa rapariga nem que ela me venha suplicar de joelhos (VERISSIMO, 2004a I, p. 237). O eu e o tu inscritos na consciência de Rodrigo se confrontam. Rodrigo discute consigo mesmo, não sabe mais quem ele é ou o que deve fazer, ou que papel deve assumir. A polêmica não é dirigida a ninguém, só a ele mesmo. Tenta se convencer de que era apenas um homem vaidoso, ao mesmo tempo tenta lutar pelos ideais. O herói tem consciência de si mesmo e do mundo, tem um excedente de visão que lhe vem pela interação tensa do olhar do outro sobre si. O herói chega à verdade por si mesmo, por meio de sua consciência. 92 Tentou fumar. O cigarro, porém, lhe soube mal. Jogou-o fora, irritado. Pôs-se a assobiar algo sem melodia. Olhou a lombada dos livros, apanhou um velho volume e abriu-o ao acaso. Poemas de Heine em alemão. Na margem superior duma das primeiras páginas, estava escrito um nome em tinta desbotada: Gertrude Weil. Quem seria? Mas que importa? Quem sou eu? Que sou eu? Apenas um vaidoso, um feixe de apetites e contradições? Um homem decente? Um farsante? Que devo fazer? Voltar atrás, ou continuar lutando? Claro que vou continuar! O tipógrafo tuberculoso não será a última vítima desses bandidos (VERISSIMO, 2004a I, p. 277). Verificamos que Rodrigo é multifacetado: a alma exterior sobreleva a alma interior, fragmenta-se e desdobra-se conforme as decisões que toma. Conhecemos a personagem a partir dela mesma, das reflexões que tem de si e a de que os outros têm sobre ela, adentramos sua consciência e sua autoconsciência por meio do monólogo interior. O indivíduo procura estar em ajuste consigo mesmo, mas o ponto de vista do outro, distinto do seu modo de ser e de agir, provoca o conflito, experiência que gera sofrimento ou desequilíbrio. A necessidade de se descobrir cobra-lhe um reconhecimento de si nesse limiar, um norte para a sua existência. 2.3 O Retrato: o duplo antagônico de Narciso Anteriormente, esclarecemos que doutor Rodrigo, herói antitético, na sua trajetória de estancieiro, foi uma figura importante na sociedade santa-fezense. No Rio de Janeiro, quando do Estado Novo, no entanto, teve a sua queda após a deposição de Vargas e foi o responsável pela desagregação do clã Terra Cambará. É uma personagem marcada por contradições que projetam e consubstanciam outros sujeitos como o Retrato (em letra maiúscula, pois agora não mais enquanto objeto), Rodrigo por ele mesmo e Floriano Terra Cambará, que sobreviverão ao próprio eu inicial, a gênese. Podemos dizer que a personagem em foco, Rodrigo Terra Cambará, aponta para muitos desdobramentos além dos citados anteriormente, como a imagem que ele quer ter de si (a de sujeito benemérito) e as imagens que a sociedade de Santa Fé tem dele, como vimos na análise das falas das personagens. Nos desdobramentos identitários, o sujeito perde a sua autonomia, porque, cindido, não é o Eu e também não é o Outro. Vive na fronteira entre o que é e o que deseja ser ou a imagem pública que recusa ser. Tal perfil 93 psicológico conduz-nos a uma proposta de leitura da obra, que pode ser visualizada no seguinte esquema: O RET RATO O CONTINENTE O ARQUIPÉLAGO Rodrigo Terra Cambará (persona e sombra) Passado Retrato- persona Sombra- futuro Floriano (sombra) Apropriando-nos da alegoria proposta por Tymms, utilizamos a imagem do deus romano Jano para simbolizar o retrato de Rodrigo Terra Cambará numa alusão ao fato de que, embora com olhos postos no futuro representado em Floriano, não consegue se desvincular do passado representado pelo Retrato. Ademais, conforme sugere Tymms, Jano simboliza o lado consciente e inconsciente da personagem, o que nos encaminhará ao estudo das múltiplas faces do herói. Na figura acima, Jano representa o Retrato pintado por Pepe Garcia. Nele a personagem principal se encontra exatamente em um ponto de transição entre o passado e o futuro. Jano é a divindade das portas, portões, passagens, início e fim de conflitos, transições como a progressão do passado para o futuro. Doutor Rodrigo distingue-se de seus coetâneos e dos demais estancieiros pelo fato de ter sido o primeiro membro de sua família e da cidade de Santa Fé a obter um diploma de curso superior. À educação formal, consagrada no “doutor” agregado ao nome da 94 personagem, soma-se a cultura adquirida durante os estudos em Porto Alegre – onde conviveu com um mundo urbano em franco desenvolvimento e travou conhecimento com a modernidade europeia, cuja referência era Paris – e o mundo rural de seu clã, simples, sem requintes, que redundará em uma personagem multifacetada. As vivências de Rodrigo afloram um intelecto progressista que quer pugnar pela introdução em Santa Fé (especialmente no Sobrado) de modernidades como aquecimento de água, eletricidade, telefone, automóvel, gramofone, cinema, além de móveis novos e quadros. Ele próprio se apresenta diferente: rejeita a indumentária gaúcha e veste-se de uma forma mais citadina, em consonância com a moda europeia. Francófilo, só usa perfumes franceses, acompanha a cultura e as artes por meio de assinaturas de revistas francesas e, paradoxalmente, nunca esteve nem nunca viria a conhecer a Paris de seus sonhos. Além disso, aprecia champanhe, vinhos, patês, salsichas e caviar, destacando assim seu cosmopolitismo, sofisticação e refinamento. Considera-se imbuído da missão de civilizar uma parte do mundo ainda à margem da civilização. Promove frequentes e longos serões no Sobrado, onde ele e seus convidados, em meio à boa mesa e boa música, discutem política, artes, filosofia e ciências. Estava decidido a conquistar Santa Fé, a submetê-la à sua vontade, a moldá-la de acordo com os seus melhores sonhos. Não se deixaria dominar por ela. Jamais se entregaria ao desânimo à rotina. Jamais seria um maldizente municipal como o Cuca Lopes e muito menos um capacho como o Amintas. Não perderia de vista Paris e não esqueceria nunca que o mundo não termina no município de Santa Fé (VERISSIMO, 2004a I, p. 159). Entretanto, doutor Rodrigo não renega suas origens. Ele é e continuará sendo continuamente um estancieiro, aristocrata rural e caudilho. Seus ímpetos reformistas e contemporâneos inclinam-se à satisfação pessoal com a vida urbana e seus confortos e status, em oposição à vida rural e sua rusticidade. Rodrigo é Jano olhando para frente (o futuro) sem, contudo, deixar de olhar para trás. Essas duas faces de Rodrigo corroboram a afirmação de Clément Rosset no que tange ao aspecto de que uma das formas de desdobramento é fugir da realidade apoiando-se no passado ou no futuro. 95 Rodrigo saboreava o Angico com os cinco sentidos. Esquecido agora dos perfumes franceses, apreciava discriminadamente os cheiros da estância, chamava para eles a atenção de Bio quando este lhe garantia que não distingui-los uns dos outros, exclamava com fingida impaciência: – Estás com o olfato embotado! É preciso ter um nariz civilizado para distinguir os cheiros, perceber suas nuanças... O galpão recendia a cinza fria, couro curtido e a suor humano mesclado com suor de cavalo. Havia, porém, horas em que cheirava a fogo vivi ou brasa ou água fervente [...] Se eu fosse músico – pensou Rodrigo num dia em que estava estendido na rede, sob os cinamomos –, havia de compor um poema sinfônico descritivo do Angico (VERISSIMO, 2004a II, p. 224-225). O jovem doutor Rodrigo retorna a Santa Fé transbordante de novas ideias e logo começa a se tornar uma figura consagrada pelas suas atitudes em defesa de seus ideais. Por meio de ações pias, nascidas da satisfação de se sentir superior aos outros, notamos o desvanecimento de Rodrigo captado, entre outras formas, no exercício de autoadmiração no espelho. “Estava de rosto recém-escanhoado e passara alguns minutos diante do espelho a escolher uma gravata que combinasse com o tom de palha da fatiota” (VERISSIMO, 2004a I, p. 300). A autocontemplação do herói remete-nos imediatamente ao mito de Narciso. Segundo Ovídio, em Les métamorphoses (1966), tendo Tirésias sido consultado por Liríope, mãe de Narciso, sobre o destino de seu filho, o adivinho “vaticina que ele [Narciso] viveria até a velhice desde que não se conhecesse. Para impedir a realização dessa profecia, a mãe procura criar seu filho sem que ele veja a sua própria imagem” (ALVAREZ, 2011, p. 72). Quando jovem, um certo dia, se olha no espelho d´agua, descobre a sua imagem e passa a amá-la. Na interpretação de Alvarez, esse “gesto revela que Narciso tem a potencialidade de ver; no entanto, “a libido mina sua capacidade de autoconhecimento, e ele mergulha no vazio, morre” (2011, p. 74). Narciso representa a arrogância, a insensibilidade, o autocentramento. Assim como Narciso, constatamos em várias passagens do livro o apavonado Rodrigo enamorando-se de sua imagem refletida. À frente do espelho, em ceroulas e de tronco nu, os pés metidos em chinelos, Rodrigo examinava o rosto com amoroso cuidado (VERISSIMO, 2004a I, p. 153). Rodrigo sorriu, parou diante do grande espelho e ajeitou na cabeça o chapéu-do-chile (VERISSIMO, 2004a I, p. 158). 96 Uma tardinha pós o banho, Rodrigo vestiu uma roupa de linho branco, e ficou muito tempo no espelho [...] (VERISSIMO, 2004a I, p. 252). Levantou-se, subiu ao quarto, escovou os dentes e postou-se diante do espelho, numa toalete demorada (VERISSIMO, 2004a II, p. 76). Segundo Antonio Candido, o espelho sugere a alegoria da sombra perdida, corrente na demonologia e tornada famosa no Romantismo pelo Peter Schlemilh, de Adalbert Von Chamisso (1995, p. 28), e é um elemento que personifica a duplicidade. Já Umberto Eco, no artigo intitulado “Sobre os espelhos”, define o espelho como “qualquer superfície regular capaz de refletir a radiação luminosa incidente” (ECO, 1989, p. 13), demarcando as fronteiras entre o real e o imaginário. O espelho mostra a maneira pela qual os outros nos veem, todavia, pode causar enganos perceptivos. Para Eco, “[...] o espelho, no mundo dos signos, transforma-se no fantasma de si mesmo, caricatura, escárnio, lembrança” (ECO, 1989, p. 37). Segundo Cavalcanti, a contínua prática de se autoadmirar provém do fato de julgar-se grandioso e da necessidade de conquistar a simpatia e a aprovação das outras pessoas. Os narcisistas usam uma persona a fim de mostrar aos outros um modelo perfeito e identificam-se com ele na busca da autoestima. [...] Rodrigo saiu para visitar Flora – depois de haver passado longos minutos diante do espelho a pentear-se e a aperfeiçoar o nó da gravata [...] (VERISSIMO, 2004a II, p. 68). Rodrigo desfruta de uma posição social de prestígio e, ao apresentar uma pseudo-imagem, quer se manter nesse lugar de deferência. Importa para o herói a imagem social que apresenta, quer parecer impecável aos olhos alheios, a fim de esconder o seu lado obscuro. Seu narcisismo nada mais é que uma forma quimérica de encobrir o alter ego; desse modo, a imagem refletida no espelho não é o sujeito, mas um duplo. No dia seguinte, saltou da cama muito cedo, tomou um rápido banho de chuveiro e depois começou a barbear-se diante do espelho. Por que estava com aquela cara de ressaca? – perguntou-se a si mesmo, examinando a imagem que o vidro refletia (VERÍSSIMO, 2004b III, p. 104-105, grifo nosso). 97 Rodrigo acariciava o próprio rosto. Nos primeiros dias da campanha costumava barbear-se pelo menos duas vezes por semana. Depois, fora aos poucos relaxando o costume e concluíra que que o melhor seria deixar crescer a barba. De vez em quando mirava num espelhinho de bolso e tinha a curiosa impressão de “ser outra pessoa”. E não era? (VERISSIMO, 2004b I, p. 341, grifo nosso). Ao olhar-se no espelho, Rodrigo desloca-se para outro ponto interagindo consigo mesmo através das imagens refletidas que projetam não ele próprio, mas o eu destinado a agradar e a não decepcionar o ego ou os seus admiradores. Conforme esclarece Rosset: “Mostrando-lhe que é diferente do que pensa ser, espero secretamente que ele seja diferente do que é, imaginando confusamente que ele poderia realmente não ser ele mesmo, mas justamente o outro” (2008, p. 97). Rodrigo foi até o lavatório, tirou o chapéu, postou-se diante do espelho, lavou o rosto, enxugou com um lenço e por fim penteou-se com muito esmero. Observou, contrariado, que tinha os olhos injetados, o que lhe dava – achava ele – um ar de bêbedo ou libertino. Isso lhe era desagradável, pois não queria logo de chegada causar má impressão aos que o esperavam na estação. Piscou muitas vezes, revirou os olhos, umedeceu o lenço, tornou a passá-lo pelo rosto, pôs a língua para fora e quedou-se por um tempo a examiná-la. Ajeitou a gravata. Tornou a botar o chapéu, recuou um passo, lançou um olhar demorado para o espelho e voltou para seu lugar (VERISSIMO, 2004a I p. 93, grifo nosso). Como já examinamos anteriormente, nessa mesma linha, Rosset assevera que o espelho possui uma natureza enganadora ao mostrar não o eu, mas o outro em um reflexo invertido que nos leva à falsa evidência, uma vez que é difícil para o indivíduo aceitar a realidade. Diante da passagem do tempo, por exemplo, Rodrigo fica apreensivo diante da perspectiva de que as marcas da maturidade aparecerem em seu rosto, levando embora a sua beleza e evidenciando a sua idade. No dia em que completou quarenta anos, Rodrigo acordou sombrio como o céu daquela ventosa manhã de outubro. Recebeu sem entusiasmo os abraços e presentes dos membros de sua família e, durante todo o dia, plantou-se muitas vezes na frente do espelho, a examinar o rosto com um interesse cheio de apreensão (VERISSIMO, 2004b II, 249, grifo nosso). Nessa busca obstinada por uma imagem análoga à do espelho, doutor Rodrigo encontrará materialidade do Outro, no Retrato. 98 Ele olhou para o seu próprio retrato de corpo inteiro, namorou-se por alguns instantes e por fim murmurou: “estou envelhecendo, Sílvia”...[...] Qual! O senhor parece um quarentão quando muito. Nenhuma ruga. Pouquíssimos cabelos brancos [...] Ele sorriu satisfeito e acendeu um charuto. E o homem do charuto não era o mesmo homem que tinha olhado triste para o retrato (VERISSIMO, 2004b III, p. 366). Tudo começou nos finais de 1910, na azáfama preparatória para seu casamento com Flora: compra de mobília, roupas, e, completando a faina, tirou várias fotografias. Embevecido, mostrou-as aos amigos, porém Pepe Garcia reprovou todas. Essa personagem posicionava-se de modo distinto do Doutor Rodrigo: anarquista, vociferava contra a Igreja e as classes dominantes. Iconoclasta, considerava até mesmo o assassinato como uma forma artística. Bêbado, parlapatão e artista fracassado, no entanto tinha por baixo das cinzas da mediocridade as brasas da genialidade. Até então, os retratos produzidos pelos artistas do Rio Grande do Sul eram óleos de ancestrais ilustres, dos próprios estanceiros ricos ou ainda de políticos importantes como Júlio de Castilhos em que, de acordo com a opinião de Dom Pepe, “no tien[ía]n alma” assim como também postula a máxima positivista de que "Os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mortos", inscrita no túmulo do referido político. Há muito o homem sente-se perplexo diante da finitude da vida. Podemos observar tal aspecto no afresco medieval de 1480 (aproximadamente) inscrito na igreja Härkeberga, localizada em Täby, Suécia. Nele o artista Albertus Pictor representou a morte jogando xadrez com um homem, já que os medievais pressentiam sua vinda, tinham visões que anunciavam a sua chegada e tentavam de alguma maneira driblá-la. Jogo de xadrez com a morte, 1480 Albertus Pictor (1440-1507) pintura mural Igreja em äby, Suécia. 99 Nessa representação, o homem joga uma partida de xadrez com a Morte personificada, como uma alusão à tentativa de se eternizar. O homem nunca vencerá uma partida dessa natureza, nunca driblará a morte. A imortalidade pode ser, segundo alguns, um atributo da alma, não do corpo. Rank afirma ainda que os retratos constituem um meio de assegurar a eternidade; ao ser retratado, o sujeito afasta-se da morte. Além disso, a pintura também assume um papel simbólico, pois capta um momento muito particular e único do indivíduo. Pepe propõe imortalizar Doutor Rodrigo em um quadro que capture não só seu corpo, mas também a sua alma: – Mas que achas de mau nesses retratos? Não estão parecidos? A qualidade da fotografia não é boa? Ou é a pose? Vamos, explica-te! – No tienen alma. Están muertos. – Que queres dizer com “no tienen alma”? – Mira, angelito, ¿qué vemos en estas fotografías? La imagen miniatural, em sepia, de un hombre. Pero quién puede decir, al ver esas figuritas, cómo es ese hombre, lo qué piensa, lo qué siente? – Mas como é possível uma fotografia exprimir tudo isso? – Ah! Dices bien, cómo es posible que una fotografía?... Bueno! Eso es lo que está mal. Una cámara fotográfica es una máquina y una máquina no tiene alma... [...] – Rodrigo, me gustaría pintar tu retrato de cuerpo entero... No! De alma entera! Rodrigo lançou-lhe um olhar enviesado. – Como pintaste o do Coronel Teixeira? – Oh, hombre, no, tú eres diferente. Ah, hijo, si consigo hacer lo que me imagino, esa será la gran obra de mi vida. Después de eso enterraré mis pinceles y mi paleta. Rodrigo sorria, já seduzido pela ideia. Ver-se retratado em cores, de corpo inteiro, não seria mau... O diabo do espanhol era habilidoso e, quando queria, era capaz de apanhar o aprecido de seus modelos. Quem sabe? – Ya estoy a ver la obra acabada... Los hombres la miran y descubren tu alma, como si fueras transparente. Porque en el retrato estará no solamente tu cuerpo, pero también tus pensamientos, tus deseos, tus pasiones, tu pasado, tu presente y tu futuro. – Basta, Pepito. Eu me contento com o presente. Se me pintares bem como sou hoje, ficarei satisfeito. – Pero yo no me contentaré con menos que la perfección. Todo o nada. Las cosas hay que hacerlas con pasión o no hacerlas. Quédate inmóvil. Ya veo todo. Tamaño natural, una ropa negra. La postura? Bueno, nada de convencionalismos burgueses; el modelo sentado en una silla, con la faz apoyada en la mano derecha, la izquierda apretando un libro. Nada de eso! Te veo en la cima de una colina a mirar el horizonte, el porvir, la gloria... El viento te agita los cabellos, tu hermoso rostro... – Pepe! – sorriu Rodrigo. – Isso até parece uma declaração de amor... 100 – Y por qué no?, coño, en el momento en que estaré pintando yo te amaré como solo un artista sabe amar... Pero no me interrumpas... El fondo del cuadro será formado por las cuchillas y por el cielo de tu tierra, pero el observador tendrá la impresión de que en el fondo está el infinito. – Qual é a cor do infinito? – Me burlas, no? Crees que estoy borracho, no? Pero ya tengo el título para el cuadro. Puede llamarse El favorito de los dioses... Rodrigo sorria, imóvel, como se fosse já a sua própria imagem pintada na tela. De súbito, como numa revelação, o pintor exclamou: – Chantecler! Sí, tú eres el Gallo. Tu canto ha hecho el sol alzarse en el horizonte, y ahora el sol te acaricia el rostro. Es la mañana de tu vida... (VERISSIMO, 2004a, II, p. 116-117). A obra de Dom Pepe, de acordo com a descrição anterior, foge completamente ao padrão vigente. Contrasta o mundo dos mortos, que insiste em continuar governando os vivos, com aquele moço transbordante de vida e senhor de seu destino. O retrato revela, do ponto de vista do artista, a interioridade do sujeito, sua alma, seus pensamentos. O pintor é o criador, e a obra a criatura em toda a sua perfeição. Pepe não expõe exatamente a alma de Rodrigo, e sim aquela que ele confere ao retratado, ou seja, não é o retrato do modelo, mas a imagem que dele o artista o vê, assim como na obra literária O retrato de Dorian Gray. O retrato exibe o duplo de Rodrigo, já que constitui uma projeção modelar de sua própria identidade. Outro ponto a ser considerado é que Rodrigo e os demais cidadãos o reconhecem; todavia, aquela beleza no retrato é eterna, enquanto a do homem é passageira. [...]. Ao ver a própria imagem na tela, Rodrigo sentiu como que um soco no plexo solar. Por um momento a comoção dominou-o, embaciou-lhe os olhos, comprimiu-lhe a garganta, alterou-lhe o ritmo do coração. Quedou-se por um longo instante a namorar o próprio retrato. Ali estava, nas cores mesmas da vida, o dr. Rodrigo Cambará, todo vestido de preto [...]. A mão esquerda metida no bolso dianteiro das calças, a direita a segurar o chapéu-coco e a bengala. O sol tocava-lhe o rosto. O vento revolvia-lhe os cabelos. E havia no semblante do moço do Sobrado um certo ar de altivez, de sereno desafio. Era como se – dono do mundo – do alto da coxilha ele estivesse a contemplar o futuro com olhos cheios duma apaixonada confiança em si mesmo e na vida. [...]. Tornou a contemplar o quadro. Havia naquela figura uma poderosa expressão de vitalidade. Era o retrato de alguém que amava intensamente a vida, que tinha ânsias de abraçá-la, de gozá-la totalmente e com pressa. Sim, ele se reconhecia naquela imagem: a tela mostrava não apenas sua aparência física, as suas roupas, o seu “ar”, mas também seus pensamentos, seus desejos, sua alma (VERISSIMO, 2004a I, p. 124). 101 De imediato vemos Doutor Rodrigo maravilhando-se de sua imagem no Retrato, tal qual vinha fazendo com os espelhos, porém com uma notável diferença: executado com maestria, o retrato é na verdade um espelho que captura uma imagem idealizada e engana a alma exterior de Doutor Rodrigo; é o fortalecedor do ego, uma vez que as pessoas se enamoram dela. Simultaneamente, volta-se contra o herói, pois salienta aquilo que Rodrigo não é, fato reconhecido dias depois pelo próprio pintor que, bêbado, brada, apontando para o Retrato, que “Aquél, si, es mi amigo. Mi único amigo. Pero tú, tú, eres un impostor” (VERISSIMO, 2004a II, p. 143). Com o passar do tempo, Rodrigo continua um homem atraente, mas conserva só o seu absoluto físico, perdendo seus valores éticos e morais. O Retrato, como seu absoluto moral, torna-se um duplo antagônico, em razão de reter a juventude, o frescor, o ideal de um homem que um dia existira. Nesse ponto, podemos identificar que o Retrato torna a imagem de Rodrigo unheimlich: é ao mesmo tempo familiar, posto que a aparência é a mesma, e estranho, posto que um se distanciou do outro. Jano com sua face jovem olha confiante para o futuro, ao mesmo tempo que a face barbada e veterana, representada pelas coxilhas e o céu de Santa Fé, prende-o inequivocamente ao passado. Era também com alguma frequência que se plantava na frente do próprio retrato, na sala de visitas, admirando-se como num espelho mágico que lhe refletisse não a imagem daquele momento, mas a de 1910 (VERISSIMO 2004b, II, p. 239). Acendeu a luz da sala de visitas e ficou por alguns instantes parado por alguns na frente do Retrato. O outro Rodrigo lá estava no topo da coxilha, a olhar para o futuro com certa arrogância (VERISSIMO, 2004a II, p.286). No entanto, o presente materializado em tintas reflete, na verdade, não o Doutor Rodrigo, mas o seu inverso, o seu contrário, a sua projeção. Esse retrato é a concretização da imagem positiva que doutor Rodrigo cuidadosamente construiu para si, para a família e para a sociedade. Nesse repositório de virtudes estará depositada a beleza, o idealismo, a coragem e a generosidade. No entanto, as tintas com as quais doutor Rodrigo-homem vai sendo pintado ao longo dos anos são corrosivas, o bem ficará em tintas e o mal, em carne e osso. 102 Olhava para o Retrato com certa animosidade. Aquele outro Rodrigo chegava a parecer-lhe insuportável em sua serenidade olímpica. Chegou a invejá-lo. Bons tempos aqueles em que não tinha cuidados nem problemas! (VERISSIMO, 2004a II, p. 309). A incapacidade de sustentar a imagem, vista no descolamento entre Doutor Rodrigo-retrato e Doutor Rodrigo-homem transforma-se em dúvidas e angústias, que podem ser vistas em diálogos travados entre um e outro contra ideias que são incompatíveis com o verdadeiro eu por meio da diatribe. De acordo com Bakhtin, a diatribe é um gênero retórico “construído habitualmente em forma de diálogo com um interlocutor ausente, fato que leva à dialogização do próprio processo de discurso e pensamento” (BAKHTIN, 2013, p. 137). Ele “é um instrumento retórico privilegiado para explorar o diálogo da personagem no limiar, abrigar o embate das contradições” (ALVAREZ; LOPONDO, 2012, p. 8). [...] tornou a olhar para o Retrato e quedou-se num diálogo mental com o Outro: Qual é a tua opinião? Tudo pode acontecer. Mas não será bom parar enquanto é tempo? Agora é tarde. Eu sei... Desde o princípio sabias que um dia havia de ser tarde, mas quiseste criar o inevitável. Acho que ela gosta de mim. E de mim também. Ah, mas tu estás preso nessa tela, és de tinta, ao passo que sou de carne e osso e nervos! (Verissimo, 2004a II, p. 247). Os duplos divergem: um é tudo como objeto e nada como sujeito. O homem revelou-se como um antípoda moral, torna-se moralmente deteriorado e o Retrato deixa mais evidente o fracasso de Rodrigo enquanto sujeito, um passa a ser a sombra do outro. O Retrato, agora o unheimlich, o outro que não é somente o seu semelhante, mas o outro especular, o intruso, o que o inquieta e o interpela por diatribe, revelando a ambivalência dos dois Rodrigos. Seus olhos então deram com o Retrato, lá na parede da sala de visitas, e ele teve a sensação de que era surpreendido por um estranho num momento de absoluta nudez espiritual em que ficavam à mostra todas as suas fraquezas. [...] 103 Não mas... e a maneira como me olha? E sua perturbação quando está perto de mim? E os apertos de mão demorados? Imaginação tua. Qual! Nunca me engano. Mas desta vez foste logrado. [...] Bem feito! Vives te iludindo com as pessoas. Mas não. Tudo isso deve ter uma explicação. Tira a coisa a limpo! Como? Fala com ela. Fala claro. Abre o coração. Não desci a tanto. Um homem tem seu amor-próprio. Então trata Toni como merece. Despreza-a. É o que vou fazer. A primeira vez que ela entrar nesta casa encontrará em mim um estranho. Está tudo acabado. (VERISSIMO 2004a I, p. 261-262). Apreendemos a cisão de Rodrigo-retrato versus Rodrigo-homem, quando o seu duplo, o desdobramento de sua consciência, não se coloca mais em uma posição protetora, mas acusadora ou mesmo de abandono. Olhava para o retrato, com a impressão de que o outro lhe sabia o grande segredo. De certo modo aquele Rodrigo de tela e tinta não teria uma qualidade fantasmal? Pertencia a outro tempo e a outra dimensão (VERISSIMO, 2004b, II, p. 151). Dirigiu-se para a sala de visitas, onde se defrontou com o Retrato. Sentiu-se quase na obrigação de dar explicações ao outro. Mas limitou-se a murmurar para si mesmo um palavrão (VERISSIMO, 2004b, III, p. 65). Doutor Rodrigo substitui os espelhos pelo seu magnífico Retrato, que por sua vez adquire uma personalidade própria, absorvendo e retendo a virtude de Doutor Rodrigo: o que deveria ser o instrumento de perpetuação do ser, na tentativa de enganar a morte, acaba por ajudar na sua destruição, na medida em que materializa a diferença entre o que pretendia ser e o que de fato é. A alma de Rodrigo fica aprisionada no Retrato, a estampa é que se perpetua. [...]. Tornou a olhar para o Retrato. O outro Rodrigo, lá daquela longínqua colina de 1910, parecia perguntar-lhe: “Até que ponto estás sendo sincero? Até onde acreditas mesmo no que dizes? ” Ele franziu a testa e respondeu mentalmente: “Estou sendo absolutamente sincero. Acredito em tudo” (VERISSSIMO, 2004b, II, p. 232). Rank (2013, p. 60) enumera certas características do duplo: uma imagem absolutamente semelhante à do protagonista e que lhe aparece, em geral, em um 104 espelho. Na obra de Erico Veríssimo, o retrato faz às vezes do espelho, mas ao contrário desse duplo que lhe dá satisfação, o outro lhe embaraça a vida. Nesse momento o tema do doppelgänger emerge, tudo aquilo que deveria estar oculto, em segredo, se revela: o retrato é a incômoda lembrança de alguém que doutor Rodrigo que ele buscava ser e que efetivamente não é. A imagem do retrato acaba transformando-se em uma consciência que persegue e atormenta Doutor Rodrigo. O duplo perde seu propósito original de proteção e torna-se persecutório, aterrador, expondo justamente aquilo de que se procurava escapar. Dom Pepe atribui ao Retrato os seus ideais e as próprias esperanças, mas as contradições impostas pelas tensões sociais acabam aprisionando Rodrigo. [...] o retrato é profético, é mágico, porque dentro dele está tudo: Don Rodrigo aos vinte e quatro anos, seu passado, seus antepassados e também seu futuro com todas as suas vitórias e derrotas [...] Esse Rodrigo que está aí é o cadáver do outro (VERISSSIMO, 2004a I, p. 50-51). Ocorre exatamente o oposto de O Retrato de Dorian Gray: aqui o homem permanece na juventude, na sua beleza e esplendor, enquanto o retrato padece envelhecendo e tornando-se decrépito. Rodrigo, com o passar do tempo, corrompe- se, e o Retrato permanece com a alma do pintor: o duplo antagônico aniquila o outro. 2.4 As Múltiplas faces de Rodrigo Terra Cambará: o herói moderno segundo a perspectiva psicanalítica Algun dia En cualquier parte Has de encontrarte contigo mismo Y solo de ti depende Que sea la más amarga de tus horas O tu momento mejor. M. de Combi 105 Dentro de cada um de nós há um outro que não conhecemos. Ele fala conosco através dos sonhos. Jung Pudemos constatar, com as teorias psicanalíticas apresentadas no capítulo 1, que vários autores, no que tange ao estudo da duplicidade, reconhecem que dentro do indivíduo coexistem, simultaneamente, duas forças antagônicas, o Bem e o Mal, que nada mais são que o diálogo entre o consciente – o ego, a persona, e o inconsciente – o id, a sombra. Tal fato se dá, segundo Melanie Klein, porque, em um determinado estágio da infância, o ego bom, por algum motivo, não se separou do ego mau, irrompendo em um alter ego. O indivíduo, portanto, é cindido entre o que ele é e o que desconhece de si. A natureza psíquica do homem, a sua interioridade, é marcada por antagonismos. “– Tudo é relativo na vida. Nós todos temos muito de anjo e demônio dentro de nós” (VERISSIMO, 2004a I, p. 59). O indivíduo procura o bem e tenta evitar o mal, uma vez que aprende a pensar, sentir e agir em termos de certo ou errado, moral ou imoral, legal ou ilegal, conceitos que direcionam a sua existência desde o nascimento. Essa dualidade é um aspecto arquetípico da natureza humana, estabelecendo crises e conflitos. A partir do Cristianismo, associa-se o mal geralmente ao diabo, demônio, Lúcifer, Satanás, ao fogo e às trevas, constituindo-se imagens simbólicas para representar os conteúdos não aceitáveis em determinadas culturas. Já o que é aceitável, o bem, é associado a Deus, aos anjos, aos santos, à luz e ao firmamento. Tais asserções são verificadas no início de O retrato, na apresentação do herói, por meio do diálogo entre duas personagens, Cuca Lopes e Pitombo, que discutem acerca da dualidade em Rodrigo. – Tudo é relativo na vida. Nós todos temos muito de anjo e demônio dentro de nós” – E o Doutor Rodrigo será mais anjo que demônio? – Isso é uma questão de ponto de vista. Depende... – É. Depende...” (VERISSIMO, 2004a I p. 59, grifo nosso). O narrador corrobora com tais asserções, ao apresentar a personagem envolta em uma série de contradições, pela alternância de seu temperamento, que ora avança, ora recua nos seus intentos. É Jano que olha para frente e para trás, 106 oscila entre o passado e o futuro, entre o mundo rural e o urbano. É a tradição e a ruptura, é cosmopolita e provinciano, é guardião dos desvalidos, e ao mesmo tempo aquela gente lhe causa repulsa. Sua identidade caminha por caminhos contraditórios, pois sua tábua de valores é frágil. Narcisista, prima por sua apresentação: sua casa é confortável, sofisticada. No mobiliário concorrem peças antigas, tradicionais, peças modernas até então inexistentes na cidade, como o gramofone. É o primeiro da cidade a ter um automóvel, ao receber os convivas faz questão de servir iguarias em uma época de difícil importação. Sempre barbeado, perfuma-se com essências francesas, veste-se impecavelmente, sendo considerado um dândi: “– Naturalmente queres dizer que eu sou um dândi” (VERISSIMO, 2004a I, p. 102). Antoine Compagnon apresenta-nos o perfil dessa figura: [...] homem rico, ocioso e que, mesmo entediado de tudo, não tem outra ocupação senão correr ao encalço da felicidade [...] enfim, cuja única profissão é a elegância, sempre exibirá, em todos os tempos, uma fisionomia distinta, completamente à parte (COMPAGNON,1999, p. 139). Portanto, Rodrigo destaca-se dos demais habitantes da cidade por seu cosmopolitismo, sua avant-garde. Inferimos dessas idiossincrasias a dualidade feminino versus masculino: a vaidade, o zelo com a casa, a preocupação em manter os objetos antigos, a necessidade de ter as pessoas à sua volta, ou seja, episódios ligados à permanência, à manutenção do status-quo, à coragem revelam a anima, seu absoluto moral. A vontade de progredir, de ser o gaúcho valente e varonil, as suas ideias obstinadas revelam o seu animus, seu absoluto físico. Tirou do bolso o termômetro de ouro – presente de sua madrinha – e ficou a olhar fixamente para ele. Seu primeiro e mais importante cliente havia sido sua própria terra natal, que sofria com o marasmo crônico e pavores noturnos. Quem estava com febre alta, era Santa Fé. Ele, Rodrigo Cambará havia provocado essa febre. A cidade saíra de seu torpor, a cidade delirava. E sentia isso no ar, no jeito como as pessoas o fitavam na rua... (VERISSIMO, 2004a I, p. 313). Analisemos em Doutor Rodrigo as diversas contradições de sua personalidade e conduta. Segundo Thomas Hyde (apud Kalina; Kovadlof, p. 103), em um ser moram duas forças opostas, o Bem e o Mal, que disputam o mesmo seguimento de tempo e espaço. Relacionando este pensamento à conduta da 107 personagem, podemos dizer que ao chegar a Santa Fé, Chantecler/Rodrigo, com o seu penacho, se propõe a melhorar a vida das pessoas, praticar a medicina social, defender os infelizes. Agora naquele trem viajava um homem de vinte e quatro anos que trazia nas veias o sangue do cap. Rodrigo. Era o primeiro Cambará letrado na história da família, primeiro vestir um Smoking e a ler falar francês. Levava na mala um diploma, de doutor (e agora uma imagem maravilhosa lhe ocorria) e podia, ou melhor, devia usar esse diploma como o cap. Cambará usara sua espada: na defesa dos fracos e dos oprimidos. O fato de o progresso ter entrado no Rio Grande não significava que o cavalheiro e a coragem do gaúcho tivessem de morrer! Não! Seu penacho devia ser mantido bem alto, pensou Rodrigo num calafrio de entusiasmo. Sim, manter o penacho – podia resumir nessa simples frase um másculo programa de vida (VERISSIMO, 2004a I, p. 77). Tão logo abriu seu consultório, aderiu à prática de uma espécie de medicina social, na qual não cobrava pelas consultas ou remédios receitados aos necessitados, firmando assim uma reputação de altruísta e benfeitor. Alegrava-o também saber que era o ídolo da pobreza e que em certos ranchos do Barro Preto, do Purgatório e da Sibéria era venerado como de um santo. [...]. Enfim, refletia Rodrigo, seus planos se realizaram, seu programa de vida se cumpria. Estava fazendo alguma coisa pelos pobres de sua cidade natal. Só de sua cidade? Não. Já lhe chegavam clientes do interior, das colônias, de outros municípios.... Começava a ser respeitado — ele via, sentia — e não havia a menor dúvida de que era amado. Tudo isso lhe dava uma profunda satisfação íntima, uma reconfortante paz de espírito (VERISSIMO, 2004a II, p. 38-39). Naquela semana levou ao Barro Preto, ao Purgatório e à Sibéria carroças cheias de sacos de feijão, milho, arroz, batatas – gêneros que distribuiu com entusiasmo e generosidade, mas sem o menor método. Comprou cobertores e andou pelas casas de amigos a pedir roupas e cobertas velhas, sapatos usados, ponchos, palas, chapéus, meias... encheu algumas carroças com todas essas coisas e tornou aos subúrbios da miséria [...] (VERISSIMO, 2004a II, p. 100). Doutor Rodrigo era não apenas um campeão das causas populares ao encarnar o defensor e protetor dos pobres, mas também confidente e conselheiro. Ao consultório já agora não lhe vinham apenas doentes: começavam a aparecer pessoas que pediam conselhos, soluções para problemas 108 de natureza íntima, em geral questões de família, dificuldades financeiras, ou desavenças entre marido e mulher. “O senhor, que é um moço instruído e viajado, me diga o que fazer”. [...]. Dava a entender que aquilo o desgostava, mas a verdade era que se sentia lisonjeado. Homens que teriam a idade de seu pai, vinham pedir-lhe apoio moral, uma orientação na vida. [...]. Por fim sentava-se e, após um breve interrogatório, fazia uma prescrição e entregava-a ao paciente. – Mande preparar este remédio aqui na farmácia. Tome uma colher das de sopa de duas em duas horas. Na maioria dos casos o doente quedava-se a olhar imbecilmente para o papelhucho. – Mas é que não tenho dinheiro, doutor... – Isso não vai lhe custar nada. A consulta também é grátis. Os clientes balbuciavam agradecimentos e se iam. [...] Rodrigo comovia-se até as lágrimas diante da miséria descrita em livros ou representada em quadros (VERISSIMO, 2004a, II, p. 103). Nessa passagem vemos que Rodrigo tenciona ser a primazia da lisura, é o bem personificado. No entanto, a máscara que Rodrigo usa encobre a sua sombra. Comovia-se com a miséria estampada nas páginas de um livro ou de um quadro. Diante da realidade, os pobres eram feios e malcheirosos. Posto, porém, diante dum miserável de carne e osso – e em geral aquela pobre gente era mais osso do que carne – ficava tomado dum misto de repugnância e impaciência. Achava impossível amar a chamada “humanidade sofredora”, pois ela era feia, triste e malcheirante. No entanto – refletia, quando ficava a sós no seu consultório com seus melhores pensamentos e intenções – teoricamente amava os pobres e, fosse como fosse, estava fazendo alguma coisa para minorar-lhe os sofrimentos (VERISSIMO, 2004a I, p. 77). É o ser e o não ser que operam ao mesmo tempo: é filantropo na teoria; na prática, o seu humanitarismo é superficial. A dualidade presente em Rodrigo manifesta-se em duas tendências antitéticas que disputam o mesmo seguimento temporal e espacial. Quando se tenta a sua separação, reduz-se uma na outra. No desfecho da narrativa de O retrato, uma anula a outra; ele deixa de representar o papel de benemérito, de figura exemplar, e inicia-se a sua decadência, como adiante veremos. No caso, a redução se deu com a venda da farmácia e entrega da administração de seu consultório a outro médico, o Dr. Carlo Carbone. Quanto à administração do pequeno hospital, confiara-a à sra. Carbone, que era duma energia e uma eficiência assustadoras. 109 Assim, tudo marchava normalmente sem que fosse necessária sua presença num e outro lugar. [...] Rodrigo ficava semanas inteiras sem visitar o hospital e apenas passava pela farmácia quando entrava e saía do consultório (VERISSIMO, 2004a II, p. 206). Cuidar dos doentes entedia Rodrigo, a rotina o deixa com sensação de inanidade, abúlico, em razão de ser um homem que vive intensamente, usufrui de cada momento. Viver era, para ele, bom e necessário. A velhice deixava-o apreensivo, pois significava perder o vigor, a virilidade, o entusiasmo, além de estar mais perto do fim, algo que o incomodava. Procurava no espelho alguma alusão à passagem do tempo e, com ela, a ideia de aproximar-se da morte. Às vezes parava diante do espelho, buscava cabelos brancos, arrancava com uma pinça os poucos que encontrava, examinava os olhos, passava a ponta dos dedos pelas faces, tirava conclusões, dava-se conselhos, fazia-se promessas [...]. Andava preocupado com o problema da idade. “Ano que vem, entro nos quarenta: o princípio do declive...” A ideia lhe causava uma sensação desagradável. [...] (VERISSIMO, 2004b II, p. 229). O corajoso Rodrigo não admitia ter medo do desaparecimento. O que o inquietava era a ideia de não mais se comprazer, de não mais se extasiar diante dos eventos. Esse fato tanto esclarece a duplicidade no Retrato quanto resulta no aparecimento de seu duplo, como uma forma de se examinar. Em uma passagem podemos observar Rodrigo, por meio do solilóquio, indagando o outro acerca dessa questão. Mas medo da morte não tenho, O que me assusta é a ideia de não continuar vivo. Não quero morrer. Não posso morrer. Preciso terminar a minha missão. Que missão? Ora de viver! Haverá outra mais bela e mais legítima? Viver com todo o corpo, intensamente, arder como uma sarça... E um dia virar cinza que o vento leva. Mas acabar depressa. Antas da senilidade. Antes da arteriosclerose cerebral. Por enquanto é cedo, muito cedo. A quem vai servir a minha morte? A ninguém. Posso citar centenas, dezenas de pessoas que se beneficiam com a minha vida. E.. se estou perdido mesmo, por que me privam das coisas de que gosto? Vou mandar todos para o diabo. Inclusive o Doutor Rodrigo Cambará. Daqui por diante farei o que bem entendo. O corpo é meu. [...] (VERISSIMO, 2004b I, p. 241, grifos do autor). 110 O herói pensa a respeito do fim após o enfarto que o pôs acamado. Impossibilitado de sair e deleitar-se com a sua amante, reflete diante da possibilidade de algo que, até então distante, pudesse acontecer. A personagem emociona-se e se compadece ao imaginar-se no seu concorrido funeral, preocupa-se com o que os outros dirão sobre ele no dia de seu falecimento. Rodrigo tem consciência de que, por mais que esconda a sua sombra por baixo de uma persona perfeita e equilibrada, as pessoas só enxergam nele o que tenta, a todo custo, encobrir e, ao engendrar a sua morte, procura exorcizar o seu duplo, a sua sombra. No diálogo com o outro, podemos corroborar a tese de Rosset de que a duplicidade ocorre porque a existência do sujeito é duvidosa e, nesse sentido, fura os olhos e enxerga somente aquilo que interessa. Rodrigo ilude-se na percepção de que a sua persona é verdadeira, as pessoas é que são falsas. Nessa conversação, numa tentativa de se proteger das perseguições de seu ego, não sabemos qual é a voz: do narrador, de Rodrigo ou de sua consciência. Num misto de auto-sarcasmo e auto-piedade imagina o próprio funeral. Luto no Sobrado. A rua apinhada de gente. [...] Tráfego interrompido nas ruas por onde passa o cortejo [...] A rua apinhada de automóveis... Santa Fé em peso no enterro. [...] Mas quem é a moça que vai ali sozinha ali naquele auto, com cara de forasteira, toda vestida de preto e de óculos escuros? Então não sabem? É amante do doutor Rodrigo. Verdade? Mas que jovem! Pois é. Podia ser filha dele. O patife tinha bom gosto. [...] [...]. Fala o primeiro orador. Quem é? Pouco importa. Mas como diz besteiras! Fala o segundo: vomita também um amontoado de lugares –comuns. Nunca, ninguém, nem os filhos do morto, nem a sua mulher, nem seus melhores amigos poderão fazer-lhe justiça. Porque ninguém na verdade o conhece. Viram dele apenas o verniz externo. Ninguém conseguiu conhece-lo na sua inteireza, na sua profundeza. E depois que o deixarem entaipado no cemitério, a cidade continuará os seus mexericos, lembrando-se apenas daquilo que se convencionou chamar de defeitos do dr. Rodrigo Cambará. E ele morrerá desconhecido como viveu. Desconhecido e caluniado, o que é pior. Mesmo os elogios dos oradores serão insultos. Ah! Como gostaria de fazer um discurso no pé do próprio cadáver! Não seria uma oração de provocar lágrimas, não. Ia contar verdades, lançá-las na cara de todos os hipócritas (VERISSIMO, 2004b II, p. 246, grifos do autor). Viver, para a personagem, significa afagar seu animus, divertindo-se com mulheres. A lubricidade leva-o de amante a amante, como um verdadeiro sátiro, preocupado em satisfazer suas paixões pelo sexo feminino, sem medir as consequências. Cavalcanti assevera que o narcisista tem impulsos libidinosos, seu 111 único amor é ele mesmo, por essa razão é incapaz de amar verdadeiramente. Rodrigo quer saciar-se, seduzindo indiscriminadamente várias mulheres, desde prostitutas até aquelas que frequentavam o Sobrado. [...] não negava que gostasse de todas as mulheres e que dificilmente voltaria as costas a qualquer portadora de saia razoavelmente bonita que lhe fizesse um aceno. Sabia que, em matéria de amor, era eclético (VERISSIMO, 2004a II, p. 69). – Aonde é que vamos? Vocês sabem de uma mulher nova na terra? – Sugiro a pensão da Virgínia – disse o barbeiro. – Tem “material” novo lá. E foram. E aquela noite Rodrigo Cambará teve na sua cama duas raparigas cujas idades, somadas, mal davam a sua. (VERISSIMO, 2004b II, p. 253). Narciso, ao olhar-se no espelho, entende que a respeitabilidade requerida pelo exercício da profissão é incompatível com aquelas práticas sexuais e que o matrimônio seria a solução tanto para ser reverenciado, quanto para satisfazer a libido. Rodrigo importava-se com a opinião alheia, por isso casamento constituir-se- ia a persona de que ele precisava. – [...]. Te lembras de nossas farras com o Neco e o Chiru? Pois hoje sou um homem mudado... [...] – Casando, a gente resolve definitivamente esse problema de mulheres. [...] (VERISSIMO, 2004a I, p. 105, 107). – Tu te esqueces que teu mano é médico, e que um médico, para impor respeito tem que ser casado... [...] Estava diplomado, pretendia clinicar na cidade: não podia mais ser visto em pensões de chinas. Por outro lado, não queria, nem poderia levar uma vida de asceta. A solução era mesmo o casamento... (VERISSIMO, 2004a I, p. 143). Orientado pelo desejo de adquirir respeitabilidade através do matrimônio, passa a cortejar Flora Quadros, filha de um estancieiro falido, Aderbal Quadros, o Babalo. Essa corte é aprovada por ambas as famílias e também pela elite local, uma vez que o rígido código vigente vedava um casamento entre pessoas oriundas de diferentes classes sociais. Um outro código regia as relações entre homem e mulher: havia as “esposas” e as “amásias”. As primeiras eram mães e donas de casa, inteiramente dedicadas, obedientes e submissas aos seus maridos e cuja 112 sexualidade limitava-se à procriação; as outras eram aquelas com as quais os homens obtinham prazer. Flora Quadros fora a escolhida do Doutor para exercer o papel de esposa, mãe e dona de casa. Já o papel de amásia fora outorgado não a uma, mas a várias mulheres de várias idades e classes sociais, desde os tempos de namoro e noivado até as vésperas de sua morte. Seria irrelevante enumerar tais aventuras amorosas, que apenas corroboram a postura caudilhesca e dominadora também no aspecto afetivo, em que pese a intenção confessa de estabelecer uma imagem de pai de família e pilar social impoluto. Em 1915, Doutor Rodrigo usa a persona de marido exemplar, pai de dois dos cinco filhos, firmemente estabelecido como médico, proprietário de uma farmácia e uma casa de saúde, uma pessoa grada e estabilizada. Longe de ser motivo de satisfação, fica absolutamente entediado, reflete sobre a sua vida, e entra em conflito consigo mesmo, em busca de um rumo, um objetivo, algo que satisfizesse sua natureza pressurosa. O consciente – o ego, a persona, dialoga com o inconsciente – o id, a sombra, irrompendo o duplo. Estás precisando, mas é de uma aventura amorosa – segredava-lhe uma voz interior. Não. Ele não devia, não queria aceitar a explicação. Era imperativo que sentasse o juízo duma vez por todas. Que diabo! Tinha de respeitar a esposa, pensar nos filhos, na reputação profissional.... Há loucuras que um homem pode cometer até os vinte e quatro anos. Depois, não se justificam nem desculpam mais (VERISSIMO, 2004a II, p. 206, grifo nosso). O casamento transforma-se em uma rotina insípida, sem paixão, não bastava para a volúpia do Doutor “ [...] amor em dias e horas certos, com a luz apagada e sob as cobertas [...]” (VERISSIMO, 2004a II, p. 149), apenas uma conveniência “um pretexto para trazer Flora legalmente para aquela cama” (VERISSIMO,2004 a II, p. 151). Não obstante, em outra ocasião, o superego é mobilizado e o Doutor retoma a promessa de “nunca mais andar atrás de outras mulheres. Para mim a Flora é e continuará sendo a única até a morte” (VERISSIMO, 2004a II, p. 151). Em outros momentos, o id murmura-lhe que a “solução mesmo é a concubina, queiram ou não queiram, doa a quem doer...” (VERISSIMO, 2004a II, p. 152). Esse é o ponto de inflexão da personagem: o ego externo de bom filho, bom marido, bom pai e bom cidadão constitui, pois, um falso ego, já que aquilo que ele não é, ocupa o lugar do indivíduo que ele é: um homem mesquinho, vaidoso, 113 mulherengo, egocêntrico, narcisista, daí a necessidade de, continuamente, contemplar-se no espelho. Conquanto, há uma moça por quem o herói se entusiasma, visto que se apresenta como virgem, ingênua e, principalmente, proibida. O egocêntrico Rodrigo não se contém até, enfim, conquistá-la. Nesse ponto da narrativa, incidem as repercussões da primeira guerra mundial em Santa Fé e é revelado o posicionamento de Rodrigo frente a esse conflito internacional. Essa digressão sobre o olhar da personagem acerca da política internacional é preâmbulo para a introdução da personagem Toni Weber e sua relação com o protagonista. De família de músicos austríacos, a jovem chega a Santa Fé, cumprindo um roteiro de concertos que a sua família delineara apresentar em seu percurso pela América do Sul. De início, homem sem meias medidas, da mesma forma que defende vigorosamente a França, causa-lhe fúria e indignação qualquer referência a alemães e coisas alemãs. Por esta razão recusa-se, a princípio, ir ao concerto da Philarmonische Familie; depois, dado o sucesso dos músicos, acede ao convite dos amigos. Desde a primeira noite do concerto, Rodrigo encanta-se com Toni e passa a desejá-la ardentemente ainda durante o concerto. [...] a Toni de seus pensamentos estava completamente despida à beira da sanga do Angico, e a voz de Bio misturava-se com a melodia de Bach, esta a levar Rodrigo para o céu, rumo das estrelas, a outra a arrastá-lo para a grama e a insinuar libidinagens (VERISSIMO, 2004a II, p. 232). Observamos mais uma vez a dualidade presente em Rodrigo externada por meio de duas tendências antitéticas que disputam o mesmo seguimento temporal e espacial. Ao saber que a Philarmonische Familie fora hostilizada por aliadófilos em outra cidade, para espanto de sua esposa Flora, ele se solidariza com os músicos, e passa a ser o defensor e protetor da família Weber, evidentemente já com olhares cúpidos e cobiçosos sobre Toni. – Canalhas! – exclamou Rodrigo, indignado. – Onde está a nossa tradição de hospitalidade? Que ideia essa gente vai fazer de nossa educação e de nossa cultura? Precisamos prestigiar essa família. Flora lançou-lhe um olhar pasmado (VERISSIMO, 2004a II, p. 231). O herói exibe a sua persona altruísta: imediatamente após o espetáculo, coloca a família inteira sob sua proteção; obtém-lhes emprego no cinema como 114 músicos (além de aulas particulares de música para os filhos das famílias abastadas de Santa Fé); trata de sua saúde; abriga-os em uma casa de sua propriedade, sem custos. As benemerências e a intimidade concedidas eram para aproximar-se da moça, seduzi-la e, assim, agradar o seu animus. Pode-se dizer que Rodrigo, desconectado do mundo afetivo, possui como função dominante o pensamento e como função inferior o sentimento. Por trás da despretensiosa amabilidade escondem-se os motivos do ego: a vaidade e a hipocrisia, o que não passou despercebido. Pouco depois, puxando Rodrigo para um canto, murmurou: – Sobrinha, hein, maganão? Com essa parte de tio o que tu queres é apalpar a alemãzinha... (VERISSIMO, 2004a II, p. 246). – Pensas que não sei que andas querendo dormir com a alemãzinha? (VERISSIMO, 2004a II, p. 255). Padre Astolfo, pároco de Santa Fé (o discurso da tradição religiosa) e um dos frequentadores do Sobrado, adverte-o explicando-lhe que seus atos não só eram conhecidos da família e da comunidade, como também poderiam levar a sérias consequências. Contudo, seu ego inflado podia tudo, sentia-se como um ser divino: tudo estaria ao seu alcance. – Às vezes a sombra do Anjo se projeta em nosso caminho e nós nos recusamos a compreender o aviso, dizemos que é apenas uma nuvem que cobriu o sol, e continuamos a andar, esquecidos de Deus. [...]. Sua vida tem sido até agora um rosário de triunfos, uma estrada atapetada de rosas e batida de sol. Mas não pense que isso vai durar sempre. Ora, se um dia vai ter de fazer uma revisão completa de valores e procurar o amparo da Igreja, por que não começa agora? Olhe, é melhor, é mais fácil... (VERISSIMO, 2004a II, p. 222-223, grifo nosso). Não obstante, a necessidade egoica crescia dia após dia, especialmente quando fica sabendo da corte de Erwin Spielvogel à donzela. Nesse momento, sentiu um ciúme demasiado, não exatamente por gostar verdadeiramente da moça, e sim porque não podia admitir que outro pudesse ser motivo de admiração. Somente ele, o fidalgo, poderia possuí-la. Quando, naquela tarde de domingo viu Toni passar no automóvel dos Spielvogel, ao lado de Erwin, pela primeira vez em toda a sua 115 vida sentiu ciúme – mas ciúme violento, na forma de uma súbita sensação de desfalecimento, dum choque, fisicamente doloroso (VERISSIMO, 2004a II, p. 260). Imaginou-se a insultar os Weber, a perguntar-lhes se a filha estava em leilão. Sim, porque se é questão de preço eu pago mais! (VERISSIMO, 2004a II, p. 261). Nessa ocasião, verificamos que a personagem consciente entra em confronto com a personagem inconsciente em uma conversação entre Rodrigo e seu duplo, de maneira que não sabemos qual é um e o outro. Decerto os pais de Toni é que insistem no namoro, veem no Spievogel um bom partido. É natural... A eterna história. Ah! Mas não acredito que ela se deixe vender. Ora, por que não? Não será a primeira mulher no mundo a casar-se por interesse. Mas se ela não quer, por que não lhe diz não de uma vez por todas? (VERISSIMO, 2004a II, p. 261). Em alguns momentos, porém, o superego sobrevém e o Doutor aparenta algum remorso ou alimenta dúvidas sobre a conveniência de levar adiante, jogando na sombra o seu desejo. Que absurdo – concluiu, sem muita convicção – estar eu, um homem de quase trinta anos, casado e pai de dois filhos, a preocupar-se com uma mocinha de vinte, solteira e provavelmente virgem! (VERISSIMO, 2004a II, p. 248). Envergonhava-se, entretanto, desses pensamentos. E de súbito lhe veio uma grande ternura pela rapariga, um desejo protetor de estreitá-la ao peito, beijar-lhe os olhos, as faces, a boca (VERISSIMO, 2004a II, p. 262). É a coexistência do bem e do mal no indivíduo: Rodrigo conserva o bem quando se enche de culpa, ao prejudicar o outro “Pensou em Flora com um sentimento de culpa” (VERISSIMO, 2004a II, p. 262). Por outro lado, o mal reagrava, surge o duplo tentador, persuadindo-o, ele só pensa em si, em satisfazer seus desejos, não há alteridade. Não se importa com Tony e apenas a via como uma fonte de prazer egoísta, reduzindo a jovem a um simples objeto de volúpia e de conquista. Não se importava com os sentimentos alheios, estes só lhe serviam para aumentar seu próprio brilho e, com isso, seguia inconsequente e irresponsável. 116 Sozinho, na sala de visitas, Rodrigo olhava para o próprio retrato e pensava em Toni. O efeito do champanha havia passado: bebera havia pouco uma xícara de café preto, sem açúcar. Sabia que não poderia dormir e ali estava a fumar, inquieto, com um sentimento de irritação que lhe vinha do desejo insatisfeito – um desejo que agira era mais do cérebro que que propriamente do corpo. Onde iria parar com aquela obsessão pela rapariga? Conhecia-se suficientemente bem para saber que não descansaria enquanto não a possuísse e que, mesmo depois de possuí-la seu apetite por ela não ficaria satisfeito, pois havia de querer tê-la mais vezes, muitas vezes... (VERISSIMO, 2004a II, p. 280, grifo nosso). Rodrigo deixava-se conduzir. Que adiantava pensar? O instinto sempre tinha razão e o instinto o levava para Toni (VERISSIMO, 2004a II, p. 281). Sentia uma certa pena de Toni. Sim pena, porque para ela aquele episódio erótico representara sofrimento. Não fora apenas um dilaceramento físico, mas também moral (VERISSIMO, 2004a II, p. 283). Para Jung, muitas forças estão em jogo na formação da sombra e determinam o que pode e o que não pode ser expresso, entre elas o meio social do indivíduo. “Pais, irmãos, professores, clérigos e amigos criam um ambiente complexo no qual aprendemos tudo aquilo que representa comportamento, conveniente e moral e aquilo que é vergonhoso e pecaminoso”. (Jung apud ZWEIG; ABRAMS, 2012. p. 16). Lá dentro daquela casinhola estava uma mulher de vinte anos que o amava, e ali fora estava ele a arder de desejo por ela. [...]. No entanto, erguia-se entre ambos um muro, e um muro transparente, feito de convenções, mentiras, hipocrisias, fraqueza, estava tudo errado, tragicamente errado (VERISSIMO, 2004a II, p. 281, grifo nosso). Narciso não mede as consequências: a fim de satisfazer o seu desejo e sobrelevar o seu animus, seduz Toni e inicia um ardente romance. A jovem engravida e, a contragosto, fica noiva de Spielvogel, suicidando-se pouco tempo depois. Tal fato afligiu-o, pois Rodrigo desvestiu-se de sua persona e expôs traços de sua personalidade os quais não considerava adaptáveis ao papel social que representava, evidenciando a distância entre o eu real do eu ideal, e também vulnerável ao julgamento da sociedade. Marie-Louise Von Franz (2012) afirma que 117 “quando uma pessoa faz uma tentativa de ver a sua sombra, ela se torna consciente (e, frequentemente, envergonhada) ” (p. 57). Pôs-se a andar na direção de sua casa, ouvindo mentalmente vozes familiares – a do pai. A da esposa, a da madrinha. ‘Fizeste mal a uma moça’ Até tia Vanja lhe apareceu no pensamento, censurando- o: ‘Ai, cabecinha de ébano, desonraste uma donzela’ (VERISSIMO, 2004a II, p. 283). Pobre gente! – Tudo por culpa minha — balbuciou. – Se eu tivesse um pingo de vergonha na cara, o que fazia era meter uma bala nos miolos. Disse essas palavras sem nenhuma convicção, pois por trás de seu desespero o que havia era ainda uma descomunal vontade de viver. Soltou algumas baforadas com uma lânguida, trêmula e culposa sensação de bem-estar. Olhou para o vigário demoradamente e teve um desejo súbito de confessar-lhe tudo. (VERISSIMO, 2004a II, p. 318). – Padre, a menina estava grávida e o filho era meu. Ela se matou por minha causa. Sentiu que ao dizer essas palavras estava pedindo piedade, simpatia, apoio. Mas que é que vai ser da minha vida daqui por diante, com essa morte na consciência? E num acesso de autocomiseração rompeu de novo a chorar, mas dessa vez um choro silencioso, sem soluços, frio, mole, abjeto (VERISSIMO, 2004a II, p. 317). Doutor Rodrigo protagoniza essa cena na casa dos Weber, o que leva Toríbio a proibir a sua ida ao enterro, pois “todo o mundo vai compreender o que aconteceu” (VERISSIMO, 2004 a II, p. 319) e a levá-lo para o Angico, longe das chamas do escândalo que lavravam na cidade. Lá, Doutor Rodrigo entra em conflito, tenta redimir-se confessando ao seu pai, mostrando como estava triste. O duplo irrompe como um senso de culpa e de autocomiseração: “Pobre Toni! Pobre Toni! (E nas profundezas de seu ser uma voz respondeu apagada: pobre de mim!) ” (VERISSIMO, 2004a II, p. 327). Segundo Rosset, o duplo surge no momento em que o indivíduo não consegue enfrentar a realidade, pois há um embate entre a escala de valores de um e de outro. Nesse sentido, a frágil tábua de valores do herói entra em conflito com o discurso conservador da sociedade, representado pela figura autoritária do pai. Sentiu um certo prazer em esmiuçar pormenores que o incriminavam, em procurar agravantes para sua culpa. Quando 118 terminou a narrativa, fez-se um silêncio que só o pigarro seco de Licurgo cortou. – Eu tinha de tirar esse peso do peito. O senhor é meu pai. Pode dizer que sou um miserável, um canalha, porque sou mesmo. Me castigue, tem todo o direito. Diga o que quiser, que eu curvo a cabeça. Não tenho desculpa, não tenho perdão. No coração de Licurgo havia uma praça e no centro dessa praça um monumento: a estátua do jovem dr. Rodrigo Cambará, homem de caráter, médico humanitário, bom filho, bom irmão, bom marido, bom pai, bom amigo. Agora ele próprio, Rodrigo, derribara a estátua com aquela confissão, atirara sua própria imagem no barro. Isso o fazia sofrer, mas ao mesmo tempo o redimia um pouco (VERISSIMO, 2004a II, p. 322). Rodrigo vai para o Angico, cronotopo idílico que se opõe ao urbano (de onde procurava fugir). A cena em questão ocorre à noite, e a escuridão representa o lado obscuro do indivíduo, o inconsciente. A noite antecede o alvorecer que seria o despertar da consciência após um período pungente de expectativa. Rodrigo vai para o seu quarto, espaço íntimo, tópos do isolamento e deita-se cheio de remorso e culpa, após um dia aflitivo. Nessa ocasião Rodrigo sonha e tem pesadelos. A interioridade, os processos psíquicos são expostos na narrativa por meio do fluxo de consciência. Tornou a atirar-se na cama. Teve a impressão de que seu crânio era uma casa enorme como o Sobrado, onde soava um violoncelo enorme, tocando uma música enorme, e cada nota era como uma ferroada que lhe varava o cérebro. Depois sua cabeça passou a ser misteriosamente uma meia-água de janelas pintadas todas de azul (santo Deus, acho que estou ficando louco) e em seguida já era apenas um pequeno quarto recendente a alfazema. De súbito, num desespero, abraçou o corpo cálido da mulher que sentia palpitar contra o peito. E com que fúria lhe beijou a boca! Mas cuidado, animal! Cuidado, porco! Que estás machucando os próprios lábios queimados, queimados de ácido, queimados... (VERISSIMO, 2004a II, p. 324). Para prosseguirmos a nossa investigação, faz-se necessário explanarmos brevemente acerca da importância dos sonhos segundo Freud e Jung, já que são meios de acesso ao inconsciente, externam os conteúdos reprimidos e representam o drama que o sujeito vivencia, revelando a essência do sentimento predominante naquela situação. 119 Em tempos remotos, os sonhos eram considerados uma maneira que os deuses tinham de se comunicar com os homens. Tal perspectiva mudou quando, na virada do século XIX, Sigmund Freud publicou seu primeiro livro, A interpretação dos sonhos, em que apresentava o método de relato e interpretação dos sonhos como meio mais eficiente de penetração no inconsciente. Os sonhos, considerados até então matéria de ocultismo ou delírios, podiam construir um discurso fora da consciência e revelar muito sobre a personalidade do indivíduo. Para o psicanalista, todo sonho tem um significado que se liga a uma realização de um desejo reprimido pela sua consciência. O sonho seria uma das formas de entrar em contato com as questões do inconsciente e trazê-las para a luz da consciência. No entanto, Freud deparou-se com a seguinte questão: se os sonhos eram a realização de desejos, como ficariam os pesadelos? Em sua teoria sobre o masoquismo, concluiu que o pesadelo seria uma tentativa do ego de controlar um material reprimido que causava extremo sofrimento à pessoa, uma verdadeira tortura mental que nunca se esgotava. Determinados pesadelos estavam ligados ao passado, outros ao futuro, como um alerta a um problema que necessitava de solução urgente e de determinadas atitudes para resgatar-se o prazer pessoal e social. Contrapondo-se a Freud, seu discípulo Jung importa-se não com causas, mas com a finalidade dos sonhos, atentando-se às formas e aos conteúdos. Para o analista, os sonhos seriam uma maneira de comunicação e familiarização com o inconsciente. Dessa forma, Jung aborda os sonhos como realidades vivas que precisam ser experimentadas e observadas para ser compreendidas e procura descobrir o significado dos símbolos oníricos pela livre associação. A livre associação vai trazer à tona todos os meus complexos, mas dificilmente o significado de um sonho. Para entender o significado do sonho, precisamos nos agarrar tanto quanto possível às suas imagens (Jung, 1934, p. 149). Os sonhos seriam uma maneira de orientar o indivíduo para os problemas que enfrenta em sua vida de vigília. Segundo Jung, “a função geral dos sonhos é tentar estabelecer a nossa balança psicológica pela produção de um material onírico que reconstitui, de maneira útil, o equilíbrio psíquico total" (1964, p.49). Tendo em vista essas duas perspectivas, e apoiando-nos nos símbolos oníricos propostos por 120 Jung, analisaremos a duplicidade da personagem, seu consciente e inconsciente, no momento de seu delírio. Os sonhos, por meio do simbolismo, são o caminho para adentrarmos a psique de Rodrigo e é onde se delineia o encontro com o seu duplo. O plano onírico é o momento intervalar entre a realidade e a irrealidade, não se tem a noção exata de tempo/espaço e tudo se condensa em um todo compacto. O sonho realiza intersecção com o real, a voz do narrador confunde-se com a de Rodrigo que, por sua vez duplica-se entre o consciente e o inconsciente, não se sabe mais o que é real e o que não é. O delírio traz à consciência impulsos, desejos e conteúdos inconscientes que são apresentados por meio de vozes, sons e sombras. Sem saber quando nem como, afundou num mundo confuso de febre, dor e ânsia, num escuro torpor que não era bem sono nem chegava a ser vigília — modorra agônica em que continuou a sentir a angústia que lhe oprimia o peito, e o latejar dolorido da cabeça. Seu espírito andou perdido por uma região crepuscular e equívoca povoada de vagos vultos e vozes, sombras e sons que ele procurava identificar numa aflição, mas que lhe fugiam (era de endoidecer!) no momento mesmo em que iam revelar seu mistério, dissolviam-se na grande cerração através da qual ele se esforçava por ver claro, orientar-se, pois sentia que só vendo claro e descobrindo onde estava podia salvar-se, evitar a loucura, abrir uma picada para o dia, para o sol, porque estava extraviado, louco não — querem ver uma coisa? —, eu sei quem sou e onde estou.. Sou Blau Nunes estou na furna do Jarau ninguém me engana porque eu sei querem que eu fique louco, mas sei não estou louco é só esta dor achei a Salamanca tenho que ir adiante adiante adiante até o tesouro as onças de ouro e sol não volto não volto nem por ouro nem por prata nem por sangue de lagarta nem me assusto com cobras, almas do outro mundo, aranha morcegos avantesmas abantesmas feras fetos eu sei eu sei meus inimigos querem que eu me assuste e fuja fique louco não ache o tesouro o sol não me entrego, não enlouqueço é só esta dor mas sei quem sou um tal Blau Nunes esta cabeça é a furna do Jairo esta dor batendo batendo nas paredes são morcegos monstros, mas não me entrego vou achar o tesouro e sol moi le coq moi le coq moi le coq não me entrego vou achar o tesouro, o sol quando romper o dia tudo passa é um pesadelo eu sei que sou Blau Nunes minha cabeça é o cerro do Jairo do Jarau do Jarau do Jairo só peço que não batam não batam não pisem no meu peito não batam não batam na minha cabeça não batam... E a furna se fez ainda mais escura e seu espírito então ficou preso numa ilha tórrida de febre, dor e angústia, em parte nenhuma do tempo, em parte nenhuma do espaço (VERISSIMO, 2004a II, p. 325). Verificamos nessa passagem que não há diferenciação entre sonho e realidade, num imbricamento entre esses dois planos que, esteticamente, é 121 conferido pela quase inexistência dos sinais de pontuação. Rodrigo está em uma furna, espaço escuro e fechado, tentando encontrar a luz a fim de se orientar e sair dali. O sonho que a personagem tem remete à lenda da Salamanca do Jarau registrada por João Simões Lopes, cuja personagem principal, Blau Nunes, homem valente, de coração puro, consegue chegar à Salamanca, quebra-lhe o encantamento e vai embora, serenamente. Nesse momento, Rodrigo é Blau Nunes, o heimlich e o unheimlich, seu duplo. Ele está tentando sair do escuro, ou seja, daquela situação extenuante, e não há ninguém que possa ajudá-lo, o que significa que deve superar sozinho aquele conflito. Rodrigo está em uma gruta escura que denota tanto o útero como o túmulo, a passagem ascendente para a vida e a descendente para a morte, ou seja, a morte de Toni e a morte simbólica do herói. Tenta encontrar a luz, ou seja, a vida, que seria resolver aquela situação e, como Blau Nunes, ficar com a consciência em paz. As vozes que a personagem ouve podem ser interpretadas como a voz de sua consciência. Há insetos peçonhentos que simbolizam os aspectos obscuros, perigosos e instintivos do inconsciente. No distanciamento espaço/tempo, as imagens oníricas de Rodrigo trazem à tona aspectos inconscientes de sua percepção da realidade, ele já não sabe o que ou quem ele é ou se está louco. No sonho, há uma ambiguidade entre os dois espaços. Não se nota a transição entre um mundo e outro, percebe-se a total necessidade da personagem de fugir dele mesmo, mas está preso. Os duplos encontram-se, nesse momento, o tema do doppelgänger enseja medo, angústia, expressando de modo mais preciso a dualidade entre o ego bom e o ego mau. Os agentes instauradores da estranheza são a furna do Jarau, Blau Nunes (o duplo), os insetos. Rodrigo acorda febril, suado, gritando, fato que revela o caráter assustador do confronto entre a sombra e a persona. Percebemos o efeito do encontro com o seu duplo: o embate entre a sua essência e a sua aparência põe em risco o universo da personagem. A morte da moça alerta a personagem para a sua própria morte, simbólica, e alude a uma situação de crise devido à perda e ao afastamento de seu objeto de prazer, de sua posição de sucesso, da sua identidade, das suas ilusões. Além dos escassos sinais de pontuação, a aglutinação das palavras também expõe, no plano da expressão, o embate psíquico da personagem. As reticências ao final, indicam que o conflito não é resolvido. 122 Começou a bater dentes, o corpo sacudido de calafrios. Não queria fechar os olhos porque temia entrar na furna do Jarau, sabia que se entrasse de novo naquela medonha noite ficaria irremediavelmente louco. O que ele precisava era lutar contra a conspiração, os inimigos, pois quando viesse um novo dia e o sol, estaria salvo, a vida ia ser como antes e ele descobriria que todo aquele horror não passara dum pesadelo... Mas como podia evitar a furna se não cessavam de bater-lhe nas paredes do crânio, se ele já era a furna do Jarau, um tal de Blau Nunes em busca da Salamanca oh! não batam pelo amor de Deus não batam nas paredes da furna estou com febre chamem o doutor Matias o doutor Carbone o doutor Taboca o doutor Tabocarbone Tabocarbonato estou suando sangue, me mordeu a cobra, suando sangue vermelho rosas sangue sepultura de Toni eu sou a sepultura de Toni está dentro de mim enterrada em mim mas não batam não batam que dói muito sou um tal de Blau Nunes e só peço que não batam não batam não batam ai!não enterrem Toni esperem esperem esperem eu chegue ela está viva não enterrem Toni viva vai morrer sufocada não enterrem bandidos não batam esperem não enterrem viva não batam não batam não enterrem só eu sei ela está viva um engano está viva enterrar é um crime esperem mas não batam não batam não batam... (VERISSIMO, 2004a II, p. 329). Quando Rodrigo desperta angustiado, estabelece-se o confronto entre o real e o imaginário, entre a vida e a morte. Ele tenta escapar daquela perturbação e sai do quarto, da casa, como uma tentativa de fugir de seu perseguidor. Nessa ocasião o Doutor cai literal e simbolicamente, pois tombar constitui-se uma experiência dolorosa e constrangedora, necessitando de apoio para erguer-se. Olhou em torno do quarto e começou a sentir uma sufocação, uma estonteada angústia de emparedado. Correu a janela e escancarou- a. Firmou as mãos no peitoril e saltou para fora.... Quedou-se por algum tempo no meio do campo, transido de frio e com a sensação do mais absoluto desamparo. Sentiu uma repentina piedade de si mesmo, quis chorar, mas não pôde VERISSIMO, 2004a II, p. 326, grifo nosso). Tal apoio Rodrigo vai procurar no seio familiar, com as pessoas que ele magoou como uma forma de manter o seu comportamento anterior, distanciando-se do real como se nada houvesse acontecido. Desejou o sol, o novo dia, o Sobrado, um aconchego humano, um peito amigo onde pousar a cabeça fatigada e dolorida. Como podia ter ficado tanto tempo sem lembrar-se da família? Seu egoísmo persistia, mesmo na dor. Só ele sofria no mundo, ninguém mais. Veio-lhe uma súbita esperança. Era impossível que tudo estivesse 123 perdido. Voltaria para casa, o tempo cicatrizaria todas as feridas e de novo a vida tornaria a ser o que era antes... VERISSIMO, 2004a II, p. 329). O Doutor é um homem que gosta da vida, e a morte de Toni não só faz cair a sua máscara, como também o atenta para a efemeridade da vida. Assim como Toni, em um dos sonhos, Rodrigo é enterrado vivo, situação excruciante para o indivíduo. O conflito do duplo causa-lhe a sensação de emparedamento. A morte da rapariga faz com que ele vivencie a sua própria morte. Nesse sentido, a morte física e/ou psíquica, está relacionada ao encerramento das dificuldades, à transformação. O sujeito deve morrer para a vida anterior e nascer em uma nova vida, modificado, transformar-se em um ser pleno. O velho Pitombo, o desenterrador de cadáveres, insistia para que ele se deitasse: estava na hora do enterro, tinham de fechar o caixão. Ele gritou: “Por amor de Deus, não me enterrem. Não estou morto! Não estou morto! ”. Apelava para Flora, que chorava de mansinho, sacudindo tristemente a cabeça, como a dizer que nada podia fazer. Apareceu-lhe então o pai com um enorme relógio de pêndulo na mão, dizendo: “Meu filho, não há outro remédio, tem que ser, é a lei, tem que ser, é a lei, tem que ser, é a lei”. Viu então, apavorado, que tinha sido traído. Seus parentes e amigos iam enterrá-lo vivo. Tudo aquilo era uma conspiração. Quis gritar, mas o horror lhe tirava a voz. De súbito teve a revelação do mistério: morrer não era uma fatalidade biológica, mas um dever social. Morria-se porque era uma lei (VERISSIMO, 2004a II, p. 326). “A sombra do anjo” encerra o livro de O retrato. Esse episódio teve como consequência o começo do lento caminho em direção à decadência do clã Terra Cambará, enquanto aristocracia rural e da posição pessoal de Doutor Rodrigo, por meio da delapidação de sua persona. No exercício de autocontemplação no espelho ou no Retrato, a dualidade simbólica entre consciente e inconsciente está presente o que deveria suscitar diversas reflexões entre o eu de fora e o eu de dentro, entre o lado consciente e lado inconsciente, porém, no caso de Rodrigo, esse diálogo não o liberta de seus padrões de conduta, agindo sem dar ouvidos à razão, por estar preso ao individualismo, ao egocentrismo. Doutor Rodrigo é, afinal, um herói moderno: com defeitos e fraquezas que se tornaram tão evidentes a ponto de não mais poderem ser ocultadas. Esse duplo ego de Rodrigo assemelha-se ao duplo aspecto do ego que existe em cada homem e 124 está estampado nas páginas do romance: o ego mau está presente em todas as mesquinharias e misérias. O ego ideal é aquele que projeta em si todas as glórias e grandezas e que permanece apenas nas tintas do Retrato. O conflito entre o seu Eu e o Outro – a representação social – também se dilui. 125 3 Olhares sobre Floriano e a apreensão de sua alma 3.1 Floriano: o eu na fronteira “O meu amigo mais íntimo é o sujeito que vejo todas as manhãs no espelho do quarto de banho[...] Estabelecemos diálogos mudos, numa linguagem misteriosa feita de imagens, ecos de vozes, alheias ou nossas, antigas ou recentes, relâmpagos súbitos que iluminam faces e fatos remotos ou próximos, nos corredores do passado ─ e às vezes, inexplicavelmente, no futuro[...] Surpreendo-me quase sempre em perfeito acordo com o que o Outro diz e pensa. Sinto, no entanto, um pálido e acanhado desconforto por saber que existe no mundo alguém que conhece tão bem os meus segredos e fraquezas, uns olhos assim tão familiarizados com minha nudez de corpo e espírito. Talvez seja por isso que com certa frequência entramos em conflito. ” (Erico Veríssimo, 2005, p.26) Neste capítulo investigaremos a personagem- duplo de Rodrigo, Floriano, e procederemos seguindo a mesma linha de investigação: primeiramente analisaremos à luz da Filosofia da Linguagem, segundo os pressupostos de Mikhail Bakhtin já apresentados no capítulo 1 no que tange à exotopia, à consciência individual e coletiva (como instrumento de construção da identidade),à relação eu/outro, e considerando a personagem como acabamento estético de um romance, situada em um determinado tempo/espaço histórico. É importante ressaltar que, devido à extensão da obra de Veríssimo, não há como investigarmos todas as situações em que Floriano se encontra na fronteira. Sendo assim, selecionamos quatro episódios mais relevantes para serem analisados segundo os conceitos bakthtinianos, anteriormente abordados. Em seguida, encaminharemos o estudo para a linha da psicanálise, dado que o herói no romance é a representação de um indivíduo marcado por um conflito identitário em relação ao conhecimento de si mesmo, ecomo consequência, desdobra-se em outro. Para realizarmos esta análise, faz-se necessário contextualizarmos a respeito da obra O arquipélago, porque é nessa parte da trilogia que Floriano participa de modo mais efetivo. Em seguida apresentaremos a personagem e, finalmente, examinaremos como o duplo de Rodrigo se manifesta pelas duas perspectivas teóricas. 126 Terceira e última parte de O tempo e o vento – a mais extensa de todas, O arquipélago, trata da ascensão de Rodrigo Terra Cambará de líder local à figura de proa da República, no Rio de Janeiro, e os respectivos impactos pessoais e familiares. Assim como em O retrato, a narrativa também se dá por cortes temporais e, em algumas ocasiões, o cenário é o Rio de Janeiro, onde o Dr. Rodrigo Cambará exerce advocacia administrativa após receber um cartório do então presidente Getúlio Vargas. Após a queda de Vargas, em 1945, Rodrigo volta à Santa Fé e encontra-se à beira da morte como consequência de dois infartos devido aos excessos de seu cotidiano. Por causa dessa ocorrência, a família, desagregada, reúne-se no sobrado e, nos seis capítulos que intercalam o romance intitulados “Reunião de família”, são desvelados os conflitos de algumas personagens: Floriano, escritor em início de carreira, é apaixonado por Sílvia, mulher de seu irmão Jango, um homem com costumes simples, que vive no campo como o seu tio Toríbio; Eduardo milita o comunismo, e ataca o pai publicamente em seus comícios; Bibi é desquitada (algo incomum para a época) e amasia-se com um bon vivant, levando uma vida sofisticada na cidade grande; Maria Valéria está cega – consequência de uma catarata, e Flora mantém um casamento apenas de fachada com Rodrigo. Ao longo do romance, são travadas discussões políticas entre Rodrigo, Tio Bicho (amigo da família e confessor de Floriano), Irmão Zeca (filho bastardo de Toríbio), Terêncio Prates (estancieiro e sociólogo formado pela Sorbonne), que acabam girando em torno de Getúlio Vargas, o estadista tão defendido por Rodrigo, fato que culmina na briga e posterior morte do irmão, Toríbio. Entremeando os capítulos, também estão os “Caderno de Pauta Simples”, anotações que Floriano faz em seu caderno e que esboçam o romance o qual pretende escrever: lembranças do passado que completam os hiatos sobre acontecimentos menores da história: memórias da infância e adolescência, os sentimentos que nutria por seu pai, o colégio interno, reminiscências de quando era professor universitário de Literatura Brasileira em São Francisco, recordações de Mandy Patterson – a americana que namorara no Rio de Janeiro e afastou-o de Sílvia. Por meio dessas anotações, são expostos fatos da vida de Floriano até então desconhecidos. No intervalo entre “Reunião de família” e “Caderno de pauta simples“ encontra-se “O deputado”, capítulo que narra fatos sobre a vida de Rodrigo em 127 1922, quando era deputado estadual situacionista. Desiludido com os rumos que seu partido toma, renuncia ao cargo com um discurso inflamado na assembleia municipal. “Lenço encarnado” aborda revolução de 23 e narra a participação dos Cambarás. Por causa das fraudes nas eleições estaduais, começa uma dissidência no Partido Republicano Riograndense entre os borgistas e castilhistas – os Cambarás eram castilhistas históricos. A revolução começa em janeiro, as tropas dos maragatos (partidários de Assis Brasil) e dissidentes se reúnem, mas só partem com o consentimento e sob o comando de Licurgo, pai de Rodrigo. A coluna dos Cambará era formada por Rodrigo, Toríbio, Miguel Ruas (promotor que sequer gaúcho era), Liroca (personagem quixotesco), Cacique Fagundes e Juquinha Macedo, mais os caboclos que eram recrutados pelo caminho. “Um certo Major Toríbio” relata as revoltas contra o presidente Artur Bernardes. Contra a vontade de Rodrigo, Toríbio junta-se à Coluna Prestes. Neste capítulo, a filha de Rodrigo, Alice, morre. Desiludido com a medicina após a perda da criança, vende a farmácia e a Casa de Saúde a Dante Camerino, fecha o consultório e entrega a administração do Angico ao sogro. Muitos meses se passam sem notícias do irmão. O tenente-coronel Rubim, é quem as traz: Toríbio estava preso no Rio de Janeiro. “O cavalo e o obelisco” relata a história pré e pós Revolução de 1930. À medida que a tensão cresce, nota-se que Rodrigo é contraditório quanto às suas convicções: é contra o governo de Getúlio e mais tarde adere ao seu partido. Floriano, ainda jovem, é obrigado a lutar durante a tomada da guarnição federal de Santa Fé. É neste capítulo que Rodrigo vai para o Rio de Janeiro, abandonando seus princípios políticos. “Noite de Ano-Bom” narra um único dia: 31/12/1937. A abertura se dá com o enterro da mãe de Arão Stein, jovem judeu que pugnava acirradamente pelo comunismo e, naquele momento, lutava na Guerra Civil Espanhola contra os fascistas. Eduardo, irmão de Floriano, influenciado por Stein, principia a militar pelo Partido. Neste capítulo há um enfoque em Floriano, o qual fará uma retrospectiva de sua vida: por sua culpa, a amada Sílvia casar-se-ia com o irmão dele, Jango. O noivado realiza-se sob um clima tenso entre Rodrigo e Toríbio que não aceita a tredice do irmão. Descortinam-se a degradação da família e a morte do último. 128 “O diário de Sílvia” preenche os anos seguintes a essa tragédia. São impressões sobre seus sentimentos em relação a Floriano (fato que marca esse capítulo), o casamento infeliz e sem amor com Jango; as dúvidas quanto a sua religiosidade; a correspondência que manteve com Floriano enquanto ele estava no Rio de Janeiro; as confidências com e de Arão Stein após sua volta da Espanha. Lembra-se também da infância infeliz e como admirava a “gente do Sobrado”. “Encruzilhada”, cujo título define a situação em que os membros da família Terra Cambará se encontravam, é o último capítulo do romance. Arão Stein enlouquece após ter sido expulso do Partido Comunista e se enforca na figueira da praça central de Santa Fé. No Sobrado, Floriano não consegue controlar seu desejo por Sílvia: num ímpeto, abraça-a e beija-a, criando uma situação incômoda para ambos. Após muito refletir, a moça entrega-lhe o seu diário. Neste capítulo, Floriano consegue, finalmente, ajustar as contas com seu pai, reconciliando-se com ele e consigo mesmo. O estado de saúde de Rodrigo melhora e ele decide voltar ao Rio, mas morre no dia anterior à viagem. Floriano finalmente traça as primeiras linhas de seu romance catártico que ligará as pequenas ilhas ao arquipélago. Segundo Maria da Glória Bordini (2004) no ensaio “O questionamento político em O Arquipélago”, a última parte da trilogia é constituída por três eixos narrativos: o ideológico, o literário e o histórico. O eixo ideológico manifesta-se nas seis partes dos capítulos “Reunião de família”, pois nas discussões que se encetam nos encontros familiares, percebem-se os diferentes posicionamentos políticos entre a velha e a nova geração. O eixo literário compreende as seis partes dos capítulos“ Caderno de Pauta Simples” e apresenta Floriano em busca de matéria para a realização de seu romance. Segundo Bordini, o desafio da personagem é aceitar o seu passado pessoal e regional, para tanto, estuda os eventos e os sujeitos históricos na perspectiva da memória do cotidiano dos homens e das mulheres da sua família, a fim de representá-los na narrativa. Simultaneamente em que discute o passado familiar e regional, pensa em como será a poética do futuro romance. O terceiro eixo – o histórico – cuja figura central das ações é Rodrigo Terra Cambará, constitui a trama da narrativa e reúne um conjunto de revoluções e de conspirações políticas. Vimos, anteriormente, que o desfecho do segundo volume da trilogia se dá em 1915 com a morte da jovem Toni e com a ida de Rodrigo Terra Cambará ao 129 Angico para não despertar comentários entre a população local acerca do trágico incidente. No último capítulo de O retrato, “Uma vela para o negrinho”, há um corte temporal, avançando para 1945. A narrativa desloca-se de Rodrigo a seu filho, o escritor Floriano Terra Cambará, aos 34 anos, voltando a Santa Fé há pouco (após permanência de quatro anos no exterior) em decorrência do frágil estado de saúde de seu pai. Floriano decide caminhar pelo cemitério da cidade, não só pelo fato daquele local tomar conta de seus sonhos repetidas vezes, como também por ser uma tentativa de buscar refúgio e inspiração naquele espaço cheio de histórias e recordações. Em um determinado momento, depara-se com a inscrição no túmulo de uma mulher, Antonia Weber, que morrera no ano de 1915. O escritor sente a necessidade de trazer de volta à vida, pelas linhas da ficção, aquela moça cujo livro precocemente fechara, mas desiste da ideia. Deste modo, no espaço cronotópico que marca o fim, paradoxalmente, inicia a história de Floriano e a gênese da obra que objetiva escrever. O cemitério passa a ser o cronotopo do princípio, posto que o escritor irrompe na narrativa com a pretensão de trazer à luz a história de suas gentes na escritura de seu livro. O título do capítulo que encerra O retrato retoma a lenda gaúcha do Negrinho do Pastoreio: diz-se de um escravo maltratado por um capataz que o acusa de ter perdido um cavalo baio. Aflito, o menino vai à procura do animal e sem êxito, volta à fazenda, onde é surrado e amarrado nu sobre um formigueiro. No dia seguinte, o malvado capataz depara-se com a imagem do menino ao lado de Nossa Senhora e do baio. Assim, quando alguém perde alguma coisa, acende uma vela ao negrinho que o ajudará a localizá-la. Ao voltar do giro no cemitério, Floriano depara-se com Maria Valéria acendendo uma vela para o negrinho e, ao indagá-la, responde: “– É p’raquela gente achar o que perdeu” (Verissimo, 2004a II, p. 350). O título não é em vão: Floriano, naquele momento da narrativa até o final do O arquipélago, está em busca de sua identidade, de seus valores, de seu lugar no mundo. A vela prenuncia a procura da personagem por aquilo que ainda não conseguira encontrar. Até esse momento, pouco se sabe a respeito do duplo de Rodrigo, dado que desponta apenas no segundo volume de O retrato. Em certas ocasiões, sabe-se do primogênito pelo monólogo interior do pai, indagando-se, com certa apreensão, sobre a personalidade daquele filho inteligente, promissor e tão bonito quanto ele, contudo tão tímido e tão retraído. Não são citados nem o dia nem o ano do 130 nascimento de Floriano, tampouco os preparativos para a chegada do bebê. A criança é revelada por um narrador demiúrgico nas reminiscências de Rodrigo enquanto avalia a situação conjugal: Quando Flora chegara às últimas semanas de sua primeira gravidez, ele se vira acicatado por tão grande insatisfação sexual [...] (VERISSIMO, 2004a II, p. 151). Não pudera nem tentara reprimir as lágrimas no dia em que pela primeira vez vira a mulher amamentando o filho (VERISSIMO, 2004 a II, p. 151). Rodrigo observava que a mulher e o filho tinham o mesmo cheiro [...] (VERISSIMO, 2004a II, p. 151). Em outros instantes tomamos conhecimento de Floriano pela visão exotópica do narrador que, à distância, incide o olhar para o menino e nota que está sempre com uma expressão triste. Conforme dissemos anteriormente, é somente no último capítulo de O retrato II que Floriano participa de fato. Floriano contemplava a cena sentado no primeiro degrau da escada do vestíbulo (VERISSIMO, 2004b I, p. 182). E agora olhando para o pinheiro rutilante na sala sombria, o rapaz enfiava a cara por entra as grades do corrimão, esperando o grande momento (VERISSIMO, 2004b I, p. 218). Ficava em casa, sentado na soleira da porta a olhar tristonho o pôr- do- sol (VERISSIMO, 2004b I, p. 96). Floriano e Jango haviam sido aprovados nos exames finais. O primeiro vivia encafuado, sozinho, na água-furtada, com seus livros e revistas. Não tinha amigos. Pouco se comunicava com os outros membros da família [...] (VERISSIMO, 2004b II, p. 181) No capítulo que abre O arquipélago I, “Reunião de família I”, os amigos de Rodrigo (que está gravemente enfermo) estão no Sobrado fazendo-lhe uma visita e o leitor vai se integrando ao universo das personagens já tão familiares: Dante Camerino, Liroca, Pepe Garcia, Maria Valéria, Flora. Após um episódio excruciante que o deixara insone, Floriano decide sair daquele local que o asfixia e andar pelas ruas da cidade, nesse momento, o centro da narração deixa de ser o Doutor e passa a ser seu duplo. Acompanhamos os passos da personagem pelas ruas de Santa Fé 131 e o panorama que se observa é uma cidade mais modernizada, mas que ainda mantém as peculiaridades de província, fato que traz lembranças à personagem, há muito distante dali. O rapaz, nostálgico, decide entrar na livraria A LANTERNA DE DIÓGENES e acaba por comprar um caderno de pauta simples onde traçará as primeiras linhas de seu ambicioso projeto: escrever um romance que abarcaria os 200 anos da história do Rio Grande do Sul, com isso, nestes capítulos, não haverá mais um registro coletivo, e sim individual. A partir desse ponto, o eixo da narrativa volta-se novamente para Rodrigo. No entanto, na terceira parte da trilogia, a narrativa não gira somente em torno do Doutor, intercalando-se com Floriano que, por sua vez, passa a ter mais densidade, especialmente nos dois episódios derradeiros. Em O arquipélago, há sete capítulos voltados a Rodrigo e onze voltados a Floriano o que corrobora a mudança de núcleo. No passeio que Floriano faz pelas ruas da cidade, depara-se com velhos conhecidos que querem prosear, entretanto a personagem se desvencilha daqueles palradores. Mais adiante, absorto em seus pensamentos, encontra seu amigo e confessor, Roque Bandeira. Faz-se necessário explanar que, para Bakhtin em Questões de literatura e estética: a teoria do romance (2014), o cronotopo do encontro é um dos mais antigos e universais, desempenhando um papel considerável na literatura, pois está ligado a diferentes esferas da vida e a diferentes costumes sociais. Pode assumir um sentido semi ou totalmente metafórico, simbólico e muitas vezes profundo. O cronotopo do encontro pode servir de ponto culminante ou de desfecho do enredo, além de ser o responsável por integrar elementos concretos e abstratos: ideias, pessoas, lugares. Com muita frequência o cronotopo do encontro exerce, em literatura, funções composicionais: serve de nó, às vezes, ponto culminante ou mesmo desfecho (final) do enredo. O encontro é um dos mais antigos acontecimentos formadores do enredo do epos (em particular do romance). Deve-se sobretudo notar a estreita ligação do motivo do encontro com motivos como a separação, a fuga, o reencontro, a perda, o casamento, etc., que são semelhantes pela unidade das definições espaço-temporais ao motivo do encontro com o cronotopo da estrada (“a grande estrada”): vários tipos de encontro pelo caminho[...] é enorme o significado do cronotopo da estrada em literatura [...] e muitas obras estão francamente construídas sobre o cronotopo da estrada, dos encontros e das aventuras que ocorrem pelo caminho. O motivo do encontro está ligado a outros motivos importantes, em particular ao motivo do reconhecimento-não-reconhecimento, que tem papel enorme em literatura (BAKHTIN, 2014, p. 222, 223). 132 O cronotopo do encontro, nessa passagem, é o ponto de partida para que o leitor se inteire sobre questões identitárias do herói, sobre seu nascimento e sobre sua morte simbólicos. Após esse primeiro encontro, a narrativa desvelará vários outros, entre essas e mais outras personagens que participam do enredo. Floriano, por meio da anácrise “a provocação da palavra pela palavra” (Bakhtin, 2013, p.127), interpela o velho companheiro sobre uma crítica que ele havia feito acerca dos seus textos, acusando-os de superficiais. No diálogo, o jovem recebe a palavra do outro como maneira de buscar orientações para a sua técnica literária. Tio Bicho, cujo apelido fora dado por Maria Valéria por causa de seu aspecto, era amigo da família de longa data, erudito, boêmio e um misto de filósofo, livre-pensador, observador, crítico e cronista social, por essas razões era o único com quem Floriano desabafava: “Tu sabes que há certos problemas que só discuto contigo e com mais ninguém...” (Verissimo, 2004b, II, p. 96). Os dois dirigem-se ao Sobrado e, na Mansarda, encetam um debate sobre a poética: – Presta bem atenção. Suponhamos que a vida é um touro que todos temos de enfrentar. Como procederia, por exemplo, o teu avô Licurgo Cambará, homem prático e despido de fantasia? Montaria a cavalo e, com auxílio de um peão, simplesmente trataria de laçar o animal. Agora, qual é a atitude de seu neto Floriano Cambará? Tu saltas para a frente do touro com uma capa vermelha e começas a provocá-lo. De vez em quando fincas no lombo do bicho umas farpas coloridas... Mas quando o touro investe, tu te atemorizas, foges, trepas na cerca e de lá continuas a manejar a capa, para dar aos outros e a ti mesmo a impressão de ainda estar na luta... E uma atitude um tanto esquizofrênica, com grande conteúdo de fantasia. Certo? Bom. Toma agora o teu tio Toríbio.... Qual seria a atitude dele? – Pegaria o touro a unha. – Exatamente. Levaria a loucura e a fantasia até suas últimas consequências! – Aonde queres chegar com tua parábola? – O que quero dizer é o seguinte. Se num romancista predomina a atitude do velho Licurgo, isto é, o senso comum, corremos o risco de ter histórias chatas como a de certos autores ingleses cujas personagens passam o tempo tomando chá, jogando cricket ou falando no tempo. Queres um exemplo? Galsworthy. Ora, tu sabes que eu seria o último homem no mundo a negar a importância e a beleza do teu bailado de toureiro para qualquer tipo de arte... Há até uma certa literatura que não passa duma série de jogos de capa e bandarilhas. Mas o que dá a um romance a sua grandeza não é nem o seu conteúdo de verdade cotidiana nem o seu tempero de fantasia, mas o momento supremo em que o autor agarra o touro pelas aspas e derruba o bicho. Se queres um exemplo de romancista que primeiro faz verónicas audaciosas e depois agarra o animal a unha, 133 eu te citarei Dostoiévski. E se me vieres com a alegação de que o homem era um psicopata, eu te darei então Tolstói. E se ainda achares que o velho também não era lá muito bom da bola, te direi que um homem realmente são de espírito não tem necessidade de escrever romances. E se depois desta conversa me quiseres mandar àquele lugar, estás no teu direito. Mas mantenho a minha opinião. O que te falta como romancista, e também como homem, é agarrar o touro a unha... Como se tivesse sentido de repente que havia levado longe demais a franqueza, tio Bicho toca o amigo no braço, faz com a cabeçorra um sinal na direção do horizonte e, mudando de tom, diz: – Olha só o velho sol... Não parece ensanguentado e ferido de morte, prestes a tombar na arena? - Franqueza dói, Roque, mas estou precisando mais que nunca dum tratamento de choque... Continua. – Acho que agora quem deve falar és tu. O simples fato de teres puxado o assunto indica que o problema te preocupa e que andas em busca duma solução. – Isso! No fundo não foi por outra razão que aceitei a ideia de acompanhar a família nesta viagem. Cheguei à conclusão de que não podia continuar onde estava... ou onde estou. - Sorri. - Nem sei se devo dizer estava ou estou. – Isso é lá contigo... – Deves ter compreendido que pouco ou nada tenho a ver com a minha gente e a minha terra. E essa situação, que antes me parecia tão sem importância, nestes últimos cinco anos me tem preocupado. E...mordendo o cigarro, a voz apertada, o Batráquio interrompe-o: – Puseste o dedo no ponto nevrálgico da questão. És um homem sem raízes. Repara na pobreza da obra dos escritores exilados. Não creio que um romancista como tu assim desligado da sua-querência e de seu povo possa fazer obra de substância. Tuas histórias se passam num vácuo. Tuas personagens psicologicamente não têm passaporte. É muito bonito dizer que tal ou tal tipo não tem pátria porque é universal. Mas nenhuma personagem da literatura se torna universal sem primeiro ter pertencido especificamente a alguma terra, a alguma cultura. Cala-se. Ambos olham para o poente, de onde o sol acaba de desaparecer. – Perdoa, Floriano, se às vezes fico um pouco solene ou dogmático. Não é do meu feitio. Mas o assunto leva a gente para esse lado. Acho que deves dar o teu primeiro passo na direção do "touro" reconciliando-te com o Rio Grande, com os Terras, os Quadros, os Cambarás. Bem ou mal, foi aqui que nasceste, aqui estão as tuas vivências... – É curioso, mas estás repetindo exatamente o que tenho dito a mim mesmo nestes últimos anos, principalmente nos que passei no estrangeiro... Tio Bicho atira o toco de cigarro em cima do telhado. –Maeterlinck escreveu muita besteira, mas aquela história do pássaro azul, digam o que disserem, é um belo símbolo apesar do que possa ter de elementar. É uma idiotice a gente sair pelo mundo em busca do pássaro azul quando ele está mesmo no nosso quintal. Floriano volta-se para o amigo. 134 – Mas o curioso, Roque, é que quando estamos em casa vemos nosso pássaro azul apenas como uma pobre galinha magra e arrepiada (VERISSIMO, 2004b I, p. 79-81). Com a justificativa de ver o pôr-do-sol, Floriano leva o velho amigo ao lugar preferido do Sobrado: a água-furtada. Ali a personagem ficava isenta de restrições e/ou coerções externas; logo, podia ouvir músicas, pintar, escrever, longe dos olhares inquisidores dos outros. Podemos considerar a mansarda um elemento cronotópico de aconchego, segurança e liberdade onde Floriano se abrigava, distanciando-se dos outros membros da família. – Pois esse cubículo, Roque foi sempre uma espécie de céu para mim...um refúgio, como havia sido antes para meu pai e meu tio Toríbio, quando rapazes (VERISSIMO, 2004 b I, p. 75). Estranho. Aos 34 anos ainda encontro neste cubículo um pouco da sensação de segurança e proteção que tão voluptuosamente tranquilizavam o Menino (VERISSIMO, 2004b II, p. 119, Itálico conforme edição). Na mansarda, o rapaz saía da realidade e entrava no seu próprio mundo, o da ficção, o qual constituía o mundo perfeito, pois nele podia vivenciar as histórias que lia. Diferentemente de seu duplo (conforme Bakhtin, cada um ocupa um lugar único no mundo), ali do alto, de sua extraposição, Floriano desfrutava do prazer de observar a cidade, captar situações e sensações, ler e fantasiar. [...] – teu pai e teu tio sempre foram homens de ação. Para eles o verdadeiro céu era o mundo real, palpável, que eles gozavam com os cinco sentidos, voluptuosamente [...]Mas tu, tu te fechavas aqui para sonhar. Este era teu mundo do faz-de-conta. Certo ou errado? – Certíssimo. Este quartinho para mim já foi tudo... O Nautilus do capitão Nemo... a mansarda de um pintor tísico em Paris...a barraca dum chefe ele vermelha, a mansão dos Baskerville onde muitas vezes esperei, apavorado, o aparecimento de um fantasma...(Verissimo, 2004b I, p. 75). Floriano leva intencionalmente o seu amigo àquele refúgio familiar onde lhe era permitido proceder de maneira não sancionada pelo decoro ou pelos ditames sociais, o que lhe daria a oportunidade de ser mais atrevido e com isso expressar sua opinião com mais confiança. 135 O excerto em questão é um metatexto, termo utilizado por Gerard Genette em Palimpsestos: a literatura em segundo grau (2010). Segundo o autor, um texto que fala de outro estabelece uma relação metatextual com este, “sem necessariamente citá-lo (convocá-lo), até mesmo, em último caso, sem nomeá-lo” (p.15), ou seja, é um texto que se debruça sobre si mesmo. Nesse sentido, os amigos conversam acerca da criação literária de Floriano, logo, é a narrativa aludindo à sua eflorescência. Tio Bicho apresenta uma parábola – tipo de prosa metafórica que se serve de elementos concretos para transmissão de valores – empregando a alegoria de um confronto entre um toureiro e um touro em uma arena, com o objetivo fazer o jovem examinar como dois membros exemplares da família enfrentam a vida e o mundo em situações limites, em seguida transfere a simbologia para o fazer literário. A partir da parábola e por meio da anácrise, incita Floriano a revisar as concepções que tem de si como homem e como escritor. Primeiramente, usa como exemplo o avô Licurgo – homem prático, de personalidade forte, acostumado às lides pastoris e às coxilhas – tomaria de todas as cautelas e montaria o animal com o auxílio de um peão. Em seguida, ilustra a situação com o próprio Floriano que agitaria a capa vermelha, provocaria o bicho, criaria um espetáculo, mas na investida do touro contra ele, fugiria e, de outro ponto, continuaria a agitar a peça, dando a impressão de continuar na luta. Com essa comparação, Roque Bandeira quer que o amigo se reconheça: é mais emotivo, menos racional, quando em uma conjuntura, esquiva-se. Por fim, na última escala da gradação, apresenta Toríbio: homem destemido, bravio, agreste e impetuoso que, sozinho, “laçaria o touro à unha”. Tio Bicho leva Floriano a concluir a respeito da atitude do tio, cuja peculiaridade é a de enfrentar a realidade de modo feroz, indo até as últimas consequências. A cada membro da família há uma alusão a um tipo de escritor: Licurgo seria aquele tradicional, entediante; Floriano aquele que faz malabarismos sintáticos, mas sua prosa é rasa, artificial; Toríbio seria aquele envolvido com seus temas, que se aproxima das personagens, que chega ao cerne do problema, portanto, o escritor ideal seria aquele capaz de “fazer verônicas audaciosas e depois agarrar o animal à unha”. Nessa conversa, Roque Bandeira expressa suas convicções que foram sendo moldadas a partir dos discursos dos outros, dos livros que lera, das 136 experiências que teve. As falas e as ações de Tio Bicho possuem acento próprio e revelam a sua posição ideológica. Para o filósofo, uma obra não poderia ser só realidade ou só inventividade e, antecipando uma possível réplica do outro, cita escritores renomados que encontraram o comedimento como Tolstói e Dostoiévski. Como forma de deixar o seu discurso incontestável, finaliza sua explanação empregando a lógica aristotélica: Dostoiévski, um grande escritor, tinha um pouco de loucura; Tolstói, um grande escritor, tinha um pouco de loucura; logo, todo grande escritor teria um pouco de loucura, caso contrário não seriam escritores. Ora, se todo grande escritor não é de todo racional, Floriano, para ser bom escritor, deveria ser menos racional. Tio Bicho faz uso da razão com o objetivo de ajudar Floriano no reconhecimento de sua ignorância como escritor e como homem, quando em situações extremas. Segundo Bakhtin/Voloshinov (2009, p. 137), compreender a enunciação do outro, significa orientar-se em relação a ela, dar uma resposta, esperar a réplica do outro. Pela entoação usada por Floriano, Roque Bandeira percebe que o amigo está em conflito, em busca de uma solução e o ajuda nesse processo de autoconhecimento. Bakhtin assegura, ainda, que “viver é assumir uma posição axiológica em cada momento da vida” (2011, 174), fato que será materializado na entoação de Floriano: “Nem sei se devo dizer estava ou estou”. Nesse momento, percebe-se a tomada de posição diante do outro. O diálogo culmina na autoconsciência de Floriano: o que era no passado não é no presente e nem será no futuro, ao que o filósofo da linguagem denominou de “eventicidade do ser”. A personagem sente-se desenraizada, não pertencente nem àquele tempo e nem àquele lugar, ou seja, encontra-se na fronteira, num processo de descoberta, de mudança. Nesse embate de ideias, em um processo reflexivo, tio Bicho atua como facilitador ajudando o jovem amigo a considerar que a existência do homem sempre pressupõe relações sociais que estão inseridas em um determinado tempo/espaço histórico. Para convencê-lo, usa como exemplos primeiramente pessoas com quem o rapaz convivera e que propiciaram a construção de sua identidade: os Terra, os Cambará, os Quadros que, por sua vez, ajudaram-no a definir o seu quadro de valores. Tio Bicho interpela o rapaz com o objetivo de fazê-lo reconhecer sobre a importância de suas origens, uma vez que o indivíduo é banhado em uma cultura e, para se conhecer, precisa investigar o seu passado. Aquela sensação de não- 137 pertencimento do herói somente se reconfiguraria pela memória, no resgate de sua tradição. Ademais, Floriano vivera por muito tempo no exterior, remetendo-nos ao cronotopo da estrada que está ligado à desterriolização, ao desenraizamento da personagem, cuja existência estava tão fragmentada quanto os caminhos que percorrera. Floriano não consegue pertencer à Santa Fé, por isso se encontra em crise, no limiar e sua volta seria uma maneira de obter respostas aos seus questionamentos. Para Tio Bicho, Floriano não resolveria o seu conflito se tentasse buscar sua identidade fora de sua terra, longe de suas gentes. Segundo Barros (2003, p.121), “no dialogismo o sujeito perde o seu papel de principal voz do enunciado, ocorrendo à substituição por vozes sociais, o sujeito passa assim a ser histórico e ideológico”. Roque Bandeira acredita que, se o jovem escritor fizesse uma literatura mais engajada com suas as raízes, resultaria em textos com maior profundidade, desta forma tenta auxiliar o escritor na busca de um estilo literário. Os fatos apresentados no excerto servem como pano-de-fundo para evidenciar os diálogos entre as duas personagens, o que corrobora a afirmação de Bakhtin de que uma voz nada resolve, tudo é resolvido com pelo menos duas vozes dado que o homem é um ser dialógico por natureza. Bakhtin, em Estética da criação verbal (2011), assegura que a identidade é construída mediante relações com o outro, o “eu só existe por meio do outro e o outro é aquele que nos direciona” (p. 348, grifos do autor). Tio Bicho propicia a Floriano o encontro da sabedoria e do autoconhecimento, o diálogo entre os dois mostra o processo de construção de uma nova ideia, da identidade do sujeito, cujos pensamentos, opiniões, visões de mundo, constituem-se a partir de relações valorativas com outros sujeitos. Ao final da conversa, já na penumbra, Floriano diz que voltou a Santa Fé para finalmente consolidar-se na profissão, “para acabar de nascer” (VERISSIMO, 2004b I, p. 83), pois tornar-se um bom escritor era um meio de tomar consciência de si, de se reconciliar consigo mesmo, com seu pai, com Sílvia e, afinal, encontrar a sua identidade. Ao propor a Floriano que tome consciência de si e do mundo, Roque Bandeira vai de encontro aos apontamentos de Bakhtin acerca da obra de Dostoiévski, cujas personagens tinham “toda uma vida concentrada em tomar consciência de si e do mundo” (Bakhtin, 2013, p. 56). Observamos no fragmento acima, que a identidade do indivíduo se dá pela interação com o outro e está sempre em construção, em um contínuo devir, já que o 138 indivíduo é inacabado e imperfeito. Floriano está no limiar, fato que o inquieta, pois deve assumir uma posição a fim de revelar primeiramente o que é para si e depois para os outros, reportando-nos à ideia de consciência e autoconsciência, consequentemente, ao fenômeno da duplicidade do herói: “Eu não posso me arranjar sem o outro; eu não posso me tornar eu mesmo sem um outro; eu tenho de me encontrar num outro para encontrar um outro em mim. ” (BAKHTIN, 2013, p. 330) Vale ressaltar que o dialogismo (Bakhtin/Volochinov 2009) presente na interação entre as personagens, também se manifesta na consciência do herói, uma vez que o tempo inteiro dialoga consigo mesmo por meio dos pensamentos. Nesse processo, Floriano põe em confronto signos diferentes, conteúdos ideológicos divergentes, revisita o passado, ressignifica fatos que ficaram marcados na memória, projeta o futuro, promove um diálogo interno antes de interagir com o outro: A "cerimônia" matinal de fazer a barba foi sempre para Floriano a hora de dialogar com seus fantasmas, fazer planos para a vida e para os livros, ruminar emoções passadas, corrigindo às vezes o que aconteceu, imaginando o que poderia ter feito e dito em determinadas ocasiões, em suma, passando a vida a limpo. Esta é também a hora em que costuma projetar suas fantasias no futuro, dando às coisas que estão para vir o desenho mais conveniente a seus desejos (VERISSIMO, 2004b II, p. 282, itálico conforme edição). O que procuro agora é explicar a mim mesmo por que minha gente e minha terra sempre foram os grandes ausentes nos meus livros. E por que até hoje não usei em meus romances minhas vivências gaúchas? Tio Bicho tem razão: o Pássaro Azul bem pode estar no quintal do Sobrado ou nos capões do Angico. Ou escondido dentro de mim mesmo. Frase besta. Mas que diabo! Preciso ter intimidade pelo menos comigo mesmo. Ter intimidade com alguém é a rigor não esconder desse alguém a nossa nudez mais nua, e os nossos erros e ilusões, por mais tolos que possam ser ou parecer (VERISSIMO, 2004b II, p. 124, itálico conforme edição). Como já expusemos anteriormente, em alguns capítulos de O arquipélago, o eixo narrativo deixa de ser Rodrigo (que passa a ser fundo), e desloca-se para seu filho (que se torna figura). Nesse fragmento, Floriano, por meio do monólogo interior, examina-se como escritor e nesse processo avaliativo, lembra-se da conversa que travara com Tio Bicho. A palavra do amigo tem aguda importância na descoberta da identidade do rapaz. Na ocasião, Roque Bandeira utilizara a alegoria do pássaro azul para se referir à felicidade. Para Floriano, a busca da plenitude estava 139 relacionada ao encontro de sua verdade. Segundo Tio Bicho, não era preciso ir muito longe para desentesourá-la, o escritor não precisaria distanciar-se de suas gentes para tal; ao contrário, encontrá-la-ia em sua terra e com as pessoas que amava. Floriano faz exclamações e perguntas retóricas a fim de se autoavaliar. A entoação revela que está irritado com o fato de não se compreender, de não conseguir encontrar o seu “pássaro azul” porque não se desloca “ao seu quintal”. Essa passagem corrobora o fato de que só se pode adentrar o homem se ele se revelar a si mesmo, por meio da comunicação, do diálogo com os outros (no caso com Roque Bandeira), e quando ele se comunica consigo mesmo, chegando à autoconsciência. E só se pode chegar à autoconsciência se ele se comunicar consigo como se fosse outro. “Somente na comunicação, na interação do homem com o homem, revela-se o homem no homem para os outros e para si mesmo” (BAKTHIN, 2013, p. 292). A autoconsciência de Floriano é totalmente dialogizada está voltada para si como se fosse outro, gerando um duplo. No extrato transcrito abaixo, a personagem medita a respeito da falta de liberdade no sentido de o indivíduo estar sempre preso às convenções sociais que determinam o certo e o errado: Sete e meia da manhã. Floriano barbeia-se diante do espelho do quarto de banho, pensando em que dentro de alguns minutos terá de enfrentar a família à mesa do café. [...] Que fazer? – Pergunta mentalmente à imagem que do espelho também o contempla com ar indagador. – Que fazer? Os olhos ainda um tanto enevoados de sono, dois ou três fios prateados apontando entre os cabelos negros das têmporas, o tom de marfim dos dentes, acentuado pelo contraste com a espuma branca que lhe cobre as faces – Floriano sorri para a própria imagem, tendo ao mesmo tempo consciência dum narcisismo que o desagrada, pois ele (ou o Outro?) deseja mesmo acreditar que não é, nunca foi vaidoso. Ali está um sujeito que o conhece melhor que ninguém: o olho implacável que lhe vigia e critica pensamentos, gestos, palavras e até sentimentos. Como seria bom poder livrar-se desse incômodo anjo da guarda, desse capanga metafísico![...] Passa agora a lâmina pelo pescoço. (No pátio da Intendência degolavam-se maragatos.) Degolar o Outro, liquidar o Anjo... Não. O melhor será descobrir uma fórmula mágica para promover a fusão das duas partes de seu Eu. Deixar de ser ao mesmo tempo sujeito e objeto: eis a questão. Unificar-se... Avante, Garibaldi! É sempre assim. Todas as suas autoanálises acabam em farsa.. Agora, porém, sabe que suas fugas pela porta do humor nada mais são que a tentativa de pregar um rabo de papel colorido nos seus 140 problemas,[...] em suma, eliminar ou atenuar o caráter ameaçador de tudo quanto – por misterioso, estranho, hostil ou insuperável – lhe possa aumentar a angústia de existir.[...] Por um instante Floriano fica atento aos ruídos da casa e da manhã. Depois aproxima mais o rosto do espelho, para escanhoar o queixo. Se ele se livrasse do Outro, que vantagens teria na vida? Para principiar, quando se deitasse com uma mulher (fosse ela quem fosse) iria inteiro para a cama – carne, ossos, nervos, vísceras, sangue – e não teria aquele Fiscal absurdo e frio a seu lado, a observá-lo e a insinuar coisas que lhe aguçavam o sentimento de culpa e ridículo. Sim, e quando escrevesse, escreveria com o corpo todo, sem ter o Outro - no fundo um representante dos Outros, da Família, da Crítica, da Sociedade, da Ordem Estabelecida - sem ter aquele Censor a ler por cima de seu ombro ... Merda então para o Outro! Merda para a Família! Merda para a Sociedade! Merda para a Crítica! Merda para a Ordem Estabelecida! E por fim merda para a Merda! E assim, senhoras e senhores, fechamos o círculo, voltando ao ponto de partida, isto é, à Merda inicial. [...] O homem do espelho parece apreensivo. A escatologia não é solução. Floriano quer pronunciar a Palavra com absoluta convicção, com um certo fervor cívico e até religioso. Talvez nisso esteja a sua salvação. Mas qual! Sente que no fundo é ainda o menino bem- comportado, de boa família, que não escreve nem diz nomes feios, porque Papai e Mamãe não que Dinda não quer, a Professora não quer... Mas em que ficamos? Qual a solução? Antes de mais nada, qual o problema? Mesmo em pensamento lhe é difícil, constrangedor, verbalizar sua situação. Estás apaixonado pela mulher do teu irmão. Quem constrói a frase é o Outro. Nessa formulação está encerrado um julgamento moral, uma censura. [...] Só há duas soluções possíveis: ou tomo Sílvia nos braços[...] ou então me convenço que não há solução e vou me embora amanhã. Não há meio-termo. Mas não terei sido sempre o homem dos meios- termos, das meias palavras? E por um momento lhe vem, agudo, urgente, o desejo de fugir. Fugir de Santa Fé, do Sobrado, sim, da morte do Pai e do amor de Sílvia. Não! Desta vez é preciso ficar. Vim para enfrentar a situação. Esse problema e os outros.[...] Fica a imaginar a sensação de ter Sílvia desnuda nos braços, mas só de pensar nisso lhe vem um sentimento de culpa [...]. Não se tratada mulher de seu irmão? E não foi ela criada no Sobrado quase como sua irmã? (... seja como for, merda para o incesto!) [...] Mas preciso me analisar mais a sério. E me barbear melhor... O sangue continua a escorrer-lhe do corte. Sejamos realistas. O que se passa comigo é que há mais de um mês não tenho mulher: a castidade forçada aumenta meu desejo por Sílvia. Logo, o remédio é procurar uma mulher... Mas quem? Onde? Como? A ideia de recorrer a uma prostituta lhe é constrangedoramente repugnante. Outro preconceito, meu amigo! (A voz de Tio Bicho.) [...] A ideia lhe veio porque ele a temia ou ele a temia por ter a intuição de que ela se aproximava, inapelavelmente? Está claro que a coisa toda é absurda, indecente, indigna, impossível. (Tio Bicho: “Palavras, palavras, palavras! E tu não sentes nada do que estás dizendo”.) 141 Dormir com a amante do pai? A possibilidade deixa-o estranhamente excitado. Como e por que negar que se sente fisicamente atraído pela rapariga? Mas como negar também que a ideia o envergonha? [...] O Outro, o do espelho, replica: “Bela desculpa para fazeres tudo quanto desejas sem olhar o interesse dos outros”. Besteira! Vocês (mas vocês quem?) inventaram e nos impingiram a vergonha do corpo, a vergonha dos desejos do corpo e como resultado disso nos transformaram em eunucos [...] (VERISSIMO, 2004b II, p. 282 - 287). Segundo Bakhtin, a personagem é criada em um universo e esse universo recria a realidade, neste sentido, assim como na vida real, o sujeito pondera sobre si e sobre o mundo. Nesse excerto, o início da narração apresenta marcadores temporais no presente do indicativo, momento enunciado pelo narrador: “Sete e meia da manhã. Floriano barbeia-se diante do espelho do quarto de banho”. O detalhamento espaço/temporal daquela manhã interfere no interior da personagem, porque denota o início e a projeção do dia: há junção do tempo cronológico e psicológico, com o predomínio do segundo sobre o primeiro. Embora a narração represente o tempo do enunciador, observa-se que o fator que determina as sensações é um tempo passado. “ É sempre assim. Todas as suas autoanálises acabam em farsa” (VERISSIMO, 2004b II, p. 283, grifo nosso). Floriano vive o presente, pensando em um futuro hipotético, a fim de elaborar respostas para as indagações que lhe vêm à mente. Ao lembrar-se de atitudes passadas, o herói dialoga interiormente, reflete sobre o momento presente e planeja o futuro. Floriano está no lavatório, o tópos da privacidade, já que é um espaço intransponível. Ali ele se protege do assédio de uma sociedade em que se acentuam rígidas regras de conduta. A personagem efetua a sua higiene matinal (ação cotidiana) e manuseia um aparelho de barbear, objeto comum e pessoal; o cronotopo é aplicado no âmbito da intimidade, facilitando a introspecção. Enquanto se barbeia diante do espelho, avalia a respeito da situação familiar em que se encontra. Ao examinar o seu reflexo, enxerga-se não por inteiro, mas somente uma fração, tem uma visão restrita, limitada, embaçada de sua vida e de seu futuro. O herói ocupa um espaço e a imagem refletida, outro; a primeira está diante do espelho e a segunda dentro. “Floriano sorri para a própria imagem [...] pois ele (ou o Outro?) ” [...] (VERISSIMO, 2004 b II, p. 283, grifo nosso). Nesse exercício de autocontemplação, há um corpo exterior e um interior, em vista disso, Floriano não está só, está possuído de alma alheia. Por não a enxergar, 142 torna-se independente, com existência autônoma, como se fosse outro ser, e por essa razão Floriano denomina-a de outro – o outro que o interroga e o investiga. Na autocontemplação no espelho, Floriano passa pela consciência do outro para existir, já que o indivíduo é para si e para o outro, acarretando um duplo: “Ali está um sujeito que o conhece melhor que ninguém: o olho implacável que lhe vigia e critica pensamentos, gestos, palavras e até sentimentos” (VERISSIMO, 2004 b II, p. 283, grifo nosso). O duplo do espelho fala pelas próprias palavras de Floriano: Mas em que ficamos? Qual a solução? Antes de mais nada, qual o problema? (VERISSIMO, 2004b II, p. 285). Não se trata da mulher de seu irmão? E não foi ela criada no Sobrado quase como sua irmã? (VERISSIMO, 2004b II, p. 286). Dormir com a amante do pai? A possibilidade deixa-o estranhamente excitado. (VERISSIMO, 2004b II, p. 286, grifo nosso). Existe um Floriano que se esconde e outro que reage: “Degolar o Outro, liquidar o Anjo...Merda então para o Outro! ” (.... Seja como for, merda para o incesto!) (VERISSIMO, 2004b II, p. 286, grifo nosso). O espelho capta o olhar de Floriano, adivinha os seus pensamentos: "O homem do espelho parece apreensivo”. O duplo de Floriano tem as mesmas características, as mesmas reações, a mesma voz. De maneira adversa ao seu pai, não se contempla como objeto de amor, mas como crítico de suas ações e de sua incapacidade de realizar seus desejos. Os olhos ainda um tanto enevoados de sono, dois ou três fios prateados apontando entre os cabelos negros das têmporas, o tom de marfim dos dentes, acentuado pelo contraste com a espuma branca que lhe cobre as faces – Floriano sorri para a própria imagem, tendo ao mesmo tempo consciência dum narcisismo que o desagrada, pois ele (ou o Outro?) deseja mesmo acreditar que não é, nunca foi vaidoso. [...] (VERISSIMO, 2004b II, p.283, grifo nosso). O signo do espelho é um auxiliador na construção da imagem do ser humano que o utiliza com o propósito de se avaliar, de obter aprovação, de verificar a impressão que causará, contudo, a imagem que os outros veem não é a mesma, por isso o indivíduo não consegue calcular a maneira como será examinado. A imagem projetada no espelho não é a imagem real, e sim o resultado da impressão que produzirá no outro, e o que o indivíduo é para o outro nem sempre coincide com o 143 que é para si, por essa razão o herói tenta se enformar a partir do outro. Aquilo que Floriano é para o outro, torna-se seu duplo que, por sua vez, se opõe a ele: Encontrar uma posição axiológica em relação a nós mesmos; também aqui tentamos vivificar e enformar a nós mesmos a partir do outro; daí a expressão original e antinatural de nosso rosto que vemos no espelho [e] que não temos na vida. [...] isto é, nós a avaliamos não para nós mesmos mas para os outros e através dos outros (BAKHTIN, 2011, p.31). . O desdobramento de Floriano se dá com a não coincidência consigo mesmo, ele não é ele, mas o outro para quem o discurso está voltado e que definem o tom que ele usa. Há combinação de duas consciências, a do eu e a do outro: o eu só existe para o outro com o auxílio do outro que aparece como um fantasma, um anjo da guarda acusador. “Como seria bom poder livrar-se desse incômodo anjo da guarda, desse capanga metafísico! ” [...] (VERISSIMO, 2004b II, p. 283, grifo nosso). Ao se olhar no espelho, Floriano passa pela consciência dos outros para se constituir. Há duas almas: uma interior – que é aquela que esbraveja, e a outra exterior – que pondera e não revela o que está no íntimo. Temos a essência cindida que entra em conflito e desajuste. “Não. O melhor será descobrir uma fórmula mágica para promover a fusão das duas partes de seu Eu. Deixar de ser ao mesmo tempo sujeito e objeto: eis a questão. [...]” (VERISSIMO, 2004b II, p. 283, grifo nosso). Ao olhar-se no espelho, a personagem sente um vazio, uma angústia em face dessa imagem. As reações volitivo-emocionais que Floriano tem em relação ao Outro não se aplicam a ele mesmo, deixando-o em um estado de inquietação: “O que o indivíduo sente pelo outro: admiração, amor, ternura, piedade, amizade, dó, não se aplica da mesma forma a mim” (BAKTHIN, 2011, p. 28). “[...] em suma, eliminar ou atenuar o caráter ameaçador de tudo quanto – por misterioso, estranho, hostil ou insuperável – lhe possa aumentar a angústia de existir [...]” (VERISSIMO, 2004b II, p. 283, grifo nosso). Segundo Bakhtin, a consciência individual é construída por meio da consciência coletiva, pois consciência só é consciência quando impregnada de conteúdo ideológico que, por sua vez, só se dá pela interação social (BAKTHIN; VOLOCHINOV, 2009). Se a consciência humana é constituída pelo conjunto de 144 relações sociais, é a consciência que molda a imagem refletida no espelho de forma que ela seja aceita, que se insira nas relações dos grupos sociais a que deseja pertencer. O herói reage diante do que os outros vão pensar dele: a família, a madrinha, a professora: Floriano quer pronunciar a Palavra com absoluta convicção, com um certo fervor cívico e até religioso. Talvez nisso esteja a sua salvação. Mas qual! Sente que no fundo é ainda o menino bem-comportado, de boa família, que não escreve nem diz nomes feios, porque Papai e Mamãe não que Dinda não quer, a Professora não quer (VERISSIMO, 2004b II, p. 284, grifo nosso). Conforme assevera Bakhtin, a identidade é a construção de um discurso individual e coletivo, a consciência é formada pela consciência coletiva, e só se torna consciência quando impregnada de conteúdo ideológico que, por sua vez, se dá na interação social: a identidade só se constitui mediante relação com o outro, que é o que nos direciona: “A princípio eu tomo conhecimento de mim através dos outros deles eu recebo as palavras, as formas e a tonalidade para a formação da primeira noção de mim mesmo” (BAKTHIN, 2011). A ideia de recorrer a uma prostituta lhe é constrangedoramente repugnante. Outro preconceito, meu amigo! (A voz de Tio Bicho.) [...] A ideia lhe veio porque ele a temia ou ele a temia por ter a intuição de que ela se aproximava, inapelavelmente? Está claro que a coisa toda é absurda, indecente, indigna, impossível. (Tio Bicho: “Palavras, palavras, palavras! E tu não sentes nada do que estás dizendo”) (VERISSIMO, 2004b II, p. 284, grifo nosso). Floriano avalia-se do ponto de vista dos outros, tornando-se outro em relação a si. No fragmento em questão é exposta a contraposição do homem versus homem, eu versus outro: o Outro são os outros e ele mesmo: Sim, e quando escrevesse, escreveria com o corpo todo, sem ter o Outro - no fundo um representante dos Outros, da Família, da Crítica, da Sociedade, da Ordem Estabelecida - sem ter aquele Censor a ler por cima de seu ombro... Merda então para o Outro! Merda para a Família! Merda para a Sociedade! Merda para a Crítica! Merda para a Ordem Estabelecida! E por fim merda para a Merda! E assim, senhoras e senhores, fechamos o círculo, voltando ao ponto de partida, isto é, à Merda inicial. [...] (VERISSIMO, 2004b II, p. 284, grifo nosso). 145 Nesse momento o herói expõe sua consciência e autoconsciência, as consciências não ocupam o mesmo lugar, acarretando uma crise, como uma confissão. Atuam duas vozes, eu para si e eu para o outro, as consciências entram em conflito. Floriano não gosta do outro que vê no espelho, sabe que o outro tem suas opiniões e apreciações e refuta a polêmica do Outro. O olhar do Outro se funde ao seu olhar. O enunciado em discurso direto representa o que o outro (ou os outros) dizem. Indica também que a personagem pensa em voz alta (ou fala em voz baixa), uma voz responde à outra. A voz de Floriano e a do Outro se fundem com outra entonação, o espelho replica por meio de evasivas da consciência, tornando “o herói ambíguo e imperceptível para si mesmo” (BAKHTIN, 2013, p. 270). Desta forma, há autocondenação e autoabsolvição: ao mesmo tempo que uma voz condena, a outra absolve: Que fazer? – Pergunta mentalmente à imagem do espelho que também o contempla com ar indagador. – Que fazer? [...] (VERISSIMO, 2004 b II, p. 283, grifo nosso). Como e por que negar que se sente fisicamente atraído pela rapariga? Mas como negar também que a ideia o envergonha? (VERISSIMO, 2004b II, p. 286, grifo nosso). [...] O Outro, o do espelho, replica: “Bela desculpa para fazeres tudo quanto desejas sem olhar o interesse dos outros”. (VERISSIMO, 2004b II, p. 287, grifo nosso). [...] a castidade forçada aumenta meu desejo por Sílvia. Logo, o remédio é procurar uma mulher..., Mas quem? Onde? Como? (VERISSIMO, 2004b II, p. 286, grifo nosso). Fugir de Santa Fé, do Sobrado, sim, da morte do Pai e do amor de Sílvia. Não! Desta vez é preciso ficar. Vim para enfrentar a situação. Esse problema e os outros[...] (VERISSIMO, 2004b II, p. 285, grifo nosso). Constatamos nesse fragmento que a alma interior e alma exterior da personagem dialogam: ao lado de uma concepção de mundo, outra concepção de mundo, cada qual com seu ponto de vista. Há diferentes consciências, há um entrecruzamento de vozes –formadas a partir de outros discursos – que não coincidem, por essa razão se desdobram. Floriano surge na forma do outro e o outro surge na forma de Floriano, visto que a imagem do homem não pode ser 146 desvinculada. Quando se refere a si, parece que está se referindo a outra pessoa, como se estivesse replicando interiormente; há dois tons, duas vozes. Estás apaixonado pela mulher do teu irmão [...] (VERISSIMO, 2004b II, p. 285, grifo nosso). Besteira! Vocês (mas vocês quem?) inventaram e nos impingiram a vergonha do corpo, a vergonha dos desejos do corpo e como resultado disso nos transformaram em eunucos [...] (VERISSIMO, 2004b II, p. 287 grifo nosso). Sejamos realistas. O que se passa comigo é que há mais de um mês não tenho mulher [...] (VERISSIMO, 2004b II, p. 286, grifo nosso). Junto à voz do enunciador, ouvem-se outras vozes que incutem dúvidas, conflitos e anseios na personagem outros sujeitos que contribuem para a formação da sua identidade. Os movimentos exteriores fazem-no recobrar o mundo real, abandonar por instantes o seu diálogo interior: “Por um instante Floriano fica atento aos ruídos da casa e da manhã” (VERISSIMO, 2004b II, p.284). O herói se fere ao escanhoar o rosto e sangra, tenta estancá-lo, ou seja, tenta uma maneira de se livrar daquela situação, daquele conflito em que ele próprio se colocara. Floriano é um homem dividido entre o que ele quer ser e o que ele é. Reluta em aceitar o julgamento social, contudo a sua consciência o impele a aceitar os padrões estabelecidos. Considera o fato de estar apaixonado por sua cunhada Sílvia um erro e culpa-se por aquela situação. Inconformado, nega-se em assimilar o discurso alheio: “Merda para a Ordem Estabelecida! E por fim merda para a Merda! ” (VERISSIMO, 2004b II, p. 284, grifo nosso). Para a personagem, a liberdade consistia em não ficar atrelado ao julgamento social, à palavra autoritária e sentia repulsa ao que ele considerava uma podridão. O duplo surge no espelho como os “olhos” da moralidade pelos quais está preso. Floriano quer evitar o duplo e afirmar a si mesmo. Em outros momentos da narrativa, o duplo de Floriano aparece como um menino que conversa com o homem, como se fossem dois seres diferentes e autônomos. A cena em questão ocorre em um cemitério, quando Floriano e seu pai vão ao enterro de Sara, mãe de Arão Stein. 147 O cemitério de Santa Fé lembrava-lhe vagamente uma cidade árabe, com cúpulas e minaretes em branco, rosa e azul, com suas casas caiadas e seus becos estreitos e desconcertantes [...] Só alguns dos mausoléus das grandes famílias destoavam do conjunto. O dos Teixeiras, todo de mármore branco, tinha a forma dum templo grego. O dos Prates, em mármores gris, parodiava uma catedral gótica. O dos Macedos era uma miniatura da Basílica de São Pedro, em granito Róseo (VERISSIMO, 2004b III, p. 184). O cenário que se tem é de um espaço social e familiar, já que lá estão as sepulturas de pessoas conhecidas. O cemitério é o cronotopo da passagem de tempo: passado recente versus passado remoto, representa a passagem da vida para a morte, o fim e o começo. É nesse espaço que começa a degradação da vida e por isso é assustador. Conforme as personagens caminham pelo local, adensam- se os detalhes dos jazigos, a situação ora de abandono por parte de familiares, ora de apreço pelos mortos que ali descansam, o cronotopo relaciona dimensões espaciais a dimensões temporais. “[...]. Branquinha e asseada, cercada de rosas frescas, esta sepultura parece-se muito com a defunta. (VERISSIMO, 2004b III, p. 184,185). O ambiente reveste-se de uma aura capaz de conferir ao relato um caráter antagônico: etéreo e fúnebre. Floriano encontra-se angustiado naquele lugar funesto, que será o fim de todas as pessoas, e está em uma situação bastante incômoda, porque não pode revelar aos outros o medo que sente: Floriano ficou angustiado ao dar os primeiros passos dentro do cemitério. Teve a impressão de que a mão da morte lhe acariciava o peito. E aqueles cheiros (cera e sebo derretidos, flores murchas, terra das covas (recém-abertas) e mais a ideia de que debaixo daquele chão jaziam ossadas humanas e apodreciam cadáveres — produziam-lhe uma sensação de náusea. [...]. (VERISSIMO, 2004b III, p. 184). [...]. Adiante! Sossega esse peito. Os mortos são inofensivos. O que eles querem é que os vivos os deixem em paz [...] (VERISSIMO, 2004b III, p. 184, grifo nosso). Nesse instante emerge o duplo corporificado no menino que ouve as palavras moderadoras do adulto, tentando distraí-lo. O menino que havia ainda em Floriano olhava em torno com olhos supersticiosos e apreensivos, mas o adulto tratou de recorrer ao sarcasmo para tranquilizar a criança. (VERISSIMO, 2004 b III, p. 184, grifo nosso). 148 O leitor tem a impressão de que se trata apenas de Floriano, mas aos poucos vai despontando na enunciação a não coincidência com os dois seres. Floriano biparte-se em menino e em homem, como um duplo exógeno. O narrador caminha ao lado, é onisciente e sabe a respeito dos dois sujeitos que ali estão. Por meio da diatribe, o homem trata o menino por tu, interroga-o, faz pilhérias, de maneira a deixar aquela situação mais suportável. No seu discurso interior aparecem as palavras do outro com outro acento, mais burlesco, galhofeiro: Ah! O jazigo da família Fagundes.... Imagina só o cadáver do cel. Cacique tomando chimarrão todas as manhãs à frente dessa abominável imitação de palazzo florentino... Não achas absurda a pompa desses mausoléus? E tome mármore e tome bronze, e tome granito! [...]. Repara na cretinice de certos epitáfios. Ali está o infalível soneto de Camões. Alma minha gentil que te partiste... Maminha? Cacófaton! Te lembras de como ríamos no ginásio toda a vez que nos tocava analisar esse verso? Olha só a cara daquele anjo hermafrodita de nádegas carnudas... O que está ajoelhado sobre a lápide, depondo sobre ela uma coroa.... Devia ter no rosto uma expressão de melancolia, no entanto por inadvertência ou molecagem do escultor tem apenas um sorriso safado. Saudades eternas do teu amantíssimo marido. Aposto como o amantíssimo tornou a casar-se.[...] (VERISSIMO, 2004b III, p. 184,185). De sua extraposição, o homem vê o cemitério de uma maneira racional: como um espaço natural e definitivo. O menino, por sua vez, de sua extraposição, não consegue desvencilhar aquele espaço da situação de decrepitude que representa, afinal, corpos de pessoas apodreciam sob as lápides. Nesta enunciação estão aglutinados três tempos: o passado das recordações, o presente da enunciação e o futuro dos projetos. O cemitério é, pois, também o cronotopo do encontro: o menino e o homem, o passado/presente/ futuro: Te lembras de como ríamos no ginásio toda a vez que nos tocava analisar esse verso [...] (VERISSIMO, 2004b III p. 184, grifo nosso). Repara na cretinice de certos epitáfios. [...] (VERISSIMO, 2004b III p. 184, grifo nosso). Tome muito cuidado com as palavras, menino, é um conselho que te dou. Se algum dia vieres a ser escritor, como sonhas, põe sentido 149 nas palavras. Eterno e infinito no fim de contas não querem dizer tanto quanto se pensa (VERISSIMO, 2004b III p. 185, grifo nosso). Por meio do vocativo, uma voz dirige-se à outra, há um embate de vozes em uma só enunciação. A voz do adulto aconselha a criança a levar adiante seu sonho de ser escritor e a escolher com cuidado as palavras. Notamos a presença da duplicidade tanto nas vozes, quanto nos tempos: o do homem (o presente e o futuro) e o do menino (passado). A passagem encerra quando Floriano depara-se com o túmulo de um sujeito, Sérgio, que o desvia de suas elucubrações. Nessa ocasião, o homem frio e zombeteiro passa a ser guiado pelo menino ingênuo e assustado. Floriano avistou o túmulo de Sérgio, o Lobisomem, uma das personagens de sua mitologia privada, e de súbito a espada do seu sarcasmo perdeu o fio. O adulto, vencido, entregou-se ao menino, que lhe tomou da mão e o levou a ver o “seu” cemitério, onde Eternidade e Infinito tinham ainda um prestígio e um sentido que seria um sacrilégio, além de uma insensatez, discutir[...] (VERISSIMO, 2004b III p. 185, grifo nosso). O cemitério reporta ao princípio e ao fim, aos fatos que ficaram para trás, presos no tempo. Floriano, como escritor, quer resgatar aquelas histórias que deixariam de ser incógnitas e tornar-se-iam eternas e infinitas nas páginas de seu livro. Escreveria, por exemplo, a história de Sérgio que, pelos olhos do menino, era um lobisomem, mas pelos olhos do homem, era um sujeito cuja existência, como todos que lá repousavam, fora cheia defeitos e fraquezas. O lobisomem faz alusão à identidade desconhecida do indivíduo e caberia ao escritor alumiá-la. Na caminhada por aquele campo, o herói conecta-se à sua origem, aos seus valores e aos valores de seus ascendentes e toma consciência de que possui um “cemitério” interior, onde jaz a sua identidade. Como escritor, iria buscar a identidade dos outros, mas para tanto, deveria primeiramente, encontrar-se consigo mesmo. O espaço percorrido pela personagem contribui para que Floriano sinta necessidade de romper com o eu o inicial, de “ver o ‘seu’ cemitério” por um olhar extraposto. Nesse processo de construção da consciência e autoconsciência, há tentativas de acabamento de um sujeito que está sempre em construção, por outro que se coloca de fora em uma tentativa de se (re)conhecer. Esse evento é crítico, pois é o instante em que o indivíduo se confronta com o outro, seja como Outro, 150 como menino, ou como homem. É nesse confronto de vozes que o sujeito toma posição mais clara sobre si. Floriano tem de tomar uma decisão: deve se assumir como sujeito e mostrar- se em sua inteireza, resultando em um novo ser em si mesmo, tornando-se aquilo que é, não só aos outros, mas também a si. Quer ser um homem mais determinado, deixar de ser um homem incerto em relação à sua vida, e essa firmeza só encontraria depois que ficasse frente a frente de seu pai: Só há duas soluções possíveis: ou tomo Sílvia nos braços [...] ou então me convenço que não há solução e vou me embora amanhã. Não há meio-termo. Mas não terei sido sempre o homem dos meios- termos, das meias palavras? E por um momento lhe vem, agudo, urgente, o desejo de fugir. Fugir de Santa Fé, do Sobrado, sim, da morte do Pai e do amor de Sílvia (VERISSIMO, 2004b II, p. 285, grifo nosso). Na conversa travada com Tio Bicho, justificara que a sua ida à Santa Fé tinha como objetivo acabar de nascer e, para conseguir seu intento, deveria reconciliar-se com o pai: “Preciso também fazer as pazes com meu pai. Tu compreendes o que quero dizer.... Chegar a um ajuste de contas” [...] (VERISSIMO, 2004b I, p. 82). A partir do momento em que Floriano passa a ser o ponto fulcral da trilogia, percebemos que suas crises identitárias são ocasionadas devido à insegurança que sente em aproximar-se verdadeiramente do pai, e à necessidade de conquistar a liberdade (no sentido de não ficar preso aos ditames sociais). Seu receio de agir segundo a sua conveniência, e sua indecisão no ajuste de contas são os responsáveis pelo aparecimento dos duplos. Podemos dizer que o herói permaneceu um tempo considerável concentrado em tomar consciência de si e do mundo e somente no desfecho da narrativa encontra coragem para o confronto. Essa determinação só foi adquirida após um diálogo encetado com Sílvia a qual expôs seus sentimentos com a mais absoluta franqueza: “Aquela tarde no quintal, ele aprendera com Sílvia uma grande lição de sinceridade. ” (VERISSIMO, 2004b III, p. 406). O encontro entre pai e filho não aconteceu por iniciativa de Floriano, mas pela desconfiança de Rodrigo a respeito do relacionamento entre Floriano e Sílvia. O Doutor, perspicaz, vendo a troca de olhares entre o casal, exige a presença do filho 151 em seu quarto a fim de pedir-lhe explicações. Este episódio é fundamental, pois altera o andamento da diegese. [...] Rodrigo recebeu-o com uma cordialidade triste e preocupada. Ai- ai-ai... — pensou Floriano — que terá acontecido? – Enfermeiro! – chamou o senhor do Sobrado. Erotildes imediatamente apareceu à porta. Daqui por diante não recebo mais ninguém, seja quem for. – Nem o doutor? – Nem o bispo. Floriano, fecha essa porta com o trinco... Isso! Agora te senta aqui perto de mim. Floriano arrastou uma cadeira para junto da cama, sentou-se e esperou o pior. O pai mirou-o por alguns segundos em silêncio e depois disse: – Temos um negócio muito sério a discutir. (VERISSIMO, 2004, b III, p. 402, grifo nosso). Nesse extrato verificamos novamente o cronotopo do encontro que, conforme citamos, integra os elementos concretos e abstratos da intriga e está presente nos momentos cruciais da narrativa. Iniciamos o capítulo com o encontro de Floriano com Tio Bicho, em seguida com o Outro do espelho, com o menino no cemitério e, por fim, com Rodrigo. Esses exemplos corroboram as palavras de Bakhtin de que esse cronotopo “serve de nó, às vezes ponto culminante ou mesmo o desfecho (final do enredo) ” (BAKTHIN, 2014 p. 223). A personagem reúne-se com seu pai, aproveita o ensejo e finalmente se atreve a confrontá-lo, tomando uma posição em um momento decisivo da narrativa. Espaços físicos envolvem personagens que, em suas trajetórias, buscam sentido em suas vidas, assim, outro cronotopo que está presente no excerto é o do quarto. Com Rodrigo acamado, todas as reuniões, as visitas, os debates, ocorrem no quarto que cumpre o papel da sala. Segundo Bakhtin (2014), a sala é o lugar de exposição de ideias, onde vários diálogos envolvendo questões de política, religião filosofia são articulados; é, portanto, norteador do destino das personagens. O espaço do quarto é de confiança e privacidade, e produz um movimento tensional que é íntimo: o íntimo do quarto, o íntimo das personagens. No quarto, tempo e espaço não podem ser dissociados, o pai e filho, o passado, o presente e o futuro, a mudança e a permanência, ou seja, os fatos que envolvem assumir uma posição, tomam corpo nesse cronotopo. Rodrigo pede a Floriano que tranque a porta do quarto com a chave, não permitindo o acesso de outras pessoas, “nem do bispo”. 152 Trancar a porta com a chave é emblemático, pois remete à expressão “chave do problema”, isto é, à compreensão de algo, à solução de uma situação difícil. Para dar dramaticidade a esse confronto, a formação discursiva de que se fez uso foi o diálogo socrático que, consoante Bakhtin, tem o caráter especial do discurso como uma confissão-prestação de contas de um homem que se encontra no limiar.[...] livra a palavra de qualquer automatismo e obriga o homem a revelar as camadas mais profundas da personalidade e do pensamento (BAKTHIN, 2013 p. 126, 127). Por meio do discurso direto, Rodrigo, a priori, é quem confronta Floriano por meio da anácrise dialógica. A posteriori, os sujeitos invertem os papéis: quem passa a confrontar é Floriano, com o objetivo de buscar a verdade, em uma situação bastante tensa e cerrada. A entoação de Floriano no início do embate é de apreensão (como o menino do cemitério), a do Senhor do Sobrado é de autoridade, cólera. O tom dominante no discurso nessa passagem é de franqueza diante da qual Rodrigo reage enfurecido: Que coincidência! Há dias que venho pensando em ter uma longa conversa com o senhor... – Sobre quê? – O meu assunto é muito comprido. Vamos primeiro ao seu. – A pergunta que vou te fazer não é fácil nem agradável. Trata-se duma situação muito delicada, que me tem trazido preocupado... Tens de me falar com toda a sinceridade, mas toda, estás compreendendo? Nada de subterfúgios: quero respostas diretas. Posso contar com tua franqueza? – Pode. – Está bem. Não farei rodeios. É a respeito de Sílvia.... Que é que há entre vocês dois? Floriano sentiu a pergunta no peito com o impacto dum murro. – Nada – respondeu automaticamente. – Palavra de honra? Floriano ergueu-se, postou-se aos pés da cama, agarrou-lhe a guarda com força, com ambas as mãos. – Não nego que sempre gostei da Sílvia e que fui um idiota por não ter casado com ela. – Mas ela gosta de ti? Vamos, responde! [...] – Ontem de tardezinha, encontrei a Sílvia no corredor.... Estávamos os dois sozinhos. Eu me portei como um canalha: abracei-a e tentei beijá-la... Rodrigo abriu a boca num espanto. – Tu? Não respeitaste a mulher do teu irmão? Floriano encarou o pai e, sem rancor, mas com firmeza, perguntou: – Quantas vezes o senhor desrespeitou esta casa... e as mulheres dos outros? [...] 153 Rodrigo soergueu-se brusco, vermelho de cólera, os olhos chispantes, como se quisesse levantar-se para agredi-lo fisicamente[...]. Ficou a olhar fixamente para o filho, num silêncio magoado (VERISSIMO, 2004b III, p. 403). Observamos que as duas personagens se encontram em um momento de crise, uma replica à outra em uma polêmica aberta “orientada para o discurso do outro, refutável ao outro que é seu objeto”. (BAKTHIN, 2013, p. 224). Segundo Alvarez e Lopondo, no momento crucial do diálogo socrático, o discurso no limiar também aparece. Os dois sujeitos conversam em um diálogo tenso que marca a linha divisória entre o que Floriano era e o que ele será, em um momento substancial: Do veio do diálogo socrático surge o diálogo no limiar, uma modalidade de procura da verdade e do autoconhecimento motivada por uma situação extraordinária de intenso dramatismo na narrativa, que acaba por constranger a personagem a um discurso de “confissão, de prestação de contas” (ALVAREZ; LOPONDO, 2012, p. 7). O limiar refere-se a um momento de decisão, que tanto pode significar passar por um processo de transformação para assumir outro modo de ver e de pensar a vida, ou recuar diante dessa possibilidade e permanecer no estado em que se está; mostra o herói no momento de crise, em busca da verdade. Floriano e Rodrigo estão colocados em confronto em um momento crucial que culminará na construção da identidade; é, portanto, a passagem de um posicionamento a outro. O limiar acontece, como afirma Bakhtin, "na fronteira entre a minha consciência e a consciência do outro."(BAKHTIN, 2014, p. 341, grifo do autor). Floriano nunca ficou sabendo por que chegou a dar voz a um pensamento perverso que lhe veio à cabeça, nem como teve coragem para tanto: – Se fosse a Sônia Fraga, o senhor teria ficado menos chocado? Rodrigo tornou a soerguer-se bruscamente. – Por que te lembraste dela? – É mulher, é atraente e está na cidade. – Estiveste com ela? – Não. Nunca. Nem pretendo estar. – Eu sabia que mais cedo ou mais tarde ias puxar esse assunto. Pois fica sabendo que eu faço o que entendo e não tenho de dar satisfação calhorda. Fui ao hotel e dormi com ela. Não nego. Se não estivesse aqui esculhambado nesta cama, eu voltaria lá hoje mesmo, estás ouvindo? E ia fazer isso às claras, na cara de todos esses maldizentes e hipócritas de Santa Fé. [...] 154 – Está no seu direito. A sua vida é sua. Esse corpo é seu. Floriano agora sorria. Falar franco era mais fácil do que ele imaginara. A franqueza era um vinho capitoso. Tinha chegado finalmente a desejada hora de seu acerto de contas com o Velho. [...] (VERISSIMO, 2004b III, p. 404, grifo nosso). Floriano aproveita aquela situação para posicionar-se diante do pai, expor seus sentimentos, limpar a sua alma, esclarecer algumas verdades. A argumentação de Rodrigo frente às acusações do filho flui em defesa de si, das atitudes que tomara. Rodrigo lançou-lhe um olhar enviesado em que o tom de hostilidade não passava duma paródia. – Confessa.... Subiste aqui resolvido a falar na Sônia. Queres que eu mande a menina de volta para o Rio. Sempre foste do lado da tua mãe...[...] – Está enganado. Meu assunto é outro. Muito mais complexo. – Desembucha então. [...] – Está bem. Diga todos os nomes feios que quiser. Mas me escute e trate de me compreender. Não espero nem quero que concorde com tudo quanto lhe vou dizer. [...] (VERISSIMO, 2004b III, p. 405). Rodrigo incita Floriano a confessar, ou seja, que lhe esclareça e que elucide, sem subterfúgios, a intenção que teve ao apontar aquelas falhas de caráter. Conforme Bakhtin, a confissão é a“ prestação de contas de um homem que se encontra no limiar” (2013, p.126). Essa situação de tensão leva o protagonista da narrativa a elucidar os fatos e a conhecer- se: “Cria-se, portanto, o embate entre o eu e o outro, agente que provoca a autointerpelação, a autoavaliação do enunciador, mediante o partejar de ideias." (ALVAREZ E LOPONDO, 2012, p. 09). Floriano, por sua vez, antes apreensivo, sente-se confortável e aliviado pois aquela confissão representa o encontro em profundidade com o outro, “ nesse encontro o eu deve ser puro, um eu em profundidade de dentro de si mesmo” [...] (BAKHTIN, p. 330, 331).” Floriano vive com mágoa, ressentido por causa dos erros do pai, por isso o relacionamento entre ambos é conflituoso, provocando questionamentos. A personagem, ao longo de sua existência, cria uma imagem idealizada de Rodrigo que não corresponde à realidade e se frustra diante dessa situação. O filho, ao mesmo tempo em que admira a figura paterna, procura negá-la, e enfrentar esse paradoxo lhe era difícil. A confissão exigida por Rodrigo seria uma oportunidade de exteriorizar seus sentimentos. – Talvez não seja de seu conhecimento, mas o senhor tem sido um dos maiores problemas da minha vida. 155 – Eu? Por quê? – Quando menino inventei um pai ideal, exemplar, e esperei que o senhor correspondesse a essa fantasia, o que não aconteceu. – Não estou te entendendo... Troca isso em miúdos. – À medida que eu crescia, fui aos poucos descobrindo suas fraquezas, seus pontos vulneráveis, em suma, seus defeitos, para usar da terminologia dos moralistas, [...] – Que é que esperavas que eu fosse? Santo Antão Eremita? Santo Agostinho? – Talvez. E mais são Jorge no seu cavalo branco. E Ricardo Coração de Leão. E Mirabeau. E Tom Mix. E Rui Barbosa.... Tudo isso num homem só: meu pai. – Que tenhas imaginado todas essas besteiras quando menino, compreendo. Só não entendo como é que até hoje essas coisas possam ainda te preocupar. – Temos de começar pelo princípio da história. E afinal de contas, o menino continua a morar no homem...[...] – Terminaste? — perguntou. – Não. Agora vem talvez a parte mais séria para mim. Trata-se dum acontecimento que me marcou para o resto da vida. – Noite de 3 de outubro de 1930 – murmurou Floriano, olhando para o pai bem nos olhos. [...] (VERISSIMO, 2004b III, p. 405, 412). Bakhtin assegura que o diálogo socrático está ligado às memórias. Para acertar as contas definitivamente, Floriano revisita o passado, e relembra fatos que ficaram perdidos na memória de Rodrigo. O filho julga o pai e somente após aquele confronto o perdoa, fato que provoca a sua saída do limiar, uma vez que conquista a liberdade tão almejada. O cronotopo do encontro marca, pois, o nascimento de Floriano, a sua a mudança de vida: – Bom. Acho que não é demais tentar de novo esclarecer o que procurei com toda esta conversa. Foi um cordial, honesto acerto de contas. Aceite-me como sou e eu o aceitarei como é. Sem idealizações, sem ilusões, com todas as nossas qualidades e defeitos. E sem outros compromissos um com o outro além desse enorme compromisso de nos entendermos e querermos como seres humanos. – Que conversa, seu Floriano! – Estamos então completamente quitados, de recibos passados? – Sim, e devidamente selados, firmas reconhecidas em cartório — sorriu Rodrigo. – Pois acho que hoje vou festejar o meu nascimento. [....] (VERISSIMO, 2004b III, p. 416). Esse diálogo representa o início e fim, a vida e a morte, pois, ao mesmo tempo em que a amizade entre pai e filho se efetiva, se encerra: Rodrigo morre 156 pouco tempo depois. Esse fato corrobora que o diálogo no limiar é instaurado antes da morte. Segundo Bakhtin, Fédon, de Platão, caracteriza-se pelo “diálogo no limiar”, em base dialógica socrática, por instaurar um debate cerrado, intenso, sobre a imortalidade da alma, em uma situação de pré-morte (BAKHTIN, 2013, p.126-127). Para Bakhtin, a única forma que dá acabamento estético ao evento da vida é a morte, porque imprime um sentido à existência. Desta forma, o ativismo de Floriano prossegue após a morte de seu pai, uma vez que ele tem o todo da vida de Rodrigo fora dele. Floriano pretende escrever um romance que abarcará diversas vozes, organizará o mundo em diferentes épocas e espaços. Na gestação do livro, indagará sobre si e sobre o mundo de maneira que consiga recriar a realidade em que vive. Dará forma ao conteúdo por meio das palavras, sua criação artística revelará a sua visão de mundo, colocará vozes sociais em xeque. De seu olhar extraposto, Floriano dará acabamento ao seu pai, em uma imagem esteticamente significativa, ratificando a ideia da morte para Bakhtin, a morte de um, dá vida ao outro: “após o enterro a memória” (BAKHTIN, 2011, p. 98). O romance será também um duplo, será a história da história. Com a morte de Rodrigo, Floriano conquista a liberdade tão almejada e finalmente começa a escrever as primeiras linhas de seu projeto. O narrador, que antes era anônimo passa a ter identidade, nome e sobrenome: Floriano Terra Cambará. A vela que Maria Valéria acende ao negrinho não é em vão. Floriano finalmente encontra o que procura: a si mesmo. 3.2 Floriano: o duplo de Rodrigo segundo a perspectiva psicanalítica A finalidade da vida é o autodesenvolvimento. Desenvolver plenamente a nossa personalidade, aí está a missão que cada um de nós deve cumprir. Aforismos, Oscar Wilde Em paralelismo ao capítulo anterior, a partir daqui analisaremos a personagem- duplo de Rodrigo Terra Cambará, Floriano, e o processo de duplicação dos dois heróis pelo viés da psicanálise segundo os preceitos teóricos de Freud, Jung, Rank 157 e Kepler, e pelo viés da filosofia, segundo Rosset, previamente expostos no capítulo 1. Para esta empresa, faz-se necessário relembrarmos brevemente o posicionamento dos especialistas que, embora adotem perspectivas teóricas distintas, auxiliam-nos na compreensão do fenômeno do duplo na literatura. Anteriormente, esclarecemos que todo indivíduo é composto por duas forças antagônicas que coexistem entre si: o bem e o mal, o feminino e masculino, a luz e a sombra, o eu e o outro. O duplo, conforme a sua denominação, são essas duas forças que o sujeito tem em si. O consciente, retratado pela persona, e o inconsciente, retratado pela sombra, apesar de parecem incoerentes, podem ser incorporados. Essa integração só se dará se houver um confronto bem-sucedido entre essas duas instâncias, caso contrário, a identificação do eu com o outro, provocará uma divisão na personalidade do sujeito, levando à crise de identidade e, consequentemente, à formação do duplo. Observando que essas questões são intrínsecas na formação da personalidade do sujeito, alguns pesquisadores desenvolveram teorias acerca da duplicidade, estudando-a, inclusive, em textos literários, já que as personagens são inseridas em um universo que imita a realidade. Rosset (1985) comenta que o fenômeno do duplo foi extensamente revisto na literatura por meio do desdobramento da personalidade dos heróis. Para o autor, a duplicidade ocorre devido à existência duvidosa do sujeito. O desdobramento seria uma forma de negação da vida e uma das formas de fugir dessa situação é apoiar- se no passado ou no futuro. Otto Rank serviu-se do termo alemão Doppelgänger que significa “aquele que caminha ao lado”, posteriormente usado também por Freud. O estudioso aponta que o homem criou a dupla personalidade como defesa, pois precisava de subsídios para entender a morte, já que não conseguia suprimi-la; logo, o duplo, constituir-se- ia como símbolo da imortalidade espiritual. Entre as representações do duplo, Rank afirma que, entre outros, estão o retrato e o espelho. Freud (1976) em seu estudo Das Unheimlich, usou o termo unheimlich e heimlich. Seu equivalente aproximado em português seria o “estranho”, o “não- familiar. A etimologia da palavra unheimlich mantém simultaneamente o familiar heim e o seu contrário, a sua negação un. A partir dessas reflexões sobre formação do vocábulo, o estudioso conclui que aquilo que nos causa estranheza ou repulsa é, 158 paradoxalmente, o que nos é mais conhecido, gerando um duplo – uma das formas mais taxativas de estranhamento. Da origem etimológica da palavra, ele desdobra o conceito para a compreensão dos mecanismos de duplicação do indivíduo e para a compreensão da estrutura da repulsa ou do medo. Na obra The literature of the second self (1972), Carl Francis Keppler defende ideia que o fenômeno ocorre em um momento de fragilidade do eu original, causando um sentimento ambíguo de atração e repulsa: o indivíduo tem dificuldade em aceitar seu lado obscuro, a sua sombra. O autor explica que o outro é idêntico e diferente do original ao mesmo tempo, podendo ser até mesmo o total oposto do “eu”. Por se configurar um paradoxo interior e exterior, contraditório e complementar, provoca no eu reações emocionais extremas, como a do fascínio ou da aversão a seu outro. O duplo pode ser algo complementar ou oposto – talvez o lado sombrio – que o sujeito tem dificuldade em aceitar. O autor caracteriza o duplo como uma parte não apreendida pela imagem que o eu tem de si e por essa razão pretende excluí-la. Dentro dessa perspectiva, Keppler, ao longo da obra, categoriza sete tipos de duplos que serão fundamentais para a nossa análise: o perverso perseguidor (que pode ser uma imagem no espelho), o pensador, o tentador (que se utiliza da persuasão para levar seu opositor a autodestruição), o bem-amado (refere-se aos amantes, dois pólos opostos magnetizados entre si, criando uma atração sempre mútua.), o duplo no tempo (remete a dualidade espacial, ou seja, percorrer espaços temporais ou estar neles ao mesmo tempo, de forma que o sujeito transita do passado para o futuro ou vice-versa), o duplo como visão de horror ligado à visão de morte(pode ser um duplo salvador). Jung (2008) afirma que é essência do indivíduo buscar a identidade e que o sujeito sempre conta com a existência de alguns traços de caráter ainda não descobertos (inocentes pecados cotidianos) ocultos no inconsciente que ele denominou de sombra. Durante o reconhecimento da sombra, o sujeito distingue os aspectos escondidos de sua personalidade, tais como eles são realmente, sem quaisquer máscaras. O simbolismo do duplo é uma das maneiras de entender as dificuldades do lado inconsciente, auxiliando o indivíduo a entender e aceitar a sua identidade de forma completa, reconciliando todas as suas ambiguidades. As inspirações, motivações e emoções também estão ligadas à sombra e a integração entre esses dois pontos é muito importante para o desenvolvimento da 159 personalidade, pois liberta o indivíduo de padrões devido a sua capacidade de trazer à luz entendimentos e reconciliações. Jung também discorreu acerca de outro tema relacionado à duplicidade: anima e animus que representam a polaridade feminino versus masculino, dois opostos complementares, presentes em todas as pessoas. Isso posto, examinaremos como o duplo Floriano, antítese dos heróis guerreiros do clã, será o elemento reagregador da família e protegerá da morte o eu doutor Rodrigo ao perpetuar, como escritor, a história da família em uma obra que viria a ser o próprio O tempo e o vento. 3.3 Floriano: Jano olhando para frente Eu não quero reconhecer-me; quero conhecê-lo fora de mim. Isso é possível? Meu esforço supremo deve consistir nisso: não me ver em mim, mas ser visto por mim, com os meus próprios olhos, mas como se fosse um outro, aquele outro que todos veem e eu não vejo. (PIRANDELLO, 2001, p. 36) Floriano, síntese de seu pai e sua mãe, é depositário de valores das famílias Terra, Cambará e Quadros, acarretando em alteração na trajetória da linhagem masculina do clã, até então representativa do gaúcho viril. A exuberância, a lubricidade e o engajamento político são características dos Cambará, ao passo que a reserva, o recato e a perseverança vêm dos Terra, e replicam-se nos Quadros, família da mãe de Floriano. Assim, de um pai impulsivo, passional e gregário, nasce um filho reflexivo, ponderado e solitário. Para avançarmos em nosso intento, retomaremos a figura de Jano: um rei humano que, após morrer, recebeu o título de deus por ter promovido uma Era de paz e desenvolvimento aos homens durante seu reinado. A imagem antológica desse deus é a de uma face que olha para frente, para o futuro, e outra que olha para trás, para o passado. Jano rege tudo aquilo que se inicia na vida, mas também volta-se a tudo que termina. A dualidade, portanto, é a sua principal caraterística: entradas e saídas, começos e términos, verdades e mentiras. Jano é também o deus das escolhas. Tal aspecto implica um novo esquema: 160 O Tempo e o Vento O RETRATO O ARQUIPÉLAGO Floriano Terra Cambará ( Persona) Rodrigo - passado -sombra Outro - persona - sombra Floriano é a síntese de seus ascendentes, pois dentro de si convivem tanto os Terra quanto os Cambará, fazendo dele o Jano pronto e acabado, que olha adiante e atrás, faz escolhas, marca um fim e um começo, fecha um ciclo e abre outro, enfim, que dá continuidade do clã ao ungir-se como o duplo perpetuador de Rodrigo. Deste modo, chegamos à premissa de que Rodrigo é ao mesmo tempo Floriano e Floriano é Rodrigo, um é duplo do outro, ou seja, um está incessantemente preso ao outro, o que nos evoca Rosset em sua proposta de que o duplo está em “ser ao mesmo tempo o eu e o outro, pois não é o eu que me duplica, sou eu que sou o duplo do outro” (1985, p. 64). Por essa combinação de motivos, a personagem apresenta-se dividida em seus valores morais – assim como o seu duplo. Uma questão que nos parece fundamental para a apreciação da obra é o aspecto narrativo que determina a estrutura textual. Yves Reuter, em seu livro Introdução à análise do romance (2004), alerta-nos para a diferença entre narração e focalização. O teórico apropria-se das classificações propostas por Genette para tipificar dois tipos de narrador: o heterodiegético (em que o narrador não participaria da diegese), e o homodiegético (em que o narrador estaria presente na história como personagem). Quando o narrador se apresenta como heterodiegético é capaz de captar a interioridade das personagens, revelando aspectos psicológicos 161 profundos “sem censura interna, permitindo a eclosão daquilo que estava armazenado no ser: ideias, imaginação, emoções – todos os processos internos do psiquismo” (LAMAS, 2004, p. 128). Na obra em questão, o narrador, heterodiegético e onisciente, incorpora-se ora a diversas personagens, ora ao doutor Rodrigo em passagens a dialogar consigo mesmo ou com o Retrato, expondo os seus sentimentos sem qualquer censura. Sutilmente, desloca-se a Floriano e torna-se homodiegético até a conclusão. O narrador também pode ser inserido na questão da duplicidade, porque da mesma forma que as personagens e o tema, a voz do narrador se duplica. Ele é o condutor de todo o processo, conta a história de Rodrigo/ Floriano e de todos que o rodeiam e, por vezes, é entrecortado por outra voz a ponto de não se distinguir quem é quem. A velha franze o nariz, com nojo. Flora pega o bule para servir-se de café. Suas mãos tremem. [...]. Seu rosto, sem um pingo de pintura, parece esculpido em cera. (O menino Floriano detestava os anjos de cera do Pitombo, símbolos de morte que lhe davam um medo mesclado de náusea.) Flora envelheceu alguns anos nestas últimas semanas.... Os cabelos embranqueceram de repente. Ou deixou de tingi-los? (Odeia-se por causa desse pensamento, no qual descobre um grão de sarcasmo.) Mas não pode deixar de reconhecer que sente muito mais ternura por esta mãe envelhecida e apagada do que pela outra que via no Rio, perturbadoramente jovem, bem cuidada, bem vestida e sempre maquilada. Floriano não se sente feliz por verificar que suas reações de homem adulto não diferem muito das do menino que não queria aceitar, por indecente, a ideia de que os pais ainda pudessem ter hábitos e apetites de gente moça — do menino para quem só as prostitutas é que andavam enfeitadas, perfumadas e de cara pintada. Sempre as contradições! Apesar de partidário do divórcio e de seu horror cerebral às atitudes convencionais, reagiu como um moralista ao casamento por contrato de Bibi. Ele, o puritano impuro! (VERISSIMO, 2004b III, p. 2, grifo nosso). Floriano não pôde evitar que o seu eu crítico exclamasse interiormente: “Mascarado! ” — “Mas não”, protestou o Outro, “tu sabes que ele está mesmo comovido. ” ─ “Sim, mas não era preciso exagerar, dizendo que este é o momento mais feliz da sua vida.” ─ “Intolerante! ” (VERISSIMO, 2004b III, p. 257, grifo nosso). Anteriormente vimos que o espelho e o retrato são ícones associados ao duplo e à construção da identidade. O espelho possibilita o eu dialogar com o outro, representa um canal mágico, uma vez que o indivíduo transpõe os limites de presença/ausência, chegando ao seu verdadeiro ser. Umberto Eco afirma que a figura projetada no espelho não é real, mas cópia, já que a imagem está invertida. O 162 espelho engana a alma exterior, por essa razão, diante dele, o indivíduo é o outro que não ele mesmo. Interessa-nos reconhecer o modo que Floriano se encontra consigo no exercício da autocontemplação. Diversamente ao seu pai (que olha a própria imagem com aprovação), Floriano mira-se no espelho com um olhar crítico de suas ações. Floriano sorri para a própria imagem [...] pois ele (ou o Outro?) deseja acreditar que não é, nunca foi vaidoso (VERISSIMO, 2004b II, p. 283). Como seria bom se livrar desse incômodo anjo da guarda [...] (VERISSIMO, 2004b II, p. 283). Floriano põe a água da torneira a correr e nela lava o aparelho de barbear. Depois torna a ensaboar as faces[...]Dum pequeno talho no queixo lhe escorre uma gota de sangue [...]. (VERISSIMO, 2004b II, p. 285). Dormir com a amante do pai? A possibilidade deixa-o estranhamente excitado. (VERISSIMO, 2004b II p. 286) [...] Bela desculpa para fazeres tudo quanto desejas sem olhar o interesse dos outros. Vocês (mas vocês quem?) inventaram e nos impingiram a vergonha do corpo, a vergonha dos desejos do corpo e como resultado disso nos transformaram em eunuco” [...] (VERISSIMO, 2004b II, p. 287). Larga o aparelho Gillette. Afinal de contas preciso acabar com essa ideia pueril de que é possível atravessar a vida sem ferir ninguém nem sujar as mãos. Escrever mil vezes como castigo a frase: Não devo iludir-me: não sou um sujeito decente. Por que não me aceitar a mim mesmo como sou e arcar com todas as consequências? (VERISSIMO, 2004b II, p. 285). Ao banho! Despe-se, coloca-se debaixo do chuveiro e puxa no barbante [...] (VERISSIMO, 2004b II, p. 285). [...] Floriano torna a pensar em Sônia, e contra sua vontade compara- a com Sílvia, como fêmea, e se odeia por fazer isso, mas nem assim consegue afastar esses pensamentos. Esfrega com força o sabonete na cabeça, no pescoço, no torso, com frenética energia, como na esperança de poder tirar do corpo todos esses desejos, e limpar o pensamento dessas sujeiras. Merda para a limpeza! [...] (VERISSIMO, 2004b II, p. 287). O episódio transcrito são alguns fragmentos do diálogo entre Floriano e o Outro, enquanto faz a sua higiene matinal. Floriano barbeia-se, corta-se e sangra. Em seguida, toma um revigorante banho. Esses três universos são simbólicos e nos remetem respectivamente ao encontro consigo mesmo e à expiação de sua culpa, lavando-se para purificar-se daqueles pensamentos impuros. O sangue alude à ideia 163 de que a personagem está viva, pulsa sangue em suas veias, portanto, é natural que se sinta atraída e desejosa por Sônia e Sílvia. Esfrega com força o sabonete na cabeça, no pescoço, no torso, com frenética energia, como na esperança de poder tirar do corpo todos esses desejos, e limpar o pensamento dessas sujeiras [...] (VERISSIMO, 2004b II, p. 287, grifo nosso). O conflito identitário de Floriano naquela situação reside no fato de que Sônia e Sílvia eram mulheres proibidas, pois uma é a cunhada e a outra é a amante do pai. Desejá-las constituir-se-ia incesto, algo reprovável pela sociedade. Ao mesmo tempo em que faz mea culpa por aquela situação, tenta buscar explicações, não aceitando os valores morais que lhe imputaram: Merda para a limpeza! [...] (VERISSIMO, 2004b II, p. 287). Notamos que, ao contemplar-se no espelho, Floriano coloca em contato a sombra com a persona, simultaneamente. A imagem refletida no espelho, o Outro é o Floriano do rígido código de valores dos Terra e dos Quadros, o anjo que o livra de tomar atitudes consideradas impróprias. A persona que Floriano usa é a da moralidade, o Outro. Na hora em que se encontra sozinho no lavatório, sem a interferência das pessoas, expõe a sua intimidade e quer se livrar daquela persona que usa. Como seria bom se livrar desse incômodo anjo da guarda [...] (2004b II, p. 283, grifo nosso). [...] “Bela desculpa para fazeres tudo quanto desejas sem olhar o interesse dos outros” (2004b II, p. 287, grifo nosso). , [...] vocês inventaram e nos impingiram a vergonha do corpo, a vergonha dos desejos do corpo e como resultado disso nos transformaram em eunuco (2004b II, p. 287, grifo nosso). Floriano, o que se olha no espelho, é o próprio narcisista Rodrigo, a sua sombra, em todas suas paixões e ardores. Portanto, a personagem traz em si Rodrigo (eu) e Floriano (Outro). Floriano vê no outro aquilo que nega em si: Floriano sorri para a própria imagem [...] pois ele (ou o Outro?) deseja acreditar que não é, nunca foi vaidoso (VERISSIMO, 2004b II, p. 283 grifo nosso). 164 Afinal de contas preciso acabar com essa ideia pueril de que é possível atravessar a vida sem ferir ninguém nem sujar as mãos. Escrever mil vezes como castigo a frase: Não devo iludir-me: não sou um sujeito decente (VERISSIMO, 2004b II, p. 283, grifo nosso). Dormir com a amante do pai? A possibilidade deixa-o estranhamente excitado (VERISSIMO, 2004b II p. 286, grifo nosso). O estranhamento diante do espelho também se coaduna com o que Freud escreve em seu artigo Das Unheimlich, porque mesmo sendo a figura familiar do próprio rosto de Floriano, traz consigo a hipotética figura de um estranho. A situação rotineira de se lavar é familiar, no entanto surge a figura do Outro que ele não sabe quem é: “[...] vocês (mas vocês quem?) ” (p. 287). “[...] pois ele (ou o Outro?) ” (VERISSIMO, 2004b II p. 283, grifo nosso). O motivo do estranhamento não ocorre por ser novidade, mas sim por ser algo familiar que se tornou estranho. Em uma situação seminal de O arquipélago, Rodrigo é acometido por um infarto. Floriano fica assustado por ter presenciado o ataque e se enternece ao ver o pai em situação tão vulnerável, principiando a acariciar os cabelos do enfermo. O desejo de Floriano é de acarinhar o pai irrompendo o duplo como forma de “tornar real os desejos reprimidos da alma” (Rank, 2013, p.128). Floriano sente a presença de seu duplo que denomina de Doppelgänger e, nesse momento, observa-se a cisão do eu: o que quer demonstrar afeição e o que não quer. O duplo é quem olha Floriano e desaprova o afeto que o herói tem por seu pai. Nessa disputa, vence o duplo tentador, com seu poder persuasivo. Aqui o tema do doppelgänger enseja revolta e por isso Floriano “odeia o seu Doppelgänger” (VERISSIMO 2004b I, p. 25). Floriano aproxima-se do leito. Rodrigo fita nele o olhar amortecido e dirige-lhe um pálido sorriso, como de um menino que procura provar que não está amedrontado. Floriano passa timidamente a mão pelos cabelos do pai, numa carícia desajeitada, e nesse momento seu eu se divide em dois: o que faz a carícia e o Outro, que observa de longe, com olho crítico, achando o gesto feminino, além de melodramático. Ele odeia o seu Doppelgänger, e esse ódio acaba caindo sobre si mesmo. Inibido, interrompe a carícia, deixa o braço tombar ao longo do corpo. [...]. (VERISSIMO, 2004b I, p. 25, grifo nosso). Segundo a perspectiva de Keppler, a imagem no espelho e o duplo que observa Floriano à distância, são duplos perseguidores. O rapaz sente-se 165 constantemente atormentado e vigiado pelos olhos do Outro, a personificação do superego, ou seja, das sanções ditadas pelas autoridades de todas as instâncias. Para controlar as pressões da consciência moral sobre os desejos do inconsciente, o sujeito precisa de um ego não coercitivo. A busca da liberdade para Floriano seria justamente equilibrar as duas instâncias, o que o levaria a ter um ego sadio. Passa a mão pelas faces, arrependido já de as ter friccionado com loção de alfazema. A Dinda detesta qualquer água de cheiro. Jango tem em péssima conta homem que se perfuma. Mas quando é que vou aprender a fazer o que me agrada sem me preocupar com os outros? (VERISSIMO, 2004b II, p. 288, grifo nosso). Muitas vezes, quando na cama com uma mulher, eu via grudados no travesseiro os olhos acusadores da Dinda, ou sentia o vulto da minha mãe no quarto, ou então a presença do Outro, da parte do meu Eu que reprovava aquelas promiscuidades sexuais (VERISSIMO, 2004b III, p. 287, grifo nosso). Floriano tem um eu que se divide em um ego e um alter ego: um que satisfaz seus desejos, outro que o reprova por satisfazê-los; um que não se posiciona, o outro que o censura por não se posicionar, por isso está sempre em luta consigo mesmo, questionando-se sobre tudo. Para Freud, o duplo irrompe no momento de auto-observação do indivíduo que se divide entre o desejo e a impotência de realizar algo. Um dos momentos cruciais de erupção do duplo ocorre quando Floriano deve responder à seguinte carta de Sílvia: Confio em que, com tua intuição de romancista, possas achar uma resposta certa à consulta que te vou fazer. Devo casar-me com Jango ou esperar que o homem a quem realmente amo, mas cujos sentimentos a meu respeito ignoro, um dia me queira também? Fica certo de que só tu podes dar uma resposta decisiva a essa pergunta. E o que quer que digas estará bem. Preciso me libertar duma vez por todas dessa dúvida. (VERISSIMO, 2004b III, p. 229). Floriano encontra-se no limiar, pois dele dependia o destino de ambos. Para chegar à resposta, conversa interiormente, toma consciência de si, para chegar a uma decisão: Naquele dia dialogou consigo mesmo, como costumava fazer quando queria resolver problemas de composição literária. Estava à janela de seu quarto, que dava para o mar. 166 — Se amasses Sílvia de verdade, esse caso carnal com a americana não teria tido força para te fazer perder o interesse nela, a ponto de interromperes por completo a correspondência... — Tu sabes que se Sílvia estivesse fisicamente perto de mim a coisa teria sido diferente. [...] — Em que ficamos então? — Se eu fosse um sujeito decente e decidido, embarcaria amanhã mesmo para Santa Fé e livraria Sílvia desse casamento desastroso. Jango não é o homem para ela. Tu sabes. [...] — É. Tu sabes. Roubam o teu espelho. Pior que isso: embaciam o teu espelho. — E que queres que eu faça? Que me case com Sílvia e depois não lhe possa dar uma vida material decente? [...] — Corta então esse cordão umbilical. Há quanto tempo vens prometendo isso a ti mesmo? — Mas como é que se começa? — Tu mesmo tens que descobrir. — E o pior é que neste exato momento já estou pensando com certo alvoroço de colegial na hora em que vou ter Mandy nua nos meus braços, esta noite. — E o puritano que mora dentro de ti te censura por isso. — Eu me irrito porque essa dependência da americana está se tornando uma ameaça à minha liberdade. Sinto-me diminuído por depender tanto do prazer que ela me dá. [...] — A tua famosa liberdade! Sabes de que me lembra? De certas famílias antigas de Santa Fé, como a do barão de São Martinho, que passam necessidades e até fome, mas recusam-se a lançar mão da baixela de prata com o monograma do senhor barão e das joias lavradas da senhora baronesa. De que te serviu até hoje essa “joia guardada” que é a tua liberdade? (VERISSIMO, 2004b III, p. 229, 230). Por meio do solilóquio, conversa consigo como se estivesse em um divã, expondo o material do ego e do superego, e o que está no inconsciente pessoal é projetado para o exterior, revelando os dramas de consciência e as diversas reflexões que faz ante a qualquer decisão. Floriano vive cheio de anseios, de angústias e de aflições que o colocam em permanente dúvida. No diálogo percebe- se que Floriano se apoia em um ideal de ego, travando uma batalha moral: Se eu fosse um sujeito decente e decidido, embarcaria amanhã mesmo para Santa Fé e livraria Sílvia desse casamento desastroso. Jango não é o homem para ela (p. 229, grifo nosso). — Eu me irrito porque essa dependência da americana está se tornando uma ameaça à minha liberdade. Sinto-me diminuído por depender tanto do prazer que ela me dá. [...] (p. 229, grifo nosso). 167 O superego, instância que media a realidade e é imposto por outras gerações e pela instância parental, reage: — E o puritano que mora dentro de ti te censura por isso (p. 230). — A tua famosa liberdade! Sabes de que me lembra? De certas famílias antigas de Santa Fé, como a do barão de São Martinho, que passam necessidades e até fome, mas recusam-se a lançar mão da baixela de prata (p. 230, grifos nossos). Floriano sente tanta necessidade de ser livre que acaba preso a essa ideia. Ele não assume nenhuma postura diante da vida, está sempre indeciso, é um homem de meios-termos, como ele próprio se definia. Contrariamente ao seu pai que paga um alto preço por viver, Floriano paga por não viver. Recebi, li e reli tua carta. O homem que amas — se é quem penso — tem uma imensa ternura por ti e muitas vezes lhe passaram pela cabeça fantasias matrimoniais em que eras sempre a esposa eleita. Mas não te iludas. Ele não é um bom homem. Pelo menos não é o homem que te convém, capaz de te fazer feliz. É um desajustado, debate-se numa contínua dúvida sobre si mesmo, é um ausente da vida, um marginal. Tu me compreendes (VERISSIMO, 2004b III, p. 231). Na resposta dada à Sílvia, Floriano coloca-se à distância, em terceira pessoa como se fosse um desconhecido, um sujeito que não seria capaz de fazê-la feliz, desprezível, irresponsável. Na carta expõe um lado sombrio, que não corresponde ao ego idealizado de um “homem decente”. A persona que Floriano vestira era a que correspondia às expectativas da jovem. Nesse sentido, a solução dada à Silvia projeta-o para a sombra. Para reprimi-la deve desenvolver uma persona forte e segura, conscientizando-se dos aspectos que foram reprimidos e essa será a sua empreitada até o desfecho. Um dos dramas de Floriano consiste em assumir sempre uma postura passiva, em ser mais espectador que ator. Por essa razão não é apenas o Outro que observa à distância. Ao longo do romance, a personagem contempla tudo de longe, quer da escada, quer da mansarda, apartado da vida que corria. Floriano criou a sua ilha, não só um universo paralelo, à margem de Santa Fé e do Sobrado, mas 168 também um Floriano paralelo, um Outro que foge do verdadeiro eu. Floriano é sozinho, retraído, triste, o oposto de seu duplo, que é gregário e ativo: Floriano, o mais velho dos irmãos, não se encontrava, como os outros, ao lado do pai. Deixara-se ficar a um canto da sala, como se não fizesse parte da família. Era um menino calado, tímido, arredio. Quando não estava na escola, passava a maior parte das horas fechado na água-furtada, com seus livros e revistas [...] (VERISSIMO, 2004 b I, p. 96). — Quero lhe dizer duas palavrinhas sobre o Floriano. — Andou fazendo alguma travessura? — Não. Pelo contrário. O que me preocupa é que ele não faz travessuras. Acho-o quieto e triste demais. Um pouco amarelo e apático. Já mandou examiná-lo clinicamente? (VERISSIMO, 2004b II, p. 173). Antes de discorrermos sobre as muitas diferenças entre pai e filho, faz-se necessário explorarmos acerca do outro elemento comum na tradição da temática do duplo: a semelhança física, o duplo idêntico. Freud (1976) constata a aparição de personagens (pessoas) consideradas idênticas devido a sua aparência e que detêm sentimentos comuns. A duplicação referente à similitude dos traços físicos, realiza uma ponte entre os duplos temporais. De fato, com o decorrer dos anos, o jovem Floriano fica cada vez mais parecido fisicamente com seu pai. — Roger, dear! — exclamou ela, dirigindo-se ao marido. — veja como esse rapaz se parece com o pai. [...] Um Rodrigo em miniatura — pensou [Doutor Rodrigo]. Mas só por fora. Por dentro era Terra. Parecido com o velho Licurgo. (VERISSIMO, 2004b II, p. 200, grifo nosso). — Havia no Velho outro aspecto perturbador: sua beleza física tão decantada por toda a gente, e da qual ele próprio tinha uma consciência tão vaidosamente aguda. Eu me comprazia em comparar o famoso retrato pintado por Don Pepe com o seu modelo vivo, e às vezes, quando me pilhava sozinho na sala, ficava na frente da tela, namorando a imagem paterna, numa espécie de inocente narcisismo, pois era voz corrente que eu me parecia com o Velho. (“Cara dum focinho do outro”, dizia a Dinda.) (VERISSIMO, 2004b III, p.102, grifo nosso). Floriano contempla o rosto do pai e se vê projetado nele, como se fosse um espelho. Os traços físicos são semelhantes, mas o caráter de ambos é muito 169 diferente, conforme Dom Pepe notara. Floriano entra em conflito porque identifica-se com Rodrigo e simultaneamente quer e não quer ser como ele. Floriano contempla o rosto do pai e se vê como num espelho. A parecença física entre ambos, segundo a opinião geral e a própria, é extraordinária. Por um instante sua identificação com o enfermo é tão aguda, que Floriano chega a sentir também uma angústia de afogado, ele olha automaticamente para as janelas, numa esperança de mais ar. (VERISSIMO, 2004b I, p. 25, grifo nosso). — Eu deveria amar-te também, porque te pareces com teu papai. Mas qual! Não passas duma imitação barata do Rodrigo autêntico que conheci... (VERISSIMO, 2004b II, p. 59, grifo nosso). Nesta passagem, temos o duplo citado diretamente pela colocação que Floriano e o Outro são duas pessoas diferentes, e que também são a mesma pessoa. Há reciprocamente atração e repulsa. Há um fundamento especular, um avalia o outro: Vendo aquela cara lívida e contraída (que de certo modo era a sua própria), ele se descobria a sentir pelo filho um misto de compaixão, amor e ódio. Sim, era possível haver dentro do amor um núcleo duro de ódio, como o caroço no âmago dum fruto. (VERISSIMO, 2004b III, p. 67, grifo nosso). Floriano, fisicamente é o duplo idêntico, todavia no momento em que a alma de Floriano passa pela do pai, forma-se um duplo antagônico. Floriano deseja ser como o Doutor no que diz respeito à ação, à coragem, à desinibição, à determinação. Concomitantemente, Floriano luta para não ser como ele, pois não quer deixar ruir a tábua de valores que construiu para si. Ao mesmo tempo que ideal buscado por Floriano é seu duplo, ele o repudia. O pai é o sujeito e objeto de seu amor. Em conversa com Roque Bandeira, Floriano expõe sua visão de mundo, suas relações consigo mesmo e com o mundo externo, aspectos que não são exatamente de orgulho e envaidecimento. No diálogo com seu confessor, Tio Bicho, deixa clara a sua vontade de ser o “anti-Rodrigo”, pois se considera correto e julga o pai, fazendo emergir o duplo pensador. — Naturalmente já notaste que não fumo, não bebo e não jogo. Como interpretas isso? — É uma atitude anti-Rodrigo Cambará. [...] — Certo. Mas havia outra razão mais poderosa ainda. Eu não queria decepcionar minha mãe. Não queria que dissessem que por ser filho 170 de tigre eu tinha saído pintado... O meu sonho era ser o anti-Rodrigo para compensar as decepções de minha mãe... — Em suma: serias o marido exemplar, já que o outro não era. — Aí tens a história. O doutor Rodrigo fumava? Eu jamais poria um cigarro na boca. O doutor Rodrigo jogava? Eu jamais tocaria num baralho. O doutor Rodrigo bebia? Eu jamais tomaria bebidas alcoólicas. Floriano ergue-se e começa a andar devagarinho na frente do banco, dum lado para outro. [...] [...] o Velho recendia a Chantecler (perfume que usava com seu exagero habitual) de mistura com sarro de cigarro e charuto e com um leve, tênue bafio de álcool... Tu sabes qual era a minha reação ao fumo e à bebida... Quanto ao Chantecler [...] ouvi histórias de cozinha e galpão em torno de proezas eróticas de galos, e de homens “que eram como galos”; aprendi o significado do verbo galar e o da expressão mulher galinha. Daí por diante associei todas essas noções ao “cheiro de pai”, e o perfume Chantecler passou a ter para mim um forte elemento de atração e outro não menos forte de repulsa [...] (VERISSIMO, 2004b II, p.97-101, grifo nosso). Do ponto de vista sexual, Floriano sentia-se tolhido em seus desejos pelo fato de querer ser “um Rodrigo que jamais faria minha mãe sofrer, que jamais sairia atrás de outras mulheres” (VERISSIMO, 2004b III, p. 102, grifo nosso). Sua timidez sexual, no entanto, não o impedia de desejar as mesmas agregadas que eram alvo de seu pai em suas aventuras eróticas. Floriano nega as atitudes sombrias que o tornam semelhante ao pai, por essa razão o doppelgänger está sempre à espreita, avaliando, censurando. Neste momento emerge o duplo como visão de horror. — Mas para o menino essa experiência foi traumatizante. Doutra feita vi meu pai em cima duma chinoca, num capão do Angico.... Eu era então mais velho, teria os meus quatorze anos... Não preciso te dizer que fiquei espiando a cena escondido atrás dum tronco de árvore, com um horror cheio de fascínio... e depois fugi, correndo como um desesperado, como se eu e não ele fosse o criminoso (VERISSIMO, 2004b II, p. 98, grifo nosso). [...] Ao vê-la pela primeira vez, Floriano teve inesperados ímpetos antropofágicos. Desejou morder e comer aqueles lábios polpudos como pêssegos, e aqueles seios que mal apontavam. Surpreendeu- se e envergonhou-se um pouco desse apetite. Estava resignado à castidade, por mais que isso lhe custasse. Era-lhe agradável a ideia de permanecer limpo de corpo — já que de espírito tal coisa não lhe era possível — e continuar merecendo a confiança da mãe e da Dinda (VERISSIMO, 2004b III, p.56). Floriano tem relações com outras mulheres, tanto prostitutas quanto namoradas, sempre oscilando entre a moralidade autoimposta e a lubricidade paterna. Sente horror à lascívia do o pai que não respeita a mãe ou a casa, e 171 procede do mesmo modo com a empregada do Sobrado. A diferença é que Floriano o faz no confinamento da mansarda. Dessa forma, observando o que Jung (2008) chama de sombra como sendo “qualidades e atributos desconhecidos ou pouco conhecidos do ego” e “seja qual for a forma que tome, a função da sombra é representar o lado contrário do ego e encarnar, precisamente, os traços de caráter que mais detestamos nos outros”, podemos afirmar que a sombra de Floriano é Rodrigo. Olmira lhe foi levar a bandeja com uma xícara de café e umas fatias de bolo de milho, sentiu desejos de agarrá-la, mas não teve coragem para tanto. Mas quando ela voltou meia hora mais tarde, dizendo que tinha ido buscar a bandeja, Floriano fechou a porta, com o coração a bater acelerado, e aproximou-se da chinoca. Olmira encolheu-se, como quem espera uma bofetada, mas não se moveu. Floriano abraçou-a com trêmula fúria e, sem dizer palavra, deitou-a no divã. (VERISSIMO, 2004b III, p. 60) Keppler defende ideia que a duplicação ocorre em um momento de fragilidade do eu, causando, simultaneamente, atração e repulsa. O sujeito tem dificuldade em aceitar o outro que é idêntico, mas diferente, podendo ser até mesmo o total oposto do “eu”. Um paradoxo que provoca no eu reações emocionais extremas, como a do fascínio ou da aversão a seu outro. Agora, a presença de meu pai eu sempre a senti quente, efervescente, agressiva.... Sua fama de macho no sentido da coragem física me fascinava de maneira embriagadora, talvez porque não a sentisse em mim [...] (VERISSIMO, 2004b II, p. 102). É que paralelemente a todos esses sentimentos em relação ao velho, sempre senti por ele uma irresistível fascinação. (VERISSIMO, 2004b II, p. 101). O duplo poderia ser complementar ou oposto que o sujeito tem dificuldade em aceitar. Keppler caracteriza o duplo como uma parte não apreendida pela imagem que o eu tem de si e por essa razão pretende excluí-la. [...] Mas seja como for, na adolescência, inspirado por histórias sublimes, comecei a alimentar conscientemente um sonho: ser o homem exemplar, o que por um esforço de autodisciplina consegue acorrentar a besta e liberar o anjo, o que se coloca acima dos instintos animais: enfim, um produto acabado, uma espécie de cristal puro e imutável (VERISSIMO, 2004b II, p. 99, grifo nosso). 172 A duplicidade surge nas atitudes contraditórias que Floriano adota ao longo do romance, como a imagem invertida que surge no espelho: ao mesmo tempo que quer participar, não quer; quer ser acariciado, não quer; quer acariciar, não quer; quer ser como o pai, não quer; quer ter coragem, não tem. A personagem não assume uma posição diante dos fatos da vida, não rompe os grilhões. Ele é e não é, portanto, um homem de meios termos, contrariamente ao seu pai, fato que o aflige, levando-o a crises de identidade. Rodrigo, ao contrário, é autêntico, faz o que tem vontade, diz o que quer, come o que lhe apetece, veste o que gosta. E também gosta de ser um homem de ação, sem meias palavras. Contrariamente, Floriano sente-se preso às convenções. — Quero viver a minha vida. — Mas pensas que podes passar todo o tempo trancafiado neste cubículo? Segurou o rapaz pelos ombros e sacudiu-o: — Reage, Floriano, reage antes que seja tarde demais! Não me dês motivos para pensar que meu filho é um poltrão. E eu sei que não és! [...]. (VERISSIMO, 2004b III, p. 67, grifo nosso). Neste momento Flora entra, bate de leve no ombro de Jango: “Como vai, meu filho? ”, passa a mão na cabeça de Sílvia, toca no braço de Maria Valéria. “Bom dia! ”, beija o rosto de Floriano e depois vai sentar-se à outra cabeceira da mesa. Por que beijo só para mim? — pergunta Floriano a si mesmo. Essa preferência não só o constrange como também lhe pesa como uma ameaça potencial à sua liberdade. VERISSIMO, 2004b III, p. 288, grifo nosso). Quanta coisa havia acontecido depois de 3 de outubro de 1930! Afinal de contas, ali estava ele, sete anos após a noite mais angustiosa de sua vida.... Quem era? Que procurava? Por que ou por quem esperava? Era preciso tomar uma decisão antes que fosse tarde demais. (VERISSIMO, 2004b III, p. 296, grifo nosso). Outro tema relacionado ao duplo que não podemos deixar de observar é a polaridade anima e animus que representam os dois opostos complementares: feminino versus masculino que habitam no indivíduo. O lado anima de Floriano está presente na raiz de seu nome: flor. O lado feminino de Floriano está ligado a sua mãe, Flora. O herói apresenta-se como frágil, puritano, recatado, hesitante, tímido, medroso, covarde. O lado anima é do herói é o seu eu contemplativo, esquivo e sonhador: Às vezes Floriano tinha a impressão de que respirava pólen e ficava grávido de coisas verdes. Os cinamomos da praça e do quintal do Sobrado rebentavam em flores lilases, que enchiam o ar com o mel de sua fragrância adocicada. O vento arrepiava a paisagem e as epidermes, tumultuava o céu com nuvens inesperadas, levantava na rua o vestido das mulheres, despenteava as pessoas e as árvores (VERISSIMO, 2004b III, p. 58). 173 Floriano lutava com uma confusão de sentimentos: admirava a boneca, armava fantasias em torno dela, mas achava que um rapaz da sua idade não podia mostrar interesse por um brinquedo de menina sem correr o risco de parecer um maricas (VERISSIMO, 2004b I, p. 98). Floriano tecia fantasias em torno da “personalidade” de Aurora. Ela era a Copélia: a boneca que o mágico dera vida. Seus olhos tinham qualquer coisa que puxavam a gente para dentro deles, eram azuis como aqueles da lagoa do Angico onde havia um sumidouro. Ah! Mas ele, um menino que já´ estava na Seleta em prosa e verso, não podia deixar sequer que os outros suspeitassem do seu fascínio pela boneca. E para poder observá-la sem despertar desconfianças, examinava-as com ares de professor [...] (VERISSIMO, 2004b I, p. 189). Era de cortar o coração vê-lo sentado na soleira da porta ao pôr-do- sol. [...] certas noites, principalmente quando ventava, acordava alarmado e saía a caminhar pelo corredor como um sonâmbulo, “com uma coisa no peito”[...] “Vai ser poeta”, dizia Rodrigo em uma mistura de orgulho e de piedade (VERISSIMO, 2004b I, p. 96). O lado animus de Floriano está ligado aos Cambarás, mas não é aquele que se destaca, contrariamente ao seu pai que realiza mais que contempla, extrovertido e ávido pela vida, impulsivo, passional. Em Floriano percebe-se o animus mais ligado ao ódio que nutre pelo duplo, à coragem (em alguns momentos), à lubricidade. O lado anima e animus travam uma luta, pois Floriano é alheio ao gaúcho sanguíneo, que ele achava difícil compreender. Para sentir-se pleno deveria deixar os dois lados em equilíbrio. Que é que queres? ” “Nada, papai, vim buscar um livro...” Já conhecias a professora Roberta Ladário? Roberta, este é o meu filho, Floriano. Teu colega, sabes? Ó Floriano, Roberta faz poemas maravilhosos. ” Aquele cheiro quente e perturbador de mulher, o ar de culpa dos dois, o caderno caído — tudo isso dava ao escritório uma atmosfera excitante de alcova... (VERISSIMO, 2004b III, p. 27, grifo nosso). Era estranho, mas a fúria com que a mãe o defendera lhe dera a constrangedora sensação de ser ainda um pobre menino fraco e desamparado, e isso era deprimente. Depois, não queria passar por covarde aos olhos dos irmãos, cuja admiração ele tanto buscava e prezava. (VERISSIMO, 2004b III, p. 84, grifo nosso). Floriano não desviava o olhar do “cabeleira”. Todos os pavores da infância agora se concentravam nele, dando-lhe um ímpeto agressivo.... Agarrou uma garrafa pelo gargalo e, com fúria cega, investiu contra Severino Tarumã, que, brandindo a navalha, gritou “Cuidado, menino, que eu te corto a cara! ”. Floriano aplicou-lhe uma garrafada no braço, fazendo-o largar a arma. E, antes que o outro tivesse tempo para apanhá-la, cerrou os dentes e, com toda a força de que era capaz, bateu com a garrafa na cabeça do bandido, que 174 soltou um gemido e caiu de borco no soalho, e ali ficou, imóvel. (VERISSIMO, 2004b III, p. 264, grifo nosso). Anima e animus, os caminhos que de início parecem paralelos, são na verdade convergentes, o que é notado por Roque Bandeira. Floriano se parece muito mais com o pai do que ele admite ou gostaria, levando ao duplo bem-amado, dois pólos opostos magnetizados, mas sempre atraídos. Aos poucos, os duplos permeiam-se, um e outro formam uma unidade espaço/tempo. [...] por baixo dessa crosta és um homem igual a teu pai, com as mesmas paixões, impulsos e apetites... apenas com menos coragem de existir autenticamente. (VERISSIMO, 2004b II, p. 108). Temia ser descoberto. Era-lhe insuportável a ideia de fazer a mãe sofrer, de decepcioná-la, de dar-lhe motivo para concluir que, no fim de contas, ele e o pai eram feitos do mesmo estofo (VERISSIMO, 2004b III, p. 105). Floriano e o pai encontram-se frente-a-frente em um fundamento especular, um analisa o outro, um é oposto ao outro, um é igual ao outro, um a tradição e o outro a ruptura. A alma interior e exterior se ligam, dialogam. Finalmente o encontro da sombra e a persona, sem a máscara. O pai passa a ser filho, o filho o pai. Contemplando o filho com uma mistura de afeto e impaciência, Rodrigo pensa: “Pecado mortal é ter um corpo como o teu e não o usar inteiro (VERISSIMO, 2004b III, p.402, grifo nosso). Floriano contempla o pai, esforçando-se para não deixar transparecer na fisionomia a pena que sente dele (VERISSIMO, 2004b III, p. 402, grifo nosso). –Terminado esse diálogo, terás cortado para sempre teu cordão umbilical. [...] E desse momento em diante passarás a ser teu próprio pai. – E ao mesmo tempo meu próprio filho (VERISSIMO, 2004b II, p. 112, grifo nosso). O simbolismo do duplo é uma das maneiras de auxiliar o indivíduo a entender e aceitar a sua identidade de forma completa, reconciliando todas as suas ambiguidades, já que o sujeito está sempre em devenir. Ademais, uma forma de fuga é apoiar-se no passado ou no futuro, o sujeito projeta aquilo que quer se desligar para um desses tempos. Floriano sempre voltava ao passado numa tentativa de entender o presente. ─ Temos que começar pelo princípio da história. E afinal de contas, o menino ainda continua a morar no homem (VERISSIMO, 2004b II, p. 406, grifo nosso). 175 Rosset assegura que o indivíduo só conseguirá reconciliar-se quando exorcizar seu duplo, portanto, a condição sine qua nom para Floriano descobrir a sua inteireza era confrontar-se com o pai. No derradeiro debate, a cena se passa à noite, no quarto de Rodrigo que fica no andar de cima do Sobrado. O encontro se dá às portas fechadas e todos esses elementos são representativos. A chave e a porta são arquétipos da abertura e das novas possibilidades. A altura é o ícone da ascensão e da descoberta. A noite é uma das representações simbólicas do lado obscuro do indivíduo, remetendo ao lado desconhecido da psiquê. A noite antecede o alvorecer. O novo dia será a consciência aceita pelo indivíduo depois do período escuro e angustiante de expectativas: – Não esteja tão certo disso. Mas quero lhe dizer algo mais. Prometi dizer tudo, mesmo que lhe doesse. Está preparado? – Claro, homem, toca pra frente! – O Bandeira uma noite destas ofereceu outra interpretação para o meu comportamento aquela noite. O meu gesto não foi de pura covardia. Minha mão ficou imobilizada porque eu não estava interessado em salvar a sua vida. – Ora vai-te à merda! – exclamou Rodrigo entesando bruscamente o busto. — Não atiraste no tenente porque eras amigo dele, porque tinhas dezenove anos... porque não é fácil matar um homem. Mas não me venhas com Freud. Ah, essa não! A troco de que santo havias de desejar a morte do teu pai? – Eu sabia que sua reação ia ser essa. É duro para um pai ouvir o que acabei de dizer.... Também é duro para um filho dizer... Mas não se esqueça que o Bandeira se refere a um desejo inconsciente. E eu não lhe disse que aceito a hipótese... – Se não aceitas, por que a mencionaste? – Esta é a hora da verdade. Quero desabafar... e não tocar mais, nunca mais, nesses assuntos. Rodrigo sorriu. — Seja. Mas é bom esclarecer a situação.Tu escreves e eu vivo. – De acordo. Queira ou não queira, o senhor tem sido a minha personagem principal. O meu “pai pródigo”. Seu comportamento no Rio me intrigou, me inquietou, me decepcionou, me fascinou... tudo isso alternadamente ou ao mesmo tempo, não sei... – Mas por quê? Que esperavas de mim? (VERISSIMO, 2004b III, p. 413). Rodrigo cruzou os braços, ficou alguns instantes a olhar o pedaço de noite que a janela emoldurava, e depois disse: — Nunca tive preferência por nenhum de meus filhos... Bom, talvez pela Alicinha, quando vocês eram pequenos. Mas depois não. Reparti entre vocês todos o meu afeto, em partes iguais. Mas eu mentiria se negasse que sempre tive por ti um certo beguin, não sei, decerto por causa da nossa parecença... Parecença só física, porque em matéria de 176 temperamento tu és Terra e Quadros até a raiz dos cabelos (VERISSIMO, 2004b III415). – Bom. Acho que não é demais tentar de novo esclarecer o que procurei com toda esta conversa. Foi um cordial, honesto acerto de contas. Aceite-me como sou e eu o aceitarei como é. Sem idealizações, sem ilusões, com todas as nossas qualidades e defeitos. E sem outros compromissos um com o outro além desse enorme compromisso de nos entendermos e querermos como seres humanos (VERISSIMO, 2004b III, p. 416). – Pois vou fazer uma coisa que há muito ando querendo fazer, mas não fazia por pudor. Pois o pudor que vá para o diabo. E se o senhor reprovar o meu gesto, também pode ir para o diabo. É isto. Segurou o pai pelos ombros, inclinou-se sobre ele e deu-lhe um beijo no rosto. Depois ergueu-se como que um pouco envergonhado de tudo. Rodrigo, os olhos brilhantes de lágrimas, olhou para o filho e, com uma profunda e máscula ternura na voz, murmurou: – Esse filho da puta... Floriano fez meia-volta e aproximou-se da porta, já meio em ritmo de fuga, para que o pai não visse a comoção que o dominava. Quando ele estava já com a mão na maçaneta, Rodrigo gritou: – Mas não te esqueças, rapaz, de vez em quando solta o Cambará!). (VERISSIMO, 2004b III, p.434). Pouco lhe importava agora. Naquele momento Floriano sentia-se estranhamente tranquilo e seguro de si mesmo: um homem sem passado nem futuro. (VERISSIMO, 2004b III, p. 60) Jung esclarece que durante o reconhecimento da sombra, o sujeito distingue os aspectos escondidos de sua personalidade, tais como eles são realmente, sem quaisquer máscaras. No franco diálogo encetado entre os duplos, Floriano revela que sentira vontade de matá-lo simbolicamente. Disse ainda que o pai imaculado, perfeito, não existia senão em idealizações cívicas ou religiosas absorvidas pelo menino e adolescente, mas o adulto compreende que é absolutamente necessário aceitar o pai em toda sua extensão de qualidades e defeitos. Por sua vez, doutor Rodrigo confessa não apenas ter um afeto especial pelo filho devido à semelhança física entre ambos, como também aceita que, sendo homem de ação a mover a roda da História, necessita de literatos como Floriano para descrevê-lo. Jung elucida que sempre haverá possibilidades de integração entre o consciente e o inconsciente libertando o indivíduo de padrões devido a sua capacidade de trazer à tona entendimentos e reconciliações. Esse mútuo entendimento é a reconciliação definitiva que sela o destino do doutor Rodrigo, pois seu duplo, Floriano, que antes queria aniquilá-lo, está apto a perpetuá-lo. Para dar continuidade 177 à existência do pai, deveria, necessariamente, deixar sobressair o seu lado animus. “Mas não te esqueças, rapaz, de vez em quando solta o Cambará! ” (VERISSIMO, 2004b III p.434). No processo de busca de si proposto por Jung, o eu deve aceitar o seu outro para seguir sua vida. A partir do momento que os duplos se integram, assimilando a persona e a sombra, o lado inconsciente vêm à luz da consciência, despontado um ego sadio, um ser uno. Pouco tempo depois desse acerto de contas, Rodrigo falece. Na madrugada em que o pai morre, Floriano tem um pesadelo. No sonho, intervalo entre a realidade e irrealidade, o filho experencia a morte do pai como se fosse a sua, sentindo a angústia daquele momento. Naquele ambiente onírico, notamos a incorporação de Floriano em Rodrigo: Cerrou os olhos e procurou ser o menino Rodrigo, deitado na sua cama, encolhido sob as cobertas, transido de frio e medo, atento aos ruídos da noite, esperando que dum momento para outro rompa de novo o tiroteio... É madrugada, e, no casarão silencioso, o único ruído que se ouve é o tantã ritmado da cadeira da velha Bibiana, num balanço de berço... balanço de berço... balanço de berço... Embalado por esses pensamentos, Floriano adormeceu, e dentro de seus sonhos as figuras de sua imaginação, sombras de sombras, misturaram-se com vagas projeções de imagens da realidade. E ele continuou a ser o menino Rodrigo, sono adentro... E sentiu que um inimigo saltava pela janela para dentro do quarto, aproximava-se da cama, o vulto dissolvido na escuridão... Floriano-Rodrigo quis gritar mas não teve voz, tentou fugir, mas estava paralisado... O desconhecido sentou-se em cima de seu peito, apertou-lhe o coração e a garganta, impedindo-o de respirar, e ele então ficou a debater-se na agonia da morte por sufocação... Acordou alarmado, levantou-se, acendeu a luz, aproximou-se automaticamente da pia, abriu a torneira e molhou a cabeça e o rosto, e depois ficou a olhar-se no espelho, com um espanto nos olhos, como se não reconhecesse a própria face. (VERISSIMO, 2004b III, p. 434, grifo nosso). A morte é um tema e um arquétipo muito recorrente no estudo do duplo. O há em comum entre as teorias, é que a duplicidade é uma maneira que o sujeito encontra de se salvar, seja da finitude, seja de seus conflitos e angústias. O sujeito deve morrer para a vida anterior e encontrar a si mesmo em uma nova vida modificada, transformar-se em um ser pleno em suas opiniões e seus sentimentos. A morte de Rodrigo é a modificação da vida dos duplos. 178 – Foi como se o Velho e eu tivéssemos morrido ao mesmo tempo. Senti no meu corpo um pouco da angústia que ele deve ter sofrido na hora de expirar... Camerino sacudiu a cabeça: – Não creio que teu pai tenha tido o menor sofrimento. Resvalou do sono para a morte sem sentir... Floriano lembrou-se de que ele mesmo havia cerrado os olhos do morto. Mas nada disse (VERISSIMO, 2004b III, p. 437). – Houve um instante em que tive a impressão (podes achar a coisa falsa, rebuscada, literária), tive a sensação de que estava vestindo o meu próprio cadáver (VERISSIMO, 2004b III, p. 438). – Depois que o corpo estava completamente vestido, como para uma festa, veio um momento (passageiro, mas terrível) em que me pareceu que aquele homem nada tinha a ver comigo. Sua imobilidade e seu silêncio faziam dele um estranho (VERISSIMO, 2004b III, p. 439). Tio Bicho pousou a mão no ombro do amigo e ajuntou: – Acho que agora já começaste a te sentir como se fosses o teu próprio pai... – Sim, e, portanto, o meu próprio filho. Só queria saber se sou melhor pai do que filho (VERISSIMO, 2004b III, p. 442). A velha estava sentada num mocho, muito encolhida, chorando de mansinho. Ouvindo os passos de Floriano ergueu os olhos, e um súbito espanto contraiu-lhe o rosto enrugado, fazendo-a piscar, como que ofuscada. – Credo! – Murmurou. – Até pensei que fosse o finado Rodrigo (VERISSIMO, 2004b III, p. 443). A coisa se esquentou de tal maneira, que lá pelas tantas eu me levantei e gritei: “Calem a boca! Respeitem ao menos as mulheres. Discutam isso com bom senso e não como dois idiotas! ”. Eu mesmo me admirei depois de meu rompante autoritário. Naquele momento senti que eu era o velho Rodrigo Cambará, o chefe do clã. Para encurtar a história, o Eduardo e o Jango baixaram a crista (VERISSIMO, 2004b III, p. 445). Notamos a incorporação definitiva dos duplos Rodrigo/ Floriano, formando uma unidade cíclica: passado/presente/futuro; Rodrigo/Floriano/; eu/outro; vida/morte; anina/animus, persona/sombra. Mais do que um mero sucessor, Floriano é o duplo salvador que, ao invés de voltar-se contra o eu, o protegerá e o perpetuará, objetivo primordial de todo duplo. O pai foi perpetuado na tela do Retrato, Floriano será perpetuado no registro de sua história para a posteridade. Floriano passa a ser o Jano, o deus que rege tudo que inicia e tudo que termina, das entradas e saídas, do princípio e do fim. A proposta de seu novo romance é um mergulho profundo no rico manancial que é a natureza humana, e para isso lança mão do material que está ao alcance de 179 suas mãos: a própria família e sua trajetória ao longo dos dois séculos anteriores. Na noite de Ano Novo de 1945, Floriano começa a escrever seu novo romance, cujas primeiras linhas são as primeiras linhas de O continente, em um romance cíclico, assim como são cíclicos o tempo e o vento, ad infinitum. Era uma noite fria de lua cheia. As estrelas cintilavam sobre a cidade de Santa Fé, que de tão quieta e deserta parecia um cemitério abandonado (VERISSIMO, 2004b III, p. 458). 180 Considerações Finais Sou apenas um contador de histórias, desculpem-me. Erico Verissimo Discorrer sobre identidade é tratar de questões existenciais do ser humano que percorrem o tempo e inquietam a humanidade desde os primórdios da civilização. A indagação milenar “quem sou eu?” perpassa ao longo dos séculos. Uma questão tão antiga e que persiste com tanta pujança ao longo da história não é sem razão: interessa ao homem porque trata justamente do que há de inerente nele. Muitas foram as tentativas de solução para esse questionamento, cada uma delas coadunando-se com as modificações culturais da humanidade. Apesar de sua tradição, verificada por sua inscrição em diferentes discursos, o mito do duplo vem, ao longo dos séculos, encontrando terreno fértil na literatura. Nesse âmbito, o tema da identidade é problematizado de maneira incisiva nas representações de sujeitos cindidos que buscam soluções para seus conflitos. O romance é o gênero que assimila a realidade e organiza o mundo em diferentes épocas e espaços, logo, os fatos nele apresentados são disfarces ideológicos que refletem e refratam a realidade. Como a realidade é complexa, pode gerar dramas de consciência e desdobramentos que são tratados à luz da psicologia e da filosofia. O fenômeno do duplo e os elementos temáticos que o representam na literatura foram (e são) objetos de estudo das ciências que tratam da psiquê humana, atribuindo a esses desdobramentos de personalidade as disfunções mentais que aparecem nos indivíduos. Entre elas está a dicotomia de natureza contrastante e dialógica que remete aos conceitos do duplo expostos anteriormente. As teorias psicanalíticas apresentadas no capítulo 1, defendem que o indivíduo é dotado de um lado consciente e um lado inconsciente que geram a conversa entre o eu e o outro dentro de cada um. O homem no mundo real é dividido entre aquilo que aparenta ser, entre o que enxerga de si mesmo e o que os outros enxergam dele. 181 Para Bakhtin a consciência parece falar através de vozes independentes umas das outras e cujas falas são opostas. Deste modo, para o filósofo da linguagem, não há inconsciente, para o pesquisador no fundo do homem não está o id, mas o outro e “a consciência é muito mais assustadora do que todos os complexos inconscientes” (BAKTHIN, 2013, p. 324). Por essa razão, interessa a Bakhtin o que os outros pensam, fato que está no âmbito da consciência. Em outras palavras, o sujeito sempre pressupõe um outro que reage diante a determinadas situações, e é consciência do indivíduo que determina a sua ação e essa ação será mais sobre o ponto de vista dos outros. Para Bakhtin, o sujeito faz perguntas para si como: “por quê? para quê? está ou não certo? cabe fazer isso ou não vai dar certo ou não?” (BAKTHIN, 2011, p. 128). Pelas duas perspectivas o tema do duplo pode ser visto sob o viés da alteridade, já que na nossa existência sempre pressupomos o outro. Abarcamos as duas linhas de estudo para conseguirmos explorar o tema do duplo em sua plenitude. Como muitas outras obras, O retrato é uma história de duplos. Um homem tem a sua mocidade e beleza eternizadas na tela de uma pintura, enquanto na realidade vive de sua perversão moral, do empobrecimento afetivo e da falta de escrúpulos éticos. A narrativa coloca-nos diante de várias perspectivas: a que o herói tem de si e o que os outros têm sobre ele, assim verificamos como os outros o enxergam e também como ele é para si mesmo. Desta forma, assim como as personagens em Dostoievsky tem a função de tomar consciência de si e do mundo (2014), o mesmo se verifica na obra verissiana. É importante para as personagens o que os outros pensam delas, cada juízo que emitirão sobre elas. Pelas razões apresentadas, o tema do duplo leva-nos a vários níveis de interesse: de um lado expõe o conflito individual em que se encaixam as personagens, de outro é a expressão da impossibilidade de se esconder de um julgamento social. Nesses dois níveis de interpretação, o duplo cumpre uma função social dialética e depositária dos aspectos mais humanos do ser. O romance em estudo é a manifestação estética da alma do indivíduo concreto que são Floriano e Rodrigo. O duplo da obra verissiana não aspira salvá-la no âmbito da eternidade, ele tenta escapar das ambivalências da vida afetiva. O duplo analisado na obra em questão é constituído pelos aspectos mais humanos do homem que concebe dogmas sociais e não consegue se libertar. Seria, portanto, a materialização 182 da liberdade, uma expressão simbólica do conflito entre a carência de liberdade e a estrutura moral que lhe é imposta. Abre-se na obra verissiana os dois lados que há em cada indivíduo: o ego real, presente em todas mesquinharias e o ego ideal, projetado para a glória. O desejo de imortalidade está associado ao domínio do medo do fracasso, das normas sociais vigentes, da não aceitação de si. A prosa romanesca de Érico Veríssimo nos leva a refletir que todos nós somos um e muitos ao mesmo tempo, pois somos constituídos por uma multidão de vozes que foram construindo a nossa identidade que entram em conflito. O ser humano é um e muitos ao mesmo tempo no sentido de nele habitarem duas almas as quais levam a sentimento de culpa que o indivíduo carrega justamente pela falta de liberdade. Nossa intenção em analisar a duplicação nas referidas obras do escritor gaúcho, deveu-se ao fato de demonstrarmos que, por trás de uma prosa considerada rasa, está escondida a complexidade das suas personagens. Veríssimo não as despojou de sentimentos, ao contrário, dotou-as de angústias e anseios que refletem sobre si a sua realidade por meio de sua consciência e autoconsciência. Adentramos o universo da personagem por ela mesma, a partir de seu campo de visão. O homem na obra do escritor gaúcho foi colocado em diferentes situações de maneira que se possa descobrir as peculiaridades do homem no próprio homem, as profundezas de sua alma. O trabalho foi concebido a partir da constatação do pouco prestígio que a produção de Erico Verissimo goza na academia e que o escritor, por sua vez, aceitou como verdade. Tivemos a intenção de provar que a literatura de Érico Veríssimo é contemporânea e atemporal, uma vez que expõe, por meio de uma narrativa aparentemente despretensiosa, numa “postura avant la lettre” (PESAVENTO, 2001, p. 51), toda a complexidade do indivíduo. Dessa forma buscamos contribuir com uma leitura que pudesse mostrar a qualidades literárias dos corpus analisados. Todos os recursos expressivos utilizados pelo autor nos levam a crer que os aspectos estudados em suas personagens foram intencionais. Guilhermino Cesar diz que “tratando-se Érico Veríssimo, escritor habituado a manipular sua matéria, a composição dada a essa primeira parte deve ter sido voluntária, fruto de um plano maduramente considerado ” (p. 67, 1972). Diz ainda que “Os romances confirmam a agudeza de um observador fascinado pela sua matéria [...] aí está um escritor que 183 soube articular a sua prosa de maneira a abrir as portas que dão ao interior do homem”. Esperamos que as ideias aqui apresentadas possam encontrar outras vozes que suscitem respostas e que retumbem, pois é somente pela teia dialógica que ampliaremos os estudos críticos sobre a poética desse “contador de histórias”, não permitindo que sua obra seja levada pelo minuano. Por fim, façamos nossas, as palavras de Mário Quintana. Carta ao Érico O nosso modo de ser – que é tão nosso e por isso tão humano – de tal modo, velho Érico, tu o soubeste dizer que os teus personagens vão, Todos eles, andando, andando por uma terra que não tem fronteiras, contando da sua vida dizendo da sua lida e juntando o seu calor vasto e profundo a essa inquieta esperança que arfa no peito do mundo. Érico da terra de todos, Érico da terra da gente [...]. 184 REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: ADORNO, Theodor et al. Textos escolhidos. Trad. Modesto Carone et al. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. pp. 269-273. _______; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. O romance: história e sistema de um gênero literário. In: _____. Teoria da literatura. 5. ed. Coimbra: Almedina, 1983. pp. 671- 86. ALVAREZ, Aurora Gedra Ruiz. 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