C M Y CM MY CY CMY K CapaLivro-Historia de velhos_2.pdf 1 16/11/2023 23:03:57 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 1LivroGaby-Historias de Velhos.indb 1 15/11/2023 16:46:3115/11/2023 16:46:31 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 2LivroGaby-Historias de Velhos.indb 2 15/11/2023 16:46:3115/11/2023 16:46:31 HISTÓRIAS DE VELHOS Dores e belezas em vozes pouco ouvidas (2023) UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE CCL - Centro de Comunicação e Letras Trabalho de Conclusão de Curso ORIENTAÇÃO Profa. Dra. Patrícia Paixão COORDENAÇÃO DO CURSO DE JORNALISMO Prof. Dr. Hugo de Almeida Harris TEXTO E FOTOS Gabrielly Simeão REVISÃO Gabrielly Simeão CAPA, PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO Rogerio Guerra Este trabalho de conclusão de curso não reflete a opinião da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Seu conteúdo e abordagem são de total responsabilidade de sua autora. LivroGaby-Historias de Velhos.indb 3LivroGaby-Historias de Velhos.indb 3 15/11/2023 16:46:3115/11/2023 16:46:31 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 4LivroGaby-Historias de Velhos.indb 4 15/11/2023 16:46:3515/11/2023 16:46:35 CAPÍTULO 01 COM A PALAVRA, OS VELHOS 07 39 67 CAPÍTULO 02 E ASSIM TUDO COMEÇOU.. CAPÍTULO 03 BEM-VINDOS À VIDA ADULTA CAPÍTULO 04 SOBRE “SER VELHO” 127 POSFÁCIO 153 SUMÁRIO LivroGaby-Historias de Velhos.indb 5LivroGaby-Historias de Velhos.indb 5 15/11/2023 16:46:5515/11/2023 16:46:55 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 6LivroGaby-Historias de Velhos.indb 6 15/11/2023 16:46:5615/11/2023 16:46:56 CAPÍTULO 01 COM A PALAVRA, 7 os velhos LivroGaby-Historias de Velhos.indb 7LivroGaby-Historias de Velhos.indb 7 15/11/2023 16:46:5815/11/2023 16:46:58 C A P ÍT U L O 0 1 8 HISTÓRIAS DE VELHOS Capitulo_01.indd 8Capitulo_01.indd 8 16/11/2023 22:00:5316/11/2023 22:00:53 F oi no considerado Dia da Mentira, 1º de abril, que eu rea- lizei a primeira entrevista deste livro, disposta a entrar em contado com as múltiplas verdades sobre a velhice no Bra- sil. O céu azul, sem nenhuma nuvem, dava protagonismo ao sol que deixava aquela manhã de sábado quente e iluminada.  Localizada em São Caetano do Sul, na região do ABC paulista, a casa de repouso Villa Nostra Sênior era o meu destino. A fachada com flores, paredes rosas e os portões brancos não davam a ideia de que o lugar é uma tradicional instituição de longa permanên- cia para idosos. Quem chega ao local, tem a impressão de estar de frente para uma residência comum. Entrei acompanhada de Fernanda Agrella, farmacêutica e dona da instituição. Fomos re- cepcionadas por uma senhora de cabelos curtos castanhos, olhos verdes e vestido, que perguntou: - Vocês vieram visitar quem? Fernanda rapidamente respondeu: - Vó, você não pode receber as pessoas assim. Se apresenta pra ela!  Enquanto conversávamos com cada um dos senhores e senhoras que estavam na sala principal, na entrada, os quais me contavam seus nomes e faziam muitas perguntas - invertendo a cena do que eu imaginava que faria com eles -, uma senhora transbordando fe- licidade, trajando um vestido bege com folhas e flores em marrom e azul, apareceu. Seus olhos da cor do céu enfeitam o rosto que Emília Gomes Pereira Batista COM A PALAVRA, OS VELHOS 9 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 9LivroGaby-Historias de Velhos.indb 9 15/11/2023 16:47:0815/11/2023 16:47:08 é emoldurado por cabelos brancos com uma parte em trancinhas adornadas com presilhas amarelas e vermelhas. Os óculos na cor vinho, as unhas das mãos pintadas e com anéis dourados e os pés com tênis azuis sem meia completavam o visual de Emília.  Amante de beijos e abraços, ela foi logo me enchendo de carinho, dando risada. Me levou de elevador até um lugar conhecido como jardim, em que foram colocados papéis de parede com flores para complementar os vasinhos que os moradores da casa adoram cui- dar. Emília me mostrou que próximo de onde estávamos há uma sala em que os hóspedes fazem atividades. Depois me apresentou os quartos e o seu lugar favorito: a cozinha, com o refeitório.  En- quanto nos posicionamos embaixo de um toldo bege para que ela ficasse protegida dos raios solares, um cheiro nos surpreendeu. Ele foi seguido de um grito que vinha da cozinha: - O almoço está pronto!  A frase serviu como uma virada de chave para Emília. Ela que estava tão disposta a começar nossa conversa mudou pronta- mente de ideia. - Posso conversar com você depois? - Claro! Eu te espero aqui.  - Muito obrigada! É que eu tenho uma boca de cabra, viu? Eu amo comer de tudo e me alimentar bem. Você aceita almoçar com a gente? - Não, obrigada. Estou satisfeita, dona Emília. - Por favor, eu insisto. A comida daqui é ótima!  Conquistada pelo poder de persuasão da idosa, me sentei com os demais senhores e senhoras para comer. Enquanto bebia o suco de abacaxi, vi que um dos velhinhos me olhava preocupado. C A P ÍT U L O 0 1 10 HISTÓRIAS DE VELHOS LivroGaby-Historias de Velhos.indb 10LivroGaby-Historias de Velhos.indb 10 15/11/2023 16:47:0815/11/2023 16:47:08 - Você está bebendo muito rápido! – comentou. - Não tinha percebido. Obrigada por me avisar! - É perigoso beber rápido, qualquer um pode se engasgar. Você não sabe disso? Depois do almoço (e percebi que nem todos gostavam da refei- ção como dona Emília, alguns se recusaram a comer) voltamos para a nossa entrevista. - Eu olho para você ou para a câmera? - Se a senhora quiser olhar para a máquina pode olhar e se qui- ser olhar para mim também pode.  - Então, eu olho para você, porque você é bonita. Máquina é máquina, não é mesmo? Emília Gomes Pereira Batista estava com 93 anos quando nos conhece- mos. Fez 94 dez dias depois do nosso encontro. Nasceu em 1929, no interior de São Paulo, em uma fazenda entre os municípios de Salto e Elias Fausto. Diz que já perdeu a conta de quanto tempo está vivendo na casa de repouso. “Agora, você me apertou. Eu não lembro ao certo, mas acho que já faz uns três anos.” Entrou pela porta da Villa Nostra Sê- nior “com a vida inteira espremida numa mala de mão”. A frase tão forte não é dela, mas a utilizo porque pertence a uma das reportagens que me motivaram a escrever esse livro: uma matéria escrita para a revista Época, pela jornalista Eliane Brum, e publicada no livro “O olho da rua – Uma repórter em busca da literatura da vida real”. A metáfora da vida espremida em uma mala é usada engenhosamente pela jornalista para definir a chegada dos idosos em um asilo. A dura decisão de deixar o conforto da própria casa e todos os móveis, utensílios e mimos do lar para começar uma nova vida em um lugar desconhecido não veio de Emília. Com o falecimen- to do marido e com as filhas ficando idosas, foi a solução, nem um COM A PALAVRA, OS VELHOS 11 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 11LivroGaby-Historias de Velhos.indb 11 15/11/2023 16:47:0815/11/2023 16:47:08 pouco fácil, que a família teve que adotar. Antes da Villa Nostra Sênior, já havia entrado com sua mala espremendo toda uma vida em outra casa de repouso, onde teve amargas experiências. “Lá eu não tomava banho. Vinham com uma mangueira e jogavam na gente, como se estivessem lavando objetos. Encurralavam todos nós em uma faixa assim - conta movendo suas mãos enrugadas e cheia de pintinhas da esquerda para direita, de forma horizontal, dizendo um “shu, shu”, que imita o barulho da água da mangueira. A violência sofrida por dona Emília não parou por aí. “A gente não tinha comida farta.” Desviando o olhar do meu e com a mão ao lado da boca, ela contou que nessa outra casa “tinha um senhor que rezava, que era a coisa mais linda do mundo”. Fechando os olhos e suspirando, continuou: “mas é que nem o padre: faz o que eu digo, mas não faça o que eu faço”. Mais uma vez com os olhos cerrados, inclinou sua cabeça para frente e, movendo o seu dedo indicador da direita para esquerda, em um sinal de não, afirmou: “ele não era boa coisa”. Não conseguia completar o que queria di- zer, mas apresentava muito sofrimento e uma relutância abrindo e fechando os olhos, como se quisesse apagar da memória algumas imagens. Dói ver Emília sentindo essa dor que sai da mente e inva- de seu corpo. É como se tivesse aparecido uma nuvem em frente ao sol que protagonizou o céu da manhã.  Ali eu temi que nossa conversa fosse mais pesada do que eu podia suportar e aquela era só a primeira entrevista do livro. Mas a verdade é que dona Emília logo voltou-se ao presente, como quem quer acordar por von- tade própria de um pesadelo que tornou por segundos a sonhar. Retomamos ao objetivo do nosso encontro. Ela começou a se preparar para contar toda a sua história, não sem antes me inter- rogar, com seriedade: - Você vai me dar parabéns no meu aniversário? - Sim! Pode deixar que eu ligo daqui a 10 dias para senhora.  C A P ÍT U L O 0 1 12 HISTÓRIAS DE VELHOS LivroGaby-Historias de Velhos.indb 12LivroGaby-Historias de Velhos.indb 12 15/11/2023 16:47:0815/11/2023 16:47:08 - Ah, muito obrigada! Emília contou que iria comemorar seus 94 anos em um almoço com a família na casa da filha mais velha. Bolo, docinhos, refri- gerante…”Vai ter de tudo um pouco!”, garantiu. Perguntei o que ela gostaria de ganhar no dia do seu aniversário e, sem precisar pensar muito, respondeu: “uma cervejinha”. Não consegui dis- farçar minha reação de surpresa. E foi passando a mão pelos cabelos lisos e cinzas e sorrindo que ela resolveu se explicar: “eu sempre gostei de beber uma coisinha ou outra, mas meu marido não gostava tanto assim. No dia do nosso casamento, ele me disse que não sabia que tinha casado com uma mulher que bebia tanto e me chamou de ‘bebum’, o que é mentira. Agora, sem ele aqui, eu posso aproveitar melhor esse meu gosto por cerveja.” Antes da pandemia, as saídas com as vizinhas para o bar e outros rolezinhos, como idas ao shopping e ao cinema - os quais só acontecem mediante liberação dos profissionais de saúde que trabalham na casa e da família - aconteciam toda semana. Muitas vezes, era necessário até ir com mais de um carro para conseguir levar todos que tinham vontade. E mesmo sem ter um aniversa- riante presente, essas saídas viravam uma verdadeira festa. Fernanda sempre os acompanha nessas aventuras. Ela diz que “é o mínimo” que pode fazer por eles, afinal, nunca negaria esse tipo de vontade para ninguém de sua família e eles se tornaram, de certa forma, parte dela. “Com a chegada da pandemia, nossas saídas pararam, mas aos poucos estão voltando. Sempre que a Fernanda consegue nos levar, nós saímos”, conta Emília, animada.  Sobre a experiência de poder beber a querida cervejinha ao som de “Além de tudo”, sua música favorita do cantor Benito Di Paula, a idosa diz com os olhos fechados e um largo sorriso: “que delícia, que delícia e que delícia”!  --- Separação gráfica COM A PALAVRA, OS VELHOS 13 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 13LivroGaby-Historias de Velhos.indb 13 15/11/2023 16:47:0815/11/2023 16:47:08 C A P ÍT U L O 0 1 14 HISTÓRIAS DE VELHOS LivroGaby-Historias de Velhos.indb 14LivroGaby-Historias de Velhos.indb 14 15/11/2023 16:47:0915/11/2023 16:47:09 11 de abril de 2023, 10h30 de uma manhã nublada de quinta-feira na tranquila Rua Adalberto Kurt, localizada em Pirituba, distrito da zona noroeste da cidade de São Paulo. O portão cinza de fer- ro, sem campainha, da casa verde de dona Maria de Lourdes me faz ter a ideia de chamá-la como nos tempos antigos: - Oh de casa… Bato palmas, mas o silêncio permanece. Alguns instantes depois, volto a insistir: - Dona Maria de Looooourdes... aqui é a Gabrielly. - Já vai! Já vai! O cheiro irresistível de comida me fez salivar àquela hora da manhã. Seria arroz, carne e cenoura, um aroma que me remete a vários domingos na casa dos meus avós? Ele me abraça e me instiga ainda mais a querer conhecer a próxima entrevista- da. Será que já está no horário em que ela costuma almoçar? Outras pessoas participarão da entrevista? A casa está cheia? Meus pensamentos são interrompidos por um barulho de sa- pato subindo a escada. Uma senhora de menos de um metro e cinquenta, cabelos já preenchidos por fios brancos, pele negra, roupa estampada e olhar vívido aparece com um sorriso largo, capaz de quebrar qualquer tensão: Maria de Lourdes Vieira COM A PALAVRA, OS VELHOS 15 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 15LivroGaby-Historias de Velhos.indb 15 15/11/2023 16:47:0915/11/2023 16:47:09 - Oh, minha filha, cê me desculpa pela demora, viu? Só fui des- ligar as panelas do fogo pra não queimar o almoço.  - Sem problemas. Obrigada por aceitar falar comigo! - Entre, entre. Temos muito o que conversar. Pode ir na minha frente, enquanto eu vou fechando o portão.  Com a confirmação de que era a história dela que eu ansiosa- mente esperava ouvir, respondo:  - Não precisa, dona Maria. Eu te espero! - Oh, minha filha, obrigada. Rapidamente, a senhorinha, muito ativa, dispara a conversar, como se já nos conhecêssemos há anos: - Você sabia que minha filha mais velha mora nessa casa aqui de cima? Para ir para minha casa, é só descer a escada. Coisa boa mesmo é ter quem a gente ama por perto, né não? - Com certeza! Fico fel iz em saber que moram perto uma da outra.  - Oh, Hééélida, vem cá!!  Sou surpreendida pela porta da primeira casa sendo aberta de forma abrupta: - Oi, mãe. A senhora está precisando de algo? - Não, Hélida. Tá tudo bem. Só queria te mostrar essa moça bonita. Você sabia que ela é jornalista e veio até aqui só pra ouvir minha história? C A P ÍT U L O 0 1 16 HISTÓRIAS DE VELHOS LivroGaby-Historias de Velhos.indb 16LivroGaby-Historias de Velhos.indb 16 15/11/2023 16:47:0915/11/2023 16:47:09 - Que legal, mãe! - É, minha filha, eu posso estar velha, mas ainda sirvo pra algu- ma coisa, não é mesmo? Vamos, Gabriela, não vou fazer você perder tempo. Seguimos por uma escada estreita e sem corrimão. Como estou com câmera e tripé em mãos, não consigo acompanhar o ritmo de dona Maria, por isso, ela me ultrapassa e abre a porta da segunda casa. Quando entramos tudo faz sentido. Eu já tinha ouvido algumas pessoas falarem que a residência de uma pessoa é reflexo dela e a casa de dona Maria era a prova disso. - Pode entrar, Gabriela. É Gabriela ou Gabrielly? - Meu nome é Gabrielly mesmo, mas pode me chamar por Gaby.  - Oh, Gaby, então pode deixar suas coisas aí no sofá. E não re- para, viu? Minha casa é simples, mas é bem limpinha.  A residência de dona Maria realmente é pequena, mas cheia de vida. O sofá é coberto por uma manta vermelha com estampa floral em laranja e verde, acompanhado de almofadas azuis. A parede é verde clara e está repleta de quadros com fotos. Corti- nas brancas cobrem as janelas, que dão para o quintal, e um piso marrom com desenho “trançado” completa o cenário.  A dona da casa me leva até a cozinha e, então, conheço a origem do cheiro que me deu água na boca. Ela me oferece água, café, refrigerante e alguma coisa para comer. Nego, agradecendo, e começo a conversar sobre o que me levou até lá.  Maria de Lourdes Vieira nasceu em Crateús, cidade que hoje conta com 75.394 habitantes, um dos mais importantes mu- nicípios do oeste do Ceará, destacando-se na produção e co- COM A PALAVRA, OS VELHOS 17 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 17LivroGaby-Historias de Velhos.indb 17 15/11/2023 16:47:0915/11/2023 16:47:09 mercialização de produtos rurais e na pecuária. Está em São Paulo há mais de 65 anos e sempre trabalhou arduamente no serviço de faxina, seja em casas de família, seja em empresas. Aposentou-se com quase 70, em 2003, no primeiro governo do também nordestino Luiz Inácio Lula da Silva. Pouco tempo antes, estava atuando em um armazém próximo de sua casa onde, além da limpeza, costumava carregar objetos pesados, como parte da função. “Cheguei a levar 52 caixas de cerveja nas costas, acredita?”, destaca, frisando a testa. Quando eu a entrevistei ela estava com 87 anos. Fez 88 um mês depois, no dia 10 de maio. Enquanto posiciono o tripé e ajusto as confi- gurações da câmera, a senhorinha passa as mãos pelo cabelo preso em um coque e me pergunta se a roupa - uma camisa branca com flores rosas e botões, uma saia preta com detalhes verticais em branco, uma sandália preta e dourada com uma tira cruzada nos dedos e um anel grosso no dedo anelar da mão esquerda - está boa para a ocasião. Maria de Lourdes Viera está pronta para contar a sua história: - Eu passei por muita coisa, Gabriela (esquecendo meu nome de novo). Minha vida foi muito sofrida, mas graças a Deus, hoje, sou feliz.  --- Separação gráfica C A P ÍT U L O 0 1 18 HISTÓRIAS DE VELHOS LivroGaby-Historias de Velhos.indb 18LivroGaby-Historias de Velhos.indb 18 15/11/2023 16:47:0915/11/2023 16:47:09 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 19LivroGaby-Historias de Velhos.indb 19 15/11/2023 16:47:0915/11/2023 16:47:09 C A P ÍT U L O 0 1 20 HISTÓRIAS DE VELHOS LivroGaby-Historias de Velhos.indb 20LivroGaby-Historias de Velhos.indb 20 15/11/2023 16:47:1015/11/2023 16:47:10 Aos 82 anos, Mitsuji Matsubara ainda trabalha como dentista. Ele atende em média dois pacientes por manhã, mas naquela sexta- -feira ensolarada de 21 de abril a cota matinal não será cumprida, e não só por se tratar de um feriado nacional (Dia de Tiradentes), já que pode abrir exceções para atendimento até em dias em que ninguém trabalha, a depender da urgência do caso. É que Mitsuji fechou a agenda para abrir sua caixinha de memórias a uma estu- dante de jornalismo. Encontro Mitsuji, com seu 1 metro e 65 de altura e seus olhos puxados ainda mais apertados por conta de um sorriso, no meio de seu jardim, lugar um tanto quanto adequado para quem vive em uma residência em um bairro chamado Jardim Regina, na zona noroeste da cidade de São Paulo: - Gabrielly, você me pegou no pulo! – diz, com expressão diver- tida no rosto. Eu estava aparando um pouco as folhas do meu jardim, enquanto te esperava.  Com seus cabelos não tão fartos acinzentados e vestindo uma ca- miseta de manga curta branca com um pullover azul marinho sem manga e gola em V sobre uma calça jeans, ele me leva até a sala de jogos de sua residência, que é marcada por paredes verdes, cor de kiwi. Vai logo me explicando sua paixão pelas flores. “Eu adoro cuidar de terra, sabe? Deve ser porque meus pais eram lavradores. Quando eu não tenho pacientes, eu fico limpando o jardim.” Mitsuji Matsubara COM A PALAVRA, OS VELHOS 21 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 21LivroGaby-Historias de Velhos.indb 21 15/11/2023 16:47:1015/11/2023 16:47:10 Outro hobby que ele se apressa em me informar é o de var- rer a rua. “Tem gente que que olha pra mim e fala: ‘Porra, Mitsuji . Você é dentista e f ica varrendo a rua! ’ Mas pra mim isso não tem a menor importância. Gosto de ver as coisas l impinhas e organizadas.”  Na sala que tem tacos pendurados em uma das paredes e uma infinidade de objetos em um armário de madeira, como livros, álbuns de fotografia e troféus, uma mesa de sinuca grande no centro chama a minha atenção. Reparando no meu olhar inte- ressado, o dentista explica: -  Eu comprei essa mesa, porque eu larguei o futebol. Já joguei futebol de campo e de salão, mas automaticamente fui dei- xando essa paixão, depois que um colega quebrou a perna. Acabei pegando medo...  - Por que, sr. Mitsuji? - O negócio é o seguinte: quando a pessoa é de mais idade, ela não tem mais o domínio sobre o corpo, então tudo pode acontecer.  E foi assim que o dentista mudou seu momento de recreação para a sinuca. “No começo, a gente se meteu de cara na sinuca na casa do Celso Kibe (amigo de Mitsuji). Ficamos brincando durante um bom tempo por lá. Depois a mulher dele, a Nair, enjoou da gente e fomos para a casa do delegado Edvaldo. Lá jogamos por um tempo, mas a mulher dele também enjoou, porque a casa acabava ficando bagunçada depois do jogo. En- tão, eu trouxe o pessoal pra cá e ficamos jogando durante uns dois anos.”  Só que aí quem “enjoou” foi o próprio Mitsuji. “Eu simplesmen- te falei: gente, vou ter que parar, porque eu estou me sentindo cansado.” Depois de contar o trabalho que tinha para limpar C A P ÍT U L O 0 1 22 HISTÓRIAS DE VELHOS LivroGaby-Historias de Velhos.indb 22LivroGaby-Historias de Velhos.indb 22 15/11/2023 16:47:1015/11/2023 16:47:10 tudo quando os amigos saiam de sua casa de madrugada, o dentista fez uma pausa e resolveu lembrar do nome de um dos colegas que jogava com ele em sua residência e que minutos antes ele havia esquecido:  - Lembrei! Eliseu Alencar Duarte! Puxa vida! Como fui esque- cer do nome dele. Os esquecimentos, inclusive dos nomes de pessoas queridas e próximas da família, foram constantes ao longo da nossa conver- sa. Logo no início, quando Roberto, filho mais velho de Mitsuji, chegou com a esposa Vivian e a netinha de três anos e pouco, ele ficou constrangido tentando lembrar o nome da menina. - Ela é essa coisinha mais linda do mundo, Gaby. - Qual o nome dela? – perguntei. Mitsuji se levantou para fechar a porta por causa do vento. Quando voltou, mostra-se nervoso e envergonhado. Coçou a parte superior da cabeça, tirou os óculos, passou a mão na testa e, por fim, com os olhos baixos e tristes disse:  - Me perdoe... eu esqueci o nome dela. A gente sempre a cha- ma pelo apelido e aí acaba esquecendo o nome. Você vê só! Amo tanto essa menina e me fugiu o nome... – respondeu, lamentando-se. Nos momentos de lapso da memória, ele segue uma espécie de ritual: tira os óculos do rosto e, segurando-os nas mãos, se esforça para puxar da memória o que sumiu repentinamente. Enquanto eu preparo os equipamentos para a gravação, começa a me explicar o porquê segue trabalhando como dentista, mes- mo já estando oficialmente aposentado. COM A PALAVRA, OS VELHOS 23 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 23LivroGaby-Historias de Velhos.indb 23 15/11/2023 16:47:1015/11/2023 16:47:10 “Uma das coisas que eu sempre falo, Gaby, é que a gente deveria viver duas vezes para aprender a fazer as coisas certas que você deixou de fazer na vida anterior.” Mitsuji pensou que chegaria na velhice com tudo resolvido, sem precisar trabalhar. Não foi o que aconteceu. “Quando eu era mais jovem, comprei um terreno na Vila Zatt, na Rua Fausto Lex, onde eu conseguiria receber três aluguéis. Com isso, pensava que teria uma vida legal na velhice, pois poderia somar o valor dos aluguéis ao valor da minha aposentadoria e ao montante da aposentadoria da minha mulher. Mas em uma época em que a carreira do Rodrigo (filho mais novo de Mitsu- ji) não estava engrenando, decidimos que era melhor passar os aluguéis pra ele.” Rodrigo e Roberto, hoje, seguem os mesmos passos do pai: tra- balham como dentistas. Mas nem sempre foi assim. Rodrigo tra- balhou 11 anos como advogado no Banco Bradesco, mas não gostava da profissão, até que começou a ver o irmão bem pro- fissionalmente e disse: - Pai, eu estou com vontade de fazer Odonto. O que você acha? - Pô, mas agora???  Depois que pensou melhor e entendeu que era o que ir ia fa- zer o f i lho fel iz, Mitsuji o apoiou na transição de carreira. “O problema foi que o Rodrigo levou uma desvantagem, porque ele já t inha outra profissão e uma certa idade. O Roberto não, ele foi direto e se saiu muito bem.” Por isso, vendo que o f i lho mais velho estava com dif iculdades, Mitsuji teve que abrir mão dos aluguéis do terreno e, consequentemente, não pôde parar de trabalhar, mesmo estando aposentado. O va- lor de sua aposentadoria não é suficiente para os gastos que tem no dia a dia. “O que recebo não chega a R$2.000,00 e esse valor não dá pra nada. É meio impossível você viver C A P ÍT U L O 0 1 24 HISTÓRIAS DE VELHOS LivroGaby-Historias de Velhos.indb 24LivroGaby-Historias de Velhos.indb 24 15/11/2023 16:47:1015/11/2023 16:47:10 bem só com a aposentadoria. Isso me fez ter mais empatia pelos outros.” Mesmo sem admitir explicitamente, fica subentendido que ele trabalha porque precisa. “Eu sempre falo que não vou no con- sultório para ganhar dinheiro. Quando o cara senta lá na cadeira, eu fico com dó de cobrar tanto da pessoa, porque eu também não tenho grana”, conta. Com medo de esquecer de detalhes importantes de sua vida, faz um pedido: - Gaby, eu posso ir fazendo a fala na sequência? Assim fica mais fácil para eu lembrar das coisas. - Pode sim, senhor Mitsuji. Só que de vez em quando, eu vou te interromper, se eu precisar de mais detalhes. Pode ser? - Pode ser sim. Eu preparei essas folhas aqui com tudo o que aconteceu de mais importante na minha história para eu não esquecer de te contar nada. E mostrando três sulfites escritos dos dois lados com letra cursi- va em caneta azul e cuidadosamente numerados, ele se ajeita na cadeira, cruza as mãos sobre os joelhos e olha-me firmemente, com uma afirmação, seguida de uma pergunta: - Bom... vamos começar. O que você quer saber? --- Separação gráfica COM A PALAVRA, OS VELHOS 25 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 25LivroGaby-Historias de Velhos.indb 25 15/11/2023 16:47:1015/11/2023 16:47:10 C A P ÍT U L O 0 1 26 HISTÓRIAS DE VELHOS Capitulo_01.indd 26Capitulo_01.indd 26 16/11/2023 22:00:5516/11/2023 22:00:55 “Eu posso fazer a entrevista com o Max aqui em cima do sofá?” Foi me fazendo essa pergunta, ao lado de seu cachorrinho, que Ana Cristina de Sá começou a contar sua história. “Agora dia 29 de setembro eu vou fazer 6 ponto 4, mas minha idade atual é 63 anos.” Vestida com uma blusa preta e uma calça social na mesma cor, com formas geográficas em branco, Ana tem os cabelos curtinhos e negros em estilo moderno. Sua aparência jo- vial esconde as seis décadas bem vividas. Ela demonstrava estar preocupada em posicionar-se corretamente diante da câmera, com um ar de quem já está acostumada a dar entrevistas. - Fica bom desse jeito, né Gaby? - Fica sim. Como Mitsuji, adaptou sua rotina de trabalho para me receber. A quinta-feira, 17 de agosto, tomou um novo rumo. Passou do papel de ouvinte para o de falante. A psicóloga Ana, que sem- pre escuta as histórias de muita gente, naquela manhã se dispôs a contar sua vida.  Residente no bairro da Pompeia, na zona oeste da capital paulis- ta, a psicóloga possui uma casa espaçosa para alguém que tem apenas o cãozinho como companhia. Sua sala é enquadrada por paredes cor creme, combinando com o sofá. No centro há uma Ana Cristina de Sá COM A PALAVRA, OS VELHOS 27 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 27LivroGaby-Historias de Velhos.indb 27 15/11/2023 16:47:1215/11/2023 16:47:12 mesinha, onde está apoiado um livro com capa azul chamado “O Cuidado do Emocional na Saúde”, best-seller escrito por Ana e publicado pela editora Nova Práxis Editorial em 2020.  Sem qualquer timidez com a câmera que está em sua frente, fala com muita naturalidade. Parece não ter medo de abrir seu cora- ção e suas memórias, mesmo sem nunca ter conversado comigo antes. Pode ser por sua formação como pedagoga, psicóloga e enfermeira, por sua rotina intensa (sai, pelo menos, duas vezes por mês do estado de São Paulo para ministrar cursos), por já ter dado outras entrevistas, inclusive, para a apresentadora da TV Globo Ana Maria Braga ou até pelo autoconhecimento e valorização de cada momento de sua trajetória. “A vida é como uma oportunidade de aprendizagem constante e eu sou um ser em eterna construção.” Entrelaçando as mãos com unhas pintadas em vermelho escuro e ajeitando-se no sofá com as pernas cruzadas, ressalta a importância de ter Max ao seu lado. “Ele é como um filhinho para mim. Nós vivemos juntos há mais de 15 anos. Ainda mais de uns tempos pra cá em que estou avulsa”, diz sorrindo, referindo-se à sua solteirice.  Ana já encerrou, de certa forma, seus trabalhos como pedagoga e enfermeira, mas ainda dedica muito do seu tempo como psicólo- ga. “Meu dia é muito louco. Eu queria trabalhar menos do que eu trabalho.” Concentra seus atendimentos em consultório de segun- da a quarta-feira. Já na quinta tenta agendar menos pacientes que o normal e na sexta deixa a agenda fechada. Com uma semana muito programada e regrada, prioriza que seus finais de semana não sejam iguais. “Normalmente, eu sempre acho alguma atividade para fazer com meus amigos e amigas. Mas têm sábados e domingos que eu não quero fazer nada. Quero ficar em casa ‘quietinha’ maratonando alguma série na Netflix e tá tudo bem. Eu não me sinto mal de estar comigo na minha casa.” C A P ÍT U L O 0 1 28 HISTÓRIAS DE VELHOS LivroGaby-Historias de Velhos.indb 28LivroGaby-Historias de Velhos.indb 28 15/11/2023 16:47:1215/11/2023 16:47:12 Ana já foi casada duas vezes, na verdade, quase três. O primeiro noivo foi um homem. Ela só se casou, de fato, com duas mulheres. Descobriu uma nova faceta de sua sexualidade quando tinha mais ou menos 40 anos. “Um dia, uma mulher se apaixonou por mim. Ela era uma doutora famosíssima da enfermagem e trabalhava em uma faculdade muito importante. Aí eu pensei: o que está aconte- cendo? Por que essa mulher está dando em cima de mim?” Sem entender o motivo dessa paixão incomodar tanto, resolveu buscar a resposta. Até aquele momento, achava que a irritação estava acontecendo por ser noiva e estar prestes a se casar com um homem, mas se enganou. “Minha mãe sempre falou que eu era muito corajosa, então reuni toda essa minha coragem e fui ‘tirar a limpo’ a situação.” A mulher que estava apaixonada por Ana não morava no mesmo estado que ela. Mesmo assim, Ana foi até a casa da pretendente. “Eu falei: ‘eu sou cientista, então não custa nada eu ir lá e provar’. E provei.” Não é que Ana fosse infeliz com os homens. “Muito pelo contrá- rio”, ela diz. É que, sexualmente, ela se sente melhor com mulhe- res. “Se não me perguntarem sobre minha orientação sexual, eu não vou responder, mas, se me perguntarem, assim como você fez, eu falo sem problemas. Afinal, eu também não saio por aí perguntando: ‘você é hétero? Você transa com homem?” Hoje, em uma fase em que já se sofre preconceito simplesmente pela questão da idade, fala assumidamente sobre sua vida sexu- al, sem tabus ou medos: “Eu sou uma mulher que se sente atra- ída sexualmente por outras mulheres, mas não perdi meu lado feminino. Gosto de me vestir bem. E é exatamente, por isso, que ninguém vai me dizer nada. Eu não admito.” --- Separação gráfica COM A PALAVRA, OS VELHOS 29 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 29LivroGaby-Historias de Velhos.indb 29 15/11/2023 16:47:1215/11/2023 16:47:12 C A P ÍT U L O 0 1 30 HISTÓRIAS DE VELHOS Capitulo_01.indd 30Capitulo_01.indd 30 16/11/2023 22:00:5616/11/2023 22:00:56 - Oh, dona Fernanda, eu posso te pedir um favor? - Claro! Fala o que o senhor precisa para eu tentar te ajudar, seu Edgar.  - Eu queria tomar um remédio pra dor. Não sei o que acon- teceu, mas hoje eu tô sentindo muita dor nas costas. Você pode me ajudar? - Sim! Pode ir para a sala que eu vou pedir para uma enfermeira te levar a medicação. Fica tranquilo que sua dor vai passar!  A dona Fernanda é a mesma que o leitor acompanhou na histó- ria de dona Emília. E sim, eu acabei decidindo entrevistar mais um idoso da casa Villa Nostra Sênior. Simplesmente não tinha como ouvir esse diálogo e não me interessar por quem era aque- le homem. Ainda mais depois de saber que ele tinha mais de 100 anos. Virei para seu Edgar e fiz a proposta. - Você quer ouvir tudo o que eu vivi? Tudinho mesmo?? Tudo bem, eu te conto. Mas posso trocar de camiseta antes? Seu Edgar é um senhor com, pelo menos, um metro e setenta. Com barba e poucos cabelos, sendo todos brancos, possui os olhos bem pretos e já não tem todos os dentes na boca. Para Edgar Lourenço COM A PALAVRA, OS VELHOS 31 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 31LivroGaby-Historias de Velhos.indb 31 15/11/2023 16:47:1415/11/2023 16:47:14 além das características físicas, algo que o descreve muito bem é sua fé. Inúmeras vezes, ele reforça que é “um servo do Deus Altissímo”. Com camiseta de manga curta azul clara com detalhes de lis- tras nas mangas e gola polo e uma calça cinza com tecido larguinho, ele se sentou na cadeira, com a coluna ereta, e co- meçou a contar sua história:  - Vou fazer 102 no dia 31 de dezembro, meu bem. Graças ao bom Deus, né? “ Vizinho” de dona Emília, o velhinho chegou na Villa Nostra Sê- nior em 2021, após a morte da esposa Carolina. A família decidiu que era o melhor a se fazer. Ele nega a morte da companheira. - A Carolina está me esperando em casa, por isso não vou poder conversar muito com você, tá bom?”  - Tudo bem, seu Edgar. – respondo. Além do amor pela esposa (a qual é constantemente citada), Edgar demonstra ser muito apaixonado por carros. Depois que cresceu e veio morar em São Paulo (nasceu no município de Carmo do Rio Claro, em Minas Gerais), ganhou sua vida trabalhando como engenheiro mecânico. “Olha, acho que nunca você vai encontrar alguém que gosta mais de trabalho do que eu gostava, e nem que faça um trabalho tão perfeito”, diz, orgulhoso. Seu Edgar conta que seu trabalho era reconhecido, porque seu perfeccionismo sempre exigiu que entregasse o melhor para os clientes.  Quando precisou parar de trabalhar por conta da idade, passou todo o conhecimento que adquiriu ao longo dos anos para os filhos Enio e Enoque. Os dois continuam dando conta do negó- cio criado pelo pai e estão muito bem de vida, segundo ele. “De vida profissional, financeira…”, faz questão de ressaltar. Porque C A P ÍT U L O 0 1 32 HISTÓRIAS DE VELHOS LivroGaby-Historias de Velhos.indb 32LivroGaby-Historias de Velhos.indb 32 15/11/2023 16:47:1415/11/2023 16:47:14 em relação à família tudo mudou desde a morte da mãe. Os filhos não são mais próximos do pai, que evita tocar no assunto. A vida de Edgar foi marcada pelas decisões que tomava basean- do-se em sua crença. Desde criança ele participava bastante das conversas de adultos dando conselhos para cada um, “de acordo com o que Deus mandava”. Em meio às suas visões, Deus foi sempre apresentando qual o melhor caminho a seguir. Edgar diz que via Deus, assim como vê outras pessoas. “Quando eu falo com Deus, às vezes, ele se apresenta na minha frente. Eu já o vi com roupas brancas com anjos nas cores terrenas.”  Fé não é algo a ser discutido: acredita-se ou não. E foi escolhen- do acreditar e viver guiado pela presença de Deus que seu Edgar sofreu muito preconceito. Dando risadas (de nervoso), conta: “já ouvi pessoas falando que eu sou doido e eu respondo: doido é ‘ocê’ que não acredita no nosso criador”. Mesmo com a ausência da família - filhos, netos, bisnetos e a esposa Carolina que está sempre esperando por ele em casa (no seu ato de negação da morte da companheira), seu Edgar se con- sidera uma pessoa feliz. “Eu agradeço a Deus por estar me aben- çoando e dando esses dias de vida para eu viver aqui na Terra.”  Diferente de dona Emília, em nenhum momento seu Edgar se referiu às pessoas que moram com ele na casa de repouso. É como se esse “detalhe” não fosse importante ou simplesmente fosse por ele ignorado. Ele também não participa dos “rolezi- nhos” que frequentemente acontecem, pois prefere priorizar seu tempo com as leituras da bíblia e seu contato com Deus. Ser idoso não é um problema para ele, que aprecia muito essa fase da vida. Também não tem medo de morrer. Edgar acredita que quando falecemos vamos para o céu morar com Deus. “Quando a gente chegar no céu, nossas ocupações serão diferentes, sabe? Por isso, eu tento aproveitar o tempo que eu tenho por aqui.”  COM A PALAVRA, OS VELHOS 33 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 33LivroGaby-Historias de Velhos.indb 33 15/11/2023 16:47:1415/11/2023 16:47:14 --- Separação gráfica C A P ÍT U L O 0 1 34 HISTÓRIAS DE VELHOS Capitulo_01.indd 34Capitulo_01.indd 34 16/11/2023 22:00:5816/11/2023 22:00:58 Em 27 de agosto de 2023, eu já havia conversado com todos os idosos selecionados para terem suas vidas retratadas neste livro. Faltava apenas uma entrevista, aquela que eu imaginava que seria a mais fácil de ser realizada. Grande engano. Eu e minha avó, que sempre fomos unha e carne, não estávamos em um clima muito bom nos últimos tempos. Eu vinha deixando minhas visitas semanais de lado justamente para me dedicar a este Trabalho de Conclusão de Curso. A distância entre nós nunca ha- via existido. Dona Purificação sempre foi uma das pessoas mais importantes da minha vida. - By, você não tem mais saudades da vó? Não vai vir mais me ver? Questionamentos como esse se tornaram frequentes. Até que fi- nalmente, consegui marcar o dia da nossa entrevista. Sem as filhas e os outros netos, a casa da minha avó foi preenchida apenas pela nossa união. Contagem regressiva iniciada: 3, 2, 1...gravando! Quando começa- mos a conversar, um mundo que jamais imaginei se abriu diante de mim. Descobri segredos que quase ninguém (ou na maioria das vezes ninguém) da família sabia. - Não vai te deixar com dor na coluna sentar neste banquinho sem encosto? Tenho tanto para contar para você, tenho receio que fique cansada. Purificação Rodrigues Dias Simeão de Oliveira COM A PALAVRA, OS VELHOS 35 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 35LivroGaby-Historias de Velhos.indb 35 15/11/2023 16:47:1715/11/2023 16:47:17 Purificação Rodrigues Dias Simeão de Oliveira é uma senhora de um metro e cinquenta e cinco, com pele branca e cabelos curtos e lisos beirando o grisalho. O jeito de ser simples e transparente, com frases espontâneas, remetem ao substantivo escolhido por seus pais para ser seu nome. Purificação reside na Avenida Agenor Cou- to de Magalhães, no Jardim Regina, zona noroeste de São Paulo. Sua casa fica em um lugar movimentado, com ponto de ônibus bem em frente à porta, comércios por todos os lados (padaria, merca- do, perfumaria, farmácia e muito mais) e casas que pertencem aos moradores de longas décadas. “Eu adoro o lugar onde moro. Além de encontrar tudo o que preciso, tenho ótimos amigos por aqui. Quando saio para comprar pão, encontro tantos vizinhos que essa simples ‘saidinha’ pode levar uma manhã inteira.” Com as mãos entrelaçadas sobre os joelhos, camiseta de manga longa cinza com um pullover azul marinho, calça jeans e acessórios delicados, ela relembra como sua vida foi se desdobrando até o dia de nossa conversa. “Olhar para trás é perceber-se como uma velha de vasta experiên- cia, com 70 anos vividos com altos e baixos; aprendizados, ganhos e perdas; emoções e desilusões; mas alimentando sonhos, perseve- rança e confiança numa velhice calma e feliz.” A casa de Purificação conta com elementos que marcam esse oti- mismo pela vida. A atmosfera agradável encontrada do lado de fora no jardim repleto de flores, como Orquídeas, Primavera e Camélia, é estendida à parte interna do imóvel. As paredes da sala são pinta- das com tons claros de rosa e verde. Em todos os móveis é possível encontrar flores, porta-retratos com fotos da família e globos de ne- ves, que são colecionados como recordação de viagens que foram feitas pelas filhas, genros e netos. Purificação ganhou sua vida tirando pessoas de um mundo em que letras e outros sinais gráficos eram códigos desconhecidos. Sempre trabalhou como professora, ensinando crianças, jovens e C A P ÍT U L O 0 1 36 HISTÓRIAS DE VELHOS LivroGaby-Historias de Velhos.indb 36LivroGaby-Historias de Velhos.indb 36 15/11/2023 16:47:1715/11/2023 16:47:17 adultos, principalmente na etapa do processo de alfabetização. O Brasil ainda tem 9,6 milhões de pessoas que não sabem ler nem escrever, segundo pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizada em 2022, o que limita não só o dia a dia desses brasileiros (por exemplo para ler uma placa de trânsito ou saber o preço de um alimento no mercado) como dificulta a conquista de um emprego. “É um trabalho que sempre fiz com muito prazer e orgulho, porque acredito na transformação que a alfabetização traz para a vida das pessoas. Então, saber que de alguma forma, eu consegui contribuir com essa etapa, me deixa muito feliz”, diz sobre sua profissão. Aposentada desde 2003, hoje não conta mais com uma rotina marcada por horários bem definidos e pelo giz frequente nas mãos. Deixa o destino decidir como será cada dia. Existem momentos em que vê sua casa voltar aos tempos em que lecionava, com os sete netos brincando de pega-pega e entrando e saindo a todo va- por pelos cômodos (além de mim, ela tem outros seis netos, com idades entre 7 e 16 anos). Outros dias são marcados por almoços, cafés da tarde e jantares com as três filhas e os genros. Já outros são completamente diferentes, com a presença apenas de sua ca- delinha Nynna, palavras cruzadas em mãos e o silêncio torturante. Não é acostumada a viver sem companhia. Purificação tornou-se viúva em 2019, quando meu avô João Simeão de Oliveira faleceu após uma forte gripe. Ele nunca ficou doente e, mesmo sem se alimentar direito e tomar os remédios necessários para idade, tinha os melhores exames médicos da família. Mas o mês de outubro do ano que antecedeu a pandemia de Covid-19 deixou tudo diferente. No dia de nossa senhora Aparecida, 12 de outubro, João estava com dificuldade para respirar, febre alta, muita tosse, dor de cabeça e no corpo. Precisou ser internado às pressas. - By, agora estou bem melhor com você aqui! - mentiu João, para minimizar a dor que meu coração estava enfrentando ao vê-lo pela primeira vez doente. COM A PALAVRA, OS VELHOS 37 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 37LivroGaby-Historias de Velhos.indb 37 15/11/2023 16:47:1715/11/2023 16:47:17 Pegando em minhas mãos, João prosseguiu apontando para seu coração: “você é um presente para mim e vai morar para sempre aqui. Em breve, eu vou ficar bom e vamos juntos comemorar seu aniversário, no dia 16 de outubro.” A promessa não foi cumprida, porque o quadro de saúde piorou muito rápido. Nos exames de RX do pulmão, os médicos encon- travam manchas grandes, como se ele fosse um fumante – o que não era verdade. Já dentro da UTI [Unidade de terapia Intensiva], os médicos cogitavam entubá-lo, aumentando a dose das medicações e outras medidas que doem muito ao lembrar. Depois de três infartos que aconteceram em 15 de outubro, no considerado Dia dos Professores (um dia antes do meu aniversário), eu perdi meu avô, meu melhor amigo, e minha avó tornou-se viúva. Sozinhas, de coração partido e um vazio infinito que percorria os nossos corpos, rezamos juntas para que ele alcançasse um lugar iluminado no céu, ao lado de Jesus. Minha avó, que eu já considerava minha melhor amiga, tornou-se meu alicerce e o pilar de sustentação de toda família. Sua casa aca- bou virando o “colo” que urgentemente precisávamos. Mas naquela entrevista que fizemos em agosto de 2023 muito da imagem que eu tinha do meu avô iria mudar. Mesmo sem abalar o imenso amor que sinto por ele (afinal sempre foi maravilhoso comigo), as histórias que eu ouvi da minha avó sobre a vida dos dois, além de outras revelações feitas por ela naquela tarde, me fariam perceber que Dona Purificação, inicialmente tida como uma das personagens periféricas desta obra justamente por ser minha avó (no jornalismo costumamos aprender que é preciso nos voltarmos mais a contar as histórias de terceiros do que as nossas), possuía uma trajetória riquíssima, tão intensa quanto to- das as outras selecionadas para este livro. Eu teria que ser forte e habilidosa para escrever sua história com a dedicação, sensibilida- de e isenção que ela exigiria. C A P ÍT U L O 0 1 38 HISTÓRIAS DE VELHOS LivroGaby-Historias de Velhos.indb 38LivroGaby-Historias de Velhos.indb 38 15/11/2023 16:47:1715/11/2023 16:47:17 CAPÍTULO 02 E ASSIM 39 tudo começou... LivroGaby-Historias de Velhos.indb 39LivroGaby-Historias de Velhos.indb 39 15/11/2023 16:47:1915/11/2023 16:47:19 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 40LivroGaby-Historias de Velhos.indb 40 15/11/2023 16:47:1915/11/2023 16:47:19 J á há alguns meses um misto de alegria e ansiedade tomava conta da fazenda de dona Emília e seu Januário. Rosalina, filha do casal, e seu esposo Luiz iriam ter um bebê e não havia ou- tro assunto na família. Seria um menino ou uma menina? Quando nasceria? Todas as providências já tinham sido tomadas para re- ceber a criança ou faltava algo a ser feito? Aquele bebê era muito esperado. No dia 11 de abril de 1929, finalmente a família conhe- ceu Emília Gomes Pereira Batista, uma menina com olhos azuis e cabelos loiros, batizada com o nome da avó e que encantou a todos assim que saiu da barriga da mãe, em um parto natural.  A fazenda de dona Emília e seu Januário ficava entre os municí- pios de Salto e Elias Fausto, no interior do estado de São Paulo, a pouco mais de 100 quilômetros da capital paulista. Lá havia um quarto conhecido como “maternidade”, porque muitas crianças, incluindo a neta Emília, nasceram dentro dele. Quando havia al- guma grávida na região, os avós de Emília já deixavam a “materni- dade” preparada para receber o bebê.  A infância de Emília teve seus momentos mais marcantes na fazen- da. Era lá onde as melhores brincadeiras aconteciam. “Eu pintava e bordava, mesmo levando reprimendas. Era danada”, diz, sorrindo ao relembrar do passado.  Emília andava a cavalo e brincava muito com as vacas, os bezer- ros e os porcos. Mas o que mais a agradava era cuidar dos patos. “Meus avós criavam um monte deles, mas nem sempre tinham tempo pra usar o moinho para fazer quirela e alimentar os bi- chinhos. Então, eu pegava uma pedra ou um tijolo e martelava o milho para alimentá-los.”  Como não tinha noção de como executar adequadamente as tarefas de adultos, às vezes a menina Emília dava mais comida do que os animais podiam aguentar. “Enquanto eles não estavam com o papinho cheio, completamente lotados, eu não parava de dar quirela. Achava que estava fazendo bem pra eles.”  41E ASSIM TUDO COMEÇOU... LivroGaby-Historias de Velhos.indb 41LivroGaby-Historias de Velhos.indb 41 15/11/2023 16:47:2015/11/2023 16:47:20 A lembrança dos patos é bastante forte na memória de Emília e ela fica durante um bom tempo de nossa conversa falando sobre eles. “Eu pegava aqueles cestos trançados de jacá, que eram feitos de bam- bu, colocava eles dentro e levava na beira do rio para eles nadarem”, completa com seu sotaque interiorano, puxando o “r” nas palavras.  Sua feição só muda quando lembra que os bichinhos, quando ficavam maiores, acabavam virando refeição. “Era a única coisa que eu não comia. Eu ficava muito triste quando isso acontecia.” Para além das brincadeiras com os animais, Emília gostava muito de se divertir com suas amigas. “Amava brincar de roda, de passa anel, de pular corda.” Eram frequentes também as brigas com os meninos e por um mo- tivo que nada tem a ver com a birra ao sexo oposto, comum entre as meninas quando são crianças. “Eles traziam da fazenda pão e broa de fubá com manteiga. Eu, por outro lado, levava de lanche o pão da padaria que era bem queimado. E mesmo com a minha mãe sempre passando uma goiabada pra ficar melhor, eu preferia bater nos meninos e roubar o lanche deles”, explica, me fazendo lembrar dos primeiros instantes de nossa conversa, quando resol- veu parar a entrevista pra almoçar com os demais idosos da Villa Nostra Sênior, alegando que comia “feito uma cabra”. Ao que tudo indica, Emília sempre foi guiada pelo estômago. Aos domingos, ela e sua família tinham o costume de acompanhar e participar das missas. Os padres bebiam “vinho de laranja”. “E quem preparava esse vinho era o meu avô. A bebida tinha um cheiro muito gostoso e era mais fraquinha.” A bisavó italiana, dona Regina, também era católica. Antes de vir para o Brasil, atuou como cantora lírica no Vaticano. “Então, quando tinha reza lá em casa - e todo mês de maio tinha reza - ela cantava muito bonito.” Regina também cantava outras músicas que marcaram a infância da bisneta. Ao se recordar daqueles tem- HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 2 42 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 42LivroGaby-Historias de Velhos.indb 42 15/11/2023 16:47:2115/11/2023 16:47:21 pos, Emília começa a cantar pra mim, em alto e bom som e movi- mentando muito os braços, a famosa música Funiculì funiculà, do compositor e jornalista italiano Giuseppe “Peppino” Turco: - Jammo, jammo, ‘ncoppa jammo ja’. Funiculí - funiculá, funicu- lí funiculá.  Mas a infância e a juventude não foram marcadas só por momen- tos doces. O pai de Emília ganhava muito pouco trabalhando com agricultura na roça e a mãe, costureira, embora muito elogiada na comunidade local por suas habilidades, também não recebia o su- ficiente pra dar conta de todas as despesas da família. “Eu só pude estudar até o quarto ano. Depois disso, precisei trabalhar pra aju- dar meus pais. Minha mãe fazia aquelas roupas que as pessoas usam na roça e uniformes de escola. Não dava muito dinheiro.” Emília herdou o mesmo dom da mãe e aos 14 anos arrumou um emprego em uma fábrica de botões. Para trabalhar na fábrica e ajudar a família, precisou mudar para a cidade de São Paulo. “Eu sabia que precisava trabalhar, mas não estava preparada pra ficar longe do meu pai e da minha mãe.” Com as mãos cobrindo os olhos, nesse momento ela suspira e o tom da voz esmaece: “eu não gosto de lembrar disso, porque o dia em que vim para São Paulo foi muito triste”. Na capital, morou com uma tia. Ela que sempre foi acostumada com mesa farta, agora era fiscalizada em tudo o que ia comer. A tia insistia em repreendê-la. - Emília, você já comeu muito! Chega! “Eu já não estava feliz longe dos meus pais e ela não era nenhuma flor que se cheirasse. Sofri muito.” x (divisão gráfica) 43E ASSIM TUDO COMEÇOU... LivroGaby-Historias de Velhos.indb 43LivroGaby-Historias de Velhos.indb 43 15/11/2023 16:47:2115/11/2023 16:47:21 Em uma sexta-feira, 10 de maio de 1935, no município de Cra- teus, no Ceará, nascia Maria de Lourdes Vieira, a décima primei- ra filha do casal Ricardina e Jerônimo. Apesar da alegria da che- gada de mais um integrante na família, a existência de mais uma boca para alimentar em uma cidade marcada pela seca, onde os habitantes chegavam a ficar mais de dois anos sem conseguir colher cereais, legumes e verduras essenciais para uma boa ali- mentação, preocupava o casal humilde, que muitas vezes tinha que racionar a comida, para não ver os filhos passarem fome. “Quando meu pai não conseguia colher nada, a gente só comia uma vez por dia. Minha mãe até preparava feijão com farinha pra a gente aguentar o trabalho na roça.”  A dificuldade era grande, mas não faltavam carinho e apoio. Eram todos bem unidos e a figura da mãe, sempre presente e afetuosa, é muitas vezes lembrada por dona Maria de Lourdes. “Não teve mãe melhor do que a minha. Pode ter tido igual, mas melhor não. Nós não fomos criados com pancada, e sim com amor.” Desde criança, Maria sempre teve um olhar empático e gostava de se disponibilizar para cuidar dos outros. Não é à toa que seus brinquedos favoritos eram bonecas. Com elas, empregava a costumeira atitude maternal que tinha com os outros. “Eu fazia minhas bonecas com sabugo de milho. E quando nossa situação estava melhorzinha, mamãe comprava umas cabeças de boneca de madeira que uma senhora fazia. Ela pegava aquelas cabeças, fazia o corpinho de pano e enchia de algodão pra mim.” Mas o que realmente encantava o coração da criança eram as bonecas de porcelana, que, infelizmente, não tinha condições de ter. “Às vezes, minha mãe fazia serviços para uma senhora que a filha tinha várias bonecas de louça. Como eu ia junto, ficava olhando aquele tanto de boneca de louça, mas eu não podia nem encostar. Era uma grande humilhação. Mas eu sempre acre- ditei que Deus ia me dar uma vitória.”.  HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 2 44 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 44LivroGaby-Historias de Velhos.indb 44 15/11/2023 16:47:2115/11/2023 16:47:21 Aos 6 anos, com o agravamento da seca e da falta de recursos, a família de Maria mudou para Nova Russas, outra cidade cearense. Ali, a menina começou a conciliar escola e trabalho. E mesmo sem o ambiente adequado para estudar, ela se saía muito bem. “Naquela época, você fazia a carta do ABC, escrita por Erasmo Braga, depois ia para a cartilha do Povo e, por fim, chegava ao quarto ano [último ano de estudo]. No começo das aulas, em fevereiro, eu estava no primeiro ano. Mas no meu tempo tinha uma coisa diferente de hoje. Se você conseguisse estudar o livro até julho, você já passava para o segundo ano. Eu não era muito inteligente, mas eu fiz os quatro anos de estudo em dois anos”, conta, orgulhosa.  O trabalho na roça exigia muito. Ela entrava cedo na escola e por volta de dez horas da manhã saia para ajudar os pais. “Eu fui criada no cabo de inchada. Tudo o que eu sei começou com o trabalho feito na roça.” Com 7 anos, já buscava lenha e trazia na cabeça para ser usada no fogão. Mas isso não a incomodava. O problema mesmo era quando tinha que sair no inverno e se deparava com Mutuca, um tipo de mosca grande. “Aquilo era um verdadeiro inferno pra matar dentro do mato.” As Mutucas a fizeram passar por momentos inesquecíveis. Em um dia frio, a mãe Ricardina fez um pedido para Maria e sua irmã Francisca: - Vai chover, se apressem e vão buscar lenha pra mim. E elas foram. Dentro do mato, Francisca ia cortando as madei- ras com o machado e Maria ia fazendo montinhos para ficar mais fácil na hora de colocar na cabeça. Próximo do lugar onde estavam, ficava uma fábrica de cal. “Na fábrica, as pedras eram queimadas para fazer a tinta de cal para pintar casas.” Quando dava meio dia, os trabalhadores vinham da roça para almoçar em casa, passando por uma estrada ao lado do mato em que as meninas estavam. “Eu tinha uma dificuldade muito grande: não sabia se juntava lenha ou se matava Mutuca, aquele bicho nojento.” 45E ASSIM TUDO COMEÇOU... LivroGaby-Historias de Velhos.indb 45LivroGaby-Historias de Velhos.indb 45 15/11/2023 16:47:2115/11/2023 16:47:21 A irritação era tanta que Maria não conseguiu guardar só para si a revolta e falou bem alto: - Eu só queria que aparecesse, ao menos, um ladrão pra se casar comigo e acabar com esse sofrimento.  Então, um dos trabalhadores que passava próximo, pela estrada, respondeu: - Fala isso não, menina, porque o que você fala na terra, os anjos dizem amém. A raiva de Maria se transformou em uma vergonha imensa por ver que aquele homem havia ouvido o que ela disse. Conti- nuou seus trabalhos dentro do mato. Assim como as mutucas continuaram trabalhando; incomodando as irmãs e causando inflamações nas regiões do corpo em que conseguiam pou- sar. Elas destruíam os tecidos e criavam pontos de sangue no local da “picada”. Essa era a rotina de Maria: da casa para escola, da escola para roça, da roça para casa. O ciclo se repetia. Porém, quando a seca se intensificou em Nova Russas, já não havia mais como a menina ajudar os pais na roça, porque lá não tinha o que co- lher. Então, Ricardina colocou a fi lha para trabalhar na casa de outras pessoas. “Comecei a ir pra casa de famílias e, mesmo criança, eu ficava cuidando dos ‘meninos’ dos outros”. Com ironia, Maria complementa: “e as minhas patroas eram bem maravilhosas. Elas tinham fruteiras em cima da mesa cheias de caju, banana e outras frutas, mas eu não podia pegar nada”. Inclusive, dona Ricardina sempre relembrava a fi lha antes dela sair para trabalhar: - Vê se você não me pega nada da casa de ninguém. Se eu sou- ber que você pegou alguma coisa, vamos ter uma conversa séria. Eu compro uma palmatória e você vai ver.    HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 2 46 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 46LivroGaby-Historias de Velhos.indb 46 15/11/2023 16:47:2115/11/2023 16:47:21 Nas casas de família, Maria também tinha que servir comida para as ‘patroas’, l impar tudo e só quando os donos da casa terminavam as refeições é que ela podia se alimentar com o que sobrava. Só havia uma diferença entre este trabalho e o da roça: “quando eu cuidava dos fi lhos das ‘patroas’, eu tinha sorte e, às vezes, ganhava delas algum vestidinho de chita, como recompensa”.  Maria viveu sua infância e juventude se sustentando de peque- nas alegrias, pequenos prazeres que aliviavam os sofrimentos de uma vida que não era para criança, apesar de ser comum naquela década. Trabalhou na casa de uma família de Nova Rus- sas até seus 17 anos, quando seus patrões resolveram se mudar para Fortaleza. Foi aí que a jovem começou a se separar de seus pais e irmãos. A tão apegada família precisou se desgrudar. Os pais, Jerônimo e Ricardina, foram para um sítio trabalhar com os filhos, e Maria de Lourdes, que conseguiu emprego em uma fábrica chamada Ceará Industrial, foi morar com uma tia, em um lugar distante do sítio, na capital do estado.  A tecelagem não ge- rou só renda. Acabou abrindo os caminhos da vida de Maria de Lourdes para o amor e para um mundo que ainda não conhecia. x (divisão gráfica) 47E ASSIM TUDO COMEÇOU... LivroGaby-Historias de Velhos.indb 47LivroGaby-Historias de Velhos.indb 47 15/11/2023 16:47:2115/11/2023 16:47:21 Pelé ou Matsubara? O Brasil recebeu os dois craques no mesmo dia. Edson Arantes do Nascimento nasceu em 23 de outubro de 1940, em Três Corações, Minas Gerais. Com o futebol, ele conquis- tou o mundo. Mitsuji Matsubara nasceu no dia 22, mas foi registra- do em 23 de outubro de 1940, em Oriente, no interior do estado de São Paulo. Ele também conquistou o mundo, só que o mundo ao qual pertencia. Se alguém perguntar em Oriente pelo artilheiro, com certeza, ele ainda será lembrado, especialmente pelas gera- ções mais antigas, como o rei do futebol por lá. Coincidência ou não, parece que quem nasce nessa data vira bom jogador.  Ao falar de sua vida, Mitsuji faz questão de reforçar como ela foi marcada pela bola em seus pés. Mas, antes, explica como foi sua infância no sítio Monte Serrat, localizado a dez quilômetros de Oriente, local onde ele nasceu. Filho de José Matsubara, um brasileiro, descendente de japone- ses, e Mitsue Matsubara, japonesa que chegou ao Brasil com 6 anos de idade, Mitsuji viveu seus primeiros anos de vida em um lar majoritariamente feminino. “Eu estava rodeado de mulheres. Convivia com mais três irmãs: Kioko, Mitico e Rosa. Elas sempre me faziam muito feliz.”. Mas quem realmente o acolhia era a mãe. “Eu era muito ‘protegidinho’ dela. Minha mãe sempre cuidou de mim e me ensinou muita coisa no sítio onde morávamos. Às vezes, quando eu aprontava e algum tio vinha me bater, ela não deixava. Ninguém encostava em mim.”  Além dos pais e das irmãs, Mitsuji também convivia no sítio com os tios, irmãos de seu pai. Ao todo, eram quatro tios e duas tias. “Eram eles que trabalhavam no sítio. Minha mãe ficava em casa tomando conta de toda ‘turma’ junto com minha avó, mãe de meu pai.” Com carinho, ele conta como era a relação com a fa- mília: “minha avó era viúva, porque meu avô faleceu muito cedo. Então, todo mundo morava junto em uma casinha de madeira que tinha no sítio. Mesmo sendo muita gente, cabia todo mundo lá e conseguimos viver na simplicidade com muita felicidade”.  HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 2 48 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 48LivroGaby-Historias de Velhos.indb 48 15/11/2023 16:47:2215/11/2023 16:47:22 O garoto se divertia à beça no lugar onde morava. E por ser tão peralta, algumas vezes entrou em apuros. “Tinha um galpão co- berto por sapê, onde meu pai criava bicho da seda. Meu tio guar- dava lá seu caminhão. Uma vez, eu ‘molecão’, com uns 6 anos de idade, resolvi subir na carroceria e fiquei entalado. Até que meu tio chegou, entrou no caminhão e deu ré. Minha cabeça ficou pre- sa em um tronco enorme de madeira que servia de viga.” Fazendo uma pausa, Mitsuji continua: “graças a Deus, quando ele estava dando ré, o caminhão ‘morreu’. E quando ele desceu para ver o que tinha acontecido, eu estava preso, sem conseguir falar e mor- rendo de medo.” O resultado da brincadeira foram vários dentes moles na boca e mais atenção na hora de escolher o lugar para se divertir. “Se o caminhão não tivesse ‘morrido’, hoje eu não estaria aqui. Minha cabeça estava em um lugar que seria decepada.” No fundo da casa de Mitsuji passava um rio, onde a família pesca- va. “A gente sempre estava por lá. Nós pegávamos Bagre e outros peixes pequenos.” Além da criação de bicho da seda, a família de Mitsuji cuidava de cavalos, nos quais ele adorava andar. Seus tios e seu pai também plantavam café e tinham pés de limão, manga, laranja, entre outras frutas. E é exatamente por ter essa experiência desde a infância que agora ele sabe cuidar tão bem de seu jardim em Pirituba. Ao completar a idade em que poderia estudar, Mitsuji foi para cidade com a mãe e Kioko, sua irmã mais velha. “Estudei no grupo escolar da cidade e, aos 11 anos, recebi meu primeiro diplominha.”  Na sequência, foi estudar em Marília, também no interior do es- tado de São Paulo, em um colégio chamado Dr. Fernando de Ma- galhães, onde recebeu seu diploma ginasial. José e Mitsue sempre apoiaram a educação do filho e se esforçavam para que ele tivesse cada vez mais oportunidades. Então, depois de concluir o ginásio, Mitsuji mudou para Pompéia, próximo de Oriente, para estudar até o terceiro colegial. “Em Pompéia, eu levei ‘pau’ no primeiro 49E ASSIM TUDO COMEÇOU... LivroGaby-Historias de Velhos.indb 49LivroGaby-Historias de Velhos.indb 49 15/11/2023 16:47:2215/11/2023 16:47:22 ano, porque nessa época eu já gostava muito de jogar futebol. Eu jogava a contragosto do meu pai no time da cidade e, como tinha que treinar para ser um bom lateral, eu faltava na escola.”  Mitsuji não tinha como se dedicar 100% a tudo e sua escolha era quase sempre o esporte. “Quem jogava futebol no clube da cidade acabava se tornando o ‘queridinho’ da galera. O que fazia a alegria dos habitantes era inegavelmente o futebol.”  No Oriente Futebol Clube, Mitsuji virou estrela. Em 1961, junta- mente com outros jogadores do time, foi eleito campeão amador da Alta Paulista, antiga região ferroviária de São Paulo marcada por sua larga distância, envolvendo diferentes municípios até o distrito de Jafa, localizado bem no fundo do Rio Paraná.  O amor pelo futebol fez com que Mitsuji tomasse decisões guia- das apenas pelo coração. “Eu levei bronca e levei ‘bomba’ tam- bém, ao repetir dois anos de escola por conta do futebol. Todo mundo me criticava. Poxa, mas eu ia fazer o quê? Eu gostava muito de jogar.” Quando José viu que não tinha jeito e que o amor pelos campos era forte na vida do filho, começou a acompanhar o time do Oriente Futebol Clube em todos os campeonatos. Mesmo com as dificuldades em focar nos estudos, Mitsuji conse- guiu finalizar o colegial e se formar. “Mas meu pai percebeu que se eu continuasse em Oriente ia perder mais tempo por conta do futebol, então eu tive que largar a fase mais bonita da minha vida nesse esporte.” José e Mitsuji tiveram uma conversa séria: - Filho, você precisa arrumar sua mala, porque vamos te levar até a estação. - Mas pai, eu não quero ir. Eu gosto muito daqui. Prometo que, se o senhor me deixar ficar, eu vou focar mais nos estudos.  - Não. A decisão já foi tomada. Arruma sua mala logo, porque HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 2 50 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 50LivroGaby-Historias de Velhos.indb 50 15/11/2023 16:47:2215/11/2023 16:47:22 eu e sua mãe vamos te levar até a estação de trem. Chegando em São Paulo, você deve buscar um bairro chamado Liberda- de, porque lá é mais seguro para japoneses e descendentes de japoneses. E é nesse lugar que você vai tocar a vida: arrumar um emprego e decidir qual faculdade vai fazer.  Largar o futebol foi para Mitsuji como tirar doce da boca de uma criança. Ele entende que o pai queria que ele virasse um adulto com responsabilidade, mas o preço da mudança foi caro. “Minha mãe foi como uma santa em minha vida, mas meu pai era diferen- te. Ele foi obrigado a ser meio rigoroso, porque meu avô faleceu muito novo e meu pai, ainda jovem, precisou assumir a família.”  Ainda sobre o pai, Mitsuji comenta que ele tinha algumas manias que eram bem típicas da época. “Quando eu saia para encontrar com os amigos na cidade, meu pai deixava uma cadeira encosta- da atrás da porta para saber a hora que eu voltava.” Mitsuji ficava meio “bronqueado” com essa atitude, mas depois entendeu que o pai agia daquela forma, principalmente, por conta do falecimento do avô e da necessidade que teve de amadurecer muito cedo para cuidar da família. “Por isso, eu considero que meu pai foi um herói. Meus tios e tias também sempre o consideraram um herói.” O fato é que Mitsuji foi obrigado a pegar um trem de Oriente até São Paulo. Seu coração não se aguentava de lamentação. Não se conformava de ser tirado do lugar em que amava viver, das pessoas que preenchiam seu dia a dia, do time que o fazia feliz e da torcida que vibrava ao encontrá-lo em campo.  x (divisão gráfica) 51E ASSIM TUDO COMEÇOU... LivroGaby-Historias de Velhos.indb 51LivroGaby-Historias de Velhos.indb 51 15/11/2023 16:47:2215/11/2023 16:47:22 Em 1959, no dia 29, do mês nove, Ana Cristina de Sá nasceu. A chegada de Ana, diferentemente do que ocorreu com seu irmão mais velho, Flávio César de Sá, foi super planejada. Os pais, Al- fredo Expedito de Sá e Neide Gaudenci de Sá tinham decidido que queriam mais um filho para fazer companhia para Flavinho. E assim aconteceu.  Logo nos primeiros anos de vida, a família conseguiu comprar uma casa na Rua Solimões na Barra Funda, bairro da zona oeste de São Paulo (antes viveram de aluguel em uma casa mais sim- ples na Avenida Rudge, também no bairro da Barra Funda). Essa não era a preferência dos pais, mas era o lugar que conseguiram comprar. E assim, eles se libertavam das parcelas do aluguel. Desde o primeiro momento na visita ao terreno, uma dúvida intrigava a cabeça de seus pais: - Por que tem toquinhos de madeira no chão espalhados por toda a casa? - perguntou dona Neide. - Não sei. - respondeu Alfredo. Mais tarde, descobriram que os toquinhos estavam lá por conta das frequentes enchentes que aconteciam no bairro nos mo- mentos de chuva forte. “Na verdade, eles não foram esquecidos, e sim colocados. Eles serviam de apoio para não deixar as coisas molharem.” Para os pais de Ana, essa situação era uma verdadeira tragédia. Mas ela via em tudo motivos para brincar. Durante os alagamentos, sempre dava um jeito de se distrair. “Eu tentava pescar pela janela, mas meu pai me alertava que eu não ia en- contrar nada na água, porque ela vinha do Rio Tietê.” Naquela época, o rio não estava no mesmo cenário de poluição que se encontra hoje, mas já causava preocupação. Mesmo sendo co- mum ver pessoas pescando Tilápias, Mandi Chorão, entre outros peixinhos, e nadando em grandes competições propostas pelo Clube Tietê, a água já não era mais tão confiável e contava com a presença de lixo e outras coisas que não deveriam estar lá.  HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 2 52 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 52LivroGaby-Historias de Velhos.indb 52 15/11/2023 16:47:2215/11/2023 16:47:22 Nem as chuvas em dias de aniversário conseguiam estragar o otimismo de Ana, que ao longo de sua vida transformou muitas vezes o limão em uma deliciosa limonada. “A gente ia para os aniversários pulando os muros das casas para não pisar na água. E, quando chegávamos na casa do amiguinho, brincávamos muito e comíamos bolo. Era tudo muito bom!” Ana tinha muitos amigos. “Eu e meus vizinhos sempre juntáva- mos materiais para fazer brinquedos. E assim, nasciam arcos, flechas e carrinhos de rolimã”. Além disso, as crianças da Barra Funda também brincavam de casinha, malha e patinete. A família de Ana sempre teve uma única base de criação: o amor. Então, o cuidado uns com os outros era frequente e começava dentro de casa. - Oh mãe, a senhora está com cheiro de cansada! - comentava Ana. - Cheiro de cansada?? O que é isso, filha? - respondia dona Neide. - Não sei, mãe. Mas eu vou fazer uma massagem no seu pé.  Neide era a primeira a chegar em casa. Ela trabalhava como professora e, segundo Ana, foi uma das pioneiras da área de Nu- trição no Brasil. Ficava muito feliz quando estava em companhia dos filhos. Logo em seguida, chegava o pai, seu Alfredo, que era publicitário e advogado, aluno da segunda turma de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, com aulas ministradas por políticos famosos, como Ulysses Guimarães.  “Nunca entendi como meus pais foram se encontrar. Minha mãe era uma intelectual bem séria, já meu pai foi até locutor da Record, no período em que o rádio era como a TV e os Streamings nos dias de hoje.” Mesmo com as diferenças, “eram muito apaixonados um pelo outro” e, no que se referia à criação dos filhos, pensavam e agiam da mesma forma. “Quando papai chegava em casa, todo mundo se reu- 53E ASSIM TUDO COMEÇOU... LivroGaby-Historias de Velhos.indb 53LivroGaby-Historias de Velhos.indb 53 15/11/2023 16:47:2215/11/2023 16:47:22 nia - eu, meu irmão, mamãe e ele. Ficávamos conversando antes do jantar.” Os pais perguntavam sobre como foi o dia dos filhos, o que eles aprenderam na escola e queriam saber detalhes de tudo o que os dois viveram. “Nós éramos filhos vistos, reconhecidos e amados. A gente sempre passava tempos juntos e vivíamos nos abraçando.”    Os finais de semana eram momentos únicos, marcados por mui- tos passeios em família. - Vamos até Jundiaí? - perguntava Alfredo, animado. - Sim!! - respondiam os filhos, eufóricos. - Vamos até Campinas? - perguntava Alfredo na semana seguinte. E novamente todos ajeitavam as coisas para viverem uma nova aventura. As pequenas viagens eram feitas de carro. “Meu pai sem- pre teve um carrinho, nem que fosse um carro ‘capenguinha’. Teve uma época que ele estava com um Ford 1949, que nem chão tinha. Nós colocávamos um pedaço de madeira no buraco e íamos pas- sear por São Paulo.” O olhar brilhante e o sorriso largo de Ana reve- lam que ela sente muita saudade de quando os dias eram marcados por passeios sobre rodas com a família, sem a presença do GPS.   O bairro da Barra Funda era marcado pela presença de imigran- tes. “Eu me lembro que tinha uma senhora judia, com um sota- que bem carregado. Ela era cega de um olho e tinha um cabelo loiro meio alto, então todos a chamavam de ‘bruxa’. Mas, na verdade, ela era uma sobrevivente dos campos de concentração, por isso, tinha até uma tatuagem com número em seu braço.” Ana gostava muito de ouvir a histórias das pessoas. “Um dia, eu resolvi conversar com ela. E foi ouvindo tudo o que ela viveu que eu percebi que os bruxos éramos nós.”  Além da valorização do lugar em que vivia e do contato com as pessoas, os pais de Ana também sempre ensinaram aos filhos a HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 2 54 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 54LivroGaby-Historias de Velhos.indb 54 15/11/2023 16:47:2215/11/2023 16:47:22 importância de priorizar os estudos. Ana Cristina e Flávio Cé- sar estudaram do jardim da infância até o colegial no Instituto de Educação Caetano de Campos, escola pública que ficava na Praça da República. Recentemente, o prédio, fundado em 1846, foi considerado um monumento histórico e tombado como bem cultural do Estado e do município de São Paulo pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico Artístico Arqueológico e Tu- rístico do Estado de São Paulo (Condephaat) e pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp).  “Eu era uma menina muito popular na escola. Existe um filme chamado ‘O incrível exército de Brancaleone’ (1996) e eu era o Brancaleone naquela época. Eu era popular, porque eu aco- lhia todas as pessoas que eram rejeitadas, assim como acon- tecia no filme.” Marcada por sua determinação, Ana conseguiu continuar com o que chamou de sua “corrente do bem” até o último ano do colégio.  Depois disso, era necessário escolher qual profissão seguir. Dona Neide achava que a filha era “muito artista”, assim como o pai, e que precisaria fazer cursinho para entrar em uma boa faculdade. “Minha mãe estava enganada. Não foi isso o que aconteceu. Ain- da mais, porque eu sempre estudei em uma boa escola. Então, aos 18 anos, eu entrei na USP [Universidade de São Paulo], em sexto lugar, para fazer Enfermagem. E eu amei, porque tudo o que eu mais queria era poder cuidar das pessoas.” x (divisão gráfica) 55E ASSIM TUDO COMEÇOU... LivroGaby-Historias de Velhos.indb 55LivroGaby-Historias de Velhos.indb 55 15/11/2023 16:47:2215/11/2023 16:47:22 Era início da noite de 31 de dezembro de 1921. Conversas ale- gres, acompanhadas de gargalhadas e do tilintar de copos e ta- lheres, povoavam as casas de diferentes cidades do país e do mundo. Dali a algumas horas um novo ano nasceria e muitos estavam reunidos em clima de festa, fazendo promessas e en- chendo o coração de esperança. Para uma família do município mineiro de Carmo do Rio Claro, a comemoração seria em dose dupla. Isso porque o bebê de Maria Rosa Lourenço e André Ave- lino Lourenço estava pronto para nascer a qualquer momento. Antes da chegada da meia noite, Edgar Lourenço veio ao mundo, tornando aquela passagem de ano ainda mais especial para o casal e seus amigos.  Além de Edgar, Maria Rosa e Avelino tinham mais quatro filhos: Joaquim, Francisco, Maria Rosa e Ana Rosa. Edgar sempre foi uma criança diferente, e todos, incluindo os pais, percebiam isso. O garoto não se destacava nos estudos, mas tinha uma fé que impressionava. “Eu sei ler, porque Deus colocou esse co- nhecimento em minha mente e em meu coração, mas na época da escola eu não me saía nada bem. Não conseguia acompanhar meus colegas de classe.” Por conta dessa dificuldade, não termi- nou os estudos.    A escola nunca foi prioridade. Edgar preferia passar o tempo com os pais, os irmãos e em especial com os avós que o en- chiam de carinho e ensinamentos. “Até hoje me lembro de tudo o que minha avó e meu avô me contavam quando eu era pe- queno. Os dois sempre me trataram muito bem e faziam de tudo para que eu conseguisse ter um futuro próspero.”  Desde pequeno, o garoto sempre honrou pai e mãe e fazia o possível (e quase impossível) para ajudá-los. Então, quando a fa- mília mudou para Passos, município do interior de Minas, Edgar começou ajudar nas despesas da família. De acordo com dados disponibilizados pela Prefeitura Municipal de Passos, o local que possui cerca de 115.337 habitantes, segundo uma estimativa de HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 2 56 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 56LivroGaby-Historias de Velhos.indb 56 15/11/2023 16:47:2215/11/2023 16:47:22 2020, e é destaque em agricultura e pecuária, especialmente, por influência do tipo de relevo, o qual é majoritariamente plano.  Antes de completar 10 anos, Edgar começou a trabalhar na usina de açúcar mascavo que tinha na fazendo do avô José Pio Gonçal- ves, atividade que combina com a vocação da religião. O garoto trabalhava ao lado de pessoas que já haviam sido escravizadas. “Mesmo pequeno, eu lembro de ver meu avô comprando o direi- to de liberdade dos escravos dos seus antigos donos. E depois, ele trazia essas pessoas livres para trabalharem em sua fazenda. Para ser ainda mais preciso, elas trabalhavam ao meu lado.” Ele conta orgulhoso o quanto se saia bem no trabalho dentro da usina. “Não querendo me gabar, mas o que os mestres [traba- lhadores mais velhos] faziam, eu fazia igual, mesmo ainda sendo uma criança”, comenta sorrindo. Dia após outro, com sol ou com chuva, Edgar seguia com a promessa que tinha feito para Deus de dedicar sua vida em prol dos pais e, consequentemente, trabalhava como “gente grande” pra botar dinheiro dentro de casa. O menino plantava, colhia e, principalmente, reconhecia que ele só tinha aquele trabalho por fruto de todo esforço que seu avô fazia para que a fazenda de açúcar mascavo crescesse. “Meu avô foi um homem muito especial. Ele ajudava muitas pes- soas compartilhando o conhecimento que tinha com os outros. Óia, mas ele não era de falar besteira não, viu? Ele só ensinava o que era interessante e que servia para viver bem no tempo que essas pessoas iam passar aqui na Terra.” Edgar mantém sua postura ereta durante a maior parte da entrevista, somente ao falar com carinho do avô que sinto seus ombros mais relaxados e o olhar mais calmo.  Além do trabalho que era responsável por complementar a ren- da da família, Edgar atuava como “um servo de Deus”, compar- 57E ASSIM TUDO COMEÇOU... LivroGaby-Historias de Velhos.indb 57LivroGaby-Historias de Velhos.indb 57 15/11/2023 16:47:2215/11/2023 16:47:22 tilhando “mensagens dos céus” com o povo terreno. Ele garante que Deus lhe fazia visitas frequentes e que o enxergava como enxerga qualquer outra pessoa. Essa mediunidade fez com que ele se destacasse e, por morar em uma região pequena, a infor- mação sobre seu dom corria rápido. Com o tempo, tornou-se comum pessoas virem na porta de sua casa buscar um conselho. - Seu André, você pode deixar o Edgar ir conosco pescar? Ele não é criança, ele pensa melhor que todos nós aqui e saberá como nos ajudar.  O pai não compreendia como a vizinhança sabia sobre a presen- ça de Deus na vida do filho. Edgar era introspectivo e se relacio- nava mais com os familiares. “Eu não me dava tão bem com os garotos do lugar onde eu nasci. Então, vez ou outra, a gente saía no soco. Mas esse não é um comportamento que Jesus esperava de mim e nem de ninguém. Por isso, eu me afastei e priorizei o contato com meus pais, avós e irmãos.” Edgar orientava a todos que o procurassem, vendo naquilo uma missão. Quando os adultos estavam preocupados porque os fi- lhos não queriam estudar, ele dizia: - Não precisa bater nas crianças. Amanhã ou depois, elas vão ver que vai fazer falta e vão querer estudar. O tempo de Deus pode ser um mistério, mas não falha.  Assim foi ficando conhecido em sua cidade e recebia muitos agradecimentos dos meninos e meninas que por ele foram aju- dados. “Eu ouvia com frequência outras crianças falando: Edgar, eu vou te agradecer, porque você falou com meu pai ao meu respeito e ele te respeitou. Não apanhei, só recebi um conselho.” Mas o “dom” de Edgar não agradava a todos. - Edgar, eu tenho medo de conversar com você, porque parece perigoso. – diziam alguns. HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 2 58 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 58LivroGaby-Historias de Velhos.indb 58 15/11/2023 16:47:2215/11/2023 16:47:22 - Eu não sou perigoso não. É só você fazer a vontade de Deus, que estamos todos juntos! Assim, o senhor ajuda eu, você, seus pais…ele pode ajudar todos nós. Basta acreditar! Edgar se irrita ao se recordar de quem não aceitava “a palavra de Deus”. “Nunca entendi quem não acreditava no que eu fala- va. Tinha gente que pensava que eu queria aparecer ou que eu inventava as coisas. Mas desde que eu me conheço por gente sempre foi assim. Quando eu me sentia inseguro ou precisava de uma resposta, Deus aparecia pra mim e orientava sobre as melhores decisões a serem tomadas.” Ao atingir a maioridade, Edgar se mudou mais uma vez. Veio para cidade de São Paulo. Longe de todos que o amavam, o jo- vem precisou descobrir quem ele era, o que gostava de fazer e como seria o seu futuro distante de Minas Gerais. x (divisão gráfica) 59E ASSIM TUDO COMEÇOU... LivroGaby-Historias de Velhos.indb 59LivroGaby-Historias de Velhos.indb 59 15/11/2023 16:47:2215/11/2023 16:47:22 São Paulo, 11 de novembro de 1952. Fruto de um amor entre Pedro Rodrigues Dias e Gracia Garcia Ailá, nasce Purificação Ro- drigues Dias Simeão de Oliveira na Maternidade da Lapa, atual Hospital e Maternidade Metropolitano, localizado na zona oeste de São Paulo. Gracia queria dar à luz em casa, mas, como já vi- nha sentindo dores desde cedo, resolveu ir ao hospital por volta de 17h e recebeu sua menina nos braços às 19h45. A criança recebeu seu nome em homenagem à madrinha espa- nhola, que se chamava Purificación. No entanto, desde pequena ficou conhecida como Thita. “Como todo neném, eu era bonita. Então, minha avó Izabel, que era espanhola, me chamava de ‘Lindonita’. Mas meu primo Zezo, que tinha um ano de diferença em relação a mim, não conseguia pronunciar lindonita, para ele a palavra era muito difícil. Por isso, ele chegava querendo me ver e falava para a vó: deixa eu ver a Tita?” O simples apelido ganhou uma letra “H” e substituiu, na prática, o nome Purificação. “Eu só ouvia Thita pra cá e Thita pra lá.” Pouco tempo antes de chegar ao mundo, o mundo dos pais de Thita começava a desmoronar. “Quando minha mãe estava com sua gestação avançada, ela recebeu a visita de uma mulher que transformou tudo e fez com que o relacionamento dela e do meu pai se tornasse insustentável.” Em pouco tempo na casa de Gracia, a misteriosa mulher, que pediu para entrar para ter uma séria conversa, reconheceu Pedro em um porta-retrato e, indig- nada, informou que era noiva dele. Já sensibilizada pelo estado de gravidez, Gracia passou a viver momentos bastante difíceis, marcados pela decepção e o sofrimento. A alegria pelo nascimento de Thita amenizou um pouco a dor, mas logo outras dificuldades apareceram. “Minha mãe tinha o ma- milo invertido e eu chorava muito por não conseguir me alimen- tar. Eu dormia uma noite com minha avó materna, Izabel, e outra com meus pais, mas nada resolvia minha fome. Isso durou até o HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 2 60 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 60LivroGaby-Historias de Velhos.indb 60 15/11/2023 16:47:2215/11/2023 16:47:22 momento que começaram a me dar o leite de uma cabra pretinha. Aí as coisas pareciam que iriam ficar mais fáceis em nosso lar.” Porém o sentimento que misturava decepção e amargura acabou se sobressaindo frente aos bons momentos. Izabel acreditava que isso estava acontecendo, porque a filha e o genro moravam na mesma casa que ela. “Então, meu pai construiu a casa mais bonita do bairro. Ela era grande e confortável. Nós tínhamos até banheira e chuveiro.” Mas o bem material não garantiu a felici- dade. “A presença de meu pai perto da minha mãe implicava em briga, palavrões e empurrões. Eu ficava dividida entre eles.” A situação financeira de Pedro melhorava a cada dia. “Meu pai fazia calçamento nas ruas do centro de São Paulo e, como ti- nha amigos políticos, serviço não faltava. Além disso, buscava pedras em Minas Gerais, lugar onde conheceu Tereza.” As brigas frequentes e a chegada de outra amante, Tereza, fizera com que Pedro abandonasse a família. “A saída de meu pai de casa fez com que eu assumisse uma grande responsabilidade. Hoje, acredito que minha mãe entrou em depressão, porque deixou de cuidar de mim. Ela tomava an- siolíticos e dormia a noite toda, enquanto eu ficava sozinha e com medo. Até a moldura do guarda-roupa me assustava. Eu imaginava a cara de um cavalo.” Depois de uma noite mal dormida não era fácil levantar no dia seguinte para estudar, mas Thita contava com ajuda de seu pri- mo Zezo, que a chamava para irem juntos ao colégio. “Eu mo- rava em frente ao grupo escolar e rapidamente conseguia ficar pronta. Eu não tomava café da manhã e nem me cuidava, apenas trancava a porta e jogava a chave pelo vitrô, para que minha mãe pegasse ao acordar.” Esse período ficou ainda mais difícil quando Gracia começou a ter desmaios frequentes. “Como eu estava sozinha e era mui- 61E ASSIM TUDO COMEÇOU... LivroGaby-Historias de Velhos.indb 61LivroGaby-Historias de Velhos.indb 61 15/11/2023 16:47:2215/11/2023 16:47:22 to pequena, tudo ficava mais complicado. Então, eu precisava recorrer a vinagre no nariz, álcool nos pulsos e até o cabo de uma colher na boca para impedir que os dentes dela travassem.” Assim, a infância de Thita ia escapando por entre seus dedos. A pouca esperança que habitava o coração vinha de Deus e da inf luência de sua avó, que queria que ela seguisse o catolicismo. Faltando um mês para a Primeira Comunhão, Izabel levou Thita para comprar o vestido do grande dia. Naquela época, as meninas usavam vestidos parecidos com os das noivas e casquetes que seguravam o véu. Porém, justo na vez da Thita, essa regra mudou. “Pouco tempo depois de comprar meu l indo vestido, a catequista chamou as mães e disse que naquele ano eles t inham abolido o vestido de noivinha e todas as meninas deveriam usar roupas mais pa- recidas com as das freiras, ou seja, um ‘vestidão’ longo, com uma cruz vermelha no centro.” Depois de muita conversa, a família conseguiu convencer a ca- tequista de que Thita iria usar o tão sonhado vestido, mas a decisão gerou obstáculos que só foram compreendidos durante a missa. Um dia antes da primeira comunhão, todas as crianças confessavam com o padre e saíam com algumas recomendações para realizarem nas próximas horas. - Mãe, o padre falou que todas as crianças só podem comer até 20h para receber a comunhão em jejum. - Thita, nós não temos nada para comer, mas você pode abrir o forninho para ver se encontra alguma coisa. O fogão da casa de Thita tinha duas portas: a maior, que era a do forninho, e a menor, que se chamava estufa. “Eu abri a primeira portinha e achei meio pãozinho. Ele estava tão duro, que acho que nem rato queria. Mas como só tinha aquilo para comer, então minha mãe falou para eu dar um jeito.” HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 2 62 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 62LivroGaby-Historias de Velhos.indb 62 15/11/2023 16:47:2215/11/2023 16:47:22 Com fome, Thita se deitou e esperou ansiosa a chegada do dia seguinte. Mas logo nos primeiros instantes, ficou claro que tudo seria diferente do que esperava. Apesar do consentimen- to da catequista sobre a roupa, o padre não aprovou a escolha e colocou Thita e mais uma colega nos últimos lugares de uma fila com mais de 50 crianças. “A minha comunhão foi muito bonita, mas ao mesmo tempo triste”. Thita pensava que a fome era a necessidade mais difícil que poderia passar na vida, mas descobriu que seria obrigada a sair de casa. “Sempre que meu pai brigava com a Tereza, ele voltava com a minha mãe. E esse retorno me enchia de felicidade, por- que ele trazia móveis e eletrodomésticos, o que me dava ainda mais esperança. Porém não demorava muito tempo para que as brigas e os tapas voltassem.” Em uma das últimas voltas, Pedro estava com menos procura por seus trabalhos e já havia começado a vender caminhões, por isso ele convenceu Gracia de que precisava arrumar um dinheiro extra e que a solução seria hipotecar a casa. “Minha mãe aceitou a proposta. E logo em seguida, ele nos deixou mais uma vez. Essa solidão veio acompanhada pela falta de pagamento do empréstimo que meu pai pegou. Dessa forma, primeiro o advogado veio retirar nossa televisão e, meses de- pois, recebemos a ordem de despejo e voltamos a morar com a minha vó materna.” Sem ter mais a possibilidade de retorno com Pedro, Gracia co- meçou a se interessar por outro homem. Gesner Gomes Perei- ra era um policial alto, educado e muito bonito. Só havia um problema: ele era casado. Esse envolvimento de Gracia com Gesner gerou problemas entre a verdadeira esposa, Inês Tei- xeira Pereira, com Thita. “Eu passava de bicicleta na frente da casa dela e ouvia humilhações de tudo o que era tipo. Como eu era uma criança muito magra, ela tentava me ofender, me chamando, por exemplo, de Olívia Palito. E isso me doía tanto.” 63E ASSIM TUDO COMEÇOU... LivroGaby-Historias de Velhos.indb 63LivroGaby-Historias de Velhos.indb 63 15/11/2023 16:47:2215/11/2023 16:47:22 Quando a situação saiu do controle e Thita já não aguentava mais ouvir insultos, ela resolveu contar para o pai. Sem enten- der o motivo pelo qual aquela senhora estava falando coisas horríveis para a filha, Pedro resolveu ir presencialmente na casa de Inês e tirar a situação a limpo. Chegando na casa, Thita e Pedro foram recepcionados por Inês e Gesner. Todos pareciam estar muito desconfortáveis com a situação. Mas o estopim para a conversa perder o controle foi quando Pedro começou a perguntar o motivo dos insultos, sem saber que sua antiga esposa estava saindo com o policial. “Então, em uma fração de segundos tudo mudou. Inês ficou completamente descon- trolada. Ela pegou a arma que estava na cintura de Gesner e começou a atirar em nós três. Uma das balas perdidas atingiu Gesner, que caiu no chão. Uma grande poça de sangue foi for- mada”. Inês pegou os filhos e fugiu. Enquanto isso, na cena do crime, Pedro e Thita tentavam salvar a vida de Gesner. “Por centímetros, a bala não pegou em mim. Hoje, eu poderia nem estar viva para contar essa história.” Depois do susto, Gesner que continuava apaixonado por Gra- cia, resolveu largar tudo e morar com ela e Thita. A vida com o padrasto era totalmente diferente. Para começo de conversa, a menina já não era mais filha única. “Meu padrasto tinha uma irmã, chamada Jandira, que sempre vinha da Bahia comprar rou- pas em São Paulo para revender. Em uma das vezes em que ela se hospedou em casa, contou que uma das irmãs deles havia falecido e deixado sete filhos e que essas crianças já estavam sendo ‘distribuídas.’ Com a dor de ter uma irmã falecida e os sobrinhos indo para outras casas, Gesner resolveu que queria ficar com uma das crianças. A preferência era por Franklin, um bebê, mas até a irmã do meu padrasto voltar para roça, ele pe- gou gripe e faleceu.” A contragosto, Gracia e Gesner resolveram ficar com Josivaldo, que já era maiorzinho. Na semana de Natal, a irmã de Gesner, carinhosamente chamada de tia Janda, apareceu com o menino HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 2 64 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 64LivroGaby-Historias de Velhos.indb 64 15/11/2023 16:47:2215/11/2023 16:47:22 de 4 anos. “Fiquei morrendo de dó daquela situação. Ele nunca tinha visto nenhum de nós, mas teve que ficar por aqui. Ele era um menino barrigudinho, com o cabelo bem cortado e roupas muito simples em um lugar desconhecido.” Thita sempre gostou muito de crianças. Então, a chegada de Josival- do foi como um presente do Papai Noel para a menina de 11 anos. Em pouco tempo, os dois já haviam se apegado e Thita cuidava do menino como se fosse seu filho. Além dessa responsabilidade, co- meçou a trabalhar para ajudar o padrasto. “Bem cedinho, antes de ir para escola, eu precisava abrir a banca de jornal do meu padrasto e esperar o ônibus com os jornais passar. O Gesner ia até a central e mandava os jornais pelo ônibus. Eu era responsável por dar o sinal, tirar aqueles sacos super pesados de dentro do ônibus e montar os cadernos.” Diferente do que conhecemos hoje, o jornal daquela época não vinha pronto, ou seja, precisava ser montado um a um. Agora, eu tenho uma pergunta que deve estar rodeando sua ca- beça, leitor: será que a menina de 11 anos que montava jornais imaginava que hoje, com seus quase 71 anos, teria uma neta jornalista? Pois bem, vamos entender isso mais a diante. Apesar das dificuldades, Thita era muito feliz em ter a possibi- lidade de estudar. No quarto ano do primário, ela começou o curso de admissão à noite no colégio Alexandre Von Humboldt. Esses dois meses de cursos foram como se fosse cursinho de vestibular, só que nessa época era para entrar no ginásio. O ginásio era formado por quatro anos de estudo. E durante todo esse período, Thita ainda ajudava o padrasto com a mon- tagem dos jornais na banca. “Quando eu me formei no ginásio, todos meus amigos decidiram fechar uma viagem para Grama- do, no Rio Grande do Sul. Mas eu fui a única que não pude ir, porque meu padrasto não permitiu. Ele achava ruim eu ir sozi- nha para outro estado. Então, até hoje eu tenho esse sonho que não pude realizar.” 65E ASSIM TUDO COMEÇOU... LivroGaby-Historias de Velhos.indb 65LivroGaby-Historias de Velhos.indb 65 15/11/2023 16:47:2215/11/2023 16:47:22 No último ano de ginásio, Thita já não era mais solteira. “En- quanto, eu ficava na banca, eu via sempre um rapaz de camisa rosa, alto, esbelto e elegante passando. Então, resolvi perguntar para o garoto que ajudava com as entregas dos jornais e tinha o apelido de Rito, quem era aquele rapaz. Ele me explicou e eu conclui que ele era um sujeito bem simpático.” Depois de desco- brir essa informação, Rito começou a levar e trazer informação de Thita para João e vice-versa. - Você quer namorar comigo? – perguntou diretamente João, na primeira vez em que conversou com Thita. - Eu não posso aceitar, se você não conversar com meu padrasto Gesner. João aceitou a condição de Thita, porém não cumpriu com sua palavra. Gesner o esperou durante horas e horas, mas sem re- sultado. João não foi à casa da Thita. Porém no dia seguinte, Antônio, primo de Thita e dono de um bar em Pirituba, contou que ele passou a noite inteira bebendo e supôs que não deve ter ido por esse motivo. “Ele não teve coragem de ir falar com meu padrasto e acabou fazendo eu e o Gesner de bobos.” A sorte de João foi que a mãe e o padrasto de Thita conheciam sua família e a consideravam muito boa. Por isso, resolveram dar mais uma chance para o pretendente. João se apresentou como uma ótima pessoa para Gesner e conseguiu a aprovação para namorar com Thita. E assim a história que escreveram juntos começou. Apesar de apoiar com certa facilidade o namoro entre os dois, Gesner foi bem duro com relação ao futuro de Thita e fez com que ela escolhesse entre duas opções: continuar o namoro e for- mar uma família com João ou continuar estudando para realizar o sonho de se tornar professora. O que será que ela decidiu? HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 2 66 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 66LivroGaby-Historias de Velhos.indb 66 15/11/2023 16:47:2215/11/2023 16:47:22 CAPÍTULO 03 BEM-VINDOS À 67 vida adulta LivroGaby-Historias de Velhos.indb 67LivroGaby-Historias de Velhos.indb 67 15/11/2023 16:47:2415/11/2023 16:47:24 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 68LivroGaby-Historias de Velhos.indb 68 15/11/2023 16:47:2415/11/2023 16:47:24 S ussurrando ao telefone, Emília fez um pedido aos pais em meio a lágrimas: - Me levem embora daqui, por favor! - Mas por que, filha? Você está tendo uma oportunidade única – disse o pai. - Conta toda a verdade pra gente, Emília. Não estamos enten- dendo o que está afligindo seu coração – falou a mãe. Emília gostava muito do trabalho e da liberdade que tinha em sua nova vida na cidade grande, mas uma coisa era inadmissível e, naquele dia, ela resolveu desabafar. “Por aqui está muito bom, mas não aceito mais passar fome.” Foi com essa frase que ela convenceu os pais a aceitarem seu re- torno para o interior. Mal sabia que, ao voltar para sua cidade na- tal, a chama do amor tomaria conta de seu coração, fazendo-a se esquecer de todos momentos infelizes que vivera na casa da tia. Desde pequena, alimentava um sentimento especial por Carlos Batista, filho dos donos do armazém que ficava próximo à fa- zenda de seu avô. Os dois nunca conseguiram ficar juntos, mas a atração e o carinho predominavam nos gestos e nas trocas de olhares. Quando voltou para Elias Fausto, Carlos já estava noivo de outra pessoa. A decepção de Emília era perceptível, mas logo tudo mudaria. Depois de um breve tempo entre idas e vindas e encontros não planejados, marcados por um clima de romance cada vez mais forte, Carlos perguntou, sem pestanejar: - ‘Ocê’ quer casar comigo? - Aí meu Deus do céu! Mas e a sua antiga noiva? Ela não vai querer bater em mim? 69BEM-VINDOS À VIDA ADULTA LivroGaby-Historias de Velhos.indb 69LivroGaby-Historias de Velhos.indb 69 15/11/2023 16:47:2515/11/2023 16:47:25 - Pode ficar tranquila que não, Emília. - assegurou Carlos. Dando muita risada ao se lembrar do episódio, Emília explica que antes Carlos estava noivo de uma mulher morena, linda e in- teligente, mas que o seu retorno abalou o relacionamento. “Meu marido costumava dizer que entre a loira e a morena, ele me es- colheria mil vezes, sem dúvida nenhuma. Então, apesar do medo que eu tinha de acabar em alguma luta física com ela, eu ficava feliz em ser amada por quem eu já conhecia desde pequena.” Carlos era um homem alto, com mais de um metro e noventa, olhos castanhos e cabelos crespos, os quais ele costuma pentear para trás, “como se um gato tivesse lambido”. “Meu marido era lindo, lindo mesmo. E nosso futuro juntos já havia sido planeja- do antes mesmo de eu descobrir o significado da palavra amor.” Emília se refere a um episódio, quando ela ainda era bebê de colo. Em uma tarde comum, sua mãe, dona Rosalina, andava em torno da fazenda com ela nos braços. Ao passar pelo armazém dos pais de Carlos, deparou-se com um pedido inusitado: - Posso ver sua filha? – perguntou Ricarda, dona do armazém. - Pode sim! – respondeu Rosalina. - Meu Deus do céu! Como sua filha é linda – comentou Mário, marido de Ricarda. Rosalina ficou tímida com a conversa e só sorriu. Não é que o relacionamento entre eles fosse ruim, mas a dona do armazém era uma espanhola bem séria. Quase nada a agradava. Só mesmo a bebê Emília para tirar da mesmice daquela face um grande sorriso. Carlos era cinco anos mais velho que Emília. “Ainda bem que tínhamos essa diferença de idade, que foi decisiva para a apro- vação de papai.” HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 3 70 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 70LivroGaby-Historias de Velhos.indb 70 15/11/2023 16:47:2715/11/2023 16:47:27 O casamento de Emília foi em sua casa, por preferência da famí- lia. Ela reuniu todos os santos que dona Rosalina gostava e fez um altar para receber o escrivão que oficializaria a cerimônia. Celebrou o amor com um vestido diferente das noivas tradicio- nais. “O meu vestido era azul claro, bem clarinho mesmo. Ele era longo até o pé e tinha uma capa nas costas. Com certeza foi o vestido mais lindo que já vesti.” Sem conseguir lembrar de mais detalhes, lamenta: “pena que na- quela época não existia máquina fotográfica para eu te mostrar como ele era.” Seu marido, Carlos, estava com um terno azul marinho, uma gravata e uma camisa branca. “Um verdadeiro príncipe”, suspira. Apesar do casamento ter tido um número menor de convidados do que o esperado, em pouco tempo, todos já estavam sabendo. “Elias Fausto era uma verdadeira piada, porque todo mundo se conhecia. Esse era parente daquele e aquele era parente de um outro, afinal as pessoas iam se casando, tendo filhos e virando uma ‘parentaiada’ que não tinha tamanho.” Após o casamento, Emília e Carlos foram viver na casa dos so- gros, que ficava nos fundos do armazém. “A cozinha da casa onde eu vivi com meus sogros era dividida dos outros cômodos e do armazém por uma escada. Assim, eles evitavam que os clientes ‘invadissem’ esse horário familiar – isso acontecia bas- tante por conta do cheiro dos deliciosos pratos feitos por minha sogra no fogão à lenha.” No primeiro ano, em que estavam casados, seu Mário, o sogro de Emília, veio a falecer. Isso fez com que ela se apegasse e pas- sasse ainda mais tempo com a sogra. A convivência entre Emília e dona Ricarda era majoritariamen- te boa, porém na cozinha as coisas mudavam um pouco e o ambiente era palco muitas vezes para alguns desentendimentos. 71BEM-VINDOS À VIDA ADULTA LivroGaby-Historias de Velhos.indb 71LivroGaby-Historias de Velhos.indb 71 15/11/2023 16:47:2715/11/2023 16:47:27 “Minha sogra tinha a mania de deixar as panelas e caldeirões de ferros impecáveis depois de lavar. Então, nós vivíamos uma disputa. Quando terminávamos de lavar, a gente colocava as panelas penduradas pra secar e uma ficava olhando a panela da outra.” A sogra, dona Ricarda, além de arear muito bem, também passava uma flanela para polir a panela. Já Emília não gostava de perder muito tempo com a louça e explicava para a sogra que não havia motivos para limpar tanto já que iam usar novamente. Aos 18 anos, Emília e Carlos tiveram sua primeira filha. A neném recebeu o nome de Sonia Batista e nasceu muito parecida com a mãe: pele branca, olhos azuis e cabelos loiros. Até hoje esta é a filha mais apegada à Emília e faz questão de visitá-la todos os dias no lar para idosos. Juntas compartilham momentos e me- mórias enquanto costuram. Os últimos anos em que Emília passou na casa da sogra foram marcados por muito trabalho. Dona Ricarda ficou bem doen- te, não conseguia mais andar e precisava de ajuda em todas as atividades. E como Emília não trabalhava fora de casa, acabou desempenhando o papel de cuidadora da sogra. Seguindo a tra- dição dos italianos de sua família, chamava a sogra de mãe. - Mãe, por que a senhora não chama alguma de suas filhas, a Lola ou a Maria, pra te ajudar com o banho? Estou cansada e ainda tenho que cuidar da minha menina – perguntou Emília. - Não vou falar com elas, porque elas me socam. Elas não têm paciência comigo. Se por exemplo minha pele fica um pouco molhadinha depois do banho, elas esfregam e me machucam. Ouvir sobre a violência contra uma pessoa idosa causava muito repúdio em Emília. Ela mal podia imaginar que também passaria por isso um dia... HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 3 72 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 72LivroGaby-Historias de Velhos.indb 72 15/11/2023 16:47:2715/11/2023 16:47:27 Sem concordar com aquele tratamento, Emília superava qual- quer dificuldade para dar muito amor e atenção para a sogra. Nesse meio tempo, ficou grávida de sua segunda filha, Sueli. A neném trouxe ainda mais alegria ao casal e veio fazer compa- nhia para a irmã Sonia, que antes não tinha com quem brincar. Mesmo gostando muito da vida que levava, após cinco anos do dia do casamento, Emília resolveu vir para São Paulo com o irmão e as duas f i lhas para morar com a mãe. Essa era uma forma de ajudá-la, já que Rosalina não era mais tão jovem. Este foi o primeiro e único momento em que Emíl ia e o ma- rido f icaram distantes. Ela precisava priorizar os cuidados com a mãe e Carlos não podia deixar o armazém, princi- palmente porque os pagamentos não aconteciam de forma constante. “Como as pessoas que compravam no armazém não recebiam salário tudo f icava mais dif íci l . Então, para pa- gar o café era necessário vender a batata e assim por diante.” Com o falecimento da sogra e uma oportunidade de em- prego na capital , Carlos vendeu o armazém e também veio morar em São Paulo com a famíl ia . O marido de Emíl ia co- meçou a trabalhar engarrafando bebidas na Companhia An- tárctica Paulista, que f icava na região da Mooca, na zona leste da cidade. Mas, com o passar dos anos e oportunidades que iam surgindo, conseguiu mostrar seu conhecimento e foi subindo de cargo. Inclusive antes de se aposentar já fazia parte da diretoria. “Ele sempre foi muito intel igente, a burra era só eu.” Emíl ia não teve tantas oportunidades de trabalho como o marido, por isso, acaba se considerando “burra”. Mas como pode uma pessoa que faz vestidos de noivas, costura sapati- nhos de nenéns, desenha saias e blusas se considerar burra? 73BEM-VINDOS À VIDA ADULTA LivroGaby-Historias de Velhos.indb 73LivroGaby-Historias de Velhos.indb 73 15/11/2023 16:47:2715/11/2023 16:47:27 Além das filhas, Sonia, que passou sua vida inteira atuando como professora do Estado, e Sueli, que vive pelo casamento e os fi- lhos, Emília e Carlos também criaram uma sobrinha chamada Rosa Helena. Sinto que falar sobre Rosa Helena é assunto muito delicado, que Emília prefere contornar. “A Rosa caiu no mundo. Nunca mais veio me visitar.” Em 2018, as filhas resolveram que a mãe não podia continuar morando sozinha em casa. Isso porque ela estava apresentando problemas de saúde e as filhas, que também eram idosas, já não conseguiam mais dar a assistência necessária. Foi aí que Emília foi viver em uma primeira casa de repouso para idosos. E foi lá que ela sofreu os atos de violência contados no início deste li- vro. “Eu nem gosto de lembrar dos banhos de mangueira que eu tinha que tomar – em que eu não tinha escolha nem para ter ou não vergonha. Todos os idosos eram colocados em uma parede e em situação de encurralamento, jogavam água na gente. Sem dó. E isso acontecia cedinho, quando éramos acordados.” Na Vila Nostra Sênior as coisas se acalmaram. Emília diz ser feliz no local. “Não tenho nada para reclamar daqui”, garante. Sua rotina na Vila Nostra Sênior se resume a acordar, tomar o café da manhã com os demais idosos da casa - com café com leite e pãozinho, tomar banho (com dignidade), fazer fofoca com as "amigas e amigos", almoçar - bastante e de tudo um pouco, jiboiar (apelido que Emília dá às sonecas depois do almoço), costurar e fazer tricô, tomar o lanche da tarde, receber visita da sua filha Sonia, jantar, ficar "fazendo um pouco de hora" e ir dormir. Os dias mais especiais são os de passeio, como destacado no início deste livro. “Eu gosto daqui, porque tenho tudo o que eu preciso. Cama boa, comida gostosa e farta, roupa e calçados, atividades, horário marcado com manicure... Aqui eu tenho tudo o que você pode imaginar. Mas uma coisa é cer- ta e a Fernanda – dona da casa – sabe disso: meus dias prediletos são quando saímos. Gosto de ir ao mercado, passear no shopping, ver filme no cinema e beber uma cervejinha com minhas amigas.” HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 3 74 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 74LivroGaby-Historias de Velhos.indb 74 15/11/2023 16:47:2715/11/2023 16:47:27 Emília não tem uma família muito grande. Além das filhas, ela re- cebe a visita do neto Luiz Fernando e do bisneto Gustavo. “Você precisava conhecer o Gustavinho, ele é a criança mais linda que eu já vi.” Assim como a bisavó, Gustavo também gosta muito dos animais; seu passatempo predileto é dar comida para os peixi- nhos que ficam em um laguinho do prédio onde vive. “Ele gosta muito de alimentar os peixinhos, mas não sabe a hora de parar. Ele vai dando, dando, dando...até que a mãe se estressa e dá uma bronca nele.” Tal bisavó, tal bisneto. O que Emília fazia com os patinhos, hoje Gustavinho repete com os peixes. --- Separação gráfica 75BEM-VINDOS À VIDA ADULTA LivroGaby-Historias de Velhos.indb 75LivroGaby-Historias de Velhos.indb 75 15/11/2023 16:47:2715/11/2023 16:47:27 Foi no trabalho, no horário de almoço, que Maria de Lourdes se apaixonou pela primeira vez. Naquele tempo, os funcionários eram divididos entre duas filas, a dos homens e a das mulheres. Maria ficou encantada por um rapaz relativamente alto, com pele branca, cabelos pretos e óculos. Sem nenhuma conversa ou interação, esse amor foi crescendo, mas apenas dentro do cora- ção de Maria. Até que um dia o rapaz charmoso não apareceu na fila. Maria pensou que ele poderia estar doente, mas como se passaram outros dias, semanas e, finalmente, um mês, essa hipótese já não valia mais. Pouco tempo depois do sumiço do rapaz, Maria foi desligada da empresa. Na hora do desespero, recorreu a todos que co- nhecia. Uma prima conseguiu uma vaga para ela trabalhar em uma fábrica de tecidos chamada Ceará Industrial, na Rua Dom Pedro Primeiro, próximo da famosa Avenida Duque de Caxias, no centro de Fortaleza. O trabalho na tecelagem era dividido por estações. Somando to- das as tarefas individuais saía o produto final. Maria de Lourdes entrou para ser responsável pela curadoria dos fios, para averiguar a qualidade deles. Mal sabia o que o destino lhe preparava. O primeiro contato que fez com outro setor da tecelagem foi reve- lador: o rapaz por quem era apaixonada no seu antigo trabalho agora era encarregado de levar os fios que Maria selecionava. Foi nessa tecelagem que as histórias de Maria de Lourdes e José de Arimatéria se entrelaçaram. No dia 21 de maio de 1954, eles se casaram e começaram a formar uma família. Dois anos de- pois, no dia 15 de abril de 1956, nasceu Leôncio Felix Vieira, o primeiro filho. E com menos de um ano, em 28 de março de 1957, Maria deu à luz à Hélida Maria Vieira, em Fortaleza. Em 1958, Maria e José decidiram se mudar. Sair do Ceará era a solução para criar melhor os filhos. Em Fortaleza, não havia muitas oportunidades. Maria veio trabalhar no interior de São HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 3 76 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 76LivroGaby-Historias de Velhos.indb 76 15/11/2023 16:47:2715/11/2023 16:47:27 Paulo com o marido, José e a filha Hélida, deixando Leôncio com os avós no Ceará. “Nossa nova vida começou em Botujuru, um bairro do interior de Mogi das Cruzes, do lado de Guarare- ma. Era um sítio abandonado, com mato bem alto. Meu marido trabalhava no cafezal. Ele saía cedinho de casa, vestindo sempre uma bota até o joelho, porque a região tinha muitas cobras. En- quanto ele ajeitava o mato, ia recebendo muitos botes.” A bota era a proteção dele, assim como Maria era a proteção da filha. Ela colocava a filha enrolada dentro de uma coberta de cama e ia para o centro de São Paulo trabalhar. Essas idas e vindas se tornaram cada vez mais constantes, atra- vessar o Rio Tietê já fazia parte da rotina da família. A filha sentia muita dor no ouvido e precisava fazer um acompanhamento específico na Santa Casa de São Paulo. Ela foi diagnosticada com otite. A inflamação trouxe mudanças na rotina da família. “A mi- nha casa era bem longe. Então, pra vir pra São Paulo, eu levanta- va de madrugada. A gente atravessava o Tietê de barco. Depois, o meu ‘véio’ me deixava na estação pra pegar um trem em Mogi das Cruzes e eu descia no Brás.” Outra dificuldade que encontravam pelo caminho era o frio in- tenso. “Eu não tinha um agasalho bom, o meu casaquinho era com manga três quartos. Então, quando eu chegava aqui no Brás, não adiantava querer falar comigo. Os outros só ouviam um ‘téc - téc - téc’, porque meus dentes batiam muito e eu não conseguia conversar com ninguém.” A filha não passava o mes- mo frio que a mãe, porque recebia muitas doações de roupa e conseguia sempre estar bem agasalhada. “Geralmente, eu só vinha com o dinheiro do trem e uns 10 cruzeiros para comprar um ‘lanchinho’ para ela”. Juntas fica- vam esperando na Santa Casa por muito tempo e, algumas vezes, recebiam uma resposta decepcionante, vinda da enfer- meira do hospital: 77BEM-VINDOS À VIDA ADULTA LivroGaby-Historias de Velhos.indb 77LivroGaby-Historias de Velhos.indb 77 15/11/2023 16:47:2715/11/2023 16:47:27 - Dona Maria, hoje a médica não veio e ninguém vai conseguir atender sua filha. “Não faltava frustração, mas eu aceitava.” Quando saía do hos- pital, Maria e Hélida repetiam o caminho da ida, passando pelo largo do Arouche, um lugar com muitas casas de doce. Esse era o gatilho para uma conversa entre elas: - Oh mãe, compra um ‘docinho’ pra mim, por favor? Pode ser qualquer um. - Minha filha, outra vez a mãe compra. “Eu prometia sempre que ir ia comprar na próxima vez, mas eu não tinha dinheiro para cumprir a promessa”, conta com tristeza. Assim, depois de muito caminhar, elas pegavam o trem no Brás que as levava à beira do rio. “Nós chegávamos na margem do rio de noite. E como, muitas vezes, o meu marido não estava esperando, eu f icava gritando, gritando e gritando até que algum pescador me encontrasse naquele escuro.” Contando com quem a ouvia primeiro, Maria pedia para que fossem atrás do marido para que ele as buscasse. Maria, Zé e Hélida “viajavam” pelo rio Tietê regularmente, até o dia em que ele sofreu um grave acidente e precisaram mudar de casa. Ao lado do cafezal , onde moravam em Botu- juru, havia um terreno com dois proprietários, mas sem uma separação por cerca. Um deles, seu Luiz, que foi o primeiro a chegar no sít io, não tinha f i lhos, apenas cachorros, que, na- quela época, eram conhecidos como “cachorros de balaio”. Já o outro homem, seu Antônio, vivia de sua horta, da ven- da de suas verduras. “Aí já dá pra imaginar como começou a confusão: os cachorrinhos passaram a invadir e bagunçar toda a horta. Isso foi motivo de muita briga. Afinal , um lado amava os cachorros e o outro a plantação.” O seu Antônio até tentou negociar: HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 3 78 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 78LivroGaby-Historias de Velhos.indb 78 15/11/2023 16:47:2715/11/2023 16:47:27 - Seu Luiz, faz uma cerca. Eu vivo da horta e seus cachorros estragam tudo. Sem sucesso, seguiram morando com a divisão sem cerca. Até que em um sábado, tradicional, dia em que Zé ia para feira comprar o que a família usava durante a semana, ele presen- ciou uma briga entre os vizinhos: - Oh, seu Antônio, você é um vagabundo, filho da puta. Então, Zé resolveu intervir: - Seu Luiz, não faça isso com seu Antônio. Ele já é um homem de idade. E seu Luiz, dono dos cachorros, respondeu: - Ah é, seu baiano? “Foi aí que o Luiz pegou meu marido pela gola da camisa, que, inclusive, era nova. E segurando com uma mão a gar- ganta dele e com a outra um punhal, seu Luiz o golpeou com cinco facadas. A salvação foi que o Zé conseguiu se libertar dando dois socos nele. E quando se afastou, aproveitou para também dar dois tiros.” Seguindo o caminho da feira com san- gue jorrando em seu rosto, Zé conseguiu um saco de farinha para estancar o corte, encontrou com um moço, dono de uma carroça no caminho, e disse: - Você vai me levar na Santa Casa de Mogi das Cruzes. - Não vou não! - Ah, mas você vai sim! Já dei dois tiros em um homem e posso dar um agora mesmo em você. Você vai me levar! 79BEM-VINDOS À VIDA ADULTA LivroGaby-Historias de Velhos.indb 79LivroGaby-Historias de Velhos.indb 79 15/11/2023 16:47:2715/11/2023 16:47:27 Assim, ele conseguiu uma carona até a Santa Casa, onde ficou internado por dez dias. “Quando ele melhorou, a gente não podia voltar mais com a família toda para o sítio. Então, em 12 de março de 1958, a gente veio morar na casa de um compadre em Pirituba, lugar onde sofri muito e vivi a maior parte da minha vida.” Mas como deixar tudo para trás? “Eu tinha muitas galinhas e mui- tos cachorros, ou seja, não dava pra largar tudo por lá. Eu precisei ser muito forte. Levantava todos os dias de madrugada para pegar o ônibus 4h15 em Pirituba, para depois pegar um trem e seguir até Mogi das Cruzes. Eu não lembro quantos quilômetros dava de lá até meu ‘sitiozinho’, só sei que eu precisava andar sozinha no meio de um monte de homens, que estavam trabalhando, cortando madeira.” Maria resolve se explicar e diz que, na verdade, ela não estava sozinha: “andava eu, Deus e Nossa Senhora das Graças. Eu era uma ‘mulherzinha’ muito nova e não era feia, eu não sei como nunca fui abusada no meio daqueles homens.” Depois desse de- poimento tão difícil, com as mãos trêmulas, um longo suspiro e o rosto coberto por lágrimas, Maria completa: “eu sofri muito. Eu sofri muito, muito e muito…sem ter pai e sem ter mãe por perto.” Os anos depois da violência foram muito difíceis para José, poque ele não conseguia arrumar um emprego. Depois de muito tentar, conseguiu uma oportunidade em uma firma de alumínio, na Rua Tobias Barreto, no Belém, na zona leste de São Paulo. Mas com 11 meses, houve um grande corte de pessoal e todos os últimos fun- cionários a serem contratados, incluindo Zé, foram demitidos. Por isso, mesmo estando com a gravidez de Edna já avançada, Maria não pode parar de trabalhar. “Quando eu estava grávida da Edna, eu trabalhava em um aparta- mento, onde eu tinha que esfregar com uma palha de aço os tacos do chão. Porém como eu já estava prestes a dar à luz, resolvi co- locar a mão na parede para esfregar com os pés, mas a patroa não deixou e brigou feio comigo, porque disse que eu ia sujar a parede só de encostar as mãos. Outra coisa que ela me obrigava a fazer HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 3 80 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 80LivroGaby-Historias de Velhos.indb 80 15/11/2023 16:47:2715/11/2023 16:47:27 era sentar na janela lá no 14º para limpar os vidros por fora.” Sem nenhum tipo de segurança, restava a Maria entregar sua alma para Deus. “Só o Senhor sabe o que eu sentia, porque como nós está- vamos passando muita necessidade, eu só conseguia comer uma sopa de arroz com legumes e isso não era o suficiente. Eu me sentia muito fraca e, dependendo do esforço, minhas vistas escureciam. Por isso, eu não me agarrava ao medo e rezava até chorando.” A casa da patroa era muito grande e Maria limpava tudo sozinha, sem ter nenhum horário para descanso ou para se alimentar. “Mi- nha patroa não deixava a mãe dela, que era uma senhorinha do in- terior, dar comida para mim, só porque eu era diarista. Mas quando ela e o marido saiam, a mãe dela ia no quartinho da empregada, que era, na verdade, um quartinho de despejo, e dava comida pra mim. Isso foi minha salvação.” Depois dessa cansativa jornada de trabalho, começava seu segun- do esforço. Maria cuidava de toda a limpeza da casa dos cunha- dos, incluindo, lavar e passar as roupas de todos. Enquanto isso, a cunhada só cozinhava. “Eu não podia reclamar de nada, porque eu estava vivendo de favor na casa deles.” Maria de Lourdes deu à luz à Edna Maria Vieira no dia 12 de março. Foi a primeira filha do casal a nascer em São Paulo. “Meus filhos sempre foram muito educados e respeitavam todo mundo, mas minha cunhada mesmo assim implicava com eles. Então, se caísse um palito de fósforo no chão já era culpa deles. E isso me deixava muito estressada.” E para a surpresa de Maria, ela ficou grávida novamente, mas nunca que poderia ter essa criança morando na mesma casa em que os ou- tros três filhos eram maltratados. “Eu ouvi tanta piada e humilhação. Os dois ficavam falando que eu e meu marido não tínhamos juízo.” A triste solução que Maria não queria tomar se tornou necessária. “Eu fui no médico do posto de saúde, doutor Vidal, e ele me deu umas injeções para eu abortar a criança, que não tinha nem dois meses.” 81BEM-VINDOS À VIDA ADULTA LivroGaby-Historias de Velhos.indb 81LivroGaby-Historias de Velhos.indb 81 15/11/2023 16:47:2715/11/2023 16:47:27 No dia 1º de maio de 1963, Maria acordou durante a madruga- da coberta por sangue e no dia seguinte tinha que trabalhar. Ela foi colocando panos e mais panos para segurar o sangue, mas de nada adiantava. “Em meio às cólicas que estavam quase me fazendo morrer, minha vizinha, dona Vilma, ligou para a polícia. Quando eles chegaram em casa, eu só tive tempo de me enrolar em uma coberta de cama para não sujar o banco e fui com eles até o Mater Dei, atual hospital Metropolitano.” Depois da curetagem, Maria fi- cou três dias sem saber aonde estava. Com a alta do hospital, foi recepcionada em casa de uma forma nada agradável por sua cunhada: - Vê se agora você toma conta desses seus diabos. – disse ao apon- tar para os filhos de Maria. “Depois, ela me empurrou para perto do fogão para eu fazer a jan- ta. Terminei com tantas dores de cabeça e no corpo que precisei me deitar.” A situação, que já era ruim se tornou simplesmente insu- portável, e durou até o dia 7 de agosto de 1963, dia em que Maria de Lourdes se mudou para a casa que atualmente vive e é sua. “Esse foi o dia mais feliz da minha vida, porque eu consegui sair daquele cativeiro e ter minha própria casa.” Em 12 de março de 1965, seis anos após o nascimento de Edna, Ma- ria e José tiveram mais um filho: José Luiz Vieira, em homenagem ao pai. Esse é o último filho legítimo dos dois, que também criaram Meire Aparecida de Oliveira, mas não a puderam registrar. Na casa nova, apesar da liberdade, o trabalho dobrou. “No dia se- guinte em que chegamos em Pirituba, na Rua Adalberto Kurt, o Zé começou a trabalhar em um restaurante e me colocou para ajudar.” Sem água no poço, Maria precisava descer o barranco e trazer duas latas de 20 litros de água em cada braço para lavar todas as roupas do restaurante. Tinha dias em que Maria ficava lavando e passando roupa até de madrugada, sendo mais de 80 toalhas e incontáveis aventais que vinham sujos do fogão à lenha. HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 3 82 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 82LivroGaby-Historias de Velhos.indb 82 15/11/2023 16:47:2715/11/2023 16:47:27 “Eu não tinha direito a absolutamente nada, eu fui escravizada até pelo meu marido. Ele não me deixava conversar com ninguém, porque era ciumento, e nem sair. Só ele que podia ir para festa e ainda justificava que eu que quis parir as crianças, então eu deve- ria cuidar sozinha.” Quando José se aposentou no restaurante, ele precisou trabalhar como pedreiro para ajudar com as despesas da casa. Porém um imprevisto surgiu durante o caminho: a sogra de Maria ligou e disse que precisava de ajuda para reformar a casa que estava muito es- tourada. Maria o apoiou, mas mal sabia o que a aguardava. Ele foi para o Ceará e só voltou depois de seis meses com uma desculpa de que precisava ficar por lá. - Mulher, eu encontrei um lugar para comprar peixe para vender em Fortaleza. Esse trabalho dá muito dinheiro. Então, eu vou conseguir terminar de arrumar nossa casa. - Rapaz, quando você vem com o milho, eu já fiz o fubá e comi a polenta. Tu não está atrás de peixe, mas sim de piranha. Pode ir embora! – ordenou Maria para o esposo. E assim foi. Ele ficou cinco anos com a amante no Ceará e depois que ela o largou, ele retornou para São Paulo na tentativa de uma reconciliação com Maria – mas sem conseguir. Nos anos seguintes, Maria até conseguiu perdoá-lo, porém a paixão havia acabado. Ela o acompanhou até a morte, que aconteceu no dia 15 de maio de 2014. “Eu não posso reclamar dele, porque, juntos, nós tivemos uma fa- mília muito bonita.” Além dos cinco filhos, hoje Maria tem 11 netos, 18 bisnetos e 1 tataraneto. “Aqui, a fila anda rapidinho, Gabrielly. Todo mundo casa cedo e vai tocando a vida.” --- Separação gráfica 83BEM-VINDOS À VIDA ADULTA LivroGaby-Historias de Velhos.indb 83LivroGaby-Historias de Velhos.indb 83 15/11/2023 16:47:2715/11/2023 16:47:27 Sozinho dentro de uma Maria Fumaça, Mitsuji viajou de Orien- te até a estação da Luz, no centro de São Paulo. Foram quase 500 quilômetros dentro do transporte, com a cabeça povoada de pensamentos sobre o que seria de sua vida dali em diante, longe do esporte que tanto amava. “Imagina chegar na Luz sem conhecer absolutamente nada? Eu era um ‘caipirão’ de interior; me senti tão perdido... Quando sai da estação, eu ainda estava meio grogue da cabeça, depois de passar tanto tempo no trem, e quase fui atropelado por uma Kombi.” Após se recuperar do susto, Mitsuji seguiu até o seu destino, com a ajuda de pessoas que foi encontrando na rua. Pegou um ônibus e desceu bem próximo do bairro da Liberdade, na zona central da cidade. Seguiu a recomendação do pai e buscou co- meçar a vida na região tradicionalmente habitada por japoneses e seus descendentes. Na Rua da Glória, encontrou uma pensão que era de uma senhora japonesa e resolveu negociar sua estadia. Ela apresentou o quar- to e deixou Mitsuji descansar. “Cheguei e nem pensei muito. Fui tomar banho e desarrumar minha mala, porque no dia seguinte, bem cedo, eu ia procurar uma oportunidade de emprego.” Aos 21 anos, sair de casa, morar sozinho, estudar e trabalhar não foi tão simples. “Era como desmamar uma criança. Eu tinha uma vidinha simples, mas muito gostosa. Largar tudo em Oriente para vir pra São Paulo não foi nada fácil, mas eu precisei aguentar.” Em sua primeira entrevista de emprego, Mitsuji felizmente foi aprovado. Dessa forma, dois dias depois de chegar na capital, ele já estava em seu primeiro dia de trabalho no Banco da Lavoura e Comércio do Estado de São Paulo, na Rua da Quitanda, também na zona central. Maurício era o nome do seu chefe. Um “cearen- se muito bom, inteligente e compreensivo”. Mitsuji lamenta ter perdido o contato com ele, porque só conseguia se sair bem no trabalho por toda compreensão e ajuda que recebeu. HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 3 84 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 84LivroGaby-Historias de Velhos.indb 84 15/11/2023 16:47:2715/11/2023 16:47:27 Com moradia e trabalho, foi em busca do terceiro item de prio- ridades da sua lista: o cursinho preparatório para o vestibular. Depois de pesquisar, matriculou-se e começou a estudar na Pra- ça da Bandeira, em um local chamado Farm Odonto. “Eu saía bem tarde da noite do cursinho, mas não era tão perigoso. Lem- bro que eu passava em frente a faculdade de Direito da USP [Universidade de São Paulo], a São Francisco, e sempre tinha uma turma reunida por lá.” Mitsuji escolheu este cursinho por ele ser direcionado para quem tinha interesse pelos cursos de Farmácia e Odontologia. Desde que começou a pensar em fazer faculdade, sabia que queria ser dentista, mas não havia um motivo específico para essa escolha. Depois de dez meses trabalhando no banco e estudando, chegou a hora de prestar o vestibular para uma Universidade Federal de Araçatuba. “Apesar da minha preferência sempre ter sido o interior de São Paulo, eu não consegui passar nessa primeira tentativa, porque ‘tomei bomba’ em química. E isso me deixou meio chateado. Para minha sorte, fui chamado para participar da segunda chamada no vestibular em Bauru, pois as vagas ainda não tinham sido preenchidas.” E nessa segun- da oportunidade, Mitsuji conseguiu entrar na faculdade. “Eu prestei sabendo que era em Bauru, mas não tinha ideia que era a Universidade de São Paulo. Ainda bem que era uma uni- versidade gratuita, assim eu só precisava me preocupar com o valor da pensão.” Passando a alegria de entrar pelo vestibular, era preciso conse- guir um local para viver na cidade. Mitsuji reuniu-se com outros colegas do cursinho que tinham sido aprovados, Valfrido Antô- nio Pereira e José Graciano, para encontrar uma moradia. “Nós achamos uma república bem localizada, na Rua Araújo Leite, perto do Colégio Guedes, e a alugamos ao longo dos quatro anos integrais do curso de odontologia.” 85BEM-VINDOS À VIDA ADULTA LivroGaby-Historias de Velhos.indb 85LivroGaby-Historias de Velhos.indb 85 15/11/2023 16:47:2715/11/2023 16:47:27 A república de Mitsuji era um sobrado conhecido como “sítio do sossego”, onde moravam sete pessoas, incluindo seus amigos de cursinho. “A nossa república era a mais comentada daquela época, porque dávamos muitas festas. Vish...era uma bebedeira desgraçada. Naquela época, a gente era meio ignorante, então não falávamos nada para as pessoas que fumavam ao nosso re- dor, mesmo não gostando. Acho que a gente só ia engolindo aquela fumaça, sem saber o mal que causava.” Morar com pessoas que Mitsuji não conhecia fez com que ele tivesse a oportunidade de descobrir como as pessoas são dife- rentes umas da outras. “Tinha gente que não se preocupava com nenhuma tarefa de casa e deixava até o papel higiênico acumu- lado. E como eu sempre tive mania de ser organizado, eu colava bilhetinho na parede escrito: ‘Não seja porco, limpe!’ Mesmo com alguns problemas desse tipo, essa foi uma das fases mais divertidas da minha vida.” Mitsuji lembra que ele e os amigos de república se ajudavam bastante para passarem com boas notas em todas as matérias. “A USP sempre foi uma universidade que exige muito dos alunos para formar bons profissionais.” E a turma de Mitsuji era apenas a segunda de odontologia; o curso era muito recente. Repleto de amigos, Mitsuji foi escolhido para ser um dos orga- nizadores da festa de formatura da turma. “Como fiz parte da comissão de formatura, lembro da festa com muito carinho. A gente fez um churrasco de despedida num clube e foi a maior bagunça, a maior zona que você pode imaginar.” A colação de grau de Mitsuji foi no dia 3 de março 1967 no Cine Vila Rica, “o mais importante e bonito da cidade”. O dia seguinte foi marcado pela missa de ação de graças na Igreja Matriz de Santa Terezinha e pelo baile de gala no Bauru Tênis Clube com som de orquestra. Mas qual é a graça de uma festa sem con- vidados? Ou melhor, sem os convidados que mais agradariam HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 3 86 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 86LivroGaby-Historias de Velhos.indb 86 15/11/2023 16:47:2715/11/2023 16:47:27 Mitusji. “Eu celebrei minha formatura sozinho, porque meus pais e irmãs não tinham condições de ir. Nessa época, eles estavam morando aqui em São Paulo, então eu até mantive minha espe- rança. Mas como era muito difícil largar o pequeno comércio que tinham, eles acabaram não indo.” O término da faculdade é algo muito esperado. Independente da década e da pessoa, a maioria dos brasileiros sempre sonha em conquistar um diploma. Mas o que vem depois? Quando Mitsuji concluiu sua graduação em odontologia, sentiu-se com- pletamente perdido, porque precisava voltar para a capital e não tinha condições de montar um consultório. “Então, pedi ajuda para minha família. Com apoio da minha irmã caçula e da outra, que era bancária, a gente montou um consultório reformado na Nossa Senhora da Lapa, em cima da Drogasil”. Há uma máxima que diz que tudo o que é bom dura pouco e foi exatamente isso o que aconteceu. O sonho do primeiro consul- tório terminou em apenas dois meses. “Esse lugar, eu sub aluguei de um gringo, acho que ele era argentino. Só que o problema foi que esse cara era ‘descasado’ e estava com uma moça ‘de menor’. Então, baixava muito a polícia por lá. Aí eu pensei: pô, mas que ambiente, né?” Por sorte, essa desilusão com o primeiro consultório passou rá- pido, porque um colega dele saiu de um espaço na Rua Dr. Cin- cinato Pomponet, nº 102, na Lapa, e Mitsuji conseguiu mudar para o novo endereço. “Fiquei lá durante 16 anos. Inclusive, foi onde eu consegui montar uma clientela. Estava indo bem.” Porém o destino veio com mais uma provação. Nessa época, Mitsuji estava em débito com o exército: “eu não tinha ser- vido tiro de guerra e nem nada, mas o exército me chamou para fazer um estágio lá no quartel”. Junto com o amigo, Antônio Mancuso, passou e precisou escolher o lugar onde servir ia . “Como eu tinha mais idade, eu t ive a oportunidade 87BEM-VINDOS À VIDA ADULTA LivroGaby-Historias de Velhos.indb 87LivroGaby-Historias de Velhos.indb 87 15/11/2023 16:47:2715/11/2023 16:47:27 de escolher primeiro e decidi ir para Quitaúna, próximo de Osasco. Enquanto, o Mancuso foi para Cáceres, lá no Mato Grosso, que f ica na divisa com a Bolívia.” Aos 27 anos, quando Mitsuji foi convocado, ele viu a mudança como uma oportunidade de encaminhar melhor a sua vida. “Eu trabalhava meio período e ganhava como segundo tenente. Na- quela época, esse era um ordenado bom pra caramba, porque eu pagava a prestação do consultório e ainda sobrava um dinheiro.” Mitsuji tinha uma rotina bem definida. “Eu chegava cedo no exército. Pela manhã, trocava de roupa e fazia exercícios físicos. Depois, eu ia para o consultório.” Mas sua habilidade mudou um pouco os horários. “Quando eu servia ao exército, eu ainda jogava muito bem futebol. Por isso, o capitão começou a gostar muito de mim e não me deixava trabalhar.” Quando terminava os exercícios físicos e estava se arrumando para ir ao consultório, ouvia o capitão dizer: - Matsubara, eu te dou 10 minutos para trocar de roupa e vir jogar. Apesar do capitão não deixar Mitsuji praticar odontologia, ele conta que essa foi uma época muito divertida em que juntos, Mitsuji e o capitão, jogavam futebol de salão no mesmo time. Ele relembra sobre como foi importante ter aliados para além das quadras: “graças a Deus, os caras [capitães, tenentes, coronéis e majores] me tratavam muito bem. O capitão Carrascoza, por exemplo, foi uma grande alma que me protegeu muito, me deu muito apoio e me ensinava muita coisa”. Mitsuji serviu o exército brasileiro inclusive no período do re- gime militar. “Naquele momento histórico, você não podia falar qualquer coisa. Por qualquer bobagem você era reprimido. Foi um regime bem ferrado mesmo. Então, imagina a gente sendo civil, recém-formados. Nós não sabíamos nada de militarismo, HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 3 88 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 88LivroGaby-Historias de Velhos.indb 88 15/11/2023 16:47:2715/11/2023 16:47:27 só tínhamos o preparo que recebemos do quartel para o serviço de saúde.” E foi com essa formação, que a turma do Mitsuji foi designada para trabalhar em um quartel de artilharia, onde ele recebia um aviso recorrente do capitão: - Matsubara, procura não falar nada. E ele obedecia, mas lamenta por ter vivido durante a ditatura militar do Brasil, severo regime que começou por meio de um golpe militar em 31 de março de 1964, com a deposição do presidente João Goulart, e durou até 1985. “Ninguém sabia de nada. Então, só no futuro que a gente percebeu o que passou. Afinal, ninguém podia falar nada e tínhamos que conviver em um regime severo.” Durante um ano e dois meses convivendo no exército, acom- panhou, como integrante da área da saúde, os militares fazendo exercícios de tiro e canhão na Cidade Ocian, na Praia Grande litoral sul de São Paulo. “Naquela época, esse era um lugar super deserto. E foi muito bacana, porque a gente era respeitado pra caramba”. Lá aconteceu um dos mais inesquecíveis momentos de sua vida. “Terminado os exercícios de tiro, me designaram para comandar o comboio que tinham os caminhões grandes, a artilharia e outros meios até Quitaúna, e eu não conhecia nada de São Paulo.” Em meio à insegurança do dentista que iria co- mandar o comboio do exército brasileiro, os superiores conti- nuavam exigindo: - Matsubara, você tem que levar o comboio lá para Quitaúna. Você não pode negar. E assim aconteceu. “Eu fui comandando o comboio, passan- do de contramão em tudo o que é lugar, o trânsito até parava. Isso tudo, pra gente, era uma festa. A gente dava risada. E eu só conseguia pensar: caramba, mas que loucura é essa?”, comenta Mitsuji, enquanto ri das lembranças. E esses convites que não 89BEM-VINDOS À VIDA ADULTA LivroGaby-Historias de Velhos.indb 89LivroGaby-Historias de Velhos.indb 89 15/11/2023 16:47:2715/11/2023 16:47:27 aceitavam a resposta “não” foram se repetindo. “Sem ter conhe- cimento nenhum, eu era designado oficial do dia e tinha que buscar o trem militar lá na Praça Júlio Prestes. E eu pensava: e agora como que eu vou comandar? Mas fui lá buscar o trem militar. E chegando em Quitaúna, eu nem me lembro para onde o trem foi. Coube ao maquinista decidir, porque nós já tínhamos até entrado no quartel.” Enquanto estava servindo ao exército, Mitsuji conheceu um de seus melhores amigos: João Babini Sobrinho. “Ele foi uma figura ímpar na minha vida. Ele era um soldadinho que sempre de- monstrou ser brincalhão, gozador. Babini sempre vinha me pedir para ‘quebrar uns galhos’, porque ele fazia muita bobeira. Eu acho que em reconhecimento a tudo isso, ele se tornou um amigão.” Mitsuji presenciou muitos momentos importantes da vida de João. Inclusive, foi seu padrinho de casamento. Infelizmente, dois meses depois do matrimônio a esposa de João foi atrope- lada na Imigrantes e perdeu a vida. “A morte foi tão traumática que João acabou ficando um pouco doido da cabeça. A solução foi ir para Uberaba e ficar um mês morando com Chico Xavier [famoso médium do espiritismo kardecista, falecido em 30 de junho de 2002].” Durante uma das visitas que Mitsuji fez ao amigo, ele também teve a oportunidade de conhecer e conver- sar com Chico Xavier. “Em três vezes que fui almoçar com João, conversei bastante com o Chico. Ele foi o homem mais santo que eu conheci até hoje, uma pessoa fora do normal. Consegui até um autografo dele em um livro em que ele comemorou 50 anos de atividade espiritual.” Para além das amizades, Mitsuji também se permitiu viver o amor. E esse amor chegou de uma forma muito inusitada, en- quanto ele caminhava próximo ao seu consultório. A paixão aconteceu através das janelas do ônibus. Ele viu uma moça mui- to bonita, ficou encantando e pensou: “puxa, de onde será que ela veio e para onde será que está indo.” Como estava apenas HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 3 90 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 90LivroGaby-Historias de Velhos.indb 90 15/11/2023 16:47:2715/11/2023 16:47:27 caminhando na rua não era possível conversar com ela. “Mas a sorte foi que eu consegui perceber que ela também estava indo para Vila Mirante e isso foi decisivo. E na oportunidade seguinte, no dia em que a reencontrei, começamos a nos entrosar.” Conversa vai e conversa vem, mas Mitsuji ainda estava inseguro com o relacionamento entre os dois. “Meu pai era contra eu me casar com alguém que não fosse da nossa nacionalidade, queria que eu também me casasse com uma mulher japonesa.” Mitsuji relembra que de 1971 a 1976 namorou escondido com Rosa Ma- ria para não causar problemas com a família. “Meu pai era muito rígido, por isso, ele nem chegou a conhecer minha esposa. Nós nos casamos na Igreja Nossa Senhora de Fátima, na Rua Barão da Passagem, nº 971, na Vila Leopoldina [zona oeste de São Paulo].” Rosa Maria Matsubara não foi o primeiro amor de Mitsuji. “Antes eu tive vários namoricos por aí, principalmente na época do quartel. A mulherada dava muito em cima da gente. Mas sou feliz com a escolha que fiz.” Um ano depois do casamento, Mitsuji e Rosa tiveram seu primei- ro filho. Rodrigo nasceu no dia 3 de janeiro de 1977. Cinco anos depois, em 1982, nasceu o irmãozinho chamado Roberto. Hoje, ambos seguem a mesma profissão do pai e enchem Mitsuji de orgulho pelo trabalho que desempenham como dentistas. “É tão bom ver o quanto meus filhos cresceram. Hoje, eles já são adul- tos com a vida encaminhada, mas eu ainda fico muito orgulhoso com cada conquista deles.” A história de Mitsuji foi marcada do início até o momento atual por sua ligação com a família. “Com meus filhos crescidos, eu consegui aproveitar e passar mais tempo com a minha mãe – já falecida - e com a mãe de Rosa, minha sogra.” Juntos conhe- cemos vários estados aqui no Brasil, como Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro. Então, nessa parte, a gente fez nosso papel. Nunca erramos com as duas. Sempre que era 91BEM-VINDOS À VIDA ADULTA LivroGaby-Historias de Velhos.indb 91LivroGaby-Historias de Velhos.indb 91 15/11/2023 16:47:2715/11/2023 16:47:27 possível (ou até mesmo se precisasse se adaptar e ir com dois carros), a gente levava as duas, que já eram viúvas, para passear.” Durante toda a sua vida, Mitsuji se deparou com figuras muito importantes para sua formação. - Você quer saber só de uma pessoa, Gaby? É difícil não citar umas cinco quando o assunto é admiração... mas, sem dúvida, não tem como eu não citar minha mãe e meu pai – me disse chorando, com a respiração mais ofegante. Me entregando a folha que preparou com as informações mais importantes sobre sua vida e seu convite de formatura, Mitsuji dá um longo suspiro – para se recuperar do choro causado ao lembrar de seus pais – e diz: “da forma com que eu te contei, minha vida foi se passando com muita luta, muito trabalho e algumas decepções, mas acho que o saldo foi positivo. Hoje, com muito anos de profissão, sinto-me cansado, mas costumo comentar com meus familiares e amigos que eu faria tudo no- vamente. Graças a Deus, tudo foi como foi e eu agradeço muito por isso.” --- Separação gráfica HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 3 92 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 92LivroGaby-Historias de Velhos.indb 92 15/11/2023 16:47:2715/11/2023 16:47:27 A experiência de entrar na faculdade dos sonhos para se for- mar na profissão que sempre amou invade os pensamentos de Ana Cristina de uma forma especial. Mais leve e risonha, ela comenta: “a Universidade de São Paulo (USP) foi um lugar onde passei muitos anos da minha vida estudando, por isso, tenho um carinho imenso ao lembrar.” Ana fazia parte de um grupinho muito estudioso do curso de enfermagem, conhecido como “sexteto chega mais: átrios e ventrículos”, porque era formado por pessoas que tinham nomes que começavam com a letra “A” (de átrio) e “V” (de ventrículo). O grupo tinha, além de Ana, Alice, Ana Luiza, Ana Maria, Vera e Valéria. “Tocávamos violão, fazíamos paródias e criamos o troféu ‘Seringa de ouro’. A gente fazia uma festa todo ano para tirar sarro das colegas da faculdade e do está- gio. E é isso que contrabalança a seriedade e a perfeição que uma profissão da área da saúde exige, porque você precisa amadurecer rápido demais. Afinal, você começa a ver gente morrendo e precisa dar um jeito para lidar com isso.” O grupo de Ana era extremamente dedicado. “A minha tur- minha gostava muito da enfermagem, então, a gente se reu- nia todos os dias dentro de um fusca pra ficar estudando na hora da pausa. Como era um curso integral, terminávamos o primeiro período às 12h e às 14h voltávamos. Por isso, cada segundo estudando e ao lado das pessoas que me faziam bem era marcante.” Diferentemente de outras graduações, para trabalhar com enfermagem você precisa estar formado. “E eu só conseguia pensar: ‘meu Deus, eu não vejo a hora de começar.’ Nessa primeira graduação, eu me formei em 1981. E já no últ imo ano da faculdade, eu prestei concurso para trabalhar no Hospital das Clínicas (HC) junto com outras colegas, que tam- bém queriam começar a carreira por lá.” E as três conseguiram realizar este sonho. 93BEM-VINDOS À VIDA ADULTA LivroGaby-Historias de Velhos.indb 93LivroGaby-Historias de Velhos.indb 93 15/11/2023 16:47:2715/11/2023 16:47:27 Ana passou um tempo no Pronto Socorro, em treinamento, e depois foi para o setor de Urologia. “Todo mundo da minha tur- ma foi para o Sírio Libanês e outros hospitais particulares, mas eu queria ir para o HC e consegui. Esse desejo existia, porque eu sempre estudei em escola e faculdade pública e na minha cabeça eu tinha que ‘devolver’ isso para as pessoas que me pro- piciaram estudar nessas instituições.” O HC foi para Ana como uma escola. Lá ela pôde aprender e se apaixonar ainda mais por seu ofício. “Eu não era ‘enfermesa’ (junção criativa das palavras enfermeira e mesa), que gosta de ficar atrás da mesa, eu sempre preferi o cuidado direto com o paciente.” Porém havia uma barreira que precisou aprender a lidar: o relacionamento com outros profissionais. Haviam pes- soas que estavam lá há muito tempo e eram mais complicadas. “Para mim, a primeira coisa para ser um bom profissional é que você seja uma boa pessoa. Mas é importante saber que isso vem acompanhado de um risco, né? Porque as pessoas acabam abu- sando do seu limite.” Por dois anos, Ana passou obedecendo muito os outros profis- sionais. “Nossa, acho que se me pedissem para lamber o chão, eu responderia que já estava lambendo, porque eu topava fazer absolutamente tudo.” Com o tempo, a forma com que lidava com o trabalhou começou a ser reconhecida pelas colegas de equipe. A enfermeira sempre foi “pau pra toda obra”, porque acredita que quem não sabe fazer, não saberá coordenar tam- bém. “Eu nunca fui do partido do médico tal ou da enfermeira tal, eu sempre fui do PP, o partido do paciente. Por isso, o mais importante pra mim é que a assistência estivesse sendo feita da melhor forma possível, com humanização.” Essa bagagem deu à Ana embasamento para escrever seu primei- ro livro: “O cuidado do emocional na saúde”. A obra foi publica- da em 2020 pela editora Nova Práxis. “O livro mostra o outro lado dos profissionais de saúde, porque a gente chora e sente HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 3 94 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 94LivroGaby-Historias de Velhos.indb 94 15/11/2023 16:47:2715/11/2023 16:47:27 sim. Quem não sente precisa fazer terapia e quem trata mal o paciente também está com algum problema – está em Burnout [síndrome do esgotamento profissional], não está legal.” Durante seu trabalho na enfermagem, conheceu um novo mun- do: a politicagem. “Havia duas ou três pessoas que você não podia mexer nelas. Elas não prestavam cuidado direto, poque eram apadrinhadas de não sei quem.” Esse comportamento foi perpetuado até o momento em que Ana passou a ser encarrega- da da equipe da tarde. “Comecei a fazer a escala dos horários. E aí, se eu precisava de gente, eu colocava na grade, correto? Mas começou a vir pedrada pra cima de mim.” Ana, no entanto, man- teve-se firme em seu posicionamento. Essa atitude foi positiva, pois pessoas que eram muito boas acabavam sendo prejudica- das por falta de vontade de outras. “Antes de eu entrar na liderança, tinha uma senhora de 70 anos, que já estava para se aposentar. Ela era colocada pra fazer aten- dimento, e a outra, jovenzinha, que era apadrinhada de sei lá quem só fazia encaminhamento de ‘papelzinho’. Aí eu cheguei e resolvi mudar aquela situação.” Nem todos concordavam com as mudanças – e demostravam isso, inclusive, com ameaças: - O senhor pode falar de novo, por favor? – perguntou Ana. - Eu não vou ficar e nem aceitar continuar dessa forma. Essa enfermagem sempre foi minha! – respondeu o agressor. - Pois é. Aqui é um serviço público, quem paga todos nós é a população. Não existe aqui nada que seja meu ou seu. Irritado com a resposta dada por Ana, o enfermeiro foi levando- -a para trás e levantando a mão em direção ao seu rosto. - Pode bater – disse Ana ao virar o rosto – o senhor vai me dar motivo pra levar isso adiante de outra forma. 95BEM-VINDOS À VIDA ADULTA LivroGaby-Historias de Velhos.indb 95LivroGaby-Historias de Velhos.indb 95 15/11/2023 16:47:2815/11/2023 16:47:28 O agressor saiu da sala com a mão tremendo e gritando alto. Uma semana depois, a filha dele teve uma fratura de quadril e precisava ir para casa. Ele estava desesperado, porque não tinha como levar a menina, que estava com o gesso em “V” com uma trava no meio. “Não dava para levá-la em lugar nenhum. E, nessa época, eu tinha uma Brasília e nela cabia.” - Seu fulano [foi escolha da entrevistada não colocar o nome do agressor], eu estou saindo e posso levar sua filha. - Ué, você? – ele perguntou. - Olha, você precisa entender que você como pessoa é uma coisa e eu também e como profissionais nós somos outras. Vamos lá? Ana levou pai e fi lha em casa e depois começaram a conversar mais. E além de aceitar as recomendações de Ana, essa pessoa ainda se tornou uma grande defensora do trabalho dela. E assim as relações também foram se dando com outros profis- sionais. “Eu virei lenda. Porque quando você faz o que é certo, você vira lenda, você vira ponto de referência. Isso é uma grande responsabilidade, pois você passa a ser um vagalume em um quarto escuro.” Ana expandiu suas fronteiras para além do HC, para além do primeiro grupo de residência em UTI [Unidade de Terapia Inten- siva] do HC e de sua liderança. Apesar de amar o trabalho que desempenhava por lá, essa caixinha estava espremendo e aper- tando o talento que a enfermeira possuía. Então, Ana se jogou no mundo: montou sua própria equipe no Hospital Paulistano – escolheu uma a uma das pessoas que formaram seu time – e foi estudar mais. Em 1989, finalizou a graduação em Pedagogia pela Faculdade Campos Salles e começou a dar aula de enfer- magem para cursos técnicos no Hospital São Camilo. “Durante meu mestrado em Enfermagem Fundamental, como eu já era HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 3 96 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 96LivroGaby-Historias de Velhos.indb 96 15/11/2023 16:47:2815/11/2023 16:47:28 pedagoga, fui convidada para ir para o Hospital Universitário da USP para ser diretora da escola de auxiliares de enfermagem.” Além do trabalho como diretora, Ana escolheu ministrar aulas de Bioética e Legislação. Voltar para faculdade fez com que ela continuasse a trilhar o mundo da educação, o qual ela sempre foi apaixonada. Em 1995, a enfermeira-pedagoga finalizou a graduação em Psicolo- gia pela Universidade Paulistana e, seis anos depois, em 2001, concluiu seu doutorado em Práticas Integrativas pela Univer- sidade de São Paulo. “Essa foi uma parte bem difícil. . . quase que eu fui queimada na fogueira como bruxa, porque falar de Prática Integrativa nessa época era complicado mesmo. Mas eu pude viajar para os Estados Unidos e Canadá, com bolsa, para fazer cursos fora e também trazer esse conhecimento para o Brasil.” Ana é pioneira e referência sul-americana em Toque terapêutico, prática que complementa a medicina tradicional. E hoje, Ana ministra este curso de capacitação no Conselho Federal de Enfermagem (Cofen). A enfermeira-pedagoga-psicóloga que foi pioneira em assuntos muito importantes para a área da saúde no Brasil também foi marcante em uma outra causa: a do respeito à população LGB- TQIA+. “Como toda boa nerd, depois da minha primeira expe- riência – em que a mulher me abandonou depois de ficarmos –, eu comecei a pesquisar e encontrei um chat de relacionamento. Naquela época, ele era super legal, mas hoje é só pornografia, o babado é forte mesmo.” Como poucas pessoas tinham com- putador, aquele era um local mais seleto que permitiu que Ana conhecesse muitas mulheres incríveis, incluindo uma de suas esposas, que também era enfermeira. Por volta de 2004, o relacionamento de Ana com sua ex-espo- sa foi evoluindo e, juntas, vivenciaram o primeiro casamento homoafetivo pela Vara da Família no Brasil, em São Paulo. Mas como preferiram pedir sigilo judicial para preservar a família, 97BEM-VINDOS À VIDA ADULTA LivroGaby-Historias de Velhos.indb 97LivroGaby-Historias de Velhos.indb 97 15/11/2023 16:47:2815/11/2023 16:47:28 o reconhecimento acabou sendo publicado pelos jornais para outras duas pessoas do sexo masculino. “E aí veio uma repórter muito insistente, que a nossa advogada passou nosso nome para ela, tentando nos convencer a deixá-la publicar. Foi muito chato e triste perceber que nossa advogada, que também era homosse- xual, queria ter um retorno nisso.” A repórter tentou convencer Ana que aquela seria a reportagem de sua vida, mas ela preferiu seguir com o que pediu para a justiça, o sigilo. Ana e sua esposa foram casadas por dez anos. O divórcio apa- receu quando já não eram mais compatíveis entre si. Depois dessa primeira esposa, Ana se relacionou mais uma vez, de novo por dez anos. Porém, pelo mesmo motivo, a relação começou a ser abalada. “A gente tinha algumas diferenças difíceis de serem superadas: ela gostava de beber e eu não curtia; eu amava o mundo das drags queens e ela não gostava.” Assim, mais um ciclo de relacionamento se fechou. Atualmente, segue “carreira solo” e vive com Max, seu adorável cachorro da raça Yorkshire Terrier. “Estamos muito bem, obriga- da.” Infelizmente, Ana não tem uma família próxima. Seus pais e seu tão amado irmão já não estão mais por aqui. E como Ana não quis ter filhos, hoje conta muito com os amigos que insis- tentemente preservou ao longo da vida e com a cunhada e a sobrinha, que moram longe de sua casa, em Campinas. Max não é o único amor de sua vida. Em uma noite com a te- levisão ligada, decidiu que tomaria coragem para realizar mais um sonho. Ela que sempre foi muito realizada profissionalmente, mas que tinha um cotidiano mais sério, devido sua atuação na área da saúde, escolheu sair da inércia, da mesmice. Em seu sofá, Ana acompanhou (e vibrou muito) ao assistir ao re- ality show RuPaul’s, a corrida das drag queens. Ana já vivia com este desejo desde que acompanhava seu pai fazendo arte nos tempos dourados da rádio, então, ver o programa só foi mais um HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 3 98 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 98LivroGaby-Historias de Velhos.indb 98 15/11/2023 16:47:2815/11/2023 16:47:28 empurrãozinho. “Era genial, o programa me dava um ‘fervo’ aqui dentro”. E foi quando ela admitiu para si “aí…como eu queria ser drag!” Mas havia um impedimento para esta realização, a pessoa com quem ela se relacionava na época argumentava: - Ana, você está ficando louca? Você está ficando pirando, né?! Agora, você vai querer ser drag queen? - Sim, eu quero ser drag queen – respondeu Ana com muita certeza. Para ela, se montar não era o suficiente. “Eu até sabia que em São Paulo, na Liberdade, havia pessoas que faziam cosplay. Mas é fantasia, não é drag. E não era isso que eu queria.” A vontade de pertencer ao mundo das drags estava cada vez mais forte. Ana já não conseguia mais deixar este sonho ape- nas no travesseiro, onde suspirava imaginando o desejo viran- do realidade. Na época, recebeu alguns convites tentadores de seus amigos gays: - A gente vai te levar em um show de drag. - Vamos com a gente, Ana? Foi. “Depois, eu fui em uma parada gay e meu coração gritava o quanto queria fazer parte daquele mundo, então me aposentei como docente e comecei a atender em meu consultório tanto com o toque terapêutico, quanto psicoterapia. E decidi: eu vou ser drag queen.” Paralelamente à decisão de Ana, uma das drags internacionais que participava da corrida do RuPaul veio para o Brasil e este foi o principal gatilho para colocar seu sonho em prática. “Eu escre- vi para festa Priscilla [a maior festa drag do Brasil] dizendo que eu queria ir nesse show [com participação da drag internacional] 99BEM-VINDOS À VIDA ADULTA LivroGaby-Historias de Velhos.indb 99LivroGaby-Historias de Velhos.indb 99 15/11/2023 16:47:2815/11/2023 16:47:28 e que meu sonho era me montar – na esperança de que eles me ajudassem.” A organizadora da festa - forma carinhosa em que as drags chamam as apresentações e shows - respondeu: - Por que você não pode se montar? A gente vai arrumar uma drag mulher que vai te montar! A descoberta deste sonho veio na transição entre os 59 e os 60 anos, idade em que os brasileiros são considerados idosos por lei. E foi ao conhecer a Ginger Moon, que a realização come- çou. “A Ginger Moon, que é uma baita drag queen mulher, foi minha mãe. Ela que me ajudou e me ensinou como me montar.” Ginger dizia: “a primeira vez, eu faço. Mas nas próximas vezes [em que for se montar], você vai fazer sozinha, hein?”, conta Ana em meio a um gargalhada descontraída ao recordar da personalidade da amiga. Em muitos momentos, Ana sentiu medo do preconceito que po- deria sofrer pela forma como se definia: “quem que seria uma drag queen com 60 anos de idade, mulher e com uma relação homoafetiva cis? Como as pessoas vão me enxergar?” Mas, fe- lizmente, ela escolheu deixar essas preocupações de lado para viver seu sonho. A ‘persona’ de uma drag não nasce pronta, ela é construída de forma muito individual. Com glitter, peruca e resistência políti- ca. Glamour e inclusão para os outros e o acolhimento dos pró- prios desejos. “Quando sua mãe drag vem conversar com você, ela sempre quer saber uma mulher que te inspira. No meu caso, a mulher que me inspirava era minha avó materna, a Anna Sil- viana, que era chamada por mim de vovó Anitta. Inclusive, vale lembrar que antes da Anitta, cantora, já existia minha avó Anitta. E foi por isso que eu coloquei ‘Anitta’. Minha avó foi uma mulher bem adiante do seu tempo e neste período em que as mulheres só sabiam cozinhar, ela decidiu que queria estudar.” HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 3 100 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 100LivroGaby-Historias de Velhos.indb 100 15/11/2023 16:47:2815/11/2023 16:47:28 Ana também explica as razões para ter escolhido o ‘Volcano’ para completar seu nome de drag. “Ao todo, foram três princi- pais motivos para minha escolha. Primeiro, foi pela fissura que me deu ao ver o RuPaul’s, era como se um vulcão tivesse surgido dentro de mim. Depois, porque esse nome me faz sentir muito empoderada, no sentido de você se posicionar. E, por fim, esco- lhi Volcano em vez de vulcão, pois minha avó era italiana.” Assim, Ana se apresentou ao mundo como Anitta Volcano. E foi a partir desse desenrolar de aprendizados e uma luta muito corajosa que ela começou a fazer cursos de maquiagem, mexer com perucas, idealizar seus figurinos e estudar a história das dra- gs. “O mundo drag no Brasil é uma criatividade sem fim, mesmo sem ter recursos.” Ana começou a sair como drag queen, “dress as a girl” (da tra- dução do inglês para “vestida como uma mulher”) com mais fre- quência e lembra como foi muito surpreendida pela reação das outras pessoas. “No dia em que fui assistir ao show da drag in- ternacional, que participava da corrida do RuPaul, eu estava em um lugar mais para o alto, onde tinha um balcão e eu ouvia um som ecoando da parte debaixo, assim: - Anitta. - Anittaa. - Anittaaa. Além dos melódicos gritos, Anitta percebeu que havia muitos dedos apontando para ela. “Eu desconfiei que aqueles jovens sabiam sobre minha história. Mas eu me perguntava; como é que eles me conhecem?” Então, em meio aos questionamen- tos, teve uma ideia: “vou fazer um Instagram”. E foi assim que tudo começou. 101BEM-VINDOS À VIDA ADULTA LivroGaby-Historias de Velhos.indb 101LivroGaby-Historias de Velhos.indb 101 15/11/2023 16:47:2815/11/2023 16:47:28 Pensar em Anitta Volcano é imaginar Ana Cristina em um vesti- do tubinho dourado, com uma peruca curta com cachos loiros, como o cabelo de Hebe Camargo, acessórios variados - brincos compridos, bracelete e anéis - e uma maquiagem que ressal- ta seus lindos traços - com batom vermelho e cílios postiços. Anitta dá vida ao sonho de Ana e inspira muitas mulheres que desejam ser drag queens após os 60 anos. Inclusive, a enfer- meira-pedagoga-psicóloga chegou a desenvolver um grupo para formar drags com mais de 50 anos, com performances, cursos de maquiagem e figurino, e espaço para conversas. “Infelizmen- te, o projeto família Volcano não foi para frente, mas eu preten- do retomar esse sonho. Porque arte não tem idade, não tem sexo e não tem cor.” Como docente, Ana estava no palco. Como drag queen, tam- bém. Hoje, a profissional ainda é membro da Câmara Técnica de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS) do Ministério da Saúde, membro da Comissão Nacional de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde do Conselho Federal de Enfermagem (CPICS Cofen) e palestrante de conteúdo mo- tivacional, com ênfase na área da saúde. “Gaby, isso tudo exige muito cuidado e responsabilidade para não inflar o ego.” --- Separação gráfica HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 3 102 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 102LivroGaby-Historias de Velhos.indb 102 15/11/2023 16:47:2815/11/2023 16:47:28 Chegando em São Paulo, Edgar arrumou um trabalho em algo que não tinha experiência e sem relação com o que fazia na fazendo do avô. “Deus me disse que me daria o ofício de mecânico e eu aceitei, como tudo o que ele já me ofereceu.” Então, seu Edgar foi até uma oficina mecânica, que ficava atrás do Mercado Municipal de São Paulo, na Rua da Cantareira, nº306, no centro da cidade. Como não tinha formação em Engenharia Mecânica, o gerente pediu para que dessem uma oportunidade para Edgar e, caso ele atendesse às expectativas do local, abririam uma exceção e iriam contratá-lo. “Quando olhei aquele carro não sabia muito bem por onde começar, mas Deus foi falando a todo momento comigo. Ele dizia para eu fazer assim ou assado e eu corres- pondia. Em pouco tempo, consegui finalizar o desafio de forma positiva. Meu professor foi o Senhor.” Mesmo com a confiança de que havia feito um bom trabalho, o destino do mineiro ainda era incerto. Tudo dependia da análise feita pelo gestor. - Olha, você já está empregado e ganhará tanto de ordenado [seu Edgar não lembra o valor com precisão]. Você sabe me- lhor até do que o nosso gerente. – respondeu de forma positi- va o supervisor da oficina. Quando Edgar começou a trabalhar, ele tinha a ideia de que iria aprender com os outros, já que não tinha nenhuma experiência formal em mecânica. Mas logo a situação se inverteu. “Eles me falavam o seguinte: ‘rapaz, o que é que você veio aprender com a gente? Você que está nos ensinando’. E isso me deixava com uma baita alegria. Eu nunca duvidei do que o Senhor falou, mas conseguir uma oportunidade como essa sem ter estudo e expe- riência não parecia ser tão fácil.” Edgar sente um carinho muito grande por sua profissão. “Óia, não tinha ninguém que gostasse de trabalhar mais do que eu, viu? Eu sempre trabalhei com muita perfeição. Quando eu terminava um serviço e falava que estava bom, os camaradas 103BEM-VINDOS À VIDA ADULTA LivroGaby-Historias de Velhos.indb 103LivroGaby-Historias de Velhos.indb 103 15/11/2023 16:47:2815/11/2023 16:47:28 falavam amém.” Inúmeras vezes, Edgar foi questionado sobre o que fez com o carro, porque independentemente do estado com que o veículo entrava (sim, Edgar já lidou com carros bem encrencados), ele conseguia deixá-lo novo, como se tivesse aca- bado de sair da fábrica. “Meus colegas colavam em mim e aprendiam tim-tim por tim-tim. Ti- nham carros que eram tão fáceis para eu consertar que eu nem que- ria cobrar nada, mas os clientes insistiam em me dar gratificações.” Certa vez, em meio à relutância de Edgar em receber pagamento por seu serviço, escutou a seguinte proposta: - OK, já que o senhor não vai querer falar o valor, então toma meu carro. O seu pagamento será o meu carro. Em meio a essas situações delicadas, Edgar dobrava seus prin- cípios e preferências e cobrava o mínimo possível, só para não receber o que ele chamava de “pagamentos indevidos”. Como fazia um trabalho bom e cobrava pouco, rapidamente con- seguiu formar sua clientela. Um falava para o outro que já falava para um terceiro. “Quando eu me dei conta da fama que estava levando, eu já estava atendendo quase todos os pedidos que che- gavam na oficina, porque as pessoas tinham a exigência de ter seus veículos consertados por minhas mãos.” Pensando em não atrapalhar os colegas de trabalho, Edgar resolveu abrir sua própria oficina. Batendo as mãos nas laterais da cadeira e movimentando a cabeça de cima para baixo, ele diz com convicção, num mo- mento em que pausa as lembranças para professar sua fé: - Eu conheço o Senhor, nosso Deus, e dou testemunho para você sobre ele. O que você necessitar, é só fechar os olhos e pedir para Deus com todo o seu coração. Te garanto que se seu pedido for condizente com o que Ele quer pro ‘ocê’, você terá em vossas mãos. HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 3 104 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 104LivroGaby-Historias de Velhos.indb 104 15/11/2023 16:47:2815/11/2023 16:47:28 Edgar, que hoje não dirige mais, sempre gostou de ter suas mãos no volante dos carros. “Eu gostava pra caramba dessa sensação. E como nunca tive preferência, qualquer veículo que você colo- car sob meu controle, eu consigo pilotar.” Os carros eram para Edgar como os patinhos para Emília, as bo- necas de louça para Maria de Lourdes, o futebol para Mitsuji e o mundo de Drag queen de Ana Cristina. Com amor, ele relembra qual foi seu carro favorito da vida. “É difícil escolher só um car- ro, mas eu tiraria toda a minha experiência com outros carros para dirigir meu Studebaker marrom para o resto da vida. Ele era conhecido por ser um carro com um ‘nariz-bala’, por conta do formato da dianteira ser inspirado numa turbina de avião, mas não existia melhor do que ele quando o assunto era qualidade, conforto e segurança.” Não foi só o amor pelos carros que nasceu em Edgar a partir de “uma conversa com Deus”. Segundo ele, também a mulher de sua vida apareceu dessa forma. “Sempre segui minhas visões, sonhos que representam a vontade de Deus. Certa vez, eu so- nhei que estava casando com uma moça muito bonita, que eu nunca tinha visto na vida, em uma igreja.” No dia seguinte, Edgar acordou com a respiração acelerada e perguntas com respostas incompletas: quem seria a moça do sonho? Por que sonhar com ela? Onde ficava aquela igreja? Será que ela seria a mulher de sua vida e eles se casariam naquela igreja? “Então, naquele dia, eu pedi: ‘Senhor, me leva nessa igreja pra eu conhecer aquela moça.’ E imediatamente, o Senhor me disse que era para eu ir na Vila Mariana, que Ele falaria comigo sobre ela.” Chegando na Igreja da Vila Mariana (pela primeira vez, já que ele frequentava outros lugares), Edgar não notou nada de atípi- co. Congregou como sempre fez. A palavra falou com toda ir- mandade, incluindo, Edgar. Porém quando o mecânico saiu pela porta da Igreja, uma moça veio correndo em sua direção e disse: 105BEM-VINDOS À VIDA ADULTA LivroGaby-Historias de Velhos.indb 105LivroGaby-Historias de Velhos.indb 105 15/11/2023 16:47:2815/11/2023 16:47:28 - Edgar, o Senhor Deus mandou eu falar com “ocê”, que é pra mim casar com “ocê”. O que é que você fala? – perguntou Ca- rolina em meio a lágrimas. Sem conhecer quem era a bela moça que estava em sua frente, fazendo aquela pergunta direta, mas recordando de seu sonho, Edgar respondeu emocionado: - Uai, vamos casar então. Que dia você quer ir no cartório? - Ah, você é quem manda! Então, eles combinaram os próximos passos antes de marcar a data e oficializar o relacionamento no cartório da Vila Mariana. “Eu nunca tinha visto aquela mulher nem aquela igreja em toda minha vida, mas não podia deixar de realizar um pedido feito pelo meu Pai, meu Senhor.” Como Edgar sempre foi um homem bom e iluminado, explicar esse casamento repentino para os pais de Carolina não foi um problema. “Eu já tinha conversado com Deus que só queria casar se fosse com ela e ele abençoou as próximas conversas. Assim, eu fui para casa de Carolina com mais confiança, falei com a família dela e o pai, seu Colombini, e ele nos deu a benção. Autorizou nosso casamento no cartório.” No mesmo dia em que se casaram no cartório, eles também foram à Igreja. “A gente fez tudo direitinho. Quando saímos do cartório, as pessoas da Igreja já estavam nos aguardando na casa dos pais dela. Ela era uma moça parecida com você, Gabrielly, porque tinha a pele branca e o cabelo longo, liso e preto.” No dia do casamento, Carolina estava com um vestido de noiva tradicional: branco, longo e com corte convencional. Edgar, por outro lado, escolheu vestir um terno azul marinho. “Depois das celebrações, f izemos uma festa muito bonita, com a família e com muita alegria. Carolina era minha irmã de fé, um amor de pessoa, super carinhosa, então, não tinha como eu me queixar dela.” HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 3 106 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 106LivroGaby-Historias de Velhos.indb 106 15/11/2023 16:47:2815/11/2023 16:47:28 Como o casamento aconteceu de última hora, Edgar e Carolina não conseguiram se preparar com antecedência. Por isso, quan- do se casaram não tinham uma residência. “Essa foi mais uma prova de Deus em minha vida. Eu não sabia por onde começar a pesquisar casa, mas na primeira em que eu entrei, lá na Vila Mariana, deu tudo certo. Quando eu cheguei, o vendedor dis- se que havia uma outra pessoa interessada, mas que ele sentiu Deus falando que ia vir um homem do bem, que tinha acabado de se casar e que era para vender para ele.” O vendedor ficou im- pressionado com a forma como Edgar falava sobre Deus, essa foi a prova que precisava para saber que ele era o homem enviado para comprar a casa. E assim, o acordo foi firmado. Pouco tempo depois, Carolina engravidou e deu a luz aos dois filhos do casal: Ênio e Enoque. “Eles sempre foram ótimos filhos para mim. Por isso, minha casa era um lar de paz e paciência, em que todos nos respeitávamos.” Com 30 anos, a vida de fé de seu Edgar foi abalada. “Eu comecei a sentir uma angústia muito grande, insegurança, medo...todos os sentimentos ruins que você pode imaginar. E parece que todos ao meu redor, exceto minha família, começaram a desejar o meu fim.” Edgar se emociona muito, seus olhos começam a marejar com lágrimas. “Eu tive uma experiência com a morte. Deus me chamou e eu subi ao céu. Com a licença dele, consegui passar pela primeira e segunda porta do paraíso.” Edgar respira e diz que vai tentar me explicar melhor. “Pensei que em cada uma dessas portas há salas e que você só pode passar com a autorização de Deus. Como eu sempre contei a história da verdade, a história de Deus, eu fui aprovado em todos os sentidos. Eu sou um servo do Deus altíssimo e já tive na sala de espera para as portas do céu.” Mas Deus não permitiu que seu Edgar falecesse com aquela ida- de. “Deus me disse que não havia chegado minha hora e que era para eu voltar para Terra. Quando eu voltei, as pessoas que me faziam mal e que queriam me prejudicar não estavam mais por 107BEM-VINDOS À VIDA ADULTA LivroGaby-Historias de Velhos.indb 107LivroGaby-Historias de Velhos.indb 107 15/11/2023 16:47:2815/11/2023 16:47:28 perto. E assim, sendo testemunha, cada vez mais eu segui o ca- minho do meu Pai.” Edgar conta que Deus não gosta de coisa er- rada e que isso o deixa muito triste, por isso, essas pessoas que só queriam prejudicar os outros e tiravam sarro do que Edgar falava sobre Deus, hoje já não estão mais vivas. “Deus colocou os espíritos ruins pra baixo da Terra e me deixou aqui vivo e por mais tempo. E depois dessa experiência, eu consegui ir tocando melhor minha vida. Os sentimentos ruins que invadiram meu coração e me causaram muita dor desapareceram e eu pude viver feliz e em paz.” “Com o retorno para Terra”, Edgar conseguiu continuar sua vida com as pessoas que amava e os sonhos que queria realizar. Entre seus maiores desejos estava ajudar os filhos a seguirem a profis- são dos seus sonhos, assim como teve a oportunidade de fazer. E conseguiu, sendo surpreendido. “Hoje, meus filhos seguem o mesmo trabalho que eu. Por isso, tem gente que fala que eles de- vem muito ao que ensinei para eles. Mas, na minha opinião, eles devem a Deus, porque se ele não tivesse me ensinado, quando eu estava precisando de um emprego, eu não conseguiria passar esse conhecimento com tanta qualidade para eles.” As pessoas falavam para Edgar, antes dele vir morar aqui, na casa de repouso Villa Nostra Sênior: - Oh, seu Edgar, eu te agradeço por ter falado para eu ir conver- sar com seus filhos. Eles deixaram meu carro novinho. Muito obrigado mesmo! E Edgar rapidamente respondia: - Isso é fruto do que aprendi com Deus. Devemos tanto ao nos- so Senhor! Edgar conta que sempre explicou o ofício para os filhos com muita paciência para que eles entendessem e conseguissem dar HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 3 108 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 108LivroGaby-Historias de Velhos.indb 108 15/11/2023 16:47:2815/11/2023 16:47:28 sequência até nos mínimos detalhes. Ênio e Enoque consegui- ram ganhar a vida com o mesmo amor do pai e hoje estão “mui- to bem financeiramente”. Além dos filhos, Edgar também conta que tem uma neta e outros membros na família. Ele não entra muitos detalhes sobre esses familiares. - A gente já está acabando? – pergunta seu Edgar, me interrom- pendo, quando eu o questiono sobre a família – A Carolina está me esperando e eu não gosto de deixar minha mulher brava. Seu Edgar faz perguntas frequentes sobre onde está Carolina e quando ela vai chegar. Age como se a esposa não tivesse faleci- do. Há cerca de três anos, desde que ficou viúvo, passou a viver na casa para idosos Villa Nostra Sênior. Por lá, sua rotina segue o mesmo padrão de quando ainda morava com a esposa. Leitura da bíblia quase todo dia, sonecas após o almoço e muita oração. Mas esse é um assunto pouco comentado durante a entrevista, é como se Edgar não aceitasse ou não se importasse com o lugar em que mora. O importante é continuar levando a palavra de Deus, sem olhar a quem ou onde. --- Separação gráfica 109BEM-VINDOS À VIDA ADULTA LivroGaby-Historias de Velhos.indb 109LivroGaby-Historias de Velhos.indb 109 15/11/2023 16:47:2815/11/2023 16:47:28 “Eu escolhi que queria estudar. Eu simplesmente adorava es- tudar, não fazia sentido largar.” Porém, João não aceitou muito bem a decisão: - Poxa, Thita! Então é assim? Você só está fazendo hora comigo? Agora vai me largar?? A reação do namorado deixou Thita em dúvida. Ela não queria decepcioná-lo, mas também não queria abdicar de seu maior sonho, estudar para ser professora. - Thita, deixa disso. O destino de toda mulher é ser dona de casa. Você não vai sair de casa pra trabalhar e nem para fazer nada. Então, aproveita que esse moço é de família, é gente boa, conhecemos a irmã dele. Casa com ele e pronto. Esquece de estudar. – aconselhou a avó Izabel. Aquela opinião era muito importante para Thita, afinal, Izabel foi responsável por boa parte de sua formação. “Aquilo pra mim foi como se tivessem arrancado todos os meus sonhos de dentro do coração, de dentro do meu peito. Mesmo assim, eu escolhi me casar com João.” E os preparativos para o casamento começaram com adap- tações na rotina. A t ia de Thita, El isa, pediu para que os inquil inos saíssem de sua casa para acolher o casal após a cerimônia. Já a irmã de João, Josefina das Dores, arrumou um emprego para Thita trabalhar na malharia Noruega junto com ela. Thita não sabia nem onde f icava a Rua Guaicurus, na Lapa, então das Dores a acompanhou. Ela e a cunhada não trabalhavam no mesmo setor: Thita f icava no escritório, enquanto das Dores trabalhava no setor de costuras, no qual havia grandes máquinas. “Eu não sabia absolutamente nada. Na verdade, eu não sabia nem atender um telefone, porque eu nunca tinha nem visto um.” HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 3 110 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 110LivroGaby-Historias de Velhos.indb 110 15/11/2023 16:47:2815/11/2023 16:47:28 Thita contou com a ajuda de uma colega do trabalho muito especial. “A minha sorte foi ter encontrado a Terezinha, que era meu anjo guardião. Ela era secretária do diretor da malharia. Então, tudo o que eu não sabia como fazer - e recebi muita bronca do diretor por conta disso, ela vinha ao meu lado e se prontificava a me ajudar.” Como era um escritório de malharia, o trabalho desempenhado por Thita envolvia fazer a conta de quantos fios seriam usados em cada peça, quais cores de fios eram necessárias e o número de fios disponíveis. “Eu não sabia nada, mas a duras penas fui tocando. Pela manhã, eu ia de ônibus, e voltava com a das Dores e seu namorado, chamado Ângelo.” Ganhar uns “troquinhos” deixava Thita feliz e a estimulava a tra- balhar cada vez melhor. Mas um imprevisto inconveniente aca- bou com sua alegria. Ela foi vítima de assédio. “Lá no escritório tinha um outro diretor chamado Fábio, ele era um baixinho bem feinho, que só me falava besteira.” Thita costurava seus próprios vestidos. Aprendeu o ofício no curso de corte e costura que fazia na parte da noite. “Um certo dia, eu costurei um vestido laranja muito lindo. Ele era de manga comprida, meio bufante, e era feito com um tipo um pano mais sensual. Talvez nem fosse um pano adequado para se fazer vestido, mas como eu tinha que fazer com o tecido que eu ganhava em aula, não tive muita escolha. Porém acho que esse vestido acabou ficando um pouco chamativo. Quando eu passava de um lugar para o outro com ele, o Fábio só ficava me falando besteira.” Até que em um mo- mento, Fábio a parou e disse: - Escuta, você vai continuar trabalhando lá com o seu Vitor? - É só o que eu estou sabendo fazer, então, vou continuar sim. – respondeu Thita. - Besteira! Vem trabalhar comigo. Você nem vai precisar traba- lhar muito, a gente pode dar um jeitinho e tal. 111BEM-VINDOS À VIDA ADULTA LivroGaby-Historias de Velhos.indb 111LivroGaby-Historias de Velhos.indb 111 15/11/2023 16:47:2815/11/2023 16:47:28 O “jeitinho” de Fábio era sair com Thita. “Eu saí de lá nervosa, saí até pisando torto. Eu não podia voltar mais, porque aquele homem ia me agarrar lá dentro.” Thita então decidiu que conver- saria com sua mãe. Dessa forma, Gracia resolveu ir com Thita no dia seguinte para justificar o porquê de a filha estar deixando o serviço. “Ele tentou justificar de tudo o que era jeito, inclusive falando que eu estava aprendendo muito rápido e que não seria bom se eu saísse. Mas eu não aguentava mais nem um dia na- quele lugar, principalmente porque eu não sabia o que dizer pra ele e como me defender. Então, foi difícil colocar isso na minha carteira, que era uma carteira de menor de idade.” Desempregada e com a alma embaçada após ser vítima de tama- nha violência, a solução foi conversar com os conhecidos a fim de conseguir uma nova oportunidade. Santa, uma das irmãs de João (ele tinha nove irmãos), resolveu buscar uma vaga de em- prego para Thita na cooperativa em que trabalhava. Conversou com um dos diretores da cooperativa, Dr. Alfredo, que resolveu dar uma chance para Thita. “Para decidir se eu poderia trabalhar por lá, eles me deram um teste. E eu me sai muito bem.” Neste lugar, Thita era responsável pelo setor de contabilida- de. Fazia as notas fiscais dos livros de conta, ou seja, registrava quanta coisa foi comprada e quanta coisa foi vendida. “Além disso, eu fazia hora extra todo sábado e domingo. A cooperativa é tipo um mercado de hoje, então eu trabalhava nesses dois dias em um guichê para recolher sacolas. Tudo isso eu fazia para conseguir ter um dinheiro para comprar meu enxoval.” Em meio à troca de serviço e à falta de muitos móveis na casa, Gracia sugeriu que a filha conversasse com o pai, afinal, Pedro precisava assinar a declaração de que sua filha poderia se casar (já que como ela tinha menos de 21 anos não podia decidir se casar sem o consentimento dos pais) e podia ajudar na compra dos móveis. “Meu pai foi o único a não gostar da ideia. Ele acha- va que eu era muito nova e que era bobeira eu desistir do meu HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 3 112 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 112LivroGaby-Historias de Velhos.indb 112 15/11/2023 16:47:2815/11/2023 16:47:28 sonho de estudar e ser professora por conta de um homem. De- pois de muita conversa, decidiu que eu poderia me casar e que iria me ajudar comprando os móveis do dormitório.” Mas Pedro nunca realizou o pagamento dos móveis. Por isso, Gracia preci- sou sacar um dinheiro que tinha guardado para ir com Thita em São Bernardo do Campo, a cidade dos móveis, comprar o que faltava. O padrasto de Thita deu a geladeira. E o noivo, João, só comprou a mesa e o fogão. Pouco tempo antes do casamento, João foi demitido. Ele traba- lhava como motorista no Banco Mercantil. Logo depois, conse- guiu um emprego na CBS Discos e fazia entrega dos discos nas lojas durante a noite, porque de dia era proibido ficar fazendo entrega com perua. A música era entregue de madrugada para não atrapalhar o fluxo de pessoas que andavam pela região de manhã e na parte da tarde. Apesar de ser uma loja de Discos, o trabalho de João era muito silencioso e solitário. Thita e João se casaram em 6 de fevereiro de 1971, às 17h45 (porque a partir das 18h, o valor era mais caro), na Igreja Nossa Senhora da Lapa. “Essa foi uma recomendação da minha mãe, porque como eu estava afastada da família do meu pai, ninguém de lá foi convidado. Então, casar na Igreja da Lapa era uma es- tratégia de evitar burburinhos.” Thita se casou com um vestido branco com brilhos, mangas cur- tas bufantes, gola redonda, um cinto com duas franjas pendura- das e uma grinalda com margaridas. Tudo o que pôde escolher era com margaridas: decoração, bolo e o buquê. Inclusive, a ideia era usar um buquê feito por uma floricultura, porém ele chegou antes do horário e acabou murchando. Por isso, Santa resolveu fazer um novo buquê com as flores que tinha em seu jardim. “Ele ficou super delicado.” Já o terno azul marinho de João foi feito em um alfaiate. Ele o vestiu acompanhado de um sapato de pelica. 113BEM-VINDOS À VIDA ADULTA LivroGaby-Historias de Velhos.indb 113LivroGaby-Historias de Velhos.indb 113 15/11/2023 16:47:2815/11/2023 16:47:28 Thita entrou na Igreja ao lado de seu padrasto, já que seu pai não apoiava o relacionamento. Tempos depois descobriu que o pai ficou vendo o casamento escondido, pelo lado de fora da igreja. A celebração foi animada e todos os convidados saíram muito felizes. “Depois do casamento, fiquei pensando o que eu ia fazer com aquele vestido, que nunca mais seria usado. Então, descobri que a Igreja de Santa Rita de Cássia fazia um bazar com vestidos de noiva, em um valor mais em conta para quem não conseguia comprar, e resolvi doar meu vestido.” Meses depois do casamento, João foi novamente despedido do serviço. “Ele saia daqui de casa umas nove da noite e voltava só pela manhã. Mas não demorou muito e ele também foi dispensa- do desse emprego. Eu acredito que tenha sido pela bebida. Mas não garanto, porque naquela época eu não enxergava muito isso.” Não dava para João continuar daquele jeito, ainda mais com o casamento recente. Por isso, Gesner, padrasto de Thita, comprou uma kombi vermelha para João trabalhar como se fosse uma lota- ção, buscando as pessoas que saiam da estação de trem da Lapa. “Só que isso também não deu muito certo, então meu padrasto ficou com a Kombi para fazer as entregas do seu armazém. E para ajudar João, comprou o bar que ficava aqui do lado de casa, do nosso vizinho Matheus, para dar mais uma oportunidade pra ele.” O que já não estava bom, piorou de vez. Thita conta que foi aí que João atolou de vez, porque já era viciado em bebida, ou seja, em vez de vender, ficava bebendo com outras pessoas. Naquela época, Thita começou a voltar de carro da cooperativa com Tereza, outra irmã de João, e seu marido Décio. Eles sem- pre a ajudaram, mas naquele período o cuidado começou a ser maior, já que Thita estava grávida de sua primeira filha. Em 3 de janeiro de 1972, Thita e João tiveram sua primogênita: Kátia Cristina Simeão de Oliveira – mãe de quem vos escreve este livro. “Quando a Kátia nasceu, eu estava vivendo uma épo- HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 3 114 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 114LivroGaby-Historias de Velhos.indb 114 15/11/2023 16:47:2815/11/2023 16:47:28 ca terrível. O João ficava no bar bebendo, bebendo e bebendo. Quando fechava o bar às 4 ou 5 horas da manhã, ele vinha pra casa, sabe Deus como. Jogava o dinheiro em cima do guarda roupa e deitava na cama.” O problema maior estava no dia se- guinte. Todos os dias às 8 ou 9h da manhã, a campainha tocava: - Olá! Nós viemos entregar as bebidas. Mas Thita nem sempre encontrava o dinheiro completo para o pagamento. “Vamos supor que fosse R$30,00. Então, eu encon- trava R$20,00 em cima do armário e o restante eu precisava arrumar com a tia ou outra pessoa da família. Enquanto isso, João dormia.” João era uma pessoa generosa e isso fazia com que os outros o fizessem de bobo. “Ele não conseguia nem o dinheiro para cobrir os custos, porque as pessoas se faziam se amigas dele, jogando cartas, e iam embora sem pagar.” A vida da menina que largou os estudos por amor começou a desmoronar e a segurança que foi prometida pelo parceiro falhou. “Eu pensava: ‘nossa, que loucura que eu fui fazer com a minha vida.’ Porque eu tinha que cuidar da Kátia pequena, ficava fazendo e fritando os salgados até de- pois da meia noite e ainda tinha que lidar com João bebendo. Lembro de uma noite que eu precisei buscar João no bar. Ele estava se contorcendo de dor no chão, porque, de tanto beber, teve pancreatite.” Para resolver a situação e tentar tirar João do alcoolismo, o padrasto de Thita ficou com o bar e deu um dinheiro para que ele conseguisse um novo emprego. Então, João voltou a fazer as lotações com a Kombi, mas não deu certo. Depois, começou a fazer alguns trabalhos de bico. “Ele entregava um pouco de tudo, até chocolate. Até que arrumou um emprego para trabalhar com caminhão, mas sofreu um acidente grave. Eu não sei dizer se ele estava com sono ou se foi um problema com o próprio caminhão, mas ele caiu na ribanceira.” Quando 115BEM-VINDOS À VIDA ADULTA LivroGaby-Historias de Velhos.indb 115LivroGaby-Historias de Velhos.indb 115 15/11/2023 16:47:2815/11/2023 16:47:28 se recuperou, João conseguiu um emprego como motorista de um argentino, que morava na Rua dos Franceses, no bairro da Bela Vista, centro de São Paulo. Com João se firmando no serviço, Thita decidiu que não queria mais deixar seu grande sonho de lado. Mas como faria para dar conta de tudo? Foi aí que Gracia encontrou com Carlota, madri- nha de Thita, e ela sugeriu que a sobrinha começasse a trabalhar no Mobral, já que não era necessário ser formada. O Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral) foi um programa criado du- rante a ditadura militar, em 1970, com o objetivo de erradicar o analfabetismo no país em 10 anos. Uma chama ressurgiu no coração de Thita. “Por coincidência, a prova para se tornar professor do Mobral aconteceu uma sema- na depois da conversa da minha mãe com a minha madrinha.” Carlota passou todas as informações para que Thita conseguisse fazer a prova. No dia do exame teórico, havia outras 40 pesso- as na sala. Depois disso, fizeram uma dinâmica de grupo com umas 12 pessoas e perguntaram o que cada um achava sobre os adultos retornando para escola. “Na hora de responder, eu acho que me baixou um santo, porque eu comecei a falar da tia Eliza, que sempre foi uma excelente funcionária e nunca conseguiu subir de posto, pois ela era insegura com seu conhecimento, lia pouquinho e quase não conseguia assinar o próprio nome. E foi com esse gancho que eu fiz minha redação e fui aprovada.” Dois dias após a aprovação, Thita recebeu um comunicado em casa que era para ela se apresentar em determinado dia e horá- rio. E quando chegou no colégio foi surpreendida. “A diretora me parabenizou por ter sido aprovada e disse que havia duas salas me aguardando naquele mesmo dia, porque o professor Rubens pediu demissão e deixou suas classes da tarde sem aula.” Thita recebeu os livros, o diário de classe, a chave da sala e o ende- reço da igreja em que iriam ser as aulas. Sem qualquer apresen- tação ou explicação, a primeira aula começou. “Tudo fluiu tão HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 3 116 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 116LivroGaby-Historias de Velhos.indb 116 15/11/2023 16:47:2815/11/2023 16:47:28 bem em meu primeiro dia. Por isso, eu tenho certeza de que eu já trago essa missão de ser professora de outros momentos. Eu nasci para dar aula e é isso que eu amava fazer.” Com a realização do sonho de ser professora, Thita começou a se planejar para realizar o sonho de Kátia de ter um irmãozi- nho. “Como eu gostava muito de criança, mesmo levando essa vida difícil com o João, eu resolvi engravidar. Porém pouco tem- po depois, perdi meu neném. Parece que foi coisa do destino, porque João estava mais uma vez desempregado.” Então, Thita resolveu falar com Miguel, um dos irmãos mais velhos de João, e foi aí que ele conseguiu emprego como motorista da alta lide- rança das Indústrias Gessy Lever. Thita engravidou mais de uma vez, mas infelizmente teve mais um aborto espontâneo. Depois de muita luta, Thita ficou grávida novamente. O neném arco-íris era uma menina. “Foi muito difícil o período antes dessa gravidez, porque eu já estava perdendo a esperança que teria mais um filho. Eu agendava consulta e exames para ver como estava a minha questão hormonal, mas o João não ia e sem os acompanhamentos da saúde dele, os médicos não tinham muita noção do que estava acontecendo.” Thays Helena, a segunda e mais planejada filha de casal, nasceu em 13 de setembro de 1983. “A neném veio para nos trazer muito alegria, especialmente, para Kátia, que foi filha única por muitos anos.” E nove meses depois, Thita soube que estava grávida da úl- tima filha, Anna Luiza. “Eu jurava que não ia ter mais filhos, porque foram mais de 12 anos de muita dificuldade para conseguir a Thays.” - Doutor, tem alguns dias que minha menstruação não está vin- do. Será que é porque eu estou dando de mamar para Thays? – questionou Thita. - Não, isso não é verdade. Isso está acontecendo, porque você está grávida. – respondeu o médico. 117BEM-VINDOS À VIDA ADULTA LivroGaby-Historias de Velhos.indb 117LivroGaby-Historias de Velhos.indb 117 15/11/2023 16:47:2815/11/2023 16:47:28 Thita ficou parada, sem reação. Depois de um tempo, a felicida- de tomou conta do seu peito. Amava ser mãe e estava grata com a surpresa. Saiu da consulta toda animada, mas a alegria foi inter- rompida quando deu a notícia para o marido, na parte da noite: - Hoje, você foi lá no médico, né? E aí, o que é que deu? – per- guntou João. - Deu que eu estou grávida. – respondeu Thita. - Meu esse filho não é. A reação de João veio como um balde de água fria com gelos para Thita. No dia seguinte de uma noite mal dormida, ela foi contar para sua mãe que estava grávida e como foi a reação do marido. “Minha mãe falou pra mim: ‘Larga esse cachorro, esse homem não te merece.’ Nessas alturas, como meu padrasto já havia falecido, ela falou para eu pegar as meninas e ir morar com ela. Por isso que a gravidez da Anna foi muito difícil pra mim, porque eu tinha que lidar com a mágoa por conta das palavras do João.” Thita escolheu seguir com a situação como estava, mesmo com muita tristeza em seu coração. No dia em que a família de João estava toda reunida, chegou a hora de contar para eles a novi- dade. “Eu lembro que a mãe dele me chamou em um cantinho e disse: ‘você está esperando neném de novo?’ E eu disse que sim. Aí ela me pediu para não ficar triste, se vai dar problema para você pode ‘deixa nascer, que eu crio o neném para você.’ Ela era muito sábia e aquilo foi como um tapa na minha cara. Já imagi- nou uma senhora de 80 anos querer criar meu filho, porque eu estava com problemas?” O desfecho foi que Anna Luiza nasceu em 2 de abril de 1985, com muita saúde. Veio para completar o lindo trio de meninas que tinha na casa. Porém essa foi uma época muito triste. João aumentou sua ingestão de álcool e passou a ser cada vez mais HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 3 118 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 118LivroGaby-Historias de Velhos.indb 118 15/11/2023 16:47:2815/11/2023 16:47:28 ciumento. “Quando ele foi demitido da Gessy Lever, 17 anos depois de sua contratação, por causa da bebida, minha vida vi- rou um verdadeiro inferno. Eu lembro um dia que ele estava tão louco, me seguindo, que eu resolvi ir até a Delegacia da Mulher. Chegando lá, a atendente disse que era melhor eu registrar a ocorrência no Tribunal de Pequenas Causas e aí eu acabei de- sistindo. Mas eu passei muito desgosto e sofri muitas ameaças verbais e físicas, inclusive, até com um facão, que ainda deve estar aqui em casa.” O que mantinha Thita em pé era sua fé, o carinho que recebia das filhas e o amor pela profissão. A professora passou mais de 20 anos dando aula para o Mobral, da Igreja Nossa Senhora Auxiliadora até o Centro Esportivo. “Minhas turmas sempre fo- ram muito cheias. Eu me identificava muito com as senhoras. Para você ser um bom professor de Mobral você não pode ser um professor do tipo que usa muito ‘sr.’ e ‘sra.’, é necessário ser simples como eles.” Thita explica que até na hora de corrigir um erro, você tem que falar o erro de certa forma para depois che- gar na correção. “Principalmente, na hora dos ditados, é possível dar dicas, sem humilhar nenhum aluno. Então, eu falava salsicha é com ‘L’ no ‘sal’ e, devagarzinho, eles iam aprendendo.” Tudo estava indo bem e Thita se sentia muito realizada. Até que uma mudança na lei trouxe insegurança para o seu sonho. “Em 1990, quando Paulo Maluf se tornou governador de São Paulo, uma bomba parecia ter caído em minha cabeça. Eu lembro que estava escolhendo minha sala, quando recebi a notícia que para dar aula no Mobral dali em diante era necessário ter curso ma- gistério e eu não tinha.” Antes dessa mudança, era necessário ter só até o colegial, que Thita realizou adulta, após o nascimento da primeira filha e a distância. “Então, eu fiquei sem minha turma e ao Deus dará. Não era dis- pensada, mas eu ia ser aproveitada em outra secretaria. Foi aí me mandaram para DREM - Delegacia Regional de Educação, 119BEM-VINDOS À VIDA ADULTA LivroGaby-Historias de Velhos.indb 119LivroGaby-Historias de Velhos.indb 119 15/11/2023 16:47:2815/11/2023 16:47:28 como supervisora do MOVA, que era um Movimento de Alfa- betização de Jovens e Adultos.” Thita precisava acompanhar o conteúdo que estava sendo passado e quantos alunos havia na classe, das 18h às 21h. “Só que, para ajudar, o João não aceitava que eu estava saindo esse horário com as mulheres.” Em uma noite que foi necessário ficar até 22 horas na DREM, Thita veio na frente com o moto- rista Rogério e as outras amigas, Cida e Maria Alice, vieram no banco de trás. “Na minha opinião, a ordem dos fatores não alte- rava o produto. Então, não importava vir na frente ou no banco de trás, mas não foi isso que João achava.” Quando Thita desceu da perua na porta de sua casa, João avançou no motorista e começou a bater nele. “Eu passei uma vergonha tão grande que no dia seguinte eu não queria mais ir trabalhar. Aí a minha mãe foi falar com a delegada Maria Helena. Explicou que eu estava muito envergonhada e que não queria mais voltar.” Assim, a de- legada disse que era para Thita ficar uma semana em casa e que não se preocupasse, porque tudo ocorreu na parte da noite e não haveria nenhuma fofoca sobre o assunto. “E no final, eu pre- cisei seguir minha vida e voltar a trabalhar lá, porque eu pagava a faculdade de farmácia da Kátia nessa época e precisava muito daquele dinheiro.” Com todos esses acontecimentos, Thita ainda tinha um proble- ma que não havia conseguido se livrar: a necessidade de con- cluir seu Magistério. Blém – blém blém. O tempo parecia voar e o prazo máximo para apresentação de seu Trabalho de Conclu- são de Curso (TCC) era até 1995, senão ela seria dispensada da prefeitura. Thita não é uma pessoa que cruza os braços e desisti tão rápido do que quer, por isso passou no vestibulinho e se ma- triculou na Escola Estadual Candido Gonçalves Gomide, na Rua Avelino Zanetti, próximo ao Hospital de Pirituba. “Só que estava ficando muito complicado pra mim, porque eu ia para o curso às 7h, voltava na hora do almoço e depois ia trabalhar. Eu não tinha mais cabeça para ficar com aquela garotada de 15, 16 anos.” HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 3 120 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 120LivroGaby-Historias de Velhos.indb 120 15/11/2023 16:47:2815/11/2023 16:47:28 Thita rezou muito, muito mesmo para conseguir sair daquela situação. Foi aí que outra supervisora da DREM, a amiga Helena, contou que havia um curso de Magistério no Rio de Janeiro, em que você só precisava ir uma vez no mês. “Ela me passou o en- dereço de Resende e disse que outras amigas dela também esta- vam fazendo assim. Então, meu pai foi até lá, se informou como funcionava de fato e achou que valia a pena. Assim, começaram minhas idas e vindas para o Rio de Janeiro.” Ao todo, foram três anos em que Thita passou vivendo essa aven- tura. Para chegar em Resende era necessário pegar um ônibus no Terminal Rodoviário do Tiete, às 20h, e chegar lá por volta de meia noite. “No sábado, nós tínhamos aula o dia inteiro. E eu como sempre fui boa aluna e só tinha aquela chance, me sentava na minha carteira e ficava prestando muita atenção no professor. No dia seguinte, das 8h às 12h, íamos para escola fazer prova sobre o que foi passado no dia anterior.” Era necessário tirar mais do que oito para não ter que repetir a mesma avaliação. “Depois disso, eu pegava um ônibus às 15h e chegava em casa por volta de 21h, porque a via Dutra estava entupida de carro.” A cada ida para o Rio, os alunos recebiam três apostilas para estudarem ao longo do mês. Ou seja, a aula de sábado era como se fosse um resumão, apenas para que os alunos relembrassem o conteúdo previamente estudado. “Eu sabia como funcionava, mas sempre ia crua, porque do jeito que eu trazia as apostilas, elas voltavam. Eu não tinha tempo algum de estudar.” Algumas amigas de Thita iam estudando no ônibus para tentar recuperar o “tempo perdido”, só que ela tinha tontura e não conseguia fazer o mesmo. “Então, eu era 100% dependente da aula de sábado e preferia ir descansando para aproveitar ao máximo o conteúdo.” Além das aulas, era necessário fazer estágio para computar horas complementares. E assim, depois de muito sacrifício, em 1995 Thita concluiu o Magistério. “Quando eu peguei meu diploma, minha vida mudou, assim como meu holerite e meu padrão. Só 121BEM-VINDOS À VIDA ADULTA LivroGaby-Historias de Velhos.indb 121LivroGaby-Historias de Velhos.indb 121 15/11/2023 16:47:2815/11/2023 16:47:28 que eu não podia mais continuar na DREM. Então, me oferece- ram quatro salas para eu pegar e eu escolhi a turma de terceira série do Parque Maria Domitila, na zona oeste de São Paulo.” Thita chegou super animada, afinal só tinha dado aula para adul- tos e sentia que seria mais fácil com as crianças. “Logo no pri- meiro dia quebrei todas minhas expectativas. Eu chegava em casa só com vontade de chorar, porque as crianças não estavam nem aí para o que eu falava.” Os adultos ficavam parados e pres- tando a maior atenção no que era explicado; só interrompiam quando havia alguma dúvida. “As crianças não paravam de gritar e conversar. Inclusive, eu tinha um aluno que andava pelo para- peito da janela, enquanto eu estava explicando a matéria. Então, imagina a preocupação que eu ficava dele cair... mas quem disse que ele me obedecia, né? “ Thita não conseguia captar a atenção das crianças, mesmo le- vando gibis para que lessem no fim da aula ou que prometes- se colocar a música “Brasília amarela / Pelados em Santos”, dos Mamonas Assassinas, caso se comportassem. Até que a sorte passou novamente por ela. O encontro repentino com a amiga Maria Elisa fez com que Thita descobrisse uma vaga para traba- lhar na Escola Municipal de Ensino Fundamental Silvio Portugal. - Saia dessa escola que não está te fazendo bem, Thita. Hoje, vai ter uma reunião em que vão decidir quem será o novo auxiliar de período. Você só precisa levar um projeto e cair nas graças dos avaliadores. Não é sala de aula, mas será muito mais tran- quilo – assegurou Maria Helena. Na hora da reunião, Pirituba estava passando por uma chuva muito forte, que fez com que Thita pensasse se realmente deve- ria ir. “Eu me troquei toda bonitinha com uma camiseta laranja, ainda me lembro que João, como um tigre, veio me perguntar onde é que eu estava indo e eu expliquei a situação.” Thita foi para o teste com apenas com o rosto que Deus a deu, afinal, não teve tempo para preparar um projeto. Na sala de reunião, havia HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 3 122 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 122LivroGaby-Historias de Velhos.indb 122 15/11/2023 16:47:2815/11/2023 16:47:28 os professores do conselho, os pais que faziam parte do conse- lho e os professores da escola que também estavam se candida- tando. “Na minha vez, eu contei que fui surpreendia com a vaga naquela manhã e que, por isso, eu não tinha um projeto. Mas ressaltei que eu estava disposta a dar o meu melhor e que era meu sonho trabalhar na escola em que minha filha, Kátia, havia estudado.” E assim, depois da votação, veio a notícia de que ela foi escolhida para a vaga. A professora entrou como auxiliar de período das 11h às 15h, ho- rário intermediário que ninguém gostava de pegar. “A minha fun- ção era como se eu fosse a substituta da diretora. Então, quando ela não estava presente, eu precisava dar conta de tudo: proble- mas de comportamento dos alunos, queixas dos professores e outas coisas que aconteciam naquele período.” Thita lidou com muitos casos difíceis. A preocupação com crianças e adolescentes sempre fez parte de sua rotina. “Um dos alunos que me marcou demais foi o Bruninho, porque ele fazia parte de um grupinho rebelde da oitava série. Eles não queriam entrar na aula e ficavam encostados no muro do colégio fuman- do e bebendo. Mas eu não deixava isso acontecer, eu rodeava a escola e mandava eles entrarem. Só que um dia, o Bruninho escapou da minha fiscalização e passou a manhã bebendo muito – e teve um coma alcoólico. Uma professora chamada Thais, es- tava com um carro novinho, mas precisou me colocar no carro com ele e uma caixa de leite, que eu usei para proteger o carro do que vinha do estômago.” O garoto deu entrada no hospital em coma alcoólico, E além de salvar o menino, Thita também precisou contar em detalhes tudo o que havia acontecido para a mãe de Bruninho, que atualmente é dona de uma das principais casas de repouso de Pirituba. Thita também têm lembranças de quando enfrentou o precon- ceito contra as crianças que viviam em uma comunidade pró- xima ao McDonald’s da Avenida Mutinga. “Infelizmente, mas é 123BEM-VINDOS À VIDA ADULTA LivroGaby-Historias de Velhos.indb 123LivroGaby-Historias de Velhos.indb 123 15/11/2023 16:47:2815/11/2023 16:47:28 verdade, parece que ninguém gosta de pobre, não é? Por isso, as crianças que vinham da favela eram muito discriminadas por alunos e professores. Mas eu tinha muito dó e tentava agradar de tudo o que era jeito aqueles meninos.” No auge de sua carreira, quando estava com seus 50 anos, pre- cisou se aposentar. “Eu era super nova e respeitadíssima. Todo mundo aqui em Pirituba me conhecia como ‘diretora do Silvio Portugal’ e olha que eu nem era propriamente a diretora.” Dois motivos foram fundamentais para Thita deixar o lugar que tanto amava. Primeiramente, havia um boato de que quando Luiz Iná- cio Lula da Silva assumisse a presidência ele iria mudar as leis da Previdência Social e as pessoas só iriam se aposentar com muita idade. Além disso, Kátia estava esperando uma neném e, como trabalhava em hospital como farmacêutica, precisaria voltar as- sim que a licença de quatro meses acabasse. “Eu pensava assim: ‘como eu vou fazer a judiação de deixar minha filha largar minha neta em qualquer lugar cedinho para ir trabalhar? Impossível. Então, meu pai correu com a papelada para eu me aposentar e, com meus 31 anos de contribuição, consegui.” No dia 17 de março de 2003, Kátia voltou a trabalhar e na mes- ma semana, a aposentadoria de Thita saiu. “Eu preciso ser since- ra que a aposentadoria me caiu um pouco triste, sabe? [me diz constrangida, já que deixou de trabalhar por minha causa]. Eu tive uma festa de despedida muito boa, até hoje quando lem- bro, tenho vontade de chorar. Além do almoço, ganhei brincos e um colar com pingente verde, que eu guardo de lembrança.” De mãos dadas, todos cantaram a “Canção da América”, de Milton Nascimento, para Thita – “Amigo é coisa pra se guardar”. Após a despedida, a vida de Thita mudou e uma nova rotina co- meçou. De professora de Mobral e auxiliar de período, passou a ter a função de avó. O relógio despertava junto com o galo e às 6h já estava com a neta no apartamento, para que a filha e o genro pudessem trabalhar. Thita ficava comigo até às 17h, quan- HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 3 124 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 124LivroGaby-Historias de Velhos.indb 124 15/11/2023 16:47:2815/11/2023 16:47:28 do meus pais voltavam do serviço. “Você não gostava de ficar comigo e só chorava o dia inteiro, mas eu não me importava. O que a gente não faz por amor, não é mesmo? Meu tempo foi bem preenchido durante a aposentadoria.” E assim Thita foi tocando até o nascimento de Nicolle (hoje com 16 anos), sua segunda neta, filha de Thays. Atualmente, Thita também divide seu tempo e carinho com ou- tros netos – Arthur, 14, Vinicius, 13, Lívia, 12, Mariane, 9, e Ma- theus, 7 – além de sua cachorrinha Nynna. “Tem gente que me pergunta se eu não quero arrumar um outro homem, depois que eu fiquei viúva, e rapidamente eu respondo que não. Eu nunca fui uma pessoa amada e isso é uma coisa que todo ser humano deseja, ou seja, receber um ato de carinho e atenção. Eu nunca tive isso. Eu sou uma pessoa extremamente só, que teve uma vida muito complicada – desde criança – e nunca recebeu amor. Fui uma pessoa muito desvalorizada pelos pais, porque meu pai dizia para os outros que eu era sua sobri- nha e minha mãe deu graças a Deus quando eu casei, pois me teria longe de casa. E depois, eu fui desvalorizada também pelo João, que nunca me deu valor como sua esposa.” Faço uma pausa... Não é fácil eu ter que ouvir que a pessoa que eu tanto amo já se sentiu desvalorizada e sozinha, inclusive por conta do meu avô. Sinto como se minha alma tivesse sido per- furada e que os buracos só poderão ser preenchidos com ainda mais gratidão e momentos com minha avó, a mulher mais forte, resiliente e inspiradora que já conheci. 125BEM-VINDOS À VIDA ADULTA LivroGaby-Historias de Velhos.indb 125LivroGaby-Historias de Velhos.indb 125 15/11/2023 16:47:2915/11/2023 16:47:29 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 126LivroGaby-Historias de Velhos.indb 126 15/11/2023 16:47:2915/11/2023 16:47:29 CAPÍTULO 04 SOBRE 127 ser velho LivroGaby-Historias de Velhos.indb 127LivroGaby-Historias de Velhos.indb 127 15/11/2023 16:47:3015/11/2023 16:47:30 HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 4 128 Capitulo_04.indd 128Capitulo_04.indd 128 16/11/2023 22:51:4916/11/2023 22:51:49 “P ra mim, ‘véio’ é trapo. Eu me considero super jovem e cheia de vida.” Emília rejeita o termo “velho”. Assim como boa parte de nossa sociedade, considera a palavra, quando usada para se referir a idosos, pejorativa. “Gosto de pensar que sou uma pessoa sábia, experiente. Isso sim! Porque hoje olho para de- terminadas situações e sei rapidamente como lidar com elas. Antigamente não era assim.. . eu sofria mais para encontrar uma solução.” Ela diz que não tem nada do que reclamar, mesmo estando em uma casa de repouso. “A vida é muito linda pra quem sabe viver. Agora pra quem só vive procurando pelo em ovo, tudo fica ruim.” Sempre escolheu fazer um recorte positivo de sua trajetória, tirando aprendizado de cada situação, mas tem consciência de que, para além de saber ver a vida de forma otimista, nem todos os idosos em nosso país contam com a sorte de viver com dignidade. “Sei que envelhecer no Brasil , para muitos, é uma verdadeira tristeza. Tem idosos que não contam com apoio de ninguém. Tem gente que chega aqui na casa de re- pouso e é esquecida. E com relação ao estado, mesmo se melhorar muito as políticas voltadas aos mais velhos, ainda Emília Gomes Pereira Batista 129SOBRE “SER VELHO” LivroGaby-Historias de Velhos.indb 129LivroGaby-Historias de Velhos.indb 129 15/11/2023 16:47:3915/11/2023 16:47:39 assim faltará coisa pra ser feita.” A “ jovem Emíl ia” não tem medo da morte. Diz que “a gen- te morre todo dia quando vai dormir e volta a viver quan- do acorda, então por que temer?” Sobre o futuro, não tem grandes planos: “só quero me preocupar em ter muita saúde e ser fel iz.” Ela termina nossa conversa para esse l ivro deixando um con- selho para quem quer chegar na terceira idade, sentindo-se bem e satisfeito. “Seja bom e não faça com os outros o que você não quer que façam contigo. Assim terá uma vida fel iz.” --- Separação gráfica HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 4 130 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 130LivroGaby-Historias de Velhos.indb 130 15/11/2023 16:47:3915/11/2023 16:47:39 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 131LivroGaby-Historias de Velhos.indb 131 15/11/2023 16:47:3915/11/2023 16:47:39 HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 4 132 Capitulo_04.indd 132Capitulo_04.indd 132 16/11/2023 22:51:5516/11/2023 22:51:55 “Só a saúde que diminuiu, mas de resto tudo continua igual”, garante Maria de Lourdes, com um olhar também positivo sobre sua vida na terceira idade. - Minha filha, você conhece a história da palmeira? – me per- gunta. - Não conheço, dona Maria. - Pois saiba que essa história explica muito sobre a velhice. Quan- do bate um vento, a palmeira enverga com facilidade, mas na hora de voltar para o lugar é a maior lentidão. E assim é a saúde do idoso. Uma coisa que sai do lugar já desanda tudo e demora pra ficar boa. As energias vão diminuindo, porque tudo o que você trabalhou ao longo da vida impacta na velhice. Mesmo com algumas limitações, principalmente pela dor nas costas e nos joelhos, faz questão de ressaltar que não se sente velha. “Eu não posso ser chamada de idosa, porque eu não vivo choramingando pelos cantos não. Meu espírito é jovem”, diz sor- rindo com entusiasmo. Sobre o tratamento de nossa sociedade aos mais velhos, mesmo reconhecendo que muito precisa ser melhorado, comemora Maria de Lourdes Vieira 133SOBRE “SER VELHO” LivroGaby-Historias de Velhos.indb 133LivroGaby-Historias de Velhos.indb 133 15/11/2023 16:47:4315/11/2023 16:47:43 alguns avanços. “Pelo menos hoje o idoso é tratado como gente. Antes os mais velhos tinham que esperar na mesma fila dos mais novos. Isso eu posso afirmar por mim, porque vejo como os idosos são atendidos quando chegam em um hospital. Anti- gamente os idosos eram tratados pior do que cachorro, inclu- sive com violência verbal.” Maria diz que nunca sofreu preconceito por causa da idade. Infelizmente o mesmo não pode ser dito em relação a situações que viveu por conta da cor da sua pele. O racismo sempre foi uma realidade, a começar da própria família. “As pessoas têm muito preconceito com ‘gente de cor’, incluindo a família do meu marido lá no Ceará. Eu casei na marra mesmo, porque a minha sogra me odiava. Ela não suportava ninguém como eu. Por muito tempo tive que viver ouvindo comentários maldosos.” Ela explica que, com o tempo, a família do esposo foi perce- bendo que ela era uma mulher de valor e passou a tratá-la bem. Feliz, Maria de Lourdes não tem grandes ambições com relação ao futuro. “Depois de tudo o que eu passei, sou muito grata por ainda estar viva e bem. Não tenho vergonha da minha idade. Só peço a Deus para continuar com a saúde boa, conseguir com- pletar meus 90 anos com lucidez e com a capacidade de ler e observar as coisas. Também peço para continuar dinâmica e independente, porque eu não gosto de precisar dos outros pra fazer minhas coisas.” Se tivesse que pedir alguma coisa para os governantes, apelaria pelos mais jovens: “é preciso olhar com atenção para eles, pois vão dar continuidade em nosso país.” x (divisão gráfica) HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 4 134 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 134LivroGaby-Historias de Velhos.indb 134 15/11/2023 16:47:4315/11/2023 16:47:43 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 135LivroGaby-Historias de Velhos.indb 135 15/11/2023 16:47:4315/11/2023 16:47:43 HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 4 136 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 136LivroGaby-Historias de Velhos.indb 136 15/11/2023 16:47:4715/11/2023 16:47:47 “A gente é obrigado a se considerar idoso pela idade, mas o que posso dizer é que sou um cara muito privilegiado. Cheguei até aqui sem sentir nada”, diz Mitsuji referindo-se à sua saúde. “Nunca fumei, bebi ou fiz qualquer tipo de extravagância, por isso hoje não enfrento grandes problemas.” O dentista só lamenta que já não se sinta tão seguro para fazer as cirurgias odontológicas que realizava quando mais novo. “De- pois dos 70 anos, eu comecei a sentir uma necessidade de pas- sar os procedimentos mais difíceis, como as cirurgias, para meus filhos. Não que eu não consiga fazer, porque eu ainda consigo, mas sinto que é melhor assim.” - Pô, pai, mas que televisão alta! – comentam Rodrigo e Roberto ao entrar na sala de Mitsuji. - Ué. Pra mim, esse volume tá ótimo – responde. É com esse e outros diálogos, especialmente com os filhos, que o dentista começa a pensar que ele não está mais com 100% de saúde, apesar de se definir como um exemplo para seus 83 anos. Ele tem um olhar de pesar sobre a velhice no Brasil e, ine- vitavelmente, compara a vida dos idosos brasileiros com a Mitsuji Matsubara 137SOBRE “SER VELHO” LivroGaby-Historias de Velhos.indb 137LivroGaby-Historias de Velhos.indb 137 15/11/2023 16:47:4715/11/2023 16:47:47 dos japoneses. “É lamentável, viu?! Eu sempre ouvi falar que no Japão as pessoas têm o maior zelo e preocupação com o idoso. Aqui tem cara que vira e fala que você já tá gaga. Isso eu acho muito chato, porque o idoso pode ter dificuldade em certas coi- sas, mas em matéria de conhecimento de vida, meu Deus, não tem pra ninguém.” Mitsuji já foi vítima do etarismo, por ser um profissional com mais de 80 anos. “As pessoas têm preconceito com quem traba- lha nesta idade. O profissional é muito discriminado. Tem gente que chega aos 60 anos e começa a enxergar menos, começa a tremer as mãos, mas, graças à Deus, a minha visão estagnou e eu não tive nenhum movimento afetado, só que tem gente que chega no consultório e eu sinto que a pessoa não se sente con- fortável ao ver que a voz por trás do telefone era a minha.” O dentista abre um sorriso sem graça, com uma expressão de indignação, quando pergunto sobre as pretensões sobre o futuro. Conta que não tem muitas expectativas. “Quando a gente chega aos 80 não é brincadeira...” Com a voz embargada pelo choro, prossegue. “Ainda bem que eu e minha esposa nunca tivemos ne- nhuma doença grave. Mas a idade não é nada legal. Eu não tenho mais sonhos, porque onde a gente tinha que ir, a gente já foi.” Ele diz que agradece a Deus por tudo o que tem feito por ele e Rosa Maria. E afirma que a partir de agora tudo o que vier é lucro. - Oh, Gabrielly, fazia tempo que alguém não me fazia chorar. Mesmo assim, eu acho que você merece esse presentinho. É só um chocolate para adoçar seu dia, mas é de coração! Obrigada por resgatar tantas lembranças que eu tinha dentro de mim e nem recordava mais. E quem sai dali com os olhos encharcados sou eu... x (divisão gráfica) HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 4 138 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 138LivroGaby-Historias de Velhos.indb 138 15/11/2023 16:47:4715/11/2023 16:47:47 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 139LivroGaby-Historias de Velhos.indb 139 15/11/2023 16:47:4715/11/2023 16:47:47 HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 4 140 Capitulo_04.indd 140Capitulo_04.indd 140 16/11/2023 22:52:0016/11/2023 22:52:00 “’A velhice não é para os fracos’. Sempre guardo essa frase da minha mãe. É uma grande verdade”, destaca Ana ao avaliar como é chegar à terceira idade. Principalmente envelhecer no Brasil ela considera que é algo difícil. “E muito pela falta de cumprimento da legislação relacionada aos idosos.” Para a psicóloga, o problema não está em criar mais leis, mas em cumprir as que existem. “O Brasil não tem uma sociedade que respeita os mais velhos, que valoriza a história de vida dos que têm mais experiência. Por isso, penso que envelhecer aqui é hard, nosso país é voraz... Aqui, as pessoas tentam tirar vantagem de tudo. Se eu vejo que entra uma pessoa idosa querendo sentar no ônibus, eu disfarço, finjo que estou dormindo e acho isso legal.” Ela destaca o quanto isso é preocupante, considerando que nossa pirâmide populacional já não é mais a mesma, com o número de pessoas longevas aumentando cada vez mais. “Daqui pra frente, o governo e a sociedade devem pensar mais nos idosos, inclusive, nos idosos que ainda estão na pinta, se arrumam, trabalham e têm idade.” O idoso é tratado muitas vezes de forma infantil izada, como se não fosse mais um sujeito com direitos e opiniões, e isso é algo que Ana repudia. “Não é porque você é idoso que vira uma ‘pessoinha’ frágil . Muito pelo contrário! Você passa a ter decisões mais assertivas.” Ana Cristina de Sá 141SOBRE “SER VELHO” LivroGaby-Historias de Velhos.indb 141LivroGaby-Historias de Velhos.indb 141 15/11/2023 16:47:5115/11/2023 16:47:51 Ela diz que adoraria ter aos 20 anos a cabeça que tem hoje, aos 64. “Seria interessante mudar alguns posicionamentos que tive no passado ou fazer coisas que deixei de fazer por falta de experiência.” Ana já precisou enfrentar o preconceito por conta da idade. “Às vezes, eu vou ao médico e o convênio que eu tenho exige que um acompanhante vá comigo, por eu já ter mais de 60. O médico fala com o acompanhante, como se eu não existisse. Daí eu tenho vontade de falar: ‘hei, eu ainda existo, ok?’. Parece que quando a gente passa dos 60, vira demente.” Ela faz questão de deixar um recado para quem tem idosos por perto: “Cuide, mas não torne essa pessoa dependente. Às vezes, você está doente e vem gente querendo botar a comida na boca. Mas se eu ainda posso fazer isso, por que não? Eu quero que vocês entendam que a gente tem potencial para autocuidado. Sempre é preciso avaliar, mas não é justo impor a dependência só porque a pessoa passou dos 60.” Além disso, lamenta o fato de o idoso ser considerado um es- torvo para muitos e mesmo invisível para parte significativa da sociedade. “Respeitem o idoso como um ser ciente, que tem sentimentos e uma história de resiliência e de sobrevivência.” Ana nunca sentiu preconceito por continuar trabalhando e agra- dece por isso, já que sem continuar com seus atendimentos como psicoterapeuta e cursos não conseguiria bancar suas des- pesas. “Não se iludam, a aposentadoria é uma merreca! É muito difícil viver só com ela. Se eu escolher parar de trabalhar hoje, não consigo sobreviver.” Ela explica que não é porque você se aposentou que vai quer deixar de ter o nível de vida que manti- nha antes de deixar o trabalho. A psicóloga reconhece a idade que tem, mas, às vezes, ainda se sur- preende quando a chamam para passar em uma fila preferencial. HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 4 142 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 142LivroGaby-Historias de Velhos.indb 142 15/11/2023 16:47:5115/11/2023 16:47:51 Quando ainda estava em união estável e ouvia comentários de que sua mulher era sua filha, ela também ficava cabreira. “A gente sempre se sente jovem, não tem ideia da idade que está externando. Aí você pode me perguntar se eu não tenho no- ção sobre a minha imagem corporal e eu te respondo: tenho sim! Eu sei que tenho muita ruga, é só olhar aqui. O pescoço não mente, né?” A idade traz mudanças e Ana admite isso. “A gente fica um pou- co mais rabugento, mas quando se dá conta, tentamos melhorar. Esse é um processo normal, você perde a paciência com algu- mas coisas, com grosseria, com pessoas que querem levar van- tagem. No trânsito, o cuidado precisa ser redobrado, por isso eu coloco música para continuar feliz, porque sei que não vale a pena me digladiar com outra pessoa.” Ana conclui nossa conversa de forma otimista. “Eu quero utilizar a sabedoria que eu tenho hoje para curtir muito o tempo que me resta. Meus planos envolvem muita natureza [exatamente no momento em que pronuncia essa frase passarinhos começam a cantar na janela da psicóloga], paz e tranquilidade. Nada de treta, sabe? Só vida boa.”  x (divisão gráfica) 143SOBRE “SER VELHO” LivroGaby-Historias de Velhos.indb 143LivroGaby-Historias de Velhos.indb 143 15/11/2023 16:47:5115/11/2023 16:47:51 HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 4 144 Capitulo_04.indd 144Capitulo_04.indd 144 16/11/2023 22:52:0616/11/2023 22:52:06 “Eu sempre tive a ajuda celestial, então eu não posso queixar nem um centímetro do meu envelhecimento”, responde Edgar sem pestanejar, mantendo o posicionamento de fé que manteve ao longo de toda a nossa conversa. Apesar de dizer que nada mudou com a chegada da velhice, sin- to que ele tem dificuldade para me ouvir (por várias vezes tive que repetir minhas questões em um tom de voz mais alto) e já não lembra de detalhes de sua vida, como as datas de histórias que me contou. Além disso, vive esperando pela esposa Caroli- na que, para ele, continua viva. - Você sabe se ela está chegando? Eu só posso conversar com você até esse horário, porque não quero que ela fique me es- perando. Ela não merece isso. - Tudo bem, seu Edgar. Não vou te segurar aqui por muito tem- po, eu prometo! O idoso afirma que nunca vivenciou ou viu alguém sofrer com o etarismo. “Graças ao meu bom Deus, isso eu nunca vivi e nem vi. O único preconceito que eu sofri foi por conta da minha fé.” Hoje se considera um homem feliz, que dribla bem qualquer tipo de problema. “Quando acontece alguma situação que me Edgar Lourenço 145SOBRE “SER VELHO” LivroGaby-Historias de Velhos.indb 145LivroGaby-Historias de Velhos.indb 145 15/11/2023 16:47:5715/11/2023 16:47:57 deixa bravo e magoado, eu me confesso. Sou um homem li- vre espiritualmente e materialmente, porque não me apego às coisas que já passaram. O importante é focar em quem eu sou agora e quem eu tenho ao meu lado.” Edgar fala com tranquilidade sobre a morte. “Quando eu morri e Deus me trouxe de volta, ele me disse que aquela não era minha hora, porque eu ainda tinha muito o que viver e contribuir com as pessoas daqui da Terra. Mas sei que há um mundo eterno que me espera.” O mecânico conta que nunca almejou nada e nem foi guiado por sonhos, pois sempre que precisava de algo Deus o ajudava. “Eu não sabia com o que eu ia trabalhar quando eu cheguei em São Paulo, mas Deus me guiou para eu ser muito bom em meu emprego na oficina mecânica. Eu também não sabia quem seria minha mulher e onde moraríamos, mas Deus guiou o meu trajeto e me enviou visões para que eu encontrasse o destino que ele já tinha escrito. E assim foi tudo em minha vida. Nunca tive tempo de sonhar, porque, quando eu pensava que queria alguma coisa, Deus me orientava a chegar no melhor caminho.” Edgar aperta meu coração com o rumo final de nossa conversa: “meu tempo aqui na Terra está se esgotando, meu bem, mas vamos continuar em contato. Eu sei que você vai viver bastante, uns 110 anos. Porém quando esse seu tempo também acabar, é só perguntar por mim lá no céu, que eu vou ter preparado um lugar pro 'ocê.' Você é uma menina boa e eu quero te ajudar – seja daqui ou de lá de cima. Quem vai decidir isso será nosso Deus Altíssimo.” Tento não revelar o que eu sinto, mas é difícil: minhas mãos tre- mem, minha boca seca, meu desejo é começar a chorar. Escolhi escrever esse livro para celebrar a vida e um de meus perso- nagens começa a se despedir. E ele segue me desejando coisas boas. “Que Deus sempre te proteja e guie seu caminho até a HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 4 146 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 146LivroGaby-Historias de Velhos.indb 146 15/11/2023 16:47:5715/11/2023 16:47:57 eternidade. Você vai ter muito sucesso em seu trabalho, porque você é atenciosa, menina. Em breve, vai aparecer um rapaz bom, educado e de Deus na porta da sua casa, assim como eu apareci na vida de Carolina, e vai pedir a benção da sua família para vo- cês se relacionarem. Mas você não precisa aceitar, ok? Só diga sim, se o seu coração mandar.” Edgar agradece por eu ter ouvido sua história, me acompanhan- do até a porta da casa de repouso. O céu, que estava bem ilumi- nado quando eu cheguei, muda repentinamente. Deixo o senhor de mais de 100 anos após um abraço apertado e um longo olhar. A tempestade que não conseguiu vazar pelos meus olhos, agora me deixa encharcada no caminho até o carro.  x (divisão gráfica) Querido leitor, felizmente, seu Edgar continua bem e com a saúde melhor do que todos nós. Fernada Agrella, farmacêutica e dona da casa de repouso Villa Nostra Sênior, me assegurou, quase um mês depois de eu ter estado lá, que ele está melhor do que nós duas. “Gaby, ele fez exames recentemente e a médica da casa disse que os resultados podiam ser confundidos facilmente com os de pediatria, porque está tudo ótimo. Ele está bem saudável e com seu jeito de sempre: perguntando sobre Carolina e falando sobre Deus.” Assim segue Edgar rumo aos seus 102 anos. Nota: 147SOBRE “SER VELHO” LivroGaby-Historias de Velhos.indb 147LivroGaby-Historias de Velhos.indb 147 15/11/2023 16:47:5815/11/2023 16:47:58 HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 4 148 Capitulo_04.indd 148Capitulo_04.indd 148 16/11/2023 22:52:1216/11/2023 22:52:12 “Quando você se torna ‘tia’, ‘vó’ ou ‘dona’ para as pessoas que te abordam na rua, aí você começa a se considerar idoso. Mas entra por aqui e sai por ali, porque o que importa é o que você sente e eu não me sinto velha não.” Thita conta que hoje vive seu momento de maior felicidade e paz de espírito. “Pra mim a vida é só um dia após o outro. Não importa se eu tenho 60, 70 ou 80, eu sou a mesma pessoa, só que com mais experiência, mais discernimento e, principalmen- te, mais gratidão. Hoje eu agradeço a Deus até por um pedaço de pão que levo à boca. Eu vivo em louvor. Quando vou me dei- tar, agradeço pelas minhas cobertas. Então, eu não tenho mesmo do que reclamar da vida.” Desde criança, Thita enfrenta um sério problema de coluna. In- clusive, muitos médicos já falaram que é impossível alguém ter uma coluna com a escoliose e a falta de uma costela e continuar andando. Porém, ela segue fazendo suas atividades. “Agora, eu sei lidar melhor até com meu problema de coluna, que é tão sé- rio. Eu ando tanto pra lá e pra cá. Tem dias que eu nem lembro do que os médicos falaram.” Apesar do seu otimismo, reconhece que não é fácil lidar com o processo de envelhecimento, ainda mais em nosso país. “É muito Purificação Rodrigues Dias Simeão de Oliveira 149SOBRE “SER VELHO” LivroGaby-Historias de Velhos.indb 149LivroGaby-Historias de Velhos.indb 149 15/11/2023 16:48:0515/11/2023 16:48:05 triste envelhecer aqui, porque as pessoas veem o velho como descartável, alguém que não serve mais pra nada. A gente vai se tornando um pouco invisível pela idade, sabe?” A professora também explica que o etarismo existe pela apa- rência. “O Brasil valoriza muito a estética, o bonito e o consu- mismo, mas como o velho está em uma fase que deseja andar mais à vontade, com roupas adequadas para se sentir bem, aca- ba sendo descartado. Outro ponto que eu observo é a questão da maquiagem, parece que as pessoas querem esconder o que são. Cada ruga que aparece é uma prova de tudo o que você já viveu, por isso as marcas da idade devem ser valorizadas.” Thita consegue se manter com o valor que recebe de aposenta- doria, desde 2003, mas lamenta que nem todos os idosos bra- sileiros tenham o que precisam para viver dignamente. “Muitos idosos não conseguem nem mesmo custear seus remédios, que sempre são muito caros.” Outro ponto que ela destaca é o despreparo no cuidado para com os mais velhos. “Não há estrutura em todos os locais, como rampas e outras coisas que facilitam a nossa locomoção. Tam- bém há uma exclusão na hora de conseguirmos informações. Nem todos os idosos sabem usar as ferramentas digitais e aca- bam dependendo dos mais jovens para resolver seus problemas.” Ela já passou por situações de preconceito no trânsito. “Uma vez, enquanto eu dirigia, um motorista gritou: ‘sai, sua velha!’ Idoso não tem nenhuma preferência, somos discriminados e tra- tados como um empecilho.” Mas Thita não desanima. Ela encara a vida como a canção “To- cando em frente”, de Almir Sater: “Ando devagar porque já tive pressa e levo esse sorriso, porque já chorei demais. HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 4 150 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 150LivroGaby-Historias de Velhos.indb 150 15/11/2023 16:48:0515/11/2023 16:48:05 Hoje me sinto mais forte, mais feliz quem sabe. Eu só levo a certeza de que muito pouco eu sei ou nada sei... Conhecer as manhas e as manhãs, o sabor das massas e das maçãs. É preciso amor pra poder pulsar. É preciso paz pra poder sorrir. É preciso a chuva para florir. Penso que cumprir a vida seja simplesmente compreender a marcha e ir tocando em frente. Como um velho boiadeiro levando a boiada, eu vou tocando os dias pela longa estrada eu vou, estrada eu sou. Conhecer as manhas e as manhãs, o sabor das massas e das maçãs. É preciso amor pra poder pulsar. É preciso paz pra poder sorrir. É preciso a chuva para florir. Todo mundo ama um dia, todo mundo chora. Um dia a gente chega, no outro vai embora. Cada um de nós compõe a sua história e cada ser de si carrega o dom de ser capaz e ser feliz.” Ao fazer um balanço sobre o que viveu até seus 71 anos, Thita conclui: “Sou feliz. Tenho uma família grande, que me motiva a ficar atualizada. Estão sempre me chamando para acompanhá- -los em passeios. Adoro ter com eles o nosso tradicional café da tarde, com guloseimas e, quando necessário, ser a ‘vótorista´ [junção das palavras vó e motorista].” 151SOBRE “SER VELHO” LivroGaby-Historias de Velhos.indb 151LivroGaby-Historias de Velhos.indb 151 15/11/2023 16:48:0515/11/2023 16:48:05 Ver a família unida e o sucesso das filhas e dos netos é o que ele espera do futuro. Além disso, “quero ter uma saúde que me permita conhecer as cidades históricas de Minas Gerais e quem sabe cruzar o oceano e ir para Portugal.” Ela finaliza falando do ensinamento que quer deixar para mim e seus outros netos: “a família é a maior riqueza que alguém pode ter. A união e a paz devem ser construídas no dia a dia. Assim como um rio desvia dos percalços e das pedras em seu caminho, também nós, com perseverança e confiança em um Ser Supre- mo, vamos encontrar a calmaria e a alegria de envelhecer.” HISTÓRIAS DE VELHOS C A P ÍT U L O 0 4 152 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 152LivroGaby-Historias de Velhos.indb 152 15/11/2023 16:48:0515/11/2023 16:48:05 153 POSFÁCIO Escolhi fazer jornalismo, porque sempre acreditei que levando o microfone à boca das pessoas certas eu poderia mudar o mun- do. No decorrer da faculdade, Patrícia Paixão, uma professo- ra muito especial que orientou este Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), ressignificou a frase para a minha turma, na Uni- versidade Presbiteriana Mackenzie, dizendo que “o jornalismo não muda o mundo, mas pode mudar o mundo de uma pessoa. E quanto mais pessoas tiverem seu mundo mudado, mais justo e com mais oportunidades o mundo será”. Hoje, apresentando esse livro, prestes a me formar, sinto que estou cumprindo essa importante missão. E faço isso a partir do exercício de eternizar histórias de vida e amplificar vozes quase sempre silenciadas por outros que decidiram que, por conta da idade, elas já não têm mais nada importante a dizer. Emília Gomes Pereira Batista, Maria de Lourdes Vieira, Mitsuji Matsu- ba, Ana Cristina de Sá, Edgar Lourenço e Purificação Rodrigues Dias Simeão de Oliveira me deram a honra de registrar suas vidas. O retra- to de cada um deles foi feito de dentro do território de suas memó- rias. Meu maior objetivo foi ser um ouvido atencioso e respeitar na narrativa a perspectiva de cada um. Não tive a pretensão de cumprir um papel de investigação, apurar os fatos que me foram contados. 153 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 153LivroGaby-Historias de Velhos.indb 153 15/11/2023 16:48:0715/11/2023 16:48:07 Cada um dos meus personagens neste livro, que é uma colcha de retalhos sobre a velhice no Brasil no século XXI, foi estrate- gicamente escolhido. A intenção desde o início foi fugir de um perfil estereotipado do idoso e mostrar as múltiplas faces do processo de envelhecimento em um país que a cada dia tem mais pessoas velhas. De acordo com dados de 2022 da Pesqui- sa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – PNADC, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o total de pessoas com 65 anos ou mais no país (22.169.101) chegou a 10,9% da população, com alta de 57,4% frente a 2010, quando esse contingente era de 14.081.477, ou 7,4% da população. Apesar dos números, que atestam a importância do tema, falar sobre velhice ainda é um tabu. Em 1º de outubro de 2023 cele- bramos os 20 anos da criação do Estatuto da Pessoa Idosa (Lei 10.741, de 2003). Entre os direitos assegurados por esta impor- tante política pública destaco o artigo 3º: “É obrigação da famí- lia, da comunidade, da sociedade e do poder público assegurar à pessoa idosa, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.” Ao longo dessas duas décadas alguns de meus personagens vi- ram mudanças positivas em relação à forma como o Estado e a sociedade tratam o idoso. Outros, pelo contrário, continuam a lamentar a falta de valorização, o preconceito, a invisibilidade e até mesmo diferentes formas de violência, incluindo a verbal. Uma pesquisa realizada em 2023 pelo instituto DataSenado revelou que 73% dos cidadãos entrevistados acreditam que o Estatuto da Pessoa Idosa não é cumprido, pois a lei é aplicada ocasionalmente. Outro estudo (de 2022), realizado pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil) e pela Confederação Nacional de Dirigentes HISTÓRIAS DE VELHOS P O S F Á C IO 154 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 154LivroGaby-Historias de Velhos.indb 154 15/11/2023 16:48:0815/11/2023 16:48:08 Lojistas (CNDL), apontou que 33,9% dos brasileiros aposenta- dos com mais de 60 anos continua trabalhando. É o caso de Mitsuji e Ana Cristina, personagens desse livro. Hoje muitos dos idosos brasileiros ajudam a sustentar sua família, tendo que con- tinuar a se esforçar numa época em que deveriam poder descan- sar com dignidade. Além disso, vivemos em um cenário, para além do brasileiro, em que envelhecer parece ser a pior coisa que pode acontecer a alguém, uma etapa da vida a ser a todo custo evitada. As cirurgias plásticas, as harmonizações faciais, o culto ao corpo sarado, a maquiagem voltada a disfarçar as marcas da idade, os filtros... são tantas coisas que a irresistível e quase criminosa indústria da estética fornece para evitar a velhice que ter uma aparência de 60 tendo exatamente essa idade chega a ser visto como um demérito. Até mesmo a palavra “velho” causa repulsa, e mesmo muitos dos personagens deste livro, por reflexo da sociedade em que vivemos, querem a todo custo evitá-la. “Véio é trapo”, me disse brava dona Emília. Mas o que tem de errado com essa palavra? Por que mesmo sendo tão repudiada a escolhi para estampar o título desta obra? Ser velho não é um problema. E falar sobre velhice tam- bém não deveria ser um tabu. Segundo o dicionário Micha- el is , velho refere-se a quem “atingiu a ancianidade; de idade avançada; idoso, vetusto”. E quando uma pessoa passa dos 60 anos a velhice, nesse sentido de dicionário, é um fato. O preconceito está presente em quem uti l iza essa terminologia de forma pejorativa. Em seu maravilhoso livro “O olho da rua: uma repórter em bus- ca da literatura da vida real”, a jornalista Eliane Brum, ao escre- ver uma reportagem na qual ficou convivendo com idosos em um asilo no Rio de Janeiro, faz uma observação com a qual me 155 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 155LivroGaby-Historias de Velhos.indb 155 15/11/2023 16:48:0815/11/2023 16:48:08 coloco em profundo acordo: “não gosto de eufemismos como casa de repouso e afins (...). No caso da velhice, eufemismos e diminutivos me parecem uma indignidade, não se viveu tanto para ser reduzido a ‘inho’”. (2008, p.107). E, assim, sem qualquer tipo de cerimônia, ela nomeia sua matéria, que foi publicada em dezembro de 2001 pela revista Época, de “A casa de velhos”. E desde então pra mim, que tenho Eliane como uma das maiores inspirações no jornalismo, VELHO passou a ser um termo lindo, repleto de força e potência. Usá-lo no título desta obra foi uma maneira de não diminuir a vida de Emília, Maria, Mitsuji, Ana, Edgar e Thita, uma forma de não tirar a força de suas experiên- cias e histórias. Por ter sido criada pela minha avó, cuja a vida foi uma das mais difíceis de eu contar neste livro (pelo meu envolvimento emo- cional com o tema), o envelhecimento sempre foi algo intrínse- co à minha existência. Desde que me conheço por gente tenho a lembrança de conversar e ouvir a história de pessoas mais velhas e isso sempre me deu muito prazer. Espero, de toda minha alma, que este livro tenha sensibilizado você sobre o processo de envelhecimento no país, a multipli- cidade da velhice e a importância de se valorizar as memórias daqueles que viveram muito e estão quase sempre ansiosos para falar sobre suas experiências, mas quase nunca encontram ouvi- dos dispostos a escutar. Lembre-se: o relógio corre sem parar e ouvir os mais velhos e a sabedoria que vem deles é aprendermos conselhos valiosos sobre como devemos agir para que no dia em que a velhice nos bater à porta possamos nos dar conta de que ela está acompanhada da felicidade. Tenha uma vida linda! HISTÓRIAS DE VELHOS P O S F Á C IO 156 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 156LivroGaby-Historias de Velhos.indb 156 15/11/2023 16:48:0815/11/2023 16:48:08 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 157LivroGaby-Historias de Velhos.indb 157 15/11/2023 16:48:0815/11/2023 16:48:08 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 158LivroGaby-Historias de Velhos.indb 158 15/11/2023 16:48:0815/11/2023 16:48:08 Este trabalho de conclusão de curso não reflete a opinião da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Seu conteúdo e abordagem são de total responsabilidade de sua autora. LivroGaby-Historias de Velhos.indb 159LivroGaby-Historias de Velhos.indb 159 15/11/2023 16:48:0815/11/2023 16:48:08 LivroGaby-Historias de Velhos.indb 160LivroGaby-Historias de Velhos.indb 160 15/11/2023 16:48:0815/11/2023 16:48:08