UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE CARLOS HENRIQUE TEIXEIRA DE ARAÚJO TEXTOS MOTIVADORES DO ENEM, DA FUVEST E DO MACKENZIE: UMA ANÁLISE RETÓRICA DAS PROPOSTAS DE REDAÇÃO São Paulo 2020 CARLOS HENRIQUE TEIXEIRA DE ARAÚJO TEXTOS MOTIVADORES DO ENEM, DA FUVEST E DO MACKENZIE: uma análise retórica das propostas de redação Dissertação apresentada ao programa de Pós- Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Prof. Dr. Ronaldo de Oliveira Batista São Paulo 2020 2 3 Folha de Identificação da Agência de Financiamento Autor: Carlos Henrique Teixeira de Araújo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras Título do Trabalho: Textos motivadores do Enem, da Fuvest e do Mackenzie: uma análise retórica O presente trabalho foi realizado com o apoio de 1: CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo Instituto Presbiteriano Mackenzie/Isenção integral de Mensalidades e Taxas MACKPESQUISA - Fundo Mackenzie de Pesquisa Empresa/Indústria: Outro: 1 Observação: caso tenha usufruído mais de um apoio ou benefício, selecione-os. 4 5 Aos meus pais, dedico este trabalho. E a todos que se atrevem a sonhar. 6 AGRADECIMENTOS Agradeço aos meus pais – Maria Teixeira da Silva e Nelson Souza de Araújo – por todo o apoio no âmbito acadêmico e familiar. Ao Prof. Dr. Ronaldo de Oliveira Batista, orientador e melhor professor que já tive, que me acolheu, ajudando-me paciente e honestamente a realizar este trabalho. Ao Fundo Mackenzie de Pesquisa – MackPesquisa – pelo apoio financeiro concedido a mim. E também agradeço ao fundo de Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), pela bolsa concedida a mim. Aos melhores professores que pude ter no Mackenzie: Profa. Dra. Marlise Vaz Bridi, Profa. Dra. Neusa Maria Oliveira Barbosa Bastos, Profa. Dra. Maria Helena de Moura Neves, Prof. Dr. José Gaston Hilgert, Profa. Dra. Regina Helena Pires Brito, Profa. Dra. Maria Lucia Marcondes Carvalho Vasconcelos e a Profa. Dra. Diana Luz Pessoa de Barros. Aos professores convidados para compor a banca examinadora, Profa. Dra. Neusa Maria Oliveira Barbosa Bastos e Profa. Dra. Vanda Maria Elias. Aos professores que me incentivaram, desde a graduação, a prosseguir nos estudos e na pesquisa: Profa. Ms. Cynthia Pichini, Profa. Dra. Maria Vera Cardoso Torrecillas, Profa. Dra. Érika Matos, Profa. Dra. Beatriz, Prof. Dr. Jairo Postal e Prof. Daniel Paulo. E a todos os meus professores da graduação da Universidade São Judas Tadeu. À minha família, que me auxiliou nos momentos de ansiedade: João Paulo, Fabrício, Ana Paula, Milena Martins. Ao meu amigo que também esteve ao meu lado, ajudando-me e incentivando-me nos momentos mais difíceis, Thiago Pinheiro. À Mônica Peralli Broti, que constantemente me fez crescer intelectual e pessoalmente, mostrando-me que as narrativas são essenciais para a sensibilidade no contexto atual. 7 Aos meus amigos e colegas do Mackenzie, com quem pude crescer não só no meio da pesquisa, mas também na vida. Obrigado pelo apoio. E a todos que, mesmo de maneira indireta, me ampararam nesta caminhada. 8 RESUMO A partir do exame de coletâneas de textos motivadores para a elaboração da redação nos exames do Enem (2009 e 2018), da Fuvest (2009 e 2018), da Universidade Presbiteriana Mackenzie (2009 e 2018), esta dissertação de mestrado, por meio de uma análise retórica, tem como objetivo descrever e analisar os procedimentos argumentativos presentes nos textos motivadores escolhidos pelas instituições indicadas para apresentar e/ou direcionar a temática a ser considerada na prova de redação para acesso a cursos universitários. Em termos mais específicos, o método da pesquisa e seus procedimentos contemplaram o exame analítico dos tipos de argumentos e de recursos retóricos empregados e presentes nos textos motivadores tendo em vista apresentar uma base a partir da qual os candidatos dos exames pudessem elaborar suas produções escritas. A análise retórica empreendida encontrou apoio em fundamentos da linguística textual e da análise do discurso de linha francesa, uma vez que considera que a persuasão é fenômeno textual e discursivo presente nos discursos retóricos, nos quais entram em interação auditório(s) e orador(es). Observou-se pela análise que há uma estabilidade no gênero discursivo “coletânea de textos motivadores para proposta de redação”, com a presença de estilo, funcionamento e organização estrutural semelhantes, a despeito da distância temporal englobada pelo material selecionado para análise. Uma síntese interpretativa do trabalho, além de mapear as estratégias argumentativas mais empregadas para efeito de persuasão e orientação da direção argumentativa a ser adotada pelos candidatos dos exames, aponta também para uma reflexão a respeito de um trabalho com o texto na educação básica que contemple também o componente retórico da língua. PALAVRAS-CHAVE: Retórica. Argumentação. Redação. Vestibular. Enem. Textos Motivadores. 9 ABSTRACT From the analysis of a collections of entrance exam texts to guide the text production in the entrance examination of Enem (2009 and 2018), of Fuvest (2009 and 2018) and of Mackenzie Presbyterian University (2009 and 2018), this master’s thesis, through a rhetoric analysis, aims at describing and analyzing the existent and available argumentative procedures in the motivating texts chosen by the described institutions to set forth or to direct the subject of discussion to be considered in the text production exam as a way to access the higher education. In a more specific term, the research method and its procedures contemplate analytical examination of the types of arguments and rhetorical resources applied and prevalent in the motivating texts in terms of to present a base from which candidates could elaborate their own writing in the text production test. The undertaken rhetorical analysis found support on the fundamentals of Text Linguistic and Discourse Analysis, to the extent that it considers persuasion as a text and a discursive component current in rhetorical discourses, in which gets in interaction auditorium and speaker. It was noticed through the analysis that there is a stability in the genre – motivating texts in the entrance exam – with the presence of style, operation and structural organization, despite the temporal distance encompassed by the material selected for analysis. An interpretative synthesis, besides mapping the most applied argumentative strategies in order to obtain effectiveness in persuasion and to set the argumentative direction to be taken by the candidates in the exam, points to a reflection concerning working with text in secondary education which also includes the languages’ rhetorical component. Keywords: Rhetoric. Argumentation. Text Production. Entrance Exam. Enem. Motivating Text 10 LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Proposta de Redação, Enem, 2009 ................................................................................................... 48 Figura 2 – Proposta de Redação, Fuvest, 2009.................................................................................................. 49 Figura 3 - Proposta de Redação, Mackenzie, 2009 .......................................................................................... 50 Figura 4 - Proposta de Redação, Enem, 2018 .................................................................................................... 51 Figura 5 – Proposta de Redação, Fuvest, 2018 ................................... Erro! Indicador não definido. Figura 6 - Proposta de Redação, Mackenzie, 2018 ............................. Erro! Indicador não definido. Figura 7- Enem: Proposta de redação, 2009 .......................................... Erro! Indicador não definido. Figura 8- Enem: Millôr Fernandes, 2009............................................................................................................. 83 Figura 9 – Enem: Ponto de vista, 2009 ................................................................................................................. 85 Figura 10 – Enem: A armadilha da corrupção, 2009 ...................................................................................... 90 Figura 11– Enem: instruções para a redação, 2018 ......................................................................................... 92 Figura 12 - Enem: O gosto na era do algoritmo, 2018 ................................................................................... 93 Figura 13 - Enem: A silenciosa ditadura do algoritmo, 2018 ...................................................................... 95 Figura 14 - Enem: Utilização da internet, 2018 ................................................................................................ 96 Figura 15 - Enem: Como a internet influencia secretamente nossas escolhas, 2018 .......................... 97 Figura 16 - Enem: Proposta de redação, 2018 ................................................................................................... 98 Figura 17 – Fuvest: Holanda e Bélgica, 2009 ................................................................................................. 101 Figura 18 – Fuvest: Fronteira, 2009.................................................................................................................... 104 Figura 19 – Fuvest: 2009 ........................................................................................................................................ 107 Figura 20 – Fuvest: Instruções, 2009 ................................................................................................................. 110 Figura 21 - Fuvest, 2018 ......................................................................................................................................... 112 Figura 22 – Fuvest: Isto é, 2018 ........................................................................................................................... 115 Figura 23 – Fuvest: Folha de São Paulo, 2018 ............................................................................................... 119 Figura 24 – Fuvest: Santander, 2018 .................................................................................................................. 121 Figura 25 – Fuvest: Solange Farkas, 2018 ....................................................................................................... 124 Figura 26 – Fuvest: Instruções, 2018 ................................................................................................................. 126 Figura 27 - Mackenzie, 2009 ................................................................................................................................. 127 Figura 28 – Mackenzie: Nado Reis e Samuel Rosa, 2009 ......................................................................... 129 Figura 29 – Mackenzie: João Pereira Coutinho, 2009 ................................................................................. 132 Figura 30 – Mackenzie: Rebelado, 2008 .......................................................................................................... 134 Figura 31 – Mackenzie: BBC Brasil, 2009 ...................................................................................................... 136 Figura 32 – Mackenzie: 2018 ................................................................................................................................ 139 Figura 33 – Mackenzie: Sociologia em movimento, 2018......................................................................... 140 Figura 34 – Mackenzie: Mia Couto, 2018 ........................................................................................................ 142 Figura 35 – Mackenzie: André Monnerat, 2018 ............................................................................................ 144 11 LISTA DE QUADROS Tabela 1 - Fonte: Inep – Ministério da Educação (p. 8) ................................................................................. 55 Tabela 2 - Fonte: Inep – Ministério da Educação (p. 17) .............................................................................. 56 Tabela 3 - Fonte: Inep – Ministério da Educação (p. 19) .............................................................................. 58 Tabela 4 - Fonte: Inep – Ministério da Educação (p. 22) .............................................................................. 59 12 SUMÁRIO Agradecimentos.............................................................................................. 07 Resumo e palavras-chave............................................................................... 09 Abstract e keywords....................................................................................... 10 Lista de figuras............................................................................................... 11 Lista de quadros............................................................................................. 12 Introdução...................................................................................................... 14 Capítulo 1: A Retórica como campo de análise............................................ 26 1.1 Retórica, argumentação e discurso................................................. 26 1.2 A presença da Retórica na contemporaneidade.............................. 33 Capítulo 2: Método: material e procedimentos analíticos.............................. 47 2.1 Material de análise.......................................................................... 47 2.2 Critérios de seleção do material de análise..................................... 72 2.3 Parâmetros de análise do material................................................... 73 Capítulo 3: Uma análise retórica dos textos motivadores de redação............ 77 3.1 Enem, propostas de redação, textos motivadores............................ 77 3.2 Fuvest, propostas de redação, textos motivadores.......................... 101 3.3 Mackenzie, propostas de redação, textos motivadores................... 127 Conclusão....................................................................................................... 148 Referências Bibliográficas.............................................................................. 153 13 INTRODUÇÃO Sabe-se que a comunicação é fundamental para o fazer social numa dada sociedade e numa dada cultura – isto é, numa época, num contexto histórico, social e ideológico. Logo, o sistema linguístico e seu uso tornam-se ferramenta essencial para a obtenção de direitos e deveres em qualquer esfera interacional. Dessa forma, o desenvolvimento de uma capacidade linguística não deve ser apenas normativo, ou seja, a aquisição de um arcabouço de regras descontextualizadas para o falante, mas sim contextualizada – pleno domínio dos saberes linguísticos a fim de persuadir o interlocutor de suas opiniões e ideias. Sendo a língua fator que determina o homem, a linguagem é imanente e intrínseca a ele, visto que não serve apenas para a comunicação, mas também como fator de sobrevivência (BENVENISTE, 1989[1974]). Como diz Benveniste: “eu diria que, bem antes de servir para comunicar, a língua serve para viver” (1989[1974], p. 222). Situar-se numa sociedade requer amplo domínio de língua – seja formal, seja informal –, quer dizer, um rol pragmático extenso, já que o contexto situacional demanda usos que podem vir a fugir do cânone até então estudado em sala de aula. Por conseguinte, a língua não é um mecanismo estanque de uma realidade vivencial: ela é produto de interações contextualizadas e situações reais. A comunicação reivindica um apurado grau de detalhamento, pois exige que os falantes estejam atentos à alta gama de possibilidades de significação, já que o sentido da linguagem é construído em sua execução num cenário comunicativo determinado: no momento da enunciação; cenário esse que pede adaptabilidade do enunciador para com seu interlocutor. Dessa forma, a adequação linguística faz-se importante dentro de um espectro genérico, etário e social, entre outros fatores, para que a comunicação seja de fato prática significativa e efetiva em processos dinâmicos de interação verbal. As dinâmicas dos processos comunicativos, por meio da contínua expansão tecnológica, principalmente a partir do século XX com as chamadas novas tecnologias de informação e comunicação, modificaram-se e obrigaram, por assim dizer, grande parte das pessoas a situar-se nas mídias sociais, em meio a diferentes formas de diálogo e 14 leituras do mundo. O rápido desenvolvimento da tecnologia levou, em alguns aspectos, a um impacto na língua, já que saber situar-se nas esferas sociais e nas mídias on-line pede que o falante saiba utilizar o saber retórico1 e o saber linguístico para se posicionar nesse ambiente, seja para opinar, seja para criticar, seja para adquirir novas informações. O crivo crítico – presente em adequadas escrita e compreensão de textos2 – nunca esteve tão em voga e se fez tão urgente, uma vez que a ciência da informática possibilita, a quem tem à disposição meios tecnológicos, o fácil acesso à informação e ao conhecimento. Em um recorte mais específico, a questão de um posicionamento linguístico em relação a leituras do mundo é algo com que alunos recém-saídos do Ensino Médio3 precisam se deparar ao prestar o exame do vestibular ou ao realizar provas de aferição de graus de conhecimento (como o Enem), mais especificamente em uma prova de redação de texto dissertativo-argumentativo4 para a admissão no âmbito universitário. Pesquisas de natureza acadêmica ou trabalhos com perspectiva de orientação didática a respeito da redação5 em processos vestibulares ou em exames que medem capacidades linguísticas de estudantes não são difíceis de encontrar (cf., por exemplo, COELHO, 2015; COLELLO, 2017; COSTA VAL, 2004; ELIAS [org.], 2011; KÖCHE, 1 O saber retórico, aqui, será tido como a habilidade de usar a língua argumentativamente, mobilizando, assim, recursos linguísticos para atingir a persuasão. Adotar-se-á, também, retórica e argumentação como sendo sinônimos, ou seja, “toda utilização estratégica de um sistema significante pode ser legitimamente considerada como uma retórica” (PLANTIN, 2008, p. 9). 2 Nesta dissertação, não se fará uma distinção restrita entre texto e discurso, e ambos os termos serão utilizados para referência a unidades linguísticas que são elaboradas em torno de estratégias de argumentação tendo em vista a persuasão. Nos estudos sobre retórica e argumentação, há o uso, respectivamente, dos termos discurso, como em Ferreira (2010), e texto, como em Koch; Elias (2016). Discurso em uma análise retórica refere-se a “toda produção verbal, escrita ou oral, constituída por uma frase ou por uma sequência de frases, que tenha começo e fim e apresente certa unidade de sentido” (REBOUL, 2000, p. xiv). Como se pode ver nesta última definição, a noção de discurso em análise retórica compreende também a noção de texto para muitas teorias linguísticas. 3 Focar-se-á nos alunos recém-saídos do Ensino Médio, ou seja, alunos com idade entre 16 e 18 anos. Há situações em que os alunos, mesmo formados no ensino básico, prestam o exame de vestibular, por exemplo, em outro momento de suas vidas, sendo assim fora da faixa etária aqui delimitada. 4 Pensa-se nos textos dissertativos exigidos pelas instituições provedoras de vestibular ou de provas de aferição de graus de conhecimento, isto é, o tipo textual dissertativo-argumentativo. Como o objetivo desta dissertação não é a observação da produção textual dos candidatos, não será problematizada a caracterização de um tipo textual como dissertativo ou dissertativo-argumentativo em termos extensivos. 5 Como será definido a seguir, nosso objetivo não é analisar a produção textual ou a elaboração de redações. Desse modo, não se fará diferença entre as denominações “produção de texto” e “redação”, ainda que se tenha consciência de todo um debate em torno do que as denominações acarretam em termos de compreensão do ato de escrita. 15 BOFF, MARINELLO, 2014; MARTINS, 1986; SAUTCHUK, 2003; SELBOCH, 2014; SOARES, 2009). No entanto, nosso recorte nesta dissertação é ainda mais específico, pois não trata das redações dos candidatos de exames de vestibular ou outras formas de avaliação de capacidades de leitura e escrita, mas sim das propostas de redação, em especial das coletâneas de textos motivadores para a produção escrita de candidatos de exames de vestibular ou de aferição de conhecimentos adquiridos6. São perguntas problematizadoras a orientar esta dissertação: as instituições provedoras das provas de redação consideram que tipo de leitor ideal, materializado na figura dos candidatos dos exames, tendo em vista a compreensão da temática de redação?; que tipo de estratégia argumentativa é necessário considerar para atender a propostas de redação?; a imagem erigida das instituições, ou seja, seu éthos institucional, instaura algum tipo de coerção que se ratifica e se reflete nas propostas de redação? A partir dessas problematizações, esta dissertação tem como objetivo geral analisar como o componente retórico 7 da língua (em seus aspectos linguísticos e discursivos) é empregado na coletânea de textos motivadores das propostas de redação de exames de vestibular (Fuvest e Mackenzie) ou de aferição de graus de conhecimento (Enem), organizada para auxiliar os candidatos do exame a assumir um norte argumentativo. Como consequência desse objetivo geral, estabelecem-se os seguintes objetivos específicos: a) observar se os textos motivadores têm uma unicidade ou se têm uma ubiquidade na visada argumentativa; b) descrever quais tipos de conhecimento (sociocultural, cognitivo, linguístico) dos candidatos as instituições aqui analisadas (Enem, Fuvest e Mackenzie) consideram em suas propostas de redação ao propor, pela leitura das coletâneas, temas para argumentação; c) analisar os textos motivadores em 6 A caracterização dupla se deve ao fato de os exames da Fuvest e da Universidade Presbiteriana Mackenzie serem exames vestibulares. Já a prova do Enem é um exame de aferição de graus de conhecimento que contribui com pontuação para admissão em cursos superiores. 7 A expressão “componente retórico” foi amplamente divulgada pelo pensamento de Oswald Ducrot (1987), ao considerar esse aspecto como paralelo a um componente linguístico. No entanto, a expressão é utilizada neste trabalho sem uma vinculação restrita ao que estipula teoricamente Ducrot. Desse modo, “componente retórico”, neste trabalho, refere-se a estratégias argumentativas presentes nos discursos. 16 uma perspectiva retórica, tendo em vista verificar quais são suas estratégias argumentativas8; d) em perspectiva comparativa, verificar se houve modificações em termos argumentativos na seleção de textos motivadores para a escrita da redação nos exames selecionados. Considera-se que o uso de estratégias argumentativas nos textos motivadores das coletâneas dos exames pode, porventura, privilegiar uma dada esfera ideológica, silenciando, pois, outras. Porém, mesmo silenciada, essa outra esfera ideológica pode ser inferida na leitura e na interpretação, já que os discursos estão ora em irmandade, ora em arena de conflitos, mantendo todo discurso relação de atravessamento e captação de um pelo outro (FIORIN, 2016). Sendo assim, o beneficiamento de uma posição argumentativa nos textos motivadores pode vir, por hipótese, a somar pontos positivos para uma dada ideologia, ratificando-se mais uma vez essa ideia para que o candidato dos exames venha, em tese, a confirmá-la em sua redação. Contudo, o ataque – ou contra-argumentação – a uma ideia controversa pode vir também para somar forças contra essa perspectiva, fazendo, assim, com que o candidato, em hipótese de polemicidade do assunto, mesmo que não concorde com os textos motivadores, aceite o que está posto pelas instituições. Para mais, em situações de desconhecimento do tema pedido, o candidato dos exames, por não ter argumentos contra ou ideias opostas, poderá, por hipótese, corroborar argumentos expostos na coletânea. O enunciador, ao se servir da linguagem, constrói o sentido que tem por objetivo com o interlocutor, ou seja, o sentido em si não se acha no enunciado, mas sim no momento de uso e na sua interação. Sendo assim, os textos motivadores podem levar os leitores – candidatos de exames – a uma continuidade argumentativa, construindo, ou pressionando, uma direção unívoca. Pode-se, a princípio, questionar direções argumentativas dos textos escolhidos para compor a coletânea apresentada ao candidato. Os discursos privilegiados nas provas 8 Ainda que haja a discussão sobre a distinção entre retórica e argumentação, esta dissertação considera em seu recorte analítico que o processo retórico estabelece elaboração de estratégias argumentativas presentes nos discursos em recursos linguístico-discursivos, materializados na trama textual. Tal consideração tem seu fundamento teórico principalmente em Perelman e Olbrechts-Tyteca (2014). 17 de redação podem ter uma ideologia – que “se instaura na sociedade principalmente pela língua, da qual o sujeito se apropria para comunicar-se, fazer-se entender” (GUIMARÃES, 2009, p. 103) – dominante ratificando um ponto de vista, por exemplo, da classe social mais alta (que em tese é a que tem mais acesso aos exames vestibulares, por exemplo). Ou seja: “a ideologia é constituída pela realidade e constituinte da realidade. Não é um conjunto de ideias que surge do nada ou da mente privilegiada de alguns pensadores. Por isso, diz-se que ela é determinada, em última instância, pelo nível econômico” (FIORIN, 1990, p. 30). Para mais, persuade-se por meio de componentes linguísticos, lógicos e temáticos. Os argumentos articulados na construção da rede de argumentação, quer dizer, o valor argumentativo de cada texto motivador por meio dos âmbitos da argumentação leva em consideração: 1. quem é o orador9 do texto (ou o enunciador, em outros termos) e para qual auditório (ou enunciatário, em outros termos) enuncia; 2. adaptação do orador – instituições e autores do texto motivador – ao auditório – candidatos; 3. do que se persuade 10 ; 4. acordos estabelecidos; 5. fatos, verdades, valores e hierarquias nos argumentos postos; 6. quais lugares retóricos 11 os textos privilegiam; 7. figuras de linguagem utilizadas para amplificar a argumentação; 8. argumentos quase-lógicos, baseados na estrutura do real, dentre outras técnicas argumentativas; 9. operadores gramaticais. A exigência de um texto dissertativo-argumentativo é quase unânime para admissão universitária no Brasil. Logo, os elementos linguísticos da trama textual devem 9 Sendo coerente com a análise retórica pretendida, a metalinguagem adotada nesta dissertação empregará, principalmente no capítulo 3 (exceto em trechos citados e em passagens que tratam do ensino de língua especificamente), os termos orador e auditório (sejam eles representados por indivíduos inseridos num contexto retórico; sejam eles representados por instituições). Esses termos, em outras perspectivas teóricas, são equivalentes (com as devidas ressalvas em relação a especificidades teóricas que determinam na verdade uma não equivalência total) a autor, leitor, enunciador, enunciatário, destinador, destinatário. 10 Também objeto de complexas discussões nos estudos da retórica e da argumentação, não será considerada a distinção entre convencer e persuadir. 11 Técnicas de argumentação que se constituem como premissas que buscam reforçar adesão a certos valores. O termo lugar é empregado desde a Antiguidade Clássica Ocidental para indicar locais virtuais nos quais os oradores pudessem acessar argumentos e colocá-los a sua disposição. Os lugares da argumentação definidos pela retórica clássica são: lugar de quantidade, lugar de qualidade, lugar de ordem, lugar de essência, lugar de pessoa, lugar do existente. Ainda, entende-se por lugar retórico: “armazéns de argumentos, utilizados para estabelecer acordos com o auditório. O objetivo é indicar premissas de ordem ampla e geral, usadas para assegurar a adesão a determinados valores e, assim, re-hierarquizar as crenças do auditório” (FERREIRA, 2010, p. 69). 18 ser discutidos para entender quais mecanismos de coesão e coerência 12 devem ser ativados no processo de leitura dos textos motivadores. Isto é, como mecanismos de coesão referencial e sequencial ajudam no ato retórico, e como a noção de coerência pode interferir na interpretação do texto motivador. Além disso, pensando no contexto, como fatores pragmáticos e de conhecimento de mundo podem interferir na compreensão desses textos. Admitindo-se a noção de argumentatividade inerente e indissociável à língua, os elementos linguísticos são empregados em funções argumentativas, isto é, proporcionam uma visada argumentativa maior, a fim de persuadir o leitor do que se pretende. Logo, é importante e imprescindível a análise do emprego efetivo de objetos linguísticos no discurso, não em frases isoladas fora de um contexto de situação, mas sim em sentidos empíricos de uso dela. Somando-se a isso, o discurso presente nas manifestações textuais não é isolado do momento histórico-ideológico no qual é produzido. Por consequência, a Análise do Discurso dispõe de componentes de análise fincados no contexto histórico de uso da língua. Sendo assim, os conceitos de discurso, ideologia, formações ideológicas e discursivas, polifonia, interdiscurso e intertextualidade, bem como domínios do campo de estudo da enunciação são relevantes, a considerar recortes temáticos, numa análise de texto em uma dada sociedade. Como proposto por Azeredo (2010), seis saberes são essenciais para o complexo uso da língua: (i) cognitivo; (ii) antropológico; (iii) histórico; (iv) léxico-gramatical; (v) sociolinguístico; (vi) textual. Ressaltam-se dois: saber léxico-gramatical e saber textual. Sabe-se que unir os saberes é primordial para o pleno domínio da linguagem. No entanto, tendo em vista a proposta da dissertação, os dois saberes destacados, somados com um saber retórico – o qual exige domínio da linguagem e de conhecimento de mundo para persuadir destinatários dos discursos –, são os saberes linguístico-pragmáticos que devem ser usados para o efeito de sentido persuasivo no texto dissertativo-argumentativo. 12 Entende-se que coesão e coerência estão necessariamente interligadas, ou seja, não há uma distinção clara e absolutamente delimitada entre esses fatores de textualidade. 19 Tendo em vista o caráter dialógico da linguagem, o candidato, quando tem acesso a um texto da coletânea, deve ser instigado a pensar com o objetivo de articular ideias de sua própria bagagem intelectual que construiu até o momento, isto é, acessar seu conhecimento de mundo para fundamentar um repertório próprio com base nas ideias dos textos presentes nas provas. Consequentemente, espera-se do candidato, em tese, contato com diversas mídias: jornais, livros, revistas e filmes, a fim de que possa construir um abrangente, amplo e sólido repertório cultural (COELHO, 2015). Os objetivos propostos nesta dissertação são orientados por uma análise retórica 13 , considerada, a partir de Reboul (2000), como a observação descritiva e analítica de recursos linguísticos e discursivos que permitem alcançar a persuasão. Nesse sentido, uma análise retórica leva em conta uma função hermenêutica (no nosso caso, a interpretação analítica das propostas de redação em seus textos motivadores) e a observação da eficácia retórica (em nosso caso, a observação da adequação das estratégias argumentativas presentes nos textos motivadores para o posicionamento da argumentação dos candidatos dos exames), tendo em vista um contexto retórico (em nosso caso, o conjunto de fatores sociais, culturais e históricos que estão subjacentes à escolha do tema e presentes nos textos motivadores) que possibilita o sucesso ou o fracasso de estratégias argumentativas elaboradas em torno do ideal de persuasão. Assim, uma análise retórica se preocupa em analisar mecanismos linguísticos e discursivos que possibilitam a persuasão diante de uma polêmica (FERREIRA, 2010). As provas de redação dos exames aqui selecionadas estão nessa perspectiva, pois há o interesse em mobilizar a elaboração de um texto escrito a partir de um tema que se considera polêmico por poder apresentar diferentes posicionamentos diante de uma questão retórica (a problematização sobre um tema) que se coloca em termos de adesão ou não a pontos de vista expressos nos textos que compõem as coletâneas de textos motivadores. 13 O termo retórica é polissêmico e pode denotar diferentes significados. Neste texto, retórica se refere ao campo dos estudos dos discursivos persuasivos. 20 Essa análise retórica leva em conta (em meio ao estudo das técnicas discursivas e linguísticas que mobilizam estratégias argumentativas) três elementos essenciais: (i) o orador, que estabelece a credibilidade de um discurso; (ii) o auditório, já que a argumentação é sempre dirigida a indivíduos ou grupos que conformam um ato retórico; (iii) o discurso, o lógos que estabelece a ação retórica. O discurso retórico, então, nasce desse contexto [retórico, conjunto de fatores externos sociais e históricos que atuma na atividade discursiva] para tentar solver um problema retórico que é, basicamente, composto por três elementos que se associam: uma questão, que clama por uma discussão para ser solucionada, algo que é de um modo e o orador deseja que seja de outro; um auditório e, por fim, um conjunto de limitações e restrições – pessoas em posições antagônicas, eventos, leis, interesses, emoções, hábitos que atuam tanto sobre a audiência quanto sobre o orador e dão especificidade à situação. (FERREIRA, 2010, p. 31) Define-se, portanto, os estudos da Retórica como referencial teórico da análise pretendida (e estabelecida nos objetivos já apontados), a partir de autores como Aristóteles (2012[séc. IV a.C.]), Citelli (1995), Dubois, org. (1974), Ferreira (2010), Fiorin (2014, 2015), Mosca, org. (2004), Perelman (2004), Perelman e Olbrechts-Tyteca (2014), Plantin (2008), Reboul (2000), Walton (2012). A escolha pela análise retórica justifica-se pela revitalização que a área passou a ter na segunda metade do século XX, após um bom tempo de ostracismo. Como afirma Alexandre Jr. (2012, p. IX): “Nunca antes se estudou a retórica com tanto interesse e em áreas tão distintas do saber, como nunca antes se estudou o fenômeno retórico em contextos tão distantes do mundo que aparentemente o viu nascer”. Como a Retórica é “saber interdisciplinar” (ALEXANDRE Jr., 2012, p. X), ao colocar em foco a análise de processos linguístico-discursivos em busca de persuasão, o referencial teórico de base desta dissertação encontra apoio, para aprofundamento de sua proposta analítica, em considerações teóricas e procedimentos analíticos da Linguística Textual (ANTUNES, 2005; GUIMARÃES, 1990, 2009; KOCH, 2011, 2017; KOCH e ELIAS, 2010, 2016; KOCH e TRAVAGLIA, 1995) e da Análise do Discurso – em 21 especial aquela vertente que dialoga com estudos da argumentação e da ideologia (AMOSSY, 2016 [org.], 2017, 2018; FIORIN, 1990). A proposta de análise desta dissertação ratifica a ideia do homo retoricus14 – o homem que advoga e que pleiteia. Na edição de 2001 do livro escrito por Hugo Grotius (1583-1645) – jurista da República dos Países Baixos, tido como fundador do Direito Internacional –, a introdução de Harm-Jan van Dam informa que Grócio distorcia, mesmo usando abundância de citações e exemplos, ou desconsiderava o contexto situacional quando fazia uso de concepções e ideias de outros autores. Corroborava, dessa forma, uma visão distorcida e negativa do uso de saberes para o logro na argumentação. Esse é apenas um dos fatos que historicamente contribuíram para uma visão distorcida da Retórica com a acepção da arte de bem falar, que teve sua deslegitimação no fim do século XIX (PLANTIN, 2008). Contudo, como expõe Plantin (2008), a Retórica deslegitimada era a usada, por exemplo, pelos jesuítas, uma vez que o direcionamento não estava no processo do ato de argumentar, mas nas análises de texto com o intuito de explicá-los e entendê-los. Sendo assim, essa visão da Retórica centrou- se na literatura, já que se faziam interpretações do cânone literário, analisando o que era bom e o que era considerado ruim. Todavia, hodiernamente, impõe-se a necessidade de um homo retoricus voltado para uma visão mais positiva, posto que a Retórica não é apenas um arsenal de figuras de linguagem para uma utilização aleatória e irrefletida, isto é, com o foco meramente na elocutio. Além disso, a função primeira da Retórica, segundo Amossy (2018, p. 7), “[é] imprimir ao verbo a capacidade de provocar a convicção”. Para mais, o saber retórico implica: “o funcionamento da comunicação humana como fenômeno linguageiro, cognitivo e sociopolítico. Trata-se não de julgar ou de denunciar a realidade das trocas verbais que constroem as relações intersubjetivas e a realidade social” (AMOSSY, 2018, p. 9). 14 Termo utilizado na introdução da obra – que fala da visão de Grotius da Igreja e do Estado – de Hugo Grotius De Imperio summarum potestatum circa sacra, na edição de 2011, organizada por Harm-Jan van Dam. 22 Situar-se na língua é assumir-se como ser pensante e cônscio de suas convicções – ao mesmo tempo dispor-se a mudá-las quando necessário – na vida cotidiana e nas interações sociais por meio de uma gama de possibilidades discursivas. Portanto, homologa-se ao cidadão o direito à democracia por meio do fazer retórico. Abreu (2009, p. 140) diz que a retórica e a argumentação podem dar “condições de colocar suas ideias em prática no seu dia a dia, nas várias situações em que tiver necessidade de motivar pessoas, vender uma ideia ou um produto, de fechar um negócio, ou simplesmente que se tenha uma visão holística dos processos de argumentação”. A necessidade do saber posicionar-se em texto é indissociável à cidadania. Deve- se, assim, por meio da prática escolar, expor o aluno a gêneros da esfera social durante a educação básica, uma vez que só por meio de leitura e produção de texto é que os elementos gramaticais e lexicais farão sentido, pois serão estudados em contextos efetivamente interacionais. Dando-se foco ao enunciado contextualizado, e não à frase descontextualizada, cumpre-se, assim, o estudo da gramática por meio do texto e do discurso num contexto de uso. Além disso, a interpretação de discursos no âmbito escolar ajuda os alunos a discernirem e a entender ideologias e vieses socioculturais contidos nos textos, ampliando a visão crítica e a bagagem de conhecimento dos estudantes. Os textos da coletânea, constituindo um discurso didático, podem reforçar ou negar uma visão de mundo dada e fidelizada pela sociedade. Por isso, o candidato, ao ler os textos, pode vir a ser coagido a ater-se às mesmas considerações e pontos de vista expressos neles, minando, então, a abertura ao debate e ao fazer retórico-social. Citelli (1995) expõe que o livro didático – discurso pedagógico legitimado – contém dois aspectos fundamentais: “a estereotipia e a idealização”. Ou melhor, visto que a escola cumpre um papel de formação social, sendo mantida por diretrizes e órgãos governamentais, os discursos replicados podem ser oblíquos, quer dizer, privilegiam apenas um padrão idealizado, ratificando o papel moral, ético e cultural de um dado momento histórico-social. A escola e os professores são, assim, perpetuadores de um discurso legitimado no meio social, ou seja, tornando-o um discurso institucionalizado. Assim, quem não estiver dentro de um determinado espectro fica marginalizado discursivamente, quer dizer, tendo de obedecer sem questionar (CITELLI, 1995). 23 Usando, novamente, as palavras de Citelli (1995, p. 36): “cabe-nos tentar jogar uma pedra na lâmina de água” para desnudar e revelar os expedientes aplicados aos textos. A linguagem em seu uso precisa também ser analisados, segundo Batista (2017, p. 29), pois “uma abordagem interacional para a compreensão da linguagem humana e do funcionamento das línguas está localizada em diferentes campos e disciplinas das ciências, da filosofia e da sociologia da linguagem, além dos estudos da comunicação e da cultura”. Logo, a perspectiva interacionista – tirando o foco apenas da estrutura linguística – é assaz elementar para o manejo social e cidadão dos alunos a fim de, assim, articularem saberes e conhecimentos de mundo. Escolhe-se tal tema de pesquisa – a análise retórica dos textos motivadores para a proposta de redação em exames vestibulares ou de aferição de graus de conhecimento – por causa das discussões em torno do direcionamento ideológico que instituições acadêmicas ou órgãos governamentais da esfera de política educacional podem vir a ter, em razão de que o fazer retórico está imbricado à linguagem, isto é, posicionar-se linguisticamente é posicionar-se argumentativamente. Logo, a argumentatividade, segundo Fiorin (2015), é pertencente à linguagem, uma vez que todos os enunciados estão permeados de argumentatividade e atravessados por ela, ou seja, não há, assim, enunciados neutros. Por isso, ao utilizar a língua, escolhas são feitas, consciente ou inconscientemente. Justifica-se também a escolha do tema de pesquisa pela apresentação de uma perspectiva diferenciada no tratamento acadêmico de problemas em torno da produção e leitura de textos em exames vestibulares ou de aferição de graus de conhecimento. A proposta aqui desenvolvida é colocar como foco da análise um elemento ainda não extensivamente discutido quando se trata de redação em exames de acesso a universidades: as coletâneas de textos para apoio à produção textual. Esta dissertação está organizada da seguinte maneira, além desta introdução: a) Capítulo 1, no qual são apresentados alguns aspectos teóricos do campo da Retórica que orientam a análise do material selecionado como corpus do trabalho; b) Capítulo 2, no qual se explicitam os procedimentos metodológicos da pesquisa; c) Capítulo 3, no qual são apresentadas as análises retóricas dos textos motivadores das coletâneas dos exames 24 selecionados como corpus; d) Conclusão, na qual se procura estabelecer uma síntese interpretativa que retoma as problematizações apresentadas nesta introdução e se apontam resultados obtidos na execução dos objetivos pretendidos para a pesquisa. 25 CAPÍTULO 1 A RETÓRICA COMO CAMPO ANALÍTICO 1.1 Retórica, argumentação e discurso Partir-se-á do princípio de que o fazer retórico é intrínseco à linguagem (FIORIN, 2015). Portanto, o produto da enunciação, o enunciado, é argumentativo. O uso da linguagem, isto é, o ato de fala, implica um componente retórico. Ao ouvirmos ou lermos um texto, além do componente linguístico, o componente retórico é acionado a fim de compreendê-lo (o texto) dependendo do momento da enunciação. A abordagem de uma atividade argumentativa tem como berço a Grécia Clássica. Desde a civilização antiga ocidental, mais especificamente a grega, a tradição retórica é cultivada. A preocupação com a acuidade retórica, isto é, a oralidade – expressão verbal, deu-se com os gregos (CITELLI, 1995). A constituição da própria cultura grega da época demandava certa eloquência para alguns cidadãos envolvidos no debate público, visto que o berço da democracia exigiu do homem grego – em algumas situações, por exemplo, tribunais, foros e praças públicas – o fazer oratório. A Retórica como estudo e ensino da arte oratória e das estratégias de persuasão é analítica, ou seja, é a verificação de mecanismos usados para o fazer persuasivo (CITELLI, 1995). Ela não é a persuasão em si, mas leva aos elementos que podem tornar esta possível. Por isso, a Retórica é chamada de analítica por “descobrir o que é próprio para persuadir” (CITELLI, 1995, p. 11) a fim de tornar o discurso mais eficaz e convincente. Segundo Fiorin (2014), o início dos estudos discursivos foi dado por essa Retórica clássica. Contudo, hoje em dia, o ensino dessa disciplina, em alguns momentos, pauta-se apenas no uso das figuras de retórica – tropos e figuras não trópicas. Figuras essas que apenas ficam destinadas à literatura e à estilística na abordagem docente, excluindo-se, assim, a aplicabilidade persuasiva que esses recursos de construção ou de pensamento potencializam no fazer retórico do texto dissertativo-argumentativo. 26 Para Fiorin (2015, p. 27), “se as figuras de retórica não devem ser consideradas enfeites do discurso, então precisam ser analisadas em sua dimensão argumentativa”. Sendo assim, o uso dos tropos não é destinado apenas ao embelezamento do discurso nem está exclusivamente no estudo da literatura; vê-se, por exemplo, largo uso na publicidade com a função conativa da linguagem. Em sua história, a Retórica, antes tida como disciplina fundamental a ser estudada – uma das três faces do trivium com a lógica (ou dialética) e a gramática –, passou a ser considerada como conjunto de elementos para embelezar o discurso, perdendo sua função principal: o funcionamento do fazer persuasivo do discurso. Entende-se Retórica como disciplina não voltada para ética, quer dizer, não há preocupação com o que é dito na dimensão da ideia em si, mas como a ideia, por meios linguísticos, está sendo transmitida com o objetivo de persuadir. Por isso, o processo do fazer persuasivo é que importa. Todavia, vê-se a preocupação com o auditório universal – concepção de que o dito terá alcance em relação à propagação da informação dita, isto é, muitas pessoas, considerando nosso recorte analítico, terão acesso a um texto – nos exames, principalmente o Enem, que exige do candidato coerência e concordância com a Declaração dos Direitos Humanos (estabelecida pela Organização das Nações Unidas em 1948) ao redigir o texto. Logo, por uma questão ética, o Enem não permite que o candidato ofenda a dignidade de ninguém. As etapas do ato retórico – invenção, disposição, elocução e ação – podem ser observadas na estrutura do texto dissertativo-argumentativo (introdução, desenvolvimento e conclusão), exceto a ação. A ação – ato de proferir oralmente o texto, utilizando atributos da voz e da eloquência – não é considerada no processo de elaboração do texto dissertativo, uma vez que não será proferido. Além do mais, as características orais não podem aparecer no texto escrito, ou seja, não se considera a oralização desse texto. Já as outras três etapas – invenção, disposição e elocução – fazem parte do texto a ser redigido para os exames aqui selecionados para análise. 27 A invenção é a procura da tese, que deve estar explícita, preferencialmente, no tópico-frasal do parágrafo introdutório, ancorando a direção temática que será desenvolvida. Isso quer dizer que o texto precisa ter uma direção para o que irá abordar. Além disso, o leitor/avaliador, no papel de auditório, precisa ter noção clara do projeto de texto do candidato (o orador do ato retórico na produção de sua redação), que precisa atender à estrutura adequada da tipologia textual. Assim, caso o candidato siga essa etapa, a chance de tangenciar o tema é menor. Depois, para progredir textualmente, o candidato precisa ordenar os argumentos, selecionando os melhores para convencer o leitor/avaliador de que sabe correlacionar ideias e conteúdos interdisciplinares ao escrever. Por fim, espera-se desse candidato um trabalho elaborado com a linguagem, fazendo uso de elementos de coesão e coerência e um bom uso da norma padrão escrita da língua portuguesa. Para alguns, faz-se necessária uma distinção entre persuadir e convencer – cotidianamente tais palavras são usadas como sinônimos, de maneira intercambiável. Em algumas perspectivas teóricas (CITELLI, 1995; ABREU, 2012), persuasão é o ato de levar o interlocutor a tomar certa ação, quando A leva B a executar um comportamento esperado por A; convencer é levar B a compartilhar ideias pretendidas por A, sem ação a ser executada por B. Dessa maneira, “convencer é fazer com que o outro compartilhe as nossas ideias; persuadir é conseguir que ele faça alguma ação” (ABREU, 2012, p. 112). Logo, o fazer persuasivo estaria mais para um ato perlocutório da linguagem, já que haveria um efeito causado no interlocutor por meio da enunciação, motivando, assim, não apenas um compartilhamento de ideias, mas também execução de algum ato. Neste trabalho, não se fará distinção entre os termos, isto é, usar-se-ão os dois como sinônimos. Em textos de vestibular, se fôssemos seguir a distinção, os vestibulandos jogam com ambos: persuadir e convencer. Contudo, o que está em xeque é a capacidade de articular um repertório próprio e legitimado – argumentos que fujam do senso comum. Fiorin (2015, p. 96) dá a definição de lugar-comum: “argumento pronto [...], argumento já preparado; conteúdos fixos manifestos com figuras recorrentes; 28 estereótipos”. Esse termo, para Aristóteles (2012[c. IV séc. a.C.]), tem outra acepção, isto é, crenças que estão no coletivo social para serem usadas pelo orador. Contemporaneamente, adota-se a definição de Fiorin nos estudos de argumentação, já que o lugar-comum se tornou um argumento que beira o clichê por ser recorrentemente usado pela sociedade. Por conseguinte, além da competência linguística, espera-se que o candidato dos exames demonstre competência argumentativa, na medida em que terá de articular fatos, ideias e dados validados de forma cultural – ou seja, o conhecimento enciclopédico adquirido nas instituições de ensino – para discorrer sobre a temática definida na prova de redação. Ao demonstrar autoria, estaria com pleno domínio dos argumentos apresentados no texto. Dos candidatos aos exames aqui selecionados, cada vez mais, são exigidos textos com repertório autoral na dissertação-argumentativa. Pede-se que o repertório utilizado não seja clichê e de senso comum a fim de que o candidato consiga mostrar, por meio do texto, certo grau de autoria. Para isso, o conhecimento cultural – conhecimento de mundo – precisa ser bem diversificado. Embora alunos tenham contado com a tecnologia na atualidade, poucos na verdade conseguem usá-la com maestria, isto é, poucos conseguem administrar e correlacionar o excesso de informação disponível na internet. Por isso, professores, em muitas escolas e cursinhos preparatórios, ministram aulas de repertório nas disciplinas de redação com o intuito de fazer o discente organizar e correlacionar conhecimento. Aulas que são necessárias para que os alunos consigam estabelecer conexões não apenas com conteúdos transmitidos em sala de aula, mas também com elementos da cultura em que estão inseridos. A importância do estudo da Retórica está no fato de que ela pode revelar como se alcança a persuasão. A Retórica, como dissemos, não é a persuasão em si, mas pode revelar de que maneira essa opera em um texto, por exemplo. Dessa forma, ela contribui para estratégias e para os caminhos que os alunos podem tomar para articular as ideias, os pontos de vista, as informações e os fatos num texto, articulando-os com a vontade de imbuir suas proposições num interlocutor/leitor do texto em seu papel retórico de 29 auditório. Logo, “a retórica é analítica (descobrir o que é próprio para persuadir)”, segundo Citelli (1995, p. 11). Assim sendo, caso se pense a retórica – arte de persuadir – num âmbito social, será indissociável o signo linguístico dos meios ideológicos. [...] a ideologia está contida no objeto, no social, não podendo, portanto, ser reduzida à consciência. Ela existe independentemente da consciência dos agentes sociais. É uma forma fenomênica da realidade, que oculta as relações mais profundas e se expressa de um modo invertido. (FIORIN, 1990, p 29) A ideologia é constituída pela realidade e constituinte da realidade. Não é um conjunto de ideias que surge do nada ou da mente privilegiada de alguns pensadores. Por isso, diz-se que ela é determinada, em última instância, pelo nível econômico. (FIORIN, 1990, p 30) Segundo Bakhtin (2006, p. 29), “em outros termos, tudo que é ideológico é um signo. Sem signos não existe ideologia”. Dessa forma, as escolhas de argumentos – dados, informações e estatísticas – estão imbricadas de teor ideológico, já que todo ato de escrita está inserido numa dada formação ideológica – “dever ser entendida como a visão de mundo de uma determinada classe social” (FIORIN, 1990, p. 32) – e numa dada formação discursiva – “conjunto de temas e de figuras que materializa uma dada visão de mundo” (FIORIN, 1990, p. 32). Até mesmo a escolha de uma palavra implica uma visão ideológica – “a palavra é o fenômeno ideológico por excelência” (BAKHTIN, 2006, p. 34). A linguagem, por ser o sustentáculo da cultura, reflete e refrata coerções a que os interactantes estão submetidos ao usá-la. Posto isso, o falante tem a ilusão de ser senhor de suas próprias palavras, uma vez que “não pensa e não fala o que quer, mas o que a realidade impõe que ele pense e fale” (FIORIN, 1990, p. 43), isto é, há uma trapaça discursiva, seja pela heterogeneidade mostrada, seja pela heterogeneidade constitutiva do discurso. Por isso, ao corrigir o texto dissertativo-argumentativo, o avaliador deparar-se- á, em tese, com o reflexo e a refração da “realidade” do candidato que produziu o texto; portanto, não deve fazer juízo de valor cultural, isto é, julgar se os aspectos culturais são melhores ou piores, mas sim avaliar se a estratégia argumentativa é eficaz a fim de persuadir sobre a temática determinada previamente. Mesmo que candidatos estejam 30 submetidos a uma ideologia dominante, não devem deixar de fazer uso da cultura considerada marginalizada pela sociedade; sendo assim, deve-se partir de uma consideração dos meios culturais dos quais o candidato advém. A argumentação – do ponto de vista da Retórica – é definida: [...] de maneira bem específica pelas seguintes características: trata-se de uma retórica referencial, isto é, ela inclui uma teoria dos signos, formula o problema dos objetos, dos fatos, da evidência, mesmo que sua representação linguística adequada só possa ser apreendida no conflito e na negociação das representações. Ela é probatória, isto é, visa trazer, se não provar, pelo menos a melhor prova. (PLANTIN, 2008, p. 9) Sendo assim, a argumentação é a construção de um discurso persuasivo partindo de proposições a fim de convencer um auditório universal ou particular com fatos verossímeis e não duvidosos (PLANTIN, 2008). O jogo argumentativo é dado por um proponente, um oponente e um terceiro. O primeiro e o segundo são debatedores e o terceiro pode ser encapsulado por um juiz ou pelo público em geral – auditório universal ou particular. Esses são os actantes do jogo retórico. Segundo Blackburn (1997), a argumentação pode ser definida como a produção de considerações a fim de conduzir a uma conclusão. Além disso, Fiorin (2015, p. 17) também estabelece uma definição: “a argumentação é o encadeamento dos enunciados que conduz a certa conclusão, seu domínio preferencial é o estudo dos conectores que realizam esse encadeamento. Além disso, estuda a orientação argumentativa dos enunciados”. Sendo assim, pode ser um processo e um produto. Aquele o modo de pensar e de elaborar logicamente o argumento; este o resultado da enunciação com os componentes linguísticos inseridos em um contexto situacional. A argumentação conduz a algum conhecimento, isto é, se é levado a concluir algo. Consoante Abreu (2012, p. 111), “só se argumenta diante de situações controversas, isto é, em que haja opiniões divergentes”. Quer dizer, a proposta de redação dos exames – por exemplo, Enem, Fuvest, Mackenzie – apresenta, em tese, uma temática controversa com a finalidade de os candidatos proporem argumentos positivos ou negativos em relação ao tema. Contudo, no último parágrafo – conclusivo –, 31 especificamente do Enem, há a exigência de uma intervenção. Logo, espera-se que o candidato, ao final da argumentação, proponha uma solução, articulando os elementos – ação interventiva, agente, meio/modo, efeito e detalhamento. Por isso, uma problemática sempre será esperada a fim de que a argumentação realmente ocorra nas redações, não apenas a exposição de fatos ou de dados. Abreu (2012) detalha, especificamente, a natureza dos argumentos em dois grupos: argumentos quase lógicos – compatibilidade/incompatibilidade, ridículo, regra de justiça e definição – e argumentos baseados na estrutura do real – argumento pragmático, exemplo, modelo ou antimodelo e analogia. Além disso, seleciona as principais falácias, argumentos incorretos – conclusão inatingente, argumentum ad baculum, argumentum ad hominem, argumentum ad ignorantiam, argumentum ad misericordiam, argumentum ad populam, argumentum ad verecundiam, argumento da causa falsa e argumento da pergunta complexa. Tais argumentos e falácias são vistos na oralidade e na escrita. Contudo, não há nas instituições de ensino um foco na análise e na exploração do sentido de cada um, nem nas aulas de filosofia, nas quais apenas se discute brevemente a origem histórica da Retórica e os silogismos sumariamente. Torna-se evidente, portanto, a falta de instrução na hora de concatenar argumentos ao compor o texto argumentativo. Ducrot, ao propor a Teoria da Argumentação na Língua (1987), postula ser a argumentação aspecto fundamental da linguagem, inerente a esta. Dessa forma, a construção linguística seria importante para a argumentação, sendo os elementos da língua desencadeadores da construção argumentativa. A teoria de Ducrot considera os discursos e os enunciados linguísticos interpretados com base na experiência; dessa forma, a depreensão de frases isoladas ou de palavras soltas não é considerada. A argumentação estaria no uso efetivo da língua, em seu plano discursivo. À vista disso, os elementos conjuntivos prestam grande auxílio para a construção argumentativa na teoria de Ducrot. Ele define dois tipos básicos de relações discursivas: normativos e transgressivos. Aqueles são do núcleo dos conectores – conjunções conclusivas; estes de base adversativa. Os avaliadores do Enem, por exemplo, pontuam com notas máximas, como será exposto no capítulo 2, as redações que conseguem maior grau de articulação na 32 competência textual em relação a mecanismos de coesão; portanto, a obtenção da argumentação está atrelada também aos fatores de textualidade. 1.2 A presença da Retórica na contemporaneidade O fazer retórico para o falante contemporâneo é, tomando-se cuidado com as especificidades sociais, históricas e culturais, quase o mesmo do da gênese da Retórica: arrogar-se de direitos e deveres sociais. O falante, hoje em dia, encontra-se numa situação social que exige cada vez mais posicionamento crítico diante de uma sociedade que se tem mostrado polarizada em grupos que assumem posições totalmente divergentes em muitos casos. As melhores redações do Enem 15 , por exemplo, são divulgadas em meios jornalísticos, servindo de modelo para futuros candidatos. Dessa forma, as redações deixam de ser meros meios avaliativos, passando, assim, a cumprir um papel social quando lida por outros além do avaliador. A urgência do homo retoricus no século XXI dá-se pela ampliação midiática cada vez mais abundante na modernidade. Além disso, a modernização de setores que até então eram físicos – que se encontravam em espaços geográficos da cidade – encontra-se migrando, para muitos, para o ambiente virtual. A título de exemplo desses serviços, a biometria obrigatória para eleições no Brasil, agendamentos digitais para confecção e renovação de documentos pessoais (carteiras de habilitação, emprego e trabalho, dentre outros serviços), renovação de bilhetes de transportes públicos e aplicativos de celular do Sistema Único de Saúde (SUS) para agendar consultas e outros serviços encontram-se, hoje, digitalizados. Por isso, a migração para a internet de esferas governamentais, além de ser um meio de agilizar a burocracia e o acesso ao que a população precisa, demanda um certo domínio de gêneros discursivos para que os usuários da língua tenham possibilidades de compreender uma informação sem ruídos e de maneira facilitada. Dentre a necessidade linguística, o ato de ler, segundo Capistrano Junior (2011, p. 227), está além de ser mera atividade escolar, já que “a leitura, como prática social que é, 15 A Fuvest e a Universidade Presbiteriana Mackenzie não divulgam as redações dos candidatos. 33 propicia aos sujeitos formas de inserção e de participação não só no ambiente escolar, mas também na vida profissional e no mundo”. Vê-se, assim, que a leitura, por exemplo, cumpre, se bem desenvolvida desde o início do Ensino Fundamental, um fazer na prática social do cidadão, possibilitando a este acesso a sistemas de atividade pública: como direito ao voto, à emissão de documentos e ao agendamento de consultas médicas. Sendo assim, a contemporaneidade, por se encontrar parcialmente digitalizada, impõe aos âmbitos escolares maior trabalho com a diversidade de gêneros e com as formas de posicionamento social por meio da linguagem. O caráter linguístico é interacional e dinâmico em cada esfera social, sendo necessários, em cada momento, negociação e gerenciamento de informação pelo falante ao se comunicar com seu interlocutor. O argumentar, segundo Alencar e Faria (2011, p. 145): [...] faz parte do cotidiano do homem em todas as atividades, isto é, o ser humano participa diariamente de inúmeras relações orientadas para a discursividade, daí porque uma das funções básicas da escola é proporcionar aos alunos o desenvolvimento da argumentatividade em produções orais e escritas. Fazendo parte da vida e da prática social, deve-se ter maior atenção ao ato de argumentar nos meios sociais, uma vez que o interlocutor, dentre várias funções que possa vir a assumir, pode desempenhar, na comunicação, o papel de juiz, de assembleia e de espectador (FERREIRA, 2010) – pensando não somente nos âmbitos jurídicos, por exemplo. O interlocutor, ao ler uma notícia, uma reportagem ou um editorial, se tiver noções de argumentação e um amplo conhecimento de mundo, pode vir a não compactuar com as ideias do autor do texto, ou seja, sendo juiz de sua própria leitura. Ao ser membro de uma assembleia, pode vir a aconselhar uma tomada de decisão importante, por exemplo. E, ao ser espectador, pode, ao votar, decidir qual é o candidato mais adequado naquela eleição. Dessa maneira, o interlocutor assenhora-se de componentes linguísticos que o ajudam a não ser influenciado e enganado pelo orador. 34 Para mais, segundo Ferreira (2010, p. 12, grifo do autor), “somos seres retóricos. Por termos crenças, valores e opiniões, valemo-nos da palavra como um instrumento revelador de nossas interpretações sobre o mundo”. Viver em sociedade é estabelecer acordos a todo momento: ora sendo orador, justificando-se e explicando-se ao outro a fim de persuadi-lo; ora sendo auditório, aceitando ou não o que o outro nos impõe. Portanto, ainda segundo Ferreira: “[...] usamos a linguagem não só para estabelecer comunicação, mas, sobretudo, para pedir, ordenar, sugerir, criticar, argumentar, fixar uma imagem positiva ou negativa, afirmar ou negar uma ideia” (2010, p. 50). Atualmente, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) do Ensino Médio de Língua Portuguesa, por exemplo (em termos de diretriz pública de ensino), propõem diretrizes para que o aluno seja o protagonista de seu próprio processo de aprendizado. Isto é, para que assuma o centro ativo de seu próprio estudo, já que o papel do professor de transmissor de saberes verteu-se em um papel de orientador, auxiliando os saberes que os discentes já possuem em sua bagagem cultural a fim de expandi-los. Além disso, o conhecimento linguístico está pautado nas variações que uma mesma língua tem, considerando-se, assim, os falantes e seus grupos em diversos contextos de uso. O próprio documento faz uma reflexão sobre o ensino de gramática ao questionar: por que os alunos não dominam a nomenclatura gramatical até os anos finais da educação básica? Ensinou-se gramática normativa desde os primeiros movimentos de uma prática de ensino de língua portuguesa nos tempos do Brasil Colônia, se pensarmos num histórico de formação e desenvolvimento dessa prática (cf. SOARES, 1998). Porém, o ensino do conjunto de regras do sistema linguístico não é o problema. O aluno deve ter ciência ao fazer uso do sistema linguístico, por exemplo, sabendo que o uso adequado de uma conjunção coordenativa pode acarretar, em seu texto ou em sua fala, uma carga argumentativa maior. Isto é, a funcionalidade da língua – para que ela serve – deve estar atrelada ao ensino de gramática. O início histórico de uma disciplina Língua Portuguesa esteve atrelado a práticas utilizadas no ensino de Latim, desde os tempos coloniais. Nessas práticas (adequadas e pertinentes no recorte histórico em se formularam e desenvolveram), que se estenderam por muito tempo até pelo menos as décadas de 1950 e 1960 no Brasil (cf. SOARES, 35 1998), ensinava-se exegese de textos literários, tirando, assim, a interação e as múltiplas possibilidades de análise, focando-se meramente nos elementos gramaticais e figuras de linguagem. Sabe-se, desde o final da década de 1970, com o aporte dos estudos linguísticos no ensino de língua (efetivamente a partir de 1980), da validade de uma abordagem que contemple teorias e métodos da ciência da linguagem – sociolinguística, pragmática, semiótica etc. – para que o professor consiga, em sala de aula e por meio de atividades práticas, construir com o aluno um conhecimento amplo sobre linguagem, mostrando aos discentes a complexidade do caleidoscópio comunicacional, ou seja, não reduzindo o estudo de gramática apenas à classificação mecânica. A escola, como órgão máximo transmissor do ensino, deve repensar como a gramática é utilizada em sala de aula, uma vez que a educação em língua se pauta em taxonomia ainda hoje, ou seja, os alunos são levados a dar nomes aos componentes fonéticos, morfológicos, sintáticos e estilísticos. Em linha contrária a essa visão, os PCNs são organizados essencialmente em um ensino de língua de base sociointeracionista: usando o próprio saber do aluno, a bagagem linguística que o discente já possui, ampliando-a para outras esferas sociais e discursivas. Dessa forma, quebra-se a visão mais normativista e descritivista em termos de reconhecimento de metalinguagem em prol de uma funcionalidade e uma aplicabilidade contextual de língua. Já Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é outro documento oficial de direcionamento de políticas educacionais. Esse documento oferece diretrizes para o desenvolvimento de “aprendizados essenciais”16 ao longo do percurso do ensino básico (Fundamental e Médio). O documento foi pensado para superar disparidades de ensino no Brasil, propondo, pois, competências gerais para o progresso do aluno da educação básica. Conforme o próprio documento (2017, p. 8): Competência é definida como a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e 16http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/historico/BNCC_EnsinoMedio_embaixa_site_110518.pdf. Acesso em 18 de mai. 2020. 36 socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho. Segundo o trecho acima, pensa-se que o ensino saia dos padrões tradicionais ao considerar competências, habilidades, atitudes e valores do aluno no coletivo, ou seja, uso dos conteúdos em situações reais da vida. Para mais, as diversidades artísticas e culturais, na BNCC, são ressaltadas para um amplo desenvolvimento dos estudantes. Sendo assim, a BNCC realmente volta-se para novas necessidades práticas e intelectuais dos alunos numa nova configuração da sociedade, dado que dá ênfase à necessidade do desenvolvimento digital do aluno também. É imperativo destacar os fundamentos do saber e do saber fazer do aluno. Aliam- se, assim, teoria e prática dos conteúdos ministrados. A visão de ensino de língua portuguesa é pautada na habilidade genérica, ou seja, arrolar-se a língua à sua prática textual e discursiva, ressaltando também a diversidade linguística e sua atuação social. A visão estritamente gramatical é diluída em sua prática, dado que a BNCC reconhece a multiplicidade linguística na sociedade. Para mais, acentua o hibridismo semiótico das linguagens em sua práxis. Por meio dessa perspectiva, salienta-se, por exemplo, o fazer político-social: “[...] recepção e produção de discursos nos diferentes campos de atuação social e nas diversas mídias, para ampliar as formas de participação social” (BNCC, 2017, p. 483). Por conseguinte, afirma-se que o fazer retórico se encontra nessa visão de língua e uso, visto que se frisa uma visão textual, funcional, social e pragmática da língua. Essa priorização interacional implica um diálogo maior entre professor-aluno, aluno-aluno e aluno-sociedade, instaurando, assim, desde os anos escolares, uma comunhão de debate e de auditórios diversos – ou seja, diálogo com diferentes interlocutores. Além disso, os textos são enfoque de um ensaio para um macroato discursivo; por isso, ao serem ensinados em sala de aula, devem ser ancorados em uma real situação comunicativa para o estudo de língua, deixando, assim, a exegese descontextualizada em favor de uma integração entre sala de aula e realidade social. 37 O contexto do século XXI submete ao falante uma posição crítica mais acentuada, tendo em vista a multiplicidade de “palcos” para se expressar, por exemplo, mídias sociais. Hoje em dia, existe uma grande polarização política agravada pelo uso das mídias sociais, nas quais os falantes podem vir a expressar opiniões controversas às vezes sem a possibilidade de represálias caso venha a ferir os direitos humanos. Por isso, o fazer retórico – o debate – nunca esteve tão em voga, seja nas redes sociais, seja nas entrevistas e nos debates televisionados, seja no meio pessoal etc. Segundo Abreu (2009, p. 10), Todos nós teríamos muito mais êxito em nossas vidas, produziríamos muito mais e seríamos muito mais felizes, se nos preocupássemos em gerenciar nossas relações com as pessoas que nos rodeiam, desde o campo profissional até ao pessoal. Mas para isso é necessário saber conversar com elas, argumentar, para que exponham seus pontos de vista, seus motivos e para que nós também possamos fazer o mesmo. Esses debates, dada a possibilidade das redes sociais, são necessários ao sistema democrático: “num regime democrático, a voz de baixo, ou seja, da opinião pública: a instância soberana detém um poder proveniente do povo, do qual é o representante num processo de delegação” (CHARAUDEAU, 2016, p. 152). Portanto, a necessidade da voz do cidadão, ainda mais pela multiplicidade de “palcos” para se fazer ouvida, é imperativa para constituição de uma democracia participativa. Tendo em vista a eventualidade de ser ouvido, as redes sociais transformaram-se em palcos para deliberações sobre qualquer temática polêmica que venha a surgir. Democraticamente, a oportunidade de se expressar sem censura é um excelente exercício social e legal dentro de uma dada sociedade. Contudo, hodiernamente, expressar-se tornou-se sinônimo de embate e não de debate retórico. Haja vista a polarização política, opiniões e certas perspectivas políticas, por exemplo, tornam-se ensejo para uma não argumentação, deixando de lado um debate enriquecedor no qual ambos, orador e auditório, saiam com ideias revistas ou novos pontos de vista. O que se vê muitas vezes é uma luta ideológica, minando a função primeira da retórica: vencer junto. Segundo Abreu, uma importante lição sobre argumentação é: “argumentar não é obter uma vitória contra alguém ou uma maioria. É vencer junto com esse alguém ou com a totalidade de um auditório” (2012, p. 111). 38 Por outro lado, essa polêmica instaurada nas mídias sociais e nos meios midiáticos é vista por Amossy (2017) como “normal”, uma vez que, segundo a autora, se está numa “sociedade do espetáculo: as polêmicas atraem porque são lúdicas” (2017, p. 8). O dissenso é lugar-comum quando o assunto é expressar opiniões publicamente – on- line ou pessoalmente. Não existe, de maneira generalizada, um consenso entre opositores em debates e em discussões cotidianamente. As esferas das redes sociais afrouxaram a polidez entre os interlocutores, não havendo, assim, necessidade de respeito às faces, já que não estão interagindo sincronicamente, face a face. Amossy (2017, p. 18) diz que o dissenso: “[é] o inverso do acordo social, a divisão de opiniões no espaço público”. Logo, dissenso é amplificado por causa da segurança que a distância e o anonimato podem dar ao orador quando expressa uma posição polêmica. Ter-se-ia polidez – “todos os aspectos do discurso que são regidos por regras, cuja função é preservar o caráter harmonioso da relação interpessoal” (KERBRAT- ORECCHIONI, 2006, p.77) – como norma para o debate não só face a face, mas também no meio eletrônico. Enquanto a distância social, isto é, o não conhecimento próximo do oponente, poderia preservar as faces positiva e negativa, a distância social virtual mina essa preocupação de preservação na interação on-line. Haveria uma necessidade social da polidez de manter um equilíbrio simétrico entre ambas as partes: proponente e oponente. No entanto, as modalizações em redes sociais, por exemplo, Twitter, Instagram e Facebook, dão lugar a uma linguagem mais vulgar quando se defendem assuntos controversos: aborto, gênero sexual, política e legalização da maconha. A Retórica propõe um acordo entre os falantes, porém esse acordo tornou-se o conteúdo que é admitido pelo público como comum e verificado. Todavia, caso o auditório seja heterogêneo, crenças e valores podem ser recebidos de maneira distinta pelos interlocutores, gerando, assim, o desacordo. Reboul (2000, p. 29) diz que argumentar é “um jogo em que se deve fazer de tudo para ganhar, mas sem trapacear, respeitando as regras [...] da lógica”. Além disso, diz que “como em todos os jogos, a polêmica só é conflito na aparência. [...] Quem defende uma tese pode muito bem não acreditar nela; defende-a por jogo” (2000, p. 29). Sendo assim, 39 defender-se-ia uma tese apenas porque a inércia prevaleceria sobre a mudança, ou seja, manter-se-ia um paradigma antigo a fim de não se pensar e refletir sobre uma mudança do status quo. Vê-se, na internet, muitos defendendo posições mais tradicionais por causa da religião e de outras visões tradicionais fossilizadas na sociedade. Dessa forma, para muitos o velho sobrepõe-se ainda ao novo. Argumenta-se, por exemplo, por petição de princípio nas redes sociais e por meio de outras falácias, tomando o assunto como tese aceita e factual, dando fatos e “verdades” escassas para sustentar o tema. A polêmica não segue por vias e por direções racionais como se deseja que o ato de argumentar siga. A argumentação, assim, tornar-se-ia um sinônimo de acordo e de consenso, quer dizer, uma normatização formal e civilizada que seria regulamentada (AMOSSY, 2017). Presencia-se, porém, a retomada da erística – argumentação que visa ao logro e à comunicação capciosa – para persuadir na rede social. Dessa forma, argumenta-se pela força e pela ofensa. Segundo Amossy (2017, p. 20): “é a arte do jogo verbal que não respeita nem as restrições formais às quais se curva o autêntico discurso retórico – ele autoriza os desregulamentos – nem os ditames da razão que impõem às partes reconhecer os argumentos válidos – ele aceita os golpes de força e o uso de argumentos falaciosos”. Por isso, em posts de blogs e sites de notícias, vê-se que os campos de comentários são permeados de diálogos erísticos ainda mais por causa da bipolarização política do final de 2018 para o início de 2019. As eleições presidenciais de 2018 contribuíram para a radicalização do debate político, uma vez que a esquerda, por causa da Lava Jato e do impedimento da ex-presidente Dilma Rousseff, estava fragilizada e a direita via-se popular, por causa do resgate do discurso mais tradicional, tendo como imagem o atual presidente Jair Messias Bolsonaro. Há épocas mais polêmicas em relação ao discurso do que outras. Vive-se numa sociedade em que o homo retoricus precisa saber compreender e assimilar os argumentos postos por oponentes. Além disso, exige-se desse falante um rol de conhecimento expandido, uma vez que terá de lidar com auditórios particulares e universais, homogêneos e heterogêneos, porque o homo retoricus situa-se numa época de revisão de pensamentos estratificados, ou seja, torna-se importante um acordo reflexivo sobre as 40 mudanças com o intuito de tirar os oponentes da inércia, que conta com um quê de normalidade: “opinião expressa, conduta preferida” (PERELMAN; OLBRECHTS- TYTECA, 2014, p. 119). A mudança, segundo os autores citados, deve ser fundamentada, lutando, assim, contra o sofisma do medo de mudança. Deve-se, ao discutir e ao debater, por exemplo, manter um acordo não sobre o racional, porém sobre o que é razoável (AMOSSY, 2017). Dessa forma, deliberar-se-ia sobre o plausível para a maioria, evitando, assim, o dissenso coletivo. O objetivo da análise retórica é observar como se dá um acordo (ou desacordo até) entre as partes com o propósito de os falantes argumentarem e contra-argumentarem juntos por meio do discurso, ou seja, do lógos. A adesão torna-se um dos pilares para Perelman e Olbrechts-Tyteca (2014, p. 4, grifo nosso): “o estudo das técnicas discursivas que permitem provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que se lhes apresentam ao assentimento”. Tendo em vista que só se argumenta por meio de um auditório, é importante, conforme Perelman e Olbrechts-Tyteca (2014, p. 18), “ter apreço pela adesão do interlocutor, pelo seu consentimento, pela sua participação mental”. Vê-se, cada vez mais, a falta de diálogo entre os falantes por causa da cisão política fundada nas pré-eleições de 2018. A hipótese do dissenso mais alarmado naquela época deu-se graças ao discurso menos polido da extrema direita e também da extrema esquerda, no qual o diálogo está pautado num debate erístico. Embora a discussão seja benéfica para reflexão, quando ambas as partes não se permitem ao diálogo, torna-se um debate ou uma tentativa inócua de debate. Não basta falar ou escrever, cumpre ainda ser ouvido, ser lido. Não é pouco ter a atenção de alguém, ter uma larga audiência, ser admitido a tomar a palavra em certas circunstâncias, em certas assembleias, em certos meios. Não esqueçamos que ouvir alguém é mostrar-se disposto a aceitar-lhe eventualmente o ponto de vista. [...] As discussões frívolas e sem interesse aparente nem sempre são desprovidas de importância, por contribuírem para o bom funcionamento de um mecanismo social indispensável. (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2014, p. 19) O ser ouvido, hodiernamente, ou lido torna-se dificultoso e laborioso, na medida em que os pré-julgamentos são construídos antes mesmo de o proponente conseguir 41 expressar-se. Vale-se frequentemente ao ataque à pessoa – ad hominem – no lugar de contra-argumentar o que foi posto ou pressuposto. O ataque a valores, a ideologias e a crenças leva imediatamente a um confronto pessoal e não racional. Ao se questionar acerca da religião, por exemplo, o proponente tece argumentos que ferem de forma íntima o oponente, mesmo que não tenha premeditado anteriormente. Isto é, o páthos na argumentação encontra-se mais inflamado nesses tempos modernos. Se, de fato, o conflito é inevitável em nossas democracias pluralistas e se o cerne da democracia não é o consenso, mas a gestão do dissenso, então a polêmica como confronto verbal de opiniões contraditórias que não leva a um acordo utópico deve ser reconsiderada em profundidade. É, por conseguinte, uma retórica do dissenso que é necessária desenvolver, na qual a polêmica deve ter lugar em destaque. (AMOSSY, 2017, p. 38) A análise retórica leva em conta acordos racionais para que haja harmonia durante deliberações, por exemplo, privilegiando, assim, um debate arrazoado. Por ter um ideal utópico de consenso, a polêmica em debates é tida como contraproducente e deslegitimada. Mesmo que se espere um acordo mútuo e formal entre as partes, é possível que tal entendimento não seja efetivo ao longo de uma explanação com temas polêmicos, por exemplo. Sendo assim, o dissenso torna-se inevitável em desacordos profundos e fossilizados, tendo de ser aceita a irracionalidade com que muitos possam vir a agir. No presente, deve ser revista a exceção de desacordos em discussões e em debates, já que eles ainda são tidos como regra (AMOSSY, 2017). Além disso, devem-se distinguir aqueles oradores que usam o dissenso como meio de realmente compreender os meandros de um objetivo específico dos que apenas desejam incitar agressividade gratuita. Pode-se, porém, tirar proveito argumentativo do dissenso, quando ele é direcionado para a resolução de uma questão, tornando-se, assim, positivo, uma vez que o antagonismo sempre irá existir sobre temática vária. O debate virulento ou até mesmo a disputa para se vencer numa argumentação faz uso de expressões sarcásticas, irônicas e de baixo calão a fim de silenciar o oponente que se coloca contra uma posição inicial do proponente. Sabe-se que a argumentação nasce da oposição de ideias; além disso, a polêmica por si mesma nasce de assuntos de interesse 42 público. Em 2019, o Brasil encontrava-se numa dicotomização maior ainda sobre assuntos vinculados pela mídia: política, questões sociais e ambientais. A polêmica ressaltava-se nos interesses públicos, ou seja, a mídia passou apenas a veicular assuntos e tópicos em que o conflito argumentativo se sobrepunha entre os cidadãos, assuntos esses que podiam se tornar efêmeros ou fossilizados nas discussões cotidianas, virando, assim, tabus para serem discutidos no seio da sociedade sem disputas nem altercações. Como aponta Amossy (2017, p. 49), “a polêmica é, portanto, um debate em torno de uma questão de atualidade, de interesse público, que comporta os anseios da sociedade mais ou menos importantes numa dada cultura”. Por consequência, a polêmica argumentativa traduz-se numa visão argumentativa em voga em que há engajamento social, mesmo que esse engajamento não venha a se tornar um consenso universal sobre o assunto discutido. Para mais, o antagonismo de ideias e opiniões deve ser incitado pelo homo retoricus a fim de que assuntos sociais venham a ganhar relevância no debate corriqueiro. Por exemplo, muito se discutiu sobre a reforma da previdência em 2019. Sendo assim, o Brasil encontrou-se polarizado – duas classes, quiçá mais, se dividiram em relação a sua aprovação – e dicotomizado – entre a aprovação e a não aprovação da reforma. Ou seja, viu-se a polarização social entre grupos e classes sociais; depois, a dicotomização do assunto, entre positivo ao país ou negativo. Portanto, deve-se ter em perspectiva, ao se debater, que divergências podem ocorrer; contudo não se dá o conflito dos atores, mas sim dos actantes. Tem-se, às vezes, a eleição de um inimigo comum – personificado ou não. O éthos de um grupo é erigido pelos oponentes com o intuito apenas de difamar essa imagem, sem uma argumentação racional, mas uma argumentação patética, um engajamento emocional (AMOSSY, 2017). Atores podem mudar de opinião para se encaixarem num actante – papel social. Portanto, sempre haverá polarizações entre actantes, devendo, dessa forma, manter-se a parcimônia entre os atores. Há gêneros discursivos de teor argumentativo que têm uma regulamentação maior do que a de outros. Assume-se, aqui, que o valor da emoção – páthos – é imprescindível ao sistema retórico; todavia, admite-se a visão de Perelman e Olbrechts-Tyteca (2014, p. 43 61) sobre a polêmica: “o recurso à argumentação supõe o estabelecimento de uma comunidade dos espíritos que, enquanto dura, exclui o uso da polêmica. Consentir na discussão é aceitar colocar-se do ponto de vista do interlocutor”. Entende-se que a polêmica seja constitutiva de “uma modalidade argumentativa, entre outras” (AMOSSY, 2017, p. 67); no entanto, é fundamental que adesões e acordos sejam estabelecidos de maneira coerente e proporcional. Os candidatos dos exames aqui selecionados tornam-se homo retoricus usando a linguagem para lutar por direitos para a comunidade e para si mesmos. Além disso, apresentam ideais pautados na modernidade a fim de promoverem a melhoria na sociedade e nas ideias fossilizadas na sociedade. Tendo isso em vista, incumbem-se de habilidades linguístico-retórico-pragmáticas para a ressignificação de preconceitos e de concepções num século de diversidade, por exemplo: conceitos como família, gênero sexual, drogas lícitas e ilícitas, política etc. Logo, deve-se suscitar no homo retoricus um espírito de réplica quando ouvir informações fossilizadas e não bem fundamentadas. O universo da internet demanda muito dos usuários da língua, dado que a variação da língua usada nesse meio pode alternar-se entre formal ou informal. Elias (2011, p. 160) diz que “no universo das redes sociais, são muitas as práticas de escrita”. Efetiva-se, assim, maior discussão sobre as possibilidades da língua e suas variedades na escola. Portanto, a leitura também é um grande componente que deve estar ao lado do homo retoricus. Vive-se numa época em que a confluência de informações é abundante, gerando, dessa forma, imprecisões em razão da não confiabilidade da fonte divulgadora desses dados. Logo, a leitura crítica é fundamental para que alunos consigam ser capazes de discernir e perceber fontes confiáveis de notícia. As redes sociais podem trazer pontes para culturas e sociedades distantes geograficamente; entretanto, ao mesmo tempo, pelo fácil acesso que o público tem a elas, o perigo aumenta quando informações podem ser divulgadas nesses meios sem crivo crítico nem leitura de arguidores especializados no assunto. Não se deseja censura a informações e a notícias; no entanto, quando ela pode vir a minar o conhecimento científico e acurado do leitor, necessita-se maior preocupação com sua disseminação e difusão. 44 O nêmesis da informação, hoje em dia, são as Fake News. A única defesa seria uma vasta bagagem cultural construída ao longo dos anos para que se consiga fugir da “visão tubular” (ABREU, 2009, p. 11). Abreu nos diz que, “à medida que for lendo, verá que o próximo livro sempre fica mais fácil, pois seu repertório vai ganhando aquilo que os físicos chamam de ‘massa crítica’ e, a partir daí, você terá condições de fazer uma leitura mais seletiva da mídia” (2009, p. 14). Por causa disso, deve-se ter em mente que “a leitura seria a ponte para o processo educacional eficiente, proporcionando a formação integral do indivíduo” (MARTINS, 1986, p. 25). Sendo assim, deve-se considerar que o candidato dos exames não é um ser passivo no processo de leitura, mas sim ativo, construindo e correlacionando fatos e experiência de vida. Na internet, muitas possibilidades de textos podem aparecer, porém uma em especial é a sua marca: o hipertexto – texto configurado em redes sociais e dinâmico. Esse tipo de texto não se configura como os outros, uma vez que não contém uma leitura linear e sequencial (KOCH, 2018a), sendo multissemiótico e fragmentário. Os links podem exibir outras configurações conforme os usuários vão acessando-os na internet. Exige-se, assim, que o leitor seja capaz de manter, ao ler os links, a “coerência temática”, formando, portanto, uma progressão textual coerente e inteligível. Haja vista a não ciência da autoria demarcada e formal dos hipertextos, cabe ao leitor ir construindo sentido no momento da leitura. O gerenciamento de informação, assim, é alto, dado que as escolhas são feitas pelo leitor-usuário. Consequentemente, situar-se no meio social é estar cercado de pluralidade de ideias e opiniões. Embora a Retórica preconize um acordo para que haja maior adesão no ato deliberativo, encontrar-se-ão momentos em que o consenso não será uma constante. Logo, para o pleno fazer retórico, “é mister que, num dado momento, se realize uma comunidade efetiva dos espíritos. É mister que se esteja de acordo” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2014, p. 16). Se não houver um contrato intelectual, tornar-se-á árdua a argumentação, não impossível. Mais uma vez, as habilidades requeridas na atualidade pelo homo retoricus excedem as linguístico-discursivas, abrangendo, assim, as relações interpessoais, a polidez e as variações culturais. Na hipótese de a atualidade estar 45 colérica, valer-se-á de um discurso mais atenuado e mais racional, a fim de romper a interação com o outro, tentando ao máximo manter uma gestão harmoniosa do diálogo. Evita-se assim uma retórica do dissenso marcada pela disputa e não na discussão ou no debate. Dessa forma, vê-se a importância concreta do fazer retórico nesta dissertação: verificação das possibilidades argumentativas perpassadas pelos textos motivadores das provas de redação dos exames. Nesses palcos – redações – é possível mais de uma trama argumentativa, ou seja, é possível, por meio da leitura dos textos da coletânea, identificar uma abertura ao debate por meio de um amplo prisma de ideias e opiniões. 46 CAPÍTULO 2 MÉTODO: MATERIAL E PROCEDIMENTOS ANALÍTICOS 2.1 Material de análise 2.1.1 Descrição e apresentação do material O material de análise é composto de um conjunto de coletâneas de textos motivadores para o desenvolvimento da proposta temática de redação de exames vestibulares e de aferição de graus de conhecimento. Essas coletâneas são formadas por textos de diferentes gêneros e linguagens que possibilitam aos candidatos a depreensão (a partir de uma leitura adequada de seu conteúdo temático) do tema que deve ser desenvolvido em textos dissertativo-argumentativos. O corpus da dissertação é composto por seis conjuntos de textos motivadores das provas de redação, dos anos 2009 e 2018 (recorte temporal arbitrário, mas que procura mapear, por hipótese, possíveis modificações em um intervalo temporal de quase uma década), de cada instituição aqui selecionada para a investigação – Enem, Fuvest e Mackenzie. Os textos das provas de exame de redação encontram-se disponíveis on-line: tanto nos sites das instituições como em sites educacionais. Os temas da prova de redação em 2009 das três instituições foram conforme segue: a) Enem: “o indivíduo frente à ética nacional”. A prova apresentou três textos que davam suporte à temática exigida para a elaboração da redação: o primeiro, um texto verbovisual que questiona a honestidade na coletividade; o segundo, um texto que traz como pauta de reflexão as condutas passivas e não cidadãs da sociedade frente a conflitos político-sociais; o terceiro, um texto que aborda os lugares-comuns no falar sobre política. 47 Figura 1 – Proposta de Redação, Enem, 2009 48 b) Fuvest: “fronteiras” – tanto geográfica quanto física, psicológica e cultural. A prova de redação apresentou três textos motivadores: o primeiro, verbovisual; o segundo, metalinguístico, explicando a definição dicionarizada de fronteira; o terceiro, uma breve explicação sobre os conceitos de fronteira fora do âmbito geográfico. Figura 2 – Proposta de Redação, Fuvest, 2009 49 c) Mackenzie: o conceito de “felicidade” apresentado por meio de quatro textos motivadores: o primeiro, uma música que questiona valores enraizados na sociedade; o segundo, um texto expondo o padrão de felicidade na modernidade; o terceiro, um relato mais subjetivo e pessoal sobre o padrão de felicidade vendido pela mídia; o quarto, um texto mais científico sobre a possibilidade de se entender a felicidade pela análise cerebral. Figura 3 - Proposta de Redação, Mackenzie, 2009 50 Em 2018, as temáticas foram: a) Enem: “manipulação do comportamento do usuário pelo controle de dados na internet”. A coletânea de textos apresentou três textos e um infográfico. Figura 4 - Proposta de Redação, Enem, 2018 51 b) Fuvest: “devem existir limites para a arte?”. Na coletânea, cinco textos; todos apresentando conceitos de arte e sua prática, ou seja, o seu fazer reflexivo e político. Figura 5 – Proposta de Redação, Fuvest, 2018 52 c) Mackenzie: “identidade”. A coletânea apresentou três textos que questionam a construção da identidade pessoal dentro de um contexto político-social-cultural. O primeiro texto é um excerto de um livro didático de sociologia. O segundo texto é um trecho de um livro do escritor Mia Couto. O terceiro é do gênero charge. Figura 6 - Proposta de Redação, Mackenzie, 2018 53 2.1.2 Condições de aplicação do material de análise a) Enem O exame de redação do Enem é aplicado no primeiro dia do exame, em geral no mês de novembro, com a prova de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias e Ciências Humanas e suas Tecnologias. Pela prova do Enem o candidato consegue usar a nota para admissão ao ensino superior nos âmbitos público e privado. Dessa forma, a prova foi pensada para minimizar desigualdades sociais entre estudantes – sejam de escola particular, sejam de escola pública – do Ensino Médio de todo o Brasil. Por meio da prova, o candidato pode conquistar uma vaga no ensino universitário público por via do Sisu (Sistema de Seleção Unificada). Além disso, pelo Prouni (Programa de Universidade para Todos), o candidato pode concorrer a bolsas de estudos parciais ou integrais nas universidades privadas. Há, também, dependendo da renda do candidato, o programa de Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), que financia, com juros baixos, o curso durante todos os semestres, porém, ao finalizar o curso na universidade particular, o aluno deve, de forma parcelada, restituir os valores ao governo. A prova de redação, por causa do seu peso na soma aritmética, torna-se requisito quase que principal para utilização nos programas sociais descritos acima. Deve-se, por exemplo, obter nota mínima de 450 para optar pelo Prouni e pelo Fies; porém, para o Sisu, o candidato apenas não deve zerar a redação. O objetivo da prova do Enem é avaliar e analisar o desempenho dos candidatos ao final do Ensino Médio e oferecer outras oportunidades para a entrada no ensino superior. A redação do Enem é corrigida por dois avaliadores; caso haja discrepância na nota, um terceiro avaliador intervirá para a correção e, ao final, haverá uma média aritmética com as maiores notas. No entanto, se, porventura, ainda houver uma discrepância com um terceiro corretor, a redação passará por uma banca composta por três professores. O Inep, em seu site, disponibiliza a cartilha do participante17 para que os 17http://download.inep.gov.br/educacao_basica/enem/guia_participante/2018/manual_de_redacao_do_enem _2018.pdf. Acesso em: 24 de jul. 2019. 54 candidatos tirem suas dúvidas sobre o que é pertinente saber antes do exame de redação. Na cartilha, há o modo com que a redação será avaliada; por exemplo: são cinco competências; cada uma tem o valor de 0-200. O total de pontos é 1.000. Quadro 1 - Fonte: Inep – Ministério da Educação (p. 8) Competência 1 Demonstrar domínio da modalidade escrita formal da língua portuguesa. Competência 2 Compreender a proposta de redação e aplicar conceitos das várias áreas de conhecimento para desenvolver o tema, dentro dos limites estruturais do texto dissertativo-argumentativo em prosa. Competência 3 Selecionar, relacionar, organizar e interpretar informações, fatos, opiniões e argumentos em defesa de um ponto de vista. Competência 4 Demonstrar conhecimento dos mecanismos linguísticos necessários para a construção da argumentação. Competência 5 Elaborar proposta de intervenção para o problema abordado que respeite os direitos humanos. Além disso, a cartilha direciona o candidato para quais itens podem zerar a redação: 1. Fuga total ao tema. 2. Não obediência à estrutura dissertativo-argumentativa. 3. Extensão de até 7 linhas. 4. Cópia integral de texto(s) motivador(es) da Proposta de Redação e/ou de texto(s) motivador(es) apresentado(s) no Caderno de Questões. 5. Impropérios, desenhos e outras formas propositais de anulação (tais como números ou sinais gráficos fora do texto). 6. Parte deliberadamente desconectada do tema proposto. 7. Assinatura, nome, apelido ou rubrica fora do local devidamente designado para a assinatura do participante. 8. Texto predominantemente em língua estrangeira. 55 9. Folha de redação em branco, mesmo que haja texto escrito na folha de rascunho.18 A cartilha também direciona o candidato ao que precisa ser estudado para que a nota máxima seja obtida, ou seja, há um cunho pedagógico e didático a fim de que o candidato possa dedicar-se aos componentes que de fato cairão na prova, focando, assim, em suas limitações linguísticas com o intuito de potencializá-las. Focar-se-á apenas nas competências 2, 3 e 4, uma vez que dizem respeito à argumentação e aos elementos textuais. Vê-se que o Enem está direcionando o candidato para o desenvolvimento de um ponto de vista crítico e social. Exige-se que os elementos gramaticais estejam orientados para a construção de uma plena argumentação. Dessa maneira, entende-se que a gramática normativa não serve apenas para a memorização e o preenchimento de lacunas em exercícios mecânicos, mas sim para um fazer retórico intrínseco à língua. Koch (2018c, p. 29) diz que “toda língua possui, em sua Gramática, mecanismos que permitem indicar a orientação argumentativa dos enunciados: argumentatividade”. Para mais, os elementos que a gramática normativa, por exemplo, designa como “palavras ou locuções denotativas” assumem, sim, valor argumentativo e necessário para o persuadir no texto. Logo, em sala de aula, deve-se partir sempre do texto para o estudo de classes de palavras, ajudando, assim, o aluno a entender o processo funcional da gramática na coesão, na coerência e na argumentação. A seguir, a grade de competência 2: Quadro 2 - Fonte: Inep – Ministério da Educação (p. 17) 200 pontos Desenvolve o tema por meio de argumentação consistente, a partir de um repertório sociocultural produtivo, e apresenta excelente domínio do texto dissertativo- argumentativo. 160 pontos Desenvolve o tema por meio de argumentação consistente e apresenta bom domínio do texto dissertativo-argumentativo, com proposição, argumentação e conclusão. 120 pontos Desenvolve o tema por meio de argumentação previsível e apresenta domínio 18http://download.inep.gov.br/educacao_basica/enem/guia_participante/2018/manual_de_redacao_do_ene m_2018.pdf. Acesso em: 24 de jul. 2019, p. 9. 56 mediano do texto dissertativo-argumentativo, com proposição, argumentação e conclusão. 80 pontos Desenvolve o tema recorrendo à cópia de trechos dos textos motivadores ou apresenta domínio insuficiente do texto dissertativo-argumentativo, não atendendo à estrutura com proposição, argumentação e conclusão. 40 pontos Apresenta o assunto, tangenciando o tema, ou demonstra domínio precário do texto dissertativo-argumentativo, com traços constantes de outros tipos textuais. 0 ponto Fuga ao tema/não atendimento à estrutura dissertativo-argumentativa. Nesses casos a redação recebe nota 0 (zero) e é anulada. A competência 2, como visto, requer que o candidato mobilize competências além das linguísticas para conseguir desenvolver as ideias que tem em mente sobre o tema da redação, que sempre aborda uma questão social em voga no ano de aplicação da prova. Utiliza-se, assim, o que Abreu (2009) chama de gerenciamento de informação: não basta apenas ler ou adquirir informações sem reflexões ou imbricações transdisciplinares. Sendo assim, a bagagem de leitura e de informações que os candidatos precisam ter para trazer um frescor argumentativo à redação – com viés de autoria – só pode ser alcançada mediante as associações e a finalidade com que esses estudos são transformados em conhecimento sedimentado com o intuito de que o candidato se assenhore efetivamente das informações com propriedade em base científica. Para mais, Azeredo (2010, p. 49), dentro do rol de conhecimentos necessários para o uso da língua, elenca um que é importante ao lado do conhecimento linguístico: “ser capaz de estruturar e interpretar textos coesos e formalmente adequados aos respectivos propósitos comunicativos e às diferentes situações discursivas”. Por isso, nessa prova, o propósito, além de uma nota alta e, então, usá-la para a admissão na universidade, também é a avaliação do grau de mesclar o conteúdo com a forma. Aquele, pensando-se nas ideias, nos conhecimentos e nas informações, tendo este como receptáculo e materialidade para conseguir expressá-lo com a finalidade desejada. Dessa forma, deve-se saber que a estrutura é imprescindível, uma vez que está na norma avaliativa do Enem. Além disso, o candidato precisa apresentar um repertório, como dito, bem amplo para persuadir o interlocutor de que as ideias estão consistentes e bem amarradas. O candidato precisa ter vasto conhecimento de mundo – “é visto como 57 uma espécie de dicionário enciclopédico do mundo e da cultura arquivado na memória” (KOCH; TRAVAGLIA, 1995, p. 61) – para defender e debater com propriedade factual. No entanto, as temáticas podem estar além dos domínios intelectuais dos candidatos, ou seja, questiona-se se a temática seria apropriada para a faixa etária e até mesmo para a classe sociocultural do candidato. Koch e Travaglia (1995, p. 63) dizem que “é preciso lembrar que o conhecimento de mundo resulta de aspectos socioculturais estereotipados”; consequentemente, o tema/assunto pode esquivar-se do conhecimento partilhado dos candidatos, que é necessário para que orador e auditório, no processo de interação, se entendam. Para mais, há informações que não estão marcadas no texto materialmente, ou melhor, há informações que devem ser pressupostas, subentendidas e inferidas pelo leitor do texto a fim de construir a compreensão do que é lido, levando, por isso, a uma coerência entre o texto – coletânea de textos do exame – e o candidato autor da redação. No entanto, pode haver discordâncias entre assuntos escolhidos e o conhecimento intelectual e informacional, situação que poderia impactar menor atribuição de nota nessa categoria. Somando-se a isso, há outros fatores pragmáticos – conceitos que mobilizam a produção de sentido nas interações entre os falantes – como situacionalidade, intencionalidade, aceitabilidade, informatividade, focalização, intertextualidade e relevância, que devem ser ativados durante o processo de escrita da redação. Por exemplo, nessa competência, a intertextualidade pode ajudar na trama argumentativa da redação, mostrando, então, uma bagagem ampla de conhecimentos, selecionando informações relevantes – abordagem de um mesmo tópico discursivo, sem divergências nem digressões temáticas – na construção de um “hipertópico discursivo” (KOCH; TRAVAGLIA, 1995, p. 95) para que haja coerência com o assunto e com a finalidade do texto dissertativo-argumentativo. A seguir, expõe-se a competência 3: Quadro 3 - Fonte: Inep – Ministério da Educação (p. 19) 200 pontos Apresenta informações, fatos e opiniões relacionados ao tema proposto, de forma consistente e organizada, configurando autoria, em defesa de um ponto de vista. 160 pontos Apresenta informações, fatos e opiniões relacionados ao tema, de forma organizada, 58 com indícios de autoria, em defesa de um ponto de vista. 120 pontos Apresenta informações, fatos e opiniões relacionados ao tema, limitados aos argumentos dos textos motivadores e pouco organizados, em defesa de um ponto de vista. 80 pontos Apresenta informações, fatos e opiniões relacionados ao tema, mas desorganizados ou contraditórios e limitados aos argumentos dos textos motivadores, em defesa de um ponto de vista. 40 pontos Apresenta informações, fatos e opiniões pouco relacionados ao tema ou incoerentes e sem defesa de um ponto de vista. 0 ponto Apresenta informações, fatos e opiniões não relacionados ao tema e sem defesa de um ponto de vista. Essa competência diz respeito a uma imbricação entre as competências 2 e 4. Contudo, a competência 2 é mais focada na tipologia textual dissertativo-argumentativo. Esta, por exemplo, na parte argumentativo em si mesma. Competência 4: Quadro 4 - Fonte: Inep – Ministério da Educação (p. 22) 200 pontos Articula bem as partes do texto e apresenta repertório diversificado de recursos coesivos. 160 pontos Articula as partes do texto com poucas inadequações e apresenta repertório diversificado de recursos coesivos. 120 pontos Articula as partes do texto, de forma mediana, com inadequações, e apresenta repertório pouco diversificado de recursos coesivos. 80 pontos Articula as partes do texto, de forma insuficiente, com muitas inadequações, e apresenta repertório limitado de recursos coesivos. 40 pontos Articula as partes do texto de forma precária. 0 ponto Não articula as informações. Essa competência exige que os candidatos saibam efetivamente o uso textual da gramática normativa. Sendo assim, mobilizam-se os elementos de coesão textual para compor a textualidade, fazendo conexões e articulações necessárias para que o texto faça sentido como um todo. Em conformidade com Oliveira (2012, p. 195), a coesão é definida como: 59 O conjunto de estratégias de sequencialização responsável pelas ligações linguísticas relevantes entre os constituintes articulados no texto. Essas ligações podem ocorrer tanto no nível semântico, referentes aos sentidos veiculados, como no nível sintático, relativas às questões de ordenação desses constituintes. Sendo assim, há cinco maneiras de ser obtida: referenciação, substituição, elisão, conjunção e coesão lexical. Por isso, dentro do processo de coesão, por exemplo, a referenciação diz respeito a como o texto é construído, tecido e amarrado numa rede em que os objetos de discurso formam um todo compreensivo e interligado (NEVES, 2018). A continuidade do texto, assim, garante laços que dão inteligibilidade e interpretabilidade ao interlocutor enquanto reconstrói os sentidos do texto. Antunes (2005, p. 49) propõe que “o conhecimento do valor semântico das palavras de um texto ainda não é suficiente para se apreender o sentido global. É preciso, antes de tudo, saber estabelecer relações, fazer ligações entre as diferentes unidades”. Novamente, não basta apenas saber ou adquirir conhecimento linguístico sem contexto nem funcionalidade para se criarem ou estabelecerem nexos, porque a “palavra isolada [...] muda e nada comunica” (ANTUNES, 2005, p. 49). Reitera-se o ato retórico por meio do uso da língua. Em Neves (2018), dentre os mecanismos e processos de referenciação, há a imbricação de (re)categorização e de argumentação: “a avalição do falante em relação ao objeto designado tem papel muito significativo na condução argumentativa do enunciado, servindo a seus propósitos, suas opiniões e suas crenças, direcionando as (re)designações, para a eficiência da atuação linguística”. Por conseguinte, a ressignificação de objetos de discurso – referenciação – pode salientar uma visada argumentativa, isto é, como o escritor mobiliza os elementos da língua – o uso de um aposto, por exemplo – em si faz que sua opinião apareça no texto. Para mais, Koch (2018a, p. 63-64): As formas de referenciação, bem como os processos de remissão textual que se realizam por meio delas, constituem escolhas do sujeito em função de um querer-fazer. É por essa razão que se defende que o processamento do discurso, visto que realizado por sujeito sociais atuantes, é um processamento estratégico. 60 Itera-se que o estudo em sala de aula, por exemplo, deve ser conduzido para uma escolha consciente dos elementos linguísticos na manutenção do sentido do texto. Embora se obtenha textualidade por meio das relações léxico-gramaticais, também se obtém por meio da coerência, visto que é princípio para estabelecer sentido textual. Por meio da coerência, o candidato consegue se fazer entendido pelas articulações das ideias no texto dissertativo-argumentativo, uma vez que o texto não é apenas um aglomerado de palavras. Logo, coesão e coerência são duas faces da mesma moeda, já que uma depende da outra para estabelecer sentido: ativando os sentidos e os domínios linguístico, pragmático e extraverbal. b) Fuvest A redação da Fundação Universitária para o Vestibular (Fuvest) ocorre apenas na segunda fase do vestibular, ou seja, o candidato só terá de fazê-la caso obtenha nota de corte igual ou superior à estabelecida pela instituição de acordo com o total de inscritos em cada curso de graduação. A Fuvest é a instituição responsável pela prova de admissão à Universidade de São Paulo (e a outras instituições também), sendo dividida a prova em duas fases: a primeira, uma prova de conhecimento gerais em forma de escolha de alternativas corretas; a segunda, provas dissertativas (disciplinas de acordo com o curso escolhido) e a redação. A prova tem como principal objetivo o ingresso numa universidade pública. A importância da redação está no valor (50 pontos) e no seu peso: são 50 pontos para questões de português e 50 pontos para redação. No entanto, zerar em redação não anula as chances de o candidato ser aprovado. Já a outra parte dissertativa da prova (outras disciplinas) tem peso de nota de 100 pontos. Sendo assim, um bom desempenho na prova de redação ajuda bastante na soma final da média. O exame de redação da Fuvest não traz diretrizes tão bem arquitetadas no sentido de definir competências e notas para elas que nem as do Enem. Todavia, veem-se, no Manual do Candidato19, algumas informações para os candidatos. 19 https://www.fuvest.br/wp-content/uploads/Manual-Cand-Fuvest2018.pdf. Acesso em 25 de jul. 2019, p. 38-39. 61 O manual da Fuvest corrobora que não só a escrita da redação é fundamental; a leitura, a análise e a compreensão global são necessárias para executá-la bem no momento do exame, atribuindo essas habilidades ao tema. A correção da prova é feita por dois corretores de forma independente. Tal como o Enem, a Fuvest direciona o candidato a como a redação será corrigida, mas sem estabelecer uma tabela de referência para nota e quais elementos poderiam ajudar na melhoria da nota ou em sua piora. No entanto, deixa-se definido que o texto exigido para o exame é da tipologia dissertativo-argumentativa. O candidato deve apelar para sua bagagem de mundo para que consiga argumentar sobre temas sociais, porém, diferentemente do Enem, o cunho redacional da Fuvest tem eixo mais sociológico e filosófico. O tema desenvolvido na redação é avaliado de três maneiras: (1) enquadramento da tipologia textual – texto dissertativo-argumentativo, compreensão do tema proposto pelo exame e a estratégia argumentativa com caráter crítico-opinativo; (2) coerência argumentativa e uso dos elementos coesivos com o intuito de que o candidato seja capaz de, por meio da língua e dos recursos gramaticais, expor seus pontos de vista sem incoerências, desenvolvendo, assim, uma argumentação convincente; por fim, (3) correção gramatical (norma culta escrita da língua portuguesa). A pontuação no exame é de 1 a 5 para cada um dos três critérios apresentados. Se houver, por exemplo, divergência de um ponto na correção dos avaliadores, será considerada a média de ambas as notas, segundo o manual. Contudo, caso haja divergência acima de um ponto, a redação passará para um terceiro corretor, no final, assim, prevalecendo a nota da última correção. A nota total, logo, é de 10 a 50. O primeiro quesito tem peso quatro e os outros dois, peso três, sendo a nota dada pelo corretor multiplicada pelo peso de cada quesito. Os motivos para zerar, por exemplo, são quase similares entre as duas provas (Enem e Fuvest): (1) fuga do tema; (2) redação em branco; (3) tipologia que divirja do dissertativo-argumentativo; (4) número mínimo de linhas; (5) argumentação contra os Direitos Humanos. c) Mackenzie 62 A Universidade Presbiteriana Mackenzie é uma instituição particular de ensino superior. A aplicação do vestibular – que atende o conteúdo básico do Ensino Médio20 conforme Edital (2020) – é o critério de seleção para admissão aos cursos de graduação. A prova de redação é a única parte da prova do vestibular que contém a mesma pontuação para todos os cursos, ou seja, o peso da produção escrita atua como forte possibilidade de classificação do candidato. Além disso, caso haja empate de notas, a prova de redação também exerce influência para desempate, exceto no curso de Arquitetura. A prova de redação do Mackenzie, aplicada com a prova de conhecimentos gerais, diferencia-se por sua “abertura” temática, ou seja, dentre as provas do Enem e da Fuvest, o vestibular do Mackenzie não encapsula o tema numa frase-guia. A prova de redação é composta por textos que dão direcionamento ao tema, porém não resume numa frase sobre que assunto o candidato deve escrever. Os critérios avaliativos da redação do vestibular do Mackenzie não estão disponíveis em um manual. Contudo, em edital divulgado pela universidade, sabe-se que o valor da redação é de 0 a 10 21 . A anulação da prova de redação desclassifica automaticamente o candidato. Há expectativas na produção do texto dissertativo para o Mackenzie, uma vez que se espera um texto coeso e coerente, articulação de ideias por meio da temática designada pela instituição, problematizando-a, e obediência à norma culta escrita da língua. 2.1.3 As provas de redação Durante os anos escolares – desde os iniciais até os finais –, espera-se, especificamente a partir dos anos 1990 (cf. SOARES, 1998), que alunos da faixa etária regular estejam constantemente em contato com a produção de texto e a leitura de gêneros do discurso, dado que são exemplos empíricos de utilização da língua in loco – 20 https://www.mackenzie.br/fileadmin/ARQUIVOS/Public/2-processos- seletivos/upm/VESTIBULAR_REGULAR/2020/2020_2__sem/OI_RE_49_2020_Edital_Processo_Seletiv o_Vestibular_2020_2__semestre_-_Higien%C3%B3polis_e_Alphaville_Assinada.pdf. Acesso em 16 mai. 2020. 21 https://www.mackenzie.br/fileadmin/ARQUIVOS/Public/2-processos-seletivos/upm/vestibular/upm- higienopolis/2019/OI_RE_108_2018_Edital_Processo_Seletivo_2019_1__semestre_com_Anexo_Republ_ Assinada.pdf. Acesso em: 25 de jul. 2019, p. 9 e 12. 63 ou seja, extratos de enunciados que estão realmente sendo usados num processo interativo. Tendo textos reais e advindos das esferas da atividade humana, os PCNs dão diretrizes a fim de que se priorize em sala de aula o estudo dos gêneros: “o estudo dos gêneros discursivos e de como se articulam proporciona uma visão ampla das possibilidades de usos da linguagem, incluindo-se aí o texto literário” (2000, p. 8). Logo, o estudo e o trabalho com os gêneros em sala de aula proporcionam uma visão geral e multifacetada das possibilidades de uso da língua no meio social, desde as situações formais até as informais. Há na BNCC (2017, p. 491) a necessidade de “[um]a consolidação do domínio de gêneros do discurso/gêneros textuais já contemplados anteriormente e a ampliação do repertório de gêneros, sobretudo dos que supõem um grau maior de análise, síntese e reflexão”. Sendo assim, a complexidade da língua deve ser desenvolvida por meio de leitura e de produção de texto. De acordo com a BCNN (2017, p. 499), a língua deve ser trabalhada com os alunos tendo em vista todos os campos do fazer social e as habilidades gramaticais aplicadas em textos: Analisar, em textos de diferentes gêneros, marcas que expressam a posição do enunciador frente àquilo que é dito: uso de diferentes modalidades (epistêmica, deôntica e apreciativa) e de diferentes recursos gramaticais que operam como modalizadores (verbos modais, tempos e modos verbais, expressões modais, adjetivos, locuções ou orações adjetivas, advérbios, locuções ou orações adverbiais, entonação etc.), uso de estratégias de impessoalização (uso de terceira pessoa e de voz passiva etc.), com vistas ao incremento da compreensão e da criticidade e ao manejo adequado desses elementos nos textos produzidos, considerando os contextos de produção. Por isso, de acordo com documentos públicos recentes para diretrizes educacionais, o cerne do ensino de língua deve ser conduzido por meio dos gêneros do discurso. Desde que se situa na língua, o falante tem acesso a gêneros, ou seja, o contato com outros falantes proporciona a ele novos modelos interacionais a serem seguidos. Contudo, existem gêneros que requerem contato especial, na medida em que não estão localizados num ambiente mais informal de interação, por exemplo. 64 Consoante Fiorin (2016, p. 68), “não se produzem enunciados fora das esferas de ação, o que significa que eles são determinados pelas condições específicas e pelas finalidades de cada esfera”. Para mais, usa-se a língua com um objetivo: interagir com o outro a fim de se comunicar com inúmeros propósitos em diferentes situações sociais. O veículo material e primário para se comunicar é o gênero discursivo; comunica- se, assim, usando enunciados linguísticos que são estáveis – naquele momento histórico – ou relativamente estáveis – tendo em vista a evolução e mudanças de formato e meios de instrumentos de comunicação e modalidades interacionais. Pensando nisso, a cada conjuntura opera-se diferentemente na escolha de um gênero, considerando-se, assim, o conteúdo temático e composicional. A título de exemplo, uma conversa informal de corredor empresarial é um tipo de gênero que não requer uma estrutura complexa; no entanto, em outro momento, um e-mail numa empresa para o chefe requer uma complexidade um pouco maior com a linguagem, por exemplo. Para que o aluno tenha inserção plena no espaço social após finalizar os estudos, cumpre que o estudo seja pautado no texto (em seus fatores de textualidade) e seus efeitos de sentido no âmbito discursivo; assim, ele terá exemplos e contato não só com gêneros primários – “gêneros da vida cotidiana. São predominantemente, mas não exclusivamente, orais. Eles pertencem à comunicação verbal espontânea e têm relação direta com o contexto mais imediato” (FIORIN, 2016, p. 77) –, mas também com os secundários – “pertencem à esfera da comunicação cultural mais elaborada [...]. São preponderantemente, mas não unicamente escritos” (FIORIN, 2016, p. 77). Por serem veículos linguísticos em uma sociedade, os gêneros podem vir a deixar de existir, já que têm marcação nas coordenadas espaço-tempo, isto é, modos discursivos podem cair em desuso numa dada época. Por exemplo, o uso de carta, hoje em dia (em certas circunstâncias), cedeu espaço ao e-mail e às mensagens instantâneas do WhatsApp por causa da modernização e da agilidade. Como afirma Fiorin (2016, p. 72), “os gêneros estão em constante modificação”. Por isso, fala-se em certa estabilidade, uma vez que a esfera social em que o gênero é usado pode ser modificada, tornando-se, assim, mais complexa e mais elaborada, solicitando mudanças composicionais. 65 Além disso, os gêneros podem hibridizar-se, ou seja, podem mesclar-se para um fim específico: os primários podem tomar formas do secundário e vice-versa. Vê-se, principalmente, tal hibridização tanto nas esferas da publicidade como na literatura, por exemplo. Sendo assim, cabe à escola ensinar que existem gêneros mais maleáveis e gêneros mais estereotipados. Aqueles podem vir a adquirir um estilo que possa destoar do que seria considerado habitual; já estes são mais fechados para uma ruptura estilística. Quando se pensa na redação do vestibular, por exemplo, lida-se com um texto mais estereotipado, que aceita mínimas alterações em sua composição. Bakhtin (2016[1979, 1997]) estabelece três dimensões para a definição do gênero: conteúdo, estrutura/forma e estilo. Além disso, estão sempre associados a um domínio: diversidade discursiva, gênero discursivo e dimensão textual. A diversidade discursiva diz respeito à tipologia textual usada no gênero discursivo; o gênero discursivo é a efetiva atividade linguística dependendo da esfera de atividade humana; e a dimensão textual diz respeito aos componentes gramaticais e estruturais. Os gêneros estão pautados em outra tríade: lugar social em que a interação é dada, lugares sociais nos quais interlocutores estão inseridos e finalidade da interação entre eles. Sendo assim, o estudo com os gêneros, que os PCNs e a BNCC esperam que os professores trabalhem em sala de aula, seria uma maneira de o aluno organizar o mundo do discurso e as possibilidades de uso da língua em cada situação, isto é, qual lugar social e qual o discurso apropriado a fim de se fazer entendido; qual modalidade linguística deve usar para com o outro em relação de hierarquia; e, por fim, qual a finalidade de empregar aquele gênero, intencionalidade e finalidade na interação social. Haja vista a função retórica da língua, o uso de gêneros do discurso da capacidade linguística argumentativa pressupõe que o aluno seja capaz de fazer reclamações por meio de carta e de e-mail, participar de debates, de discussões e de assembleias, bem como de ler editoriais, notícias, resenhas com o propósito de ampliar o conhecimento de mundo e correlacionar ideias, discordando ou concordando, porém sabendo justificar-se racionalmente por meio da linguagem. Logo, estará cumprindo um requisito básico: “confrontar opiniões e pontos de vista sobre as diferentes linguagens e suas manifestações específicas” (PCN, 2010, p. 14). 66 A redação de vestibular é predominantemente um texto dissertativo- argumentativo 22 , ou seja, uma tipologia textual definida e específica. Aprendê-la é importante para que os candidatos saibam que a estrutura composicional do texto será levada em conta na avaliação. A exigência, como dito, de um texto dissertativo-argumentativo pelas instituições, e ainda mais pelos PCNs e pela BNCC, é proporcionar um pensamento reflexivo, articulando os componentes aprendidos da gramática normativa, usando-a neste caso, entretanto, como recurso de obter sentidos diversos a fim de argumentar e estabelecer os pensamentos na linguagem verbal escrita. Segundo Abreu (2010, p. 43) Chamamos de competência pragmático-textual a que habita os usuários da língua a comunicar-se em situações concretas por meio de textos. Esta competência compreende um amplo e variado conjunto de fatores relacionados com a adequação do discurso às circunstâncias e aos objetivos da comunicação: (a) registro, (b) os tipos de texto, (c) os modos de organização do discurso, (d) significados implícitos e valores não literais dos enunciados, (e) articulação coerente e conexão das frases e (f) expressividade. Sendo assim, a gama linguística exigida ao produzir textos requer alta competência linguística. Cumpre-se, dessa forma, a função de inserção do aluno na sociedade ao adquirir, ao longo da vida escolar, ferramentas para se situar linguisticamente em variados contextos de interação verbal. Pode-se pensar que a escolha, ainda, do texto dissertativo-argumentativo esteja subordinada ao que Abreu (2011, p. 47) diz sobre os modos de organizar o discurso – descrever, narrar, focando, no trecho abaixo, o argumentar – e de estruturá-lo: O objeto da argumentação jamais é uma coisa concreta pertencente à realidade física, como podem ser os objetos da descrição e da narração. Quem argumenta lida sobretudo com as leis do pensamento racional, 22 Como exceção, o texto da prova de redação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) é diferenciado pela escolha do gênero textual. A prova de redação é composta por dois gêneros “surpresa”. Por exemplo, na prova de redação de 2019, pediram-se um abaixo-assinado e uma postagem, dois gêneros textuais não convencionais nos vestibulares e na prova de redação. Sendo assim, a Unicamp foge do convencional do texto dissertativo-argumentativo. 67 fazendo generalizações, comparando e contrapondo ideias e opiniões, explicando causas e efeitos, formulando hipóteses, tirando conclusões. Motiva-se e encoraja-se nos alunos o instinto investigativo. Ou seja: reivindica-se que o aluno tenha um pensamento interdisciplinar, associando e correlacionando fatos com suas visões de mundo. O argumentar, assim, reclama para si manobras mais complexas devido a “elucubrações” e possibilidades vastas de diferentes leituras de uma mesma teoria, quer dizer, coloca-se como ser pensante e crítico diante de um caleidoscópio de conceitos e concepções, tendo, assim, de defender com fatos suas convicções com o intuito de convencer o outro. Argumentação, portanto, é o resultado textual de uma combinação entre diferentes componentes, que exige do sujeito que argumenta construir, de um ponto de vista racional, uma explicação, recorrendo a experiências individuais e sociais, num quadro espacial e temporal de uma situação com finalidade persuasiva. (KOCH; ELIAS, 2016, p. 24) O trecho supracitado resume o que se espera de candidatos em uma prova de redação: um encorajamento à aplicação de outros conhecimentos atravessados pelo componente linguístico, dando, assim, materialidade às abstrações e ao pensamento. Para mais, adota-se, portanto, a ideia de que a língua não está desvinculada do meio social, provocando um saber transdisciplinar com as linguagens e com a esfera social (PCN, 2010). Tem-se em vista a escrita, neste caso, como eixo interacional; melhor dizendo, o escritor, ao escrever, e o leitor, ao ler o texto, ambos participam mutuamente para a construção do sentido textual, tornando-se, assim, um escritor-leitor. Dessa forma, consideram-se, pois, as intenções de cada um para se alcançar um objetivo e uma finalidade discursiva por meio do texto (KOCH, 2010). Tal concepção de escrita – interacional e dialógica – exige que o escritor se situe como sujeito ativo e crítico, assim como o leitor, porque o sentido do texto sairá dessa interação entre ambos (KOCH, 2010). Contudo, vê-se em Emediato (2008. p. 159) que há dificuldade em definir propriamente o conceito de dissertação, uma vez que se “considera o texto dissertativo como um tipo de discurso explicativo, cujo objetivo é explorar um certo assunto sem, 68 porém, incluir um posicionamento ou uma opinião”. Sendo assim, a argumentação é reservada apenas à persuasão e ao convencimento do interlocutor, levando, portanto, a uma adoção ou a uma rejeição das teses apresentadas. Tal distinção feita por Emediato (2008), no entanto, não é feita em Abreu (2012, p. 82), pois o autor utiliza apenas o termo argumentação para incluir a dissertação: “dada a importância atribuída a ela pelos PCNs e pelo Enem, a argumentação será desenvolvida com maior profundidade nos próximos capítulos”. Sendo assim, a visão de Abreu (2012) está mais pautada na Retórica, mas o autor, de certa forma, considera argumentação um tipo textual. Em Köche, Boff e Marinello (2014), a dissertação é definida e desenvolvida por meio de uma opinião justificada de maneira gradual e sucessiva em torno de uma problemática: “Para isso, o enunciador vale-se de uma argumentação coerente e consistente: expõe os fatos, reflete a respeito de uma questão, tece explicações, apresenta justificativas, avalia, conceitua exemplifica” (2014, p. 22). Além disso, ainda diz que “essa tipologia utiliza o poder de convencimento para que o leitor tome uma determinada posição em relação ao tema” (2014, p. 22). Desse modo, a imbricação da argumentação na dissertação anula, de certa forma, os matizes que uma vez os distinguia. Partindo-se, sobretudo, da ideia de que a argumentação está intrínseca à língua, existem tipos com maior ou menor grau de argumentação. A descrição pode vir a definir uma imagem ou um conceito de maneira visual ao leitor; a narração, por outro lado, pode persuadir dentro de um relato, narrando ações e situações; a injunção, por fim, é argumentativa por si mesma, já que impõe condições ao interlocutor de maneira imperativa, implícita ou explicitamente. Essas marcas são elementos que possibilitam a argumentação na língua, ou seja, operadores argumentativos e outros elementos e mecanismos de língua. A argumentação, assim, não é exclusiva dos textos dissertativo-argumentativos. O ato de argumentar pode estar, dessa forma, em diferentes tipos textuais, em maior ou em menor grau, dependendo do texto apresentado. Logo, podem-se observar graus de dominância argumentativa em textos. Sendo assim, conforme Amossy (2018, p. 243), “as ciências da linguagem 69 contemporâneas multiplicaram as situações e os gêneros nos quais a argumentação pode ser examinada”. Adotar-se-á, para esta dissertação, tal posicionamento, ou seja, a não distinção entre dissertação e argumentação, em razão de que todo discurso contém uma visada argumentativa, seja mínima, seja máxima. Sendo assim, até mesmo a pretensa neutralidade contém uma ideologia subjacente, tentando escondê-la, dessa forma, pelo pretenso mascaramento da objetividade. Segundo critérios bakhtinianos, pensa-se, então, que a coletânea de textos motivadores das provas de redação se configura como um gênero, uma vez que segue a tríade conteúdo temático, estilo e construção composicional. Para mais, a língua, em situações específicas, por exemplo, adquire condições sui generis para cada cenário discursivo ou textual. Nesse sentido, o gênero “coletânea de textos motivadores” tem uma centração temática, isto é, há uma convergência sobre o que se irá discutir nos textos que compõem a coletânea. Embora os textos possam trazer perspectivas profusas sobre uma temática, todos agem em direção a uma força centrípeta: eixo principal sobre uma questão, porém, ao mesmo tempo, eixos secundários são apresentados, trazendo, assim, outras abordagens para uma mesma tese. Além disso, a “coletânea de textos motivadores” é também uma forma de funcionamento da linguagem em uma esfera social determinada, atuando como meio interacional entre instituições provedoras dos exames e candidatos. Há de fato um formato mais ou menos fixo para essa coletânea e uma função bem determinada. Aspectos que permitem a definição da “coletânea de textos motivadores” como um gênero do discurso, complexo e heterogêneo por certo, uma vez que contém em sua unidade vários outros gêneros. Conforme Bakhtin (2016), uma forma enunciativa é a apresentação do uso da língua. Para mais, esse enunciado é posto para um determinado grupo social em um marcado contexto situacional. Sendo assim, no contexto da prova de redação de exames como os vestibulares e o Enem tem-se a seguinte feição: grupo delimitado, em sua maioria, por estudantes recém-saídos do ensino médio – os candidatos – num contexto de 70 comunicação firmado por meio da aplicação da prova de conhecimentos gerais e de redação – para essa, textos motivadores. Dentro ainda do que se pensa gênero (BAKHTIN, 2016), pode-se entender o gênero “coletânea de textos motivadores” como complexo (secundário), uma vez que não se aprende no seio da coletividade, ou seja, não se dá de maneira orgânica. Precisa-se apreendê-los a partir de um convívio escolar, por exemplo. Por meio da heterogeneidade dos gêneros, o quadro genérico dos textos motivadores da coletânea da proposta de redação aceita em seu conjunto diversas possibilidades de gêneros do discurso: imagens, charges, tirinhas, notícia, reportagem, infográfico etc. Dessa maneira, entende-se que a coletânea exige um poliglotismo genérico, isto é, o candidato de uma prova precisa ser proficiente na leitura dos gêneros para compreender o que é dito, já que cada gênero apresenta conteúdo temático, estilo e construção composicional diferentes. Deduz-se, portanto, que a heterogeneidade dos próprios textos que configuram a proposta de redação aciona um diálogo com o candidato, que permite múltiplas visões do tema por distintos gêneros com variadas percepções da realidade. Nas propostas de redação dos exames, há um estilo quase padrão: texto-injuntivo (indicando e dando orientações formais das provas) e textos motivadores (geralmente de 3 a 5 textos que abordam de uma ampla perspectiva o tema escolhido). Sendo assim, encontra-se uma padronização, mesmo que o estilo de língua flutue em determinados textos. Entretanto, ao final, o estilo que se adota é o do livro didático, ou melhor, um estilo pedagógico. Dessa forma, corroborando as normas dos PNCs e da BNCC, a diversa gama de textos que compõe uma proposta de redação ratifica o ponto de vista da praticidade da língua em sociedade, ou seja, domínio de suas copiosas formas dentro de cada contexto de comunicação. Sendo assim, não adianta dominar a gramática normativa ao término do ensino médio, a comunicação não se dá pela gramática, mas sim por gêneros discursivos. 71 2.2 Critérios de seleção do material de análise A escolha do Enem justifica-se por causa da ampla adesão nacional à prova ao término do Ensino Médio. Sendo assim, muitos alunos, ao concluir a educação básica, podem fazer a prova do Enem para tentar ingressar no Ensino Superior tanto no âmbito público quanto no privado. Em 2018, o exame recebeu o total de 6.774.891 de inscritos23. Além disso, por meio das provas do Enem, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) faz uma pesquisa sobre a qualidade do ensino básico no país, expondo, dessa maneira, o grau de proficiência das áreas específicas do saber – Matemática e suas Tecnologias, Linguagem, Códigos e suas Tecnologias, Ciências Humanas e suas Tecnologias e Ciência Humanas e suas Tecnologias – e da redação. O Enem, assim, torna-se uma prova de parâmetro de qualidade do ensino no Brasil. O vestibular que dá ingresso à Universidade de São Paulo também tem alto índice de inscrição, visto que dá possibilidade aos vestibulandos de estudarem na melhor universidade do país, com renome internacional (características comprovadas por diferentes rankings que medem qualidade do ensino superior). A prova para admissão é feita pela Fundação Universitária para o Vestibular (Fuvest) – instituição autônoma realizadora das provas. É o segundo maior processo de seleção universitário, ficando atrás apenas do Enem. Em 2018, por exemplo, a concorrência da Fuvest foi de 127.786 inscritos para 8.362 vagas24. Além disso, para o ingresso na Universidade de São Paulo, como forma alternativa, hoje, além da Fuvest, o aluno pode optar pelo Sistema de Seleção Unificada (SISU) – plataforma digital na qual quem fez o Enem consegue se inscrever para admissão em universidades públicas, substituindo, assim, outros vestibulares. Contudo, não são todos os cursos de graduação que aceitam essa substituição da Fuvest pelo SISU. 23 https://guiadoestudante.abril.com.br/enem/enem-2018-tem-o-menor-numero-de-inscritos-confirmados- desde-2011/. Acesso em: 08 jul. 2019. 24 Informações divulgadas pelo site da própria Fuvest. https://www.fuvest.br/fuvest-divulga-relacao- candidato-vaga-e-locais-de-prova/. Acesso em: 08 jul. 2019. 72 A Universidade Presbiteriana Mackenzie – instituição de Ensino Superior privada, situada em São Paulo – foi escolhida por ser reconhecida pela qualidade nos rankings nacionais de avaliação do ensino superior; desse modo, ela representa, por amostragem, uma prova de redação de uma instituição privada. Além disso, escolheu-se a instituição também devido à alta procura, à excelência e à tradição no ensino, oferecendo 3.905 vagas em 2019/125. Chegou-se ao corpus por causa do fazer social e democrático durante um ato de argumentação. Espera-se que haja, na produção de redação pelo candidato, possibilidades variadas de direcionamento argumentativo. Contudo, questiona-se se os textos apurados pelos professores que elaboram o exame de redação conduzem a um único sentido argumentativo ou a vários. Sendo assim, desnuda-se a pretensa neutralidade do discurso pedagógico, tido, às vezes, como neutro, uma vez que o agir na língua imprime marcas argumentativas. 2.3 Parâmetros de análise do material Esta pesquisa baseia-se no conceito de argumentação da análise retórica como vista, entre outros, em Perelman e Olbrechts-Tyteca (2014, p. 16): “a argumentação visa à adesão dos espíritos e, por isso mesmo, pressupõe a existência de um contrato intelectual”. Pensando-se no corpus, as instituições aplicadoras dos exames de vestibular ou de aferição de graus de conhecimento precisam, por meio dos textos da coletânea da prova de redação, estabelecer uma ponte com um auditório heterogêneo – candidatos de várias regiões do Brasil. Por causa dessa adaptação ao auditório, mais de um texto constitui a coletânea das provas do exame de redação. Sendo assim, pode-se especular que a necessidade de contato com mais textos acerca da mesma temática seja, como dizem Perelman e Olbrechts-Tyteca (2014, p. 24), para maior efeito persuasivo: “ele (orador) deverá utilizar argumentos múltiplos para conquistar os diversos elementos de seu auditório”. 25 https://vestibular.mundoeducacao.bol.uol.com.br/noticias/mackenzie-sp-abre-inscricoes-para-vestibular- 2019-1/337403.html. Acesso em: 08 jul. 2019. 73 Consoante Perelman e Olbrechts-Tyteca (2014, p. 25), “o orador pode tentar situar o auditório em seus marcos sociais. Perguntar-se-á se o auditório está incluído por inteiro num único grupo social ou se deve repartir seus ouvintes em grupos múltiplos ou mesmo opostos”. Questiona-se, assim, se os exames consideram as diferenças socioeconômicas dos candidatos advindos de distintas esferas sociais. Além disso, especula-se se o domínio intelectual – conhecimento de mundo e partilhado – é avaliado e ponderado no processo de elaboração da coletânea, uma vez que há, no Brasil, grandes desigualdades socioculturais, ainda mais no âmbito educacional, causado na polarização entre escolas privadas e públicas. Os elementos de análise, nesta dissertação, que serão levados em consideração, avaliando-se o corpus, são do universo discursivo, retórico/argumentativo e linguístico textual. Far-se-á, à primeira vista, uma discussão da temática dos exames de redação histórica e socialmente, a fim de averiguar as possibilidades de informações e conhecimentos que poderiam ser mobilizados para fundamentar o processo e a direção argumentativa do candidato durante a elaboração do texto. Para mais, instigar-se-á a condição de elaboração da coletânea de textos motivadores: quais ideologias se ratificam nele, quais efeitos de sentido desejam transmitir ao candidato, quais são as formações ideológicas e discursivas dos textos e de seus autores. Por causa do caráter dialógico da língua (FIORIN, 2016), quais vozes podem ser ouvidas durante a leitura do texto e quais vozes são silenciadas. Além disso, ver-se-ão quais aceitações dialógicas de pontos de vista são afirmadas ou negadas na coletânea, isto é, se há uma relação de contrato entre os textos ou se há um desacordo entre eles. Os textos, em alguma hipótese, priorizariam vozes sociais pertencentes às camadas sociais mais altas ou mais populares e para quais interlocutores – qual identidade/imagem simbólica – os textos seriam destinados. Por isso, o recorte tempo-espacial é importante nesta primeira parte analítica, em razão das condições discursivas aceitas e permitidas em 2009 e em 2018, por exemplo. Imbricado ao fazer argumentativo, os discursos citados direta ou indiretamente, além de constituir dialogismo, ajudam na força argumentativa expondo outras fontes de informação e de aliança. Os textos motivadores podem conter citações de cientistas e de 74 pensadores, apresentando ao candidato argumentos de autoridade, tornando, pois, quase irrefutável ao candidato, dado que se utiliza da visão científica de um perito. Somando-se a isso, a coletânea também assumiria um “domínio de poder” (FIORIN, 2015, p. 176), estando dentro de um discurso legitimado pela sociedade e pelo governo. Pressupõe-se que o candidato use um estilo mais neutro, sem grandes marcas de subjetividade, mesmo tendo de dissertar e expor sua opinião. No entanto, questiona-se se os textos da coletânea teriam de seguir o mesmo estilo formal e neutro ou poderiam apresentar-se mais livres em sua composição. Por conseguinte, ver-se-á o conjunto linguístico empregado nesses textos motivadores. Também são analisados os elementos coesivos que servem de nexo de textualidade; durante a escrita do texto, escolhas são feitas para se obter efeitos de sentido argumentativo, que são fundamentais para funções sociais durante a escrita de um texto. Além disso, “trata-se de uma atividade consciente, criativa, que compreende o desenvolvimento de estratégias concretas de ação” (KOCK, 2018b, p. 26). Desse modo, a construção de sentido tem, por finalidade, uma atividade interacional, dado que se escreve para um interlocutor. Por estabelecer a continuidade textual, a coesão apresenta- se como elemento fundamental ao fazer argumentativo, por exemplo, porque a interpretação do texto depende de remissões e referências ao que já foi dito, resultando em uma relação de sentido. Sendo assim, a coesão referencial e a sequencial, além de costurarem o texto, encadeando e mantendo a manutenção de sentido, usam elementos léxico-gramaticais que contêm direcionamento argumentativo. Procurou-se localizar e enfocar os elementos que constituem marcas de argumentação nos textos motivadores nas provas de redação das instituições. Uso de argumentos que levem o candidato a aderir às justificativas, às premissas e às considerações tecidas pelos autores num direcionamento opinativo, legitimando, reforçando ou revendo pontos de vista numa dada sociedade e numa dada época. Desnudando, por meio da análise dos textos, o processo central do fazer retórico, a persuasão, pretende-se chegar a um espectro discursivo mais privilegiado, isto é, quais fatos, verdades, presunções, valores e hierarquias são revalidados nos textos motivadores do vestibular. Analisar-se-á o éthos discursivo dos autores dos textos motivadores e o 75 éthos institucional dos exames de vestibular Enem, Fuvest e Mackenzie a fim de examinar a força ilocutória produzida por eles. Além disso, por causa da comparação com certo espaço temporal (2009-2018), pretende-se ver como os textos motivadores se construíam nos modelos culturais da época, ou seja, qual força simbólica os vestibulares tinham e se as mantêm. Para se persuadir dentro do sistema retórico, investigam-se quais argumentos, quais lugares e quais falácias são mobilizados para atingir o páthos do leitor da coletânea de textos. Ou seja, quais elementos do lógos – raciocínios – provocariam emoções diversas no páthos do auditório. Dessa forma, analisa-se como os candidatos são levados e manipulados a aderir a argumentos dos textos motivadores, por meio da lógica do verossímil – argumentos quase-lógicos, da estrutura do real e outras técnicas argumentativas – para se chegar a uma visada argumentativa. 76 CAPÍTULO 3 UMA ANÁLISE RETÓRICA DOS TEXTOS MOTIVADORES DE REDAÇÃO Parte-se, agora, para a análise do corpus, atentando-se aos elementos retóricos e linguístico-discursivos (estes atuando em função retórica) a fim de examinar as tramas argumentativas construídas nos textos motivadores do Enem, da Fuvest e do Mackenzie. Os textos são delimitados num recorte de tempo de 2009-2018 para se verificarem possíveis mudanças discursivas no campo ideológico e cultural que possam ter se ampliado para estratégias argumentativas de persuasão. Sendo assim, analisar-se-á, primeiramente, o texto motivador do Enem (2009- 2018); em seguida, Fuvest (2009-2018); por fim, Mackenzie (2009-2018). Essa sequência, num primeiro momento, não pretende, neste capítulo, tecer comparações, deixando-as para a síntese conclusiva desta dissertação. A análise, portanto, partirá dos elementos que visam à persuasão, levando-se, assim, aos mecanismos ideológicos que subjazem aos textos, isto é, quais são as intenções do orador para com o auditório, quais valores, fatos, acordos são estabelecidos tacitamente dentro dos textos a fim de se chegar ao domínio intelectual e linguístico que o candidato teria de mobilizar ao escrever a redação. 3.1 Enem, propostas de redação, textos motivadores 3.1.1 A proposta de 2009 e os textos motivadores Figura 7- Enem: proposta de redação, 2009 77 O texto apresentado é da prova de redação do Enem - 2009. O primeiro contato do candidato é com um texto injuntivo do gênero instrucional, que lhe dá diretrizes a serem cumpridas ao elaborar a redação. Além disso, por ser autorizado (já que veiculado em nome da Instituição e no contexto situacional apropriado para sua aplicação), esse discurso é validado por ser pedagógico e fiado pela sociedade (no sentido de que faz parte de um processo validado no espaço social em que atua), devendo ser seguido criteriosamente a fim de que não haja penalidades ao candidato. Ratifica-se, assim, a necessidade de uma formação intelectual no ensino básico com o intuito de conseguir desenvolver-se eloquentemente na prova, já que um dos critérios é a originalidade ao dissertar – exigência essa validada na grade de competência II do Enem (apresentada no capítulo 2) –, partindo-se do repertório sociocultural do candidato. Dessa forma, espera-se que, por exemplo, diversos tipos de argumentos possam ser usados e mobilizados pelo candidato ao dissertar. Pede-se, no texto, que se inicie a prova de redação por meio da leitura dos textos motivadores, apoiando-se nos argumentos já postos nos textos. É possível depreender que, por meio da leitura e interpretação dos textos motivadores, os candidatos seriam coagidos e direcionados ao viés dos textos selecionados para compor a coletânea, uma vez que o enunciado “com base na leitura dos textos motivadores seguintes” orienta a redação. Vê-se que o domínio da língua portuguesa é outro requisito básico para a escrita da redação. Domínio que exclui toda variedade linguística distante da norma culta, deixando, dessa forma, um texto com, entre outros, aspectos de neutralidade e sem marcas de oralidade, próprio do texto dissertativo-argumentativo de vestibular, por exemplo, dado que a prova de redação, dentre outros critérios de avaliação, também prioriza o manejo com o sistema formal da língua. Em seguida, o texto da proposta de redação encapsula a temática a ser desenvolvida em uma sentença: “o indivíduo frente à ética nacional”. Esse encapsulamento visa a reduzir a fuga ao tema, pois delimita e recorta o que deve ser escrito no texto. Mesmo que os candidatos tenham de, previamente, ler o texto, a prova 78 do Enem restringe o escopo do candidato. Focaliza-se, assim, de forma argumentativa, um raciocínio dedutivo – do geral ao particular. O método dedutivo, contudo, para o candidato, é dado pelo próprio orador Enem, pelo caráter injuntivo da proposta, isto é, a temática a ser desenvolvida é conhecida antes mesmo da leitura dos textos motivadores. Essa antecipação dedutiva tem como princípio uma grade de compreensão semântica do tema. Estratégia que evita outros caminhos que poderiam ser abertos a fim de pensar sobre o tema, aonde os textos motivadores poderiam levar. Dessa forma, se espera que o candidato, ao interpretar os textos, faça as analogias necessárias, articulando a interpretação dos textos da coletânea. Reiterando o homo retoricus no fazer social, a proposta do Enem pede que o candidato, ao final do texto, posicione-se por meio da escrita de uma ação social, ou melhor, por meio da ação interventiva, propondo agente, meio e modo, efeito e detalhamento da solução. Nesse primeiro fragmento de texto, o éthos discursivo do orador institucional – Enem – expressa um tom imperativo, delegando regras a serem cumpridas pelo auditório – os candidatos. Por causa do discurso pedagógico (e também de caráter jurídico, se se considerar um exame, suas regras e possíveis infrações), os candidatos são fiadores desse éthos prévio – papel de legislador, emanando imagem de poder por deter o controle do percurso ao ensino superior – construído discursivamente na prova do Enem. Retoricamente, estabelece-se a adesão do auditório heterogêneo – candidatos de diversas faixas etárias e classes sociais – pela possibilidade, em âmbito nacional, de admissão no ensino público e pela possibilidade de uso da nota para obtenção de descontos em faculdades privadas. Por ser parâmetro de avaliação, o Enem tornou-se legitimado no Ensino Médio. Escolas, por exemplo, divulgam as notas dos melhores alunos como forma de propaganda para a matrícula de novos estudantes. Entretanto, faz-se uma imagem homogênea do auditório neste caso, pressupõe-se que exista um nível basilar entre os alunos do Brasil, isto é, cria-se uma imagem única e não heterogênea dos candidatos, ignorando-se, assim, as divergências socioculturais. 79 Portanto, o Enem, sendo proponente na prova de redação, não se adapta ao auditório não compósito, tratando-se, assim, dos alunos como um auditório universal. Não há, por exemplo, aberturas para outras possibilidades de tema a ser desenvolvido, ou seja, um tema comum é delimitado a fim de que todos os argumentos convirjam para “o indivíduo frente à ética nacional”. Por fim, um acordo que poderia ser considerado como tácito é firmado aos candidatos: o respeito aos direitos humanos. Impõe-se que os valores e deveres firmados nos direitos humanos sejam respeitados durante o ato dissertativo, evitando-se, assim, uma retórica da erística, ou seja, o dissenso e a polêmica são vetados na prova de redação do Enem. Homologa-se, dessa forma, um silenciamento do discurso polêmico, isto é, o ataque desrespeitoso às minorias, por exemplo, é vetado em prol de uma consciência coletiva. A relação com o outro, por meio da imposição dos direitos humanos, assegura que manobras de difamação não apareçam no texto produzido pelo candidato. Portanto, retoricamente, parte-se de uma consideração de defesa de um auditório heterogêneo. À vista disso, há uma visão ideológica progressiva, ou seja, uma ruptura com o discurso segregacionista, ativando-se, assim, um lugar da modernidade – visto que leva em consideração as divergências que aparecem na sociedade atual, garantindo os mesmos direitos a todos – lugar retórico da essência – uma vez que o Enem coloca, em primeiro lugar, os indivíduos que respeitam as diferenças em relevância na contemporaneidade, desqualificando, de maneira subentendida, não expressa nos enunciados, os que não seguem os valores e garantias universais imputadas para todos os cidadãos – lugar retórico da qualidade – já que se opõe ao debate não respeitoso, isto é, opõe-se ao dissenso corriqueiro do dia a dia. Ao salientar os direitos humanos, o Enem estabelece uma hierarquia dupla, ou melhor, uma admitida, outra contestada. O respeito e a tolerância são valores positivos no século XXI, por exemplo; contesta-se, assim, um valor até então fossilizado: o medo do diferente. Retoricamente, não se precisaria enfatizar esse acordo prévio, uma vez que se espera, num debate, para que haja argumentação (PERELMAN; OLBRECHTS- 80 TYTECA, 2014), uma integração ponderada entre pessoas que irão argumentar – neste caso, dissertar – na prova de redação. Tomam-se, assim, os direitos humanos como um argumento de valor específico, sendo a lei pela lei a que se deve prestar respeito. 𝐷𝑒𝑠𝑟𝑒𝑠𝑝𝑒𝑖𝑡𝑜 Fixa-se, dessa forma, um par filosófico da prova de redação do Enem: . 𝑅𝑒𝑠𝑝𝑒𝑖𝑡𝑜 Ou seja, a visão de mundo preservada pelo Enem é o respeito à diversidade social, resguardando as heterogeneidades dos próprios candidatos, por exemplo, como também de todo cidadão brasileiro. Porém, vê-se que a temática escolhida sobre a qual se deve 𝑔𝑒𝑟𝑎𝑙 dissertar cria outro par: . Portanto, espera-se que os candidatos tenham domínio 𝑝𝑎𝑟𝑡𝑖𝑐𝑢𝑙𝑎𝑟 sobre esse tema priorizado na prova, haja vista que o tema “o indivíduo frente à ética nacional” determina quais conhecimentos de mundo devem ser acionados: filosofia, sociologia e política, entre outros. Sendo assim, para se atingir 200 pontos na competência II, faz-se necessário um domínio intelectual considerável do ponto de vista de sua abrangência. Conquanto se evidencie ingenuamente o raciocínio dialético, uma vez que haveria várias possibilidades argumentativas durante a escrita do texto pelo candidato, o raciocínio apodítico – tom imperativo – não deixa margem para contestação e para outras maneiras de se fazer a prova de redação. Essas exigências postas ativam o lugar retórico da ordem. O discurso categórico do Enem impõe que os candidatos respeitem, mesmo que discordem, os critérios de avaliação. O simulacro da neutralidade da prova do Enem, nesse primeiro texto analisado, mostra o acordo prévio que os candidatos firmam para começar a escrever. Ou seja, tem- se um contrato que, se quebrado, acarreta nota baixa na prova de redação. O argumento de autoridade institucional (autoridade administrativa) mascara-se num discurso pedagógico (e jurídico, dado o caráter de exame de seleção, sujeito a editais, por exemplo) tido como lugar legítimo e prestigiado numa sociedade em que o poder e a ascensão social partem do estudo. Isso posto, linguisticamente, o tom imperativo expresso pelos verbos, nesse primeiro texto, “redija [...], selecione, organize e relacione”, traz um argumento de causalidade de implicação: “se a, então b”. Dessa forma, se os candidatos não cumprirem 81 essas delimitações no texto da proposta de redação, então não obterão nota máxima na prova. Dirige-se, agora, à análise do segundo texto que compõe a coletânea dos textos motivadores do Enem-2009. Além do uso do texto verbal, optou-se por um texto sincrético de Millôr Fernandes, com outros elementos para suscitar e expandir o pensamento do candidato acerca da temática definida na proposta de redação. A prova de redação também parte de outros gêneros discursivos para que o candidato veja que eles também podem trazer argumentatividade, ou seja, não apenas o texto dissertativo-argumentativo em forma canônica. O enunciado “só lidar com gente honesta, meu deus, que solidão!” está inserido num gênero – charge – que contribui com o sentido irônico e crítico da frase de Millôr Fernandes. A imagem traz um elemento de presença e reiteração com o enunciado, uma vez que age de forma complementar, ratificando a solidão; porém, ao mesmo tempo, gerando uma duplicidade, que adiciona um sentido diferente do que é expresso no texto verbal, ampliando-o. Retoricamente, a seleção desse texto pelo Enem traz um argumento de ilustração, ou seja, reforça a adesão à falta de pessoas honestas no Brasil, por exemplo. Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2014), esse argumento reitera uma regra que é tida como aceita e certa numa dada sociedade. Assim, a integração do verbal com o visual contribui para a transmissão de sentidos ao auditório. 82 Figura 8- Enem: Millôr Fernandes, 2009 Além disso, o argumento de autoridade é marcado pela voz de Millôr Fernandes (1923-2012), poeta, escritor, desenhista, tradutor brasileiro. O seu estilo é notório pelo humor crítico. A integração do texto à prova de redação para compor a coletânea faz uma soma de éthe, ou seja, a voz do orador institucional da prova – Enem – soma-se à voz do orador Millôr a fim de unir ambas para a construção de um grupo de prestígio. A presença da charge na prova legitima a força argumentativa de Millôr Fernandes, uma vez que, dentro de uma hierarquia, se escolheu a charge pelo juízo de valor que se faz do escritor dentro da sociedade intelectual brasileira. O argumento de autoridade junta-se ao lugar do valor de pessoa, justamente pela triagem dos textos que poderiam vir a formar os textos da coletânea. Contudo, segundo Walton (2012), deve-se questionar o uso desse argumento de autoridade, uma vez que a voz selecionada para argumentar pode não ter força dentro da área de discussão, isto é, deve-se estar atento para que o “halo de autoridade” e o prestígio do especialista sejam validados, mesmo que ele esteja fora de sua área de domínio intelectual. Por meio da inclusão do texto de Millôr Fernandes, o Enem, implicitamente (e esse é um componente retórico relevante diante da direção temática da proposta de redação), compartilha da mesma intenção, ou seja, o Enem torna-se fiador da crítica feita 83 aos brasileiros, mais especificamente, aos governantes. Conquanto não esteja dito, subentende-se que a não honestidade ache-se direcionada aos políticos, dado que a argumentação interna da palavra honesto apresenta a oposição corrupção, logo honestidade, estendendo-se, assim, ao campo discursivo e contextual da palavra que se encontra ligada ao meio político, já que a imagem estereotipada se encontra no conhecimento partilhado dos leitores desse texto. Para mais, segundo Walton (2012), precisa-se estar atento à vagueza que o léxico honesto possa vir a desencadear no leitor. Qual seria a definição, ou seja, qual seria o viés usado por Millôr Fernandes na seleção do termo honesto. Poder-se-ia considerar honesta a pessoa: que paga em dia seus impostos; que é moral e legalmente correta em sociedade; que não mente nem engana outras pessoas para obtenção de benefícios a si própria etc. Pensa-se que poderia ser uma seleção de palavra capciosa se não fosse levado em consideração o contexto de enunciação de Millôr Fernandes. Entretanto, essa vagueza pode ser atenuada pela leitura dos outros textos da coletânea. Imageticamente, o texto “só lidar com gente honesta, meu deus, que solidão!” apresenta-se como forma hiperbólica, que enfatiza o que está sendo dito no texto, isto é, a dimensão estende-se para todos os cidadãos, generalizando-se, assim, para também englobar o auditório para o que está sendo posto no texto. Essa hipérbole, na prova de redação, pode levar o candidato à adesão do discurso persuasivo de Millôr Fernandes; no entanto, não convencendo nem persuadindo por vias racionais, mas sim emocionais. A manipulação pela emoção dá-se por duas vias, nesse texto: uma textual, outra imagética. A súplica pela apóstrofe a Deus desencadeia um efeito de preocupação, pois vive-se num mundo sem honestidade total. A imagem argumenta por meio de uma estrutura que pode seguir as vias do linguístico: da premissa – apenas uma pessoa num espaço amplo – à conclusão – apenas essa pessoa seria honesta. A formação ideológica – visão de mundo – apresentada e evocada por esse texto autentica uma formação discursiva crítica ao governo. Além disso, produz um efeito de sentido democrático, ou seja, sem coerções negativas numa prova que é vinculada ao órgão do governo federal – Ministério da Educação do Brasil (MEC). Sendo assim, a 84 visão de mundo impressa no texto autoriza que críticas sejam tecidas tanto ao governo de direita quanto ao de esquerda, pois, nesse texto, deixa margem aberta por causa da generalização presente. No entanto, a imagem mais acentuada por meio da formação ideológica que subjaz à charge de Millôr Fernandes, desencadeando, assim, sua formação discursiva, é a de um discurso mais transgressivo. Crítico do governo ditatorial, sempre teceu ironias e sátiras ao tradicionalismo da época. Embora Millôr Fernandes esteja presente em alguns materiais didáticos do Ensino Médio, pode-se ter um apagamento dessa figura para o candidato, que pode não ter nenhum conhecimento prévio a respeito dele e de sua produção intelectual e artística. Ademais, o elemento paratextual – referência ao nome e ao local de acesso – pode passar despercebido durante a leitura do texto motivador pelo candidato. A dedução, novamente, é vista na prova. Parte-se do geral para se chegar ao particular: todos são corruptos. Consequentemente, o argumento de inclusão apresenta-se no texto de Millôr Fernandes: se as partes são corruptas, o todo também o é, ambos 𝐻𝑜𝑛𝑒𝑠𝑡𝑖𝑑𝑎𝑑𝑒 apresentam as mesmas características. O par filosófico desse texto é: . Millôr 𝐶𝑜𝑟𝑟𝑢𝑝çã𝑜 Fernandes deixa posto que se vive num país corrupto; sendo assim, a honestidade seria raridade no Brasil. A seguir, analisa-se o terceiro texto da coletânea de 2009. Figura 9 - Enem: Ponto de vista, 2009 O texto de Lya Luft – escritora e tradutora – foi publicado na revista Veja, em 2006, quando a autora era colunista da revista. Luft, além de cronista, é conhecida pela 85 sua escrita literária e, em textos mais críticos, pela quebra de paradigmas estereotipados na sociedade, escrevendo, em especial, sobre a condição da mulher. Percebe-se, novamente, que nessa prova o Enem fideliza o éthos de oradores mais progressistas. Dessa forma, tem-se uma visão mais vanguardista da prova de redação. Outra vez, o éthos institucionalizado – Enem – hibridiza-se com as vozes mais atuantes no meio político-social. Afirma-se uma homogeneização de vozes até o momento, isto é, somam-se à voz coletiva – Enem – vozes individuais. O Enem selecionou uma crônica com o título “Um Natal para Reflexão”, publicado em sua coluna “Ponto de Vista”. Embora o texto seja um recorte, deve-se ater- se ao trecho selecionado pelo vestibular. No início do texto, Luft, ao escrever “andamos demais acomodados”, enceta o texto sem modalização ou prefácios de atenuação e generaliza ao englobar a totalidade das pessoas nessa asserção. O uso do “nós” inclusivo é marcado não apenas para ela e para outras pessoas que se identificarem com o texto. A seguir, em “todo mundo reclamando em voz baixa”, parte-se de um viés limitado para afirmar categoricamente que “todo mundo” encontra-se nessa situação de conformidade. Parte-se de uma generalização indutiva, argumento que tem foco limitado sobre a estatística, isto é, analisa-se uma parcela para se chegar a um conjunto mais amplo (WALTON, 2012). O efeito de sentido ativado por esse argumento é de totalidade hiperbólica, dado que não se define quais são as reclamações especificamente e que tipo de reclamações são levadas em conta, por exemplo. O agrupamento sem distinção não considera o auditório compósito nem níveis médios de descontentamento com a situação posta na vida social. A estratégia é homogeneizar para que o efeito emotivo seja mais impactante. Similarmente, vincula-se por argumento ad hominem aos leitores do texto e a todos, exigindo-se uma tomada de posição. Ilustra-se, assim, um lugar-comum, ou seja, ativa-se, dessa forma, um lugar da não evolução: mantém-se uma inércia, negativa ao olhar da escritora. Para que esse estado mude, por exemplo, deve-se argumentar a favor de uma mudança, que deve ser 86 justificada. Além disso, no mesmo percurso de leitura, “como se fosse errado indignar- se”, usa-se um argumento de comparação por oposição (não se indignar, positivo; indignar-se, negativo) para se contrapor o que é bem-visto socialmente. Essa comparação pode ser cultural, uma vez que se indignar seria um ataque contra a face do outro e de si próprio. A estratégia argumentativa para ter um efeito positivo na quebra do status quo – não indignação – é atingir o páthos do auditório. Usa-se, no texto, um relato mais pessoal, ou seja, uma exposição mais subjetiva da autora. Efeito que provoca sentimentos de piedade (argumento à piedade) e sentimento de simpatia pelo fato expresso: apelando- se emotivamente à quebra da inércia social. Em “sem ufanismo, porque dele estou cansada, sem dizer que este é um país rico, de gente boa e cordata, com natureza (a que sobrou) belíssima e generosa, sem fantasiar nem botar óculos cor-de-rosa, que o momento não permite, eu me pergunto o que anda acontecendo com a gente”, vê-se um desabafo e sua indignação. Sendo assim, traz um efeito de revolta e transgressão do silenciamento. Nesse trecho citado, rompe-se com valores arraigados – estereótipos – do Brasil. Luft, assim, propõe uma revisitação histórico-cultural, ou seja, sugerindo que se saia de uma imagem fixa e coletiva constante e infundadamente legitimada: a riqueza do Brasil, a cordialidade dos brasileiros, a fauna e flora. Para mais, desnuda o valor de ordem, violando o senso comum, mitigando e tolhendo a doxa validada no seio social. Mesmo que se deseje o contrário do que foi posto no texto, em “tenho medo disso que nos tornamos ou em que estamos nos transformando” tem-se um argumento de direção – medo do futuro – e um do desperdício – voltado ao passado. Ou seja: tem-se medo e receio do que o futuro pode vir a ser, visto que, no olhar da escritora (na posição de oradora), pode-se piorar, ressaltando o lado negativo da situação. Por outro lado, o passado pode não ser tão positivo quanto o presente da enunciação do texto, ao momento de escrita, temendo, pois, o desperdício de um pretenso progresso. Inclusive, a metáfora do percurso, no texto de Luft, é sem um direcionamento estabelecido e especificamente claro, ou seja, há possibilidade de avanço social, porém o 87 único impeditivo é a inércia. Subjaz, ao texto, assim, uma iniciativa de mudança social. No entanto, Luft apenas questiona, não propondo soluções afirmativas para a mudança do status quo. 𝑃𝑟𝑜𝑔𝑟𝑒𝑠𝑠𝑜 O par filosófico mantido no texto é: . A euforia recai sobre o progresso 𝐼𝑛é𝑟𝑐𝑖𝑎 social, revisitando e questionando os valores estratificados no seio social ininterruptamente. Esse argumento opõe-se ao tradicionalismo, que se pretende positivo, mantendo valores que se mascaram de características aceitáveis – “ufanismo” – e patrióticas no Brasil. Ao subverter a ordem das coisas, Luft, por meio do texto, usa um tom mais emotivo com o intuito de comover o auditório, conduzindo-o a seguir a mesma linha argumentativa exposta no texto. Novamente, a vertente mais progressista é vista na seleção dos textos para essa coletânea. Ratifica-se um direcionamento, no texto de Luft, mais crítico para que o candidato reflita sobre o cotidiano em que vive, fazendo, dessa forma, correlações com o passado histórico do país. Pede-se, ao ler esse texto, que o candidato seja um argumentador mais direcionado ao fazer social, a fim de que veja a ideologia ufanista não como otimista, mas como problemática e danosa ao gerenciamento social, cultural e, principalmente, político. Ademais, Luft constrói o raciocínio de seu discurso retórico com uma maneira totalmente emotiva pelo vazamento subjetivo e pessoalizado que permeia o texto, a fim de obter adesão do outro. No entanto, vê-se, também, um tom de verdade inquestionável (apodítico): não há solução. Ainda assim, mesmo sendo uma visão refletida e refratada da situação do país, a voz do orador seduz o candidato, em razão da validação que o discurso pedagógico (e jurídico também, como já apontamos) confere aos textos da coletânea. No final do texto, em “achando bonita a ignorância eloquente, engraçado o cinismo bem-vestido, interessante o banditismo arrojado, normal o abismo em cuja beira nos equilibramos – não malabaristas, mas palhaços”, percebe-se uma cristalização do conceito de “ufanismo” para o lado negativo da questão. Luft amplia a matriz da questão sobre atos de corrupção, tanto do percurso dos cidadãos, quanto do governo, enfim, do 88 país (ou seja, da parte ao todo). Faz-se uma ampliação para um estreitamento argumentativo. A opacidade do trecho citado traz um afastamento da linguagem habitual e direta. Perelman e Olbrechts-Tyteca (2014) asseveram que não existe escolha neutra nem despretensiosa na argumentação. Dessa forma, desnudam-se ironias e até mesmo oxímoros – incongruências no uso de termos – no trecho em “ignorância eloquente, engraçado o cinismo bem-vestido, interessante o banditismo arrojado [...]”. Sendo assim, esse discurso mais polido, ao contrário, expressa um juízo de valor de inconformidade, de certa forma até se aproximando dessa pretensão corrupta da sociedade por meio dos termos camuflados, ou seja, mascarados. Contudo, constata-se que a estratégica pelo páthos é efetiva para esse texto argumentativamente, pois torna-se uma forte justificação para promover uma mudança. Luft, no texto, tenta promover uma saída da inércia – ratificada pelo sofisma do medo, efeito de sentido que perpetua a existência estática das coisas (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2014). Mesmo que sejam valores abstratos – ufanismo e corrupção –, num nível superestrutural, tendo em vista a dominação por meio da cultura e de outros aparelhos ideológicos, avistam-se materializações no nível da infraestrutura: impacto do homem e de suas forças econômicas governamentais. Ou seja: a corrupção efetiva – desvio de dinheiro – atrapalha o andamento social. O argumento pragmático incitativo e avaliativo (aquele se engaja numa ação para mudança; este apresenta uma avaliação sobre o assunto) de Luft pauta-se na ampliação de uma consequência incitativa negativa ainda maior do que a que já se vive, por exemplo. Por fim, o argumento da superação é a grande marca do texto e da trama argumentativa de Luft. Passemos agora ao quarto texto da coletânea de 2009. 89 Figura 10 - Enem: A armadilha da corrupção, 2009 Paratextualmente, o título conceitual de Calligaris já lança uma indagação ao auditório – os candidatos do exame – para que, durante a leitura do texto, possa ir refletindo e respondendo a ela. Ou seja: o título encapsula a temática que será desenvolvida, direcionando, assim, o foco da argumentação. Além disso, a opção por um título interrogativo pode suscitar uma revisitação do conceito posto: “eles são todos corruptos?”. Contardo Calligaris é um psicanalista e colunista da Folha de São Paulo, de origem italiana, radicado no Brasil. Também conhecido por vários livros publicados na área da Psicanálise e na área da literatura ficcional. Novamente, recorre-se, na prova do Enem, ao argumento de autoridade. Porém, segundo Watson (2012), deve-se questionar a especialidade da voz requerida pelo Enem, isto é, se o orador tem uma tese bem estabelecida e desenvolvida no texto. Assim, a autoridade de Calligaris (doutor em Psicologia Clínica pela Universidade de Provence) pode ser questionada, uma vez que se poderia exigir uma especialidade em política, por exemplo. Dessa forma, do mesmo modo como se apontou para os outros textos, o uso de um especialista “fora da área” (WALTON, 2012) pode ser questionado, uma vez que se suplica ao “halo de autoridade”, isto é, suplica-se à notoriedade midiática de Calligaris. Pela presença do texto de Calligaris na coletânea, legitima-se a voz desse orador, corroborando, assim, ideias e validando seu éthos. Em “as denúncias que assolam nosso cotidiano podem dar lugar a uma vontade de transformar o mundo só se nossa indignação não afetar o mundo inteiro”, Calligaris 90 expõe seu tópico frasal por declaração inicial, sem definir, propriamente, quais seriam as “denúncias”, ou seja, a vagueza lexical tem efeito vasto e genérico a fim de cobrir um possível rol de reclamações sobre as esferas sociais. Dessa forma, exigir-se-ia dos candidatos um conhecimento compartilhado além de maior acuidade de interpretação pragmática. Em relação a aspectos morfossintáticos, por exemplo, vaza-se subjetividade e até mesmo efeito retórico hiperbólico ao se empregar o verbo “assolar”, trazendo uma dimensão figurativa de desastre, catástrofe e calamidade. Novamente, a coerência temática aparece na escolha dos textos motivadores. Há, por exemplo, a ratificação de um elemento: a insatisfação. Sendo assim, dá-se ênfase à manutenção do status quo, porém vindica-se, outra vez, transição de um estado negativo a um positivo. Calligaris, no texto, coloca o dedo na ferida da inércia, pois, para a transição de um estado para outro, não se deve temer a indignação. Sendo assim, o lugar da ordem é questionado por ele; contudo, na esfera da sociedade, vê-se, recorrentemente, a retidão e a abstenção de reivindicações sociais. Evoca-se, portanto, uma ruptura com o lugar da tradição. Assim como nos textos antecedentes, viram-se, como se vê nesse de Calligaris, provas extrínsecas para corroborar uma ideia de transgressão com a letargia social. Para mais, questiona-se a frase fossilizada e aforizada “eles são TODOS corruptos”, sentença disponível na memória discursiva. Contudo, Calligaris, em “é um pensamento que serve apenas para ‘confirmar’ a ‘integridade’ de quem se indigna”, põe em xeque essa situação ao expor que apenas o ato locucional – o que é dito (informação) – e o ilocucional – a intenção a ser veiculada ao outro – não devem ficar sem o perlocucional – o efeito causado. No entanto, esse efeito deve ser voltado não para a estagnação, mas sim para a promoção de uma efetiva mudança social. O próprio autor, no texto, fala sobre o lugar-comum em “eles são todos corruptos”. Lugar-comum que se torna efeito de indignação coletiva, ou seja, sabe-se que as pessoas estão insatisfeitas, no entanto, não se mostra, por exemplo, uma solução para a 91 problemática. Dessa forma, consoante Perelman e Olbrechts-Tyteca (2014), a citação é um efeito que provoca a comunhão, dando peso à autoridade selecionada na citação. Entende-se, pois, que o efeito de sentido de “eles são todos corruptos” é angariar um todo coletivo descontente com o cenário político. 3.1.2 A proposta de 2018 e os textos motivadores A seguir, apresentamos as instruções que deviam ser seguidas pelo candidato. Usa-se o discurso dominante, isto é, não há qualquer possibilidade de questionamento; caso contrário, penalidades serão aplicadas (característica pela qual a proposta não é, como já apontamos, apenas um discurso pedagógico, mas também jurídico). Além disso, o discurso dialogal é mitigado, tornando-se fechado, monossêmico e monológico. A função informativa do texto é bem clara e sucinta, não apresentando duplas interpretações. Figura 11– Enem: instruções para a redação, 2018 Como visto, o trecho é um discurso autoritário – do orador institucional Enem –; é a dominação pela palavra. Segundo Citelli (1995, p. 39), “é um discurso exclusivista, que não permite mediações ou ponderações”. Sendo assim, o texto apresenta um plano de base sem possibilidade de fuga. 92 Figura 12 - Enem: O gosto na era do algoritmo, 2018 Parte-se da paratextualidade – elementos que circundam o texto, que também ajudam na ativação do conhecimento de mundo– para analisar a primeira camada do texto motivador Texto I (apresentado logo após as Instruções). O texto disponível na internet sobre algoritmo é escrito por Daniel Verdú – correspondente do El Pais. Logo, tem-se um argumento de autoridade, ou seja, apela-se a uma autoridade no assunto ou à reputação do orador. Contudo, mesmo que possa o orador, nesse caso, ser desconhecido para a grande massa, a refutabilidade torna-se, ainda assim, menor. No início do texto, há um exemplo, ou seja, uma situação até então verdadeira, já que os serviços de streaming sugerem opções de músicas e filmes. Logo, a adesão à tese torna-se mais forte. Mesmo que o argumento seja construído por um exemplo que poderia não ocorrer em todos os aplicativos, isto é, uma generalização, o raciocínio apodítico está presente: se você usa serviço de streaming, seus dados são coletados para sugerir músicas e filmes. A ordem da qualidade dos aplicativos e da tecnologia usada é notória. Além disso, o páthos do auditório, o candidato da prova, é atingido pelo exemplo no começo do texto, já que pode ocorrer uma identificação do leitor imerso na tecnologia. Ao falar de “sistemas de outros aplicativos e redes sociais”, a generalização tem efeito enfático, sem uso de trecho atenuador, indo direto ao argumento. Ademais, na frase “que não costuma falhar”, há uma inferência lógica, ou seja, o grau de falha dos aplicativos ao obterem os dados dos usuários é baixo. 93 O texto é construído por uma série de fatos encadeados levando a uma conclusão, quer dizer, uma sucessão de fatos. Logo, o argumento maior é o ad consequentiam – a consequência da expansão da tecnologia acabará privando, mesmo que se tenha liberdade, as escolhas individuais. Vê-se de maneira clara na última frase: “a ilusão de liberdade de escolha que muitas vezes é gerada pelos algoritmos”. Entretanto, o que chama a atenção é a frase anterior “E esse é o problema principal”, visto que dá margem para interpretação de que pode haver mais problemas; contudo, esse – a falta de liberdade digital – é o principal, outros estão silenciados. Toda a construção argumentativa leva a um único ponto de vista sobre o uso da tecnologia dos aplicativos: a privação – elemento negativo, disfórico. Todavia, o lado positivo, eufórico, é oculto no texto. Sendo assim, o auditório (os candidatos da prova, considerando a presença do texto na coletânea), caso não perceba, é conduzido apenas aos empecilhos que a internet pode trazer. Há de maneira implícita o argumento ad antiquitatem, ou seja, a tecnologia dos algoritmos – o avanço tecnológico – é uma problemática. A melhoria tecnológica na vida dos usuários parece não existir. A rapidez e a comodidade são apagadas, levando o candidato, no papel de auditório desse texto na situação da prova, a uma única conclusão: evite a tecnologia a fim de obter sua liberdade de volta. O éthos do proponente é construído de maneira quase impessoal; porém, na última frase, evidencia-se um tom preocupado. Por outro lado, o oponente, nesse caso, profissionais da tecnologia, é silenciado; não há nem uma evidência no texto, por exemplo, favorável ao uso ou ao aprimoramento dos algoritmos. Logo, o discurso final – da dúvida – não é ressaltado ao auditório, ficando, assim, tácito. 94 Figura 13 - Enem: A silenciosa ditadura do algoritmo, 2018 O texto escrito por Pepe Escobar – jornalista brasileiro, especialista em geopolítica –, “A silenciosa ditadura do algoritmo”, já exprime argumentação pelo título conceitual na escolha do sintagma nominal “silenciosa ditadura”, expressando e evocando o passado histórico do regime militar brasileiro. A isotopia do texto é mantida pela seleção lexical – “exército”, “controle”, “eliminado” –, fixando o estabelecimento de uma tematização, abordagem do assunto do texto de maneira abstrata, e de uma figurativização, concretude dos conceitos abstratos no texto. Novamente, a exemplo do texto I, o II também expressa o lado negativo do algoritmo. Fazendo analogia à ditadura, leva-se o auditório a uma leitura única do texto: os sistemas estão cerceando o acesso a outras informações, ou seja, restringindo o usuário apenas ao nicho captado por suas preferências. A opinião do orador adquire um valor dominante e contundente. Há de certa forma um argumento pelo antimodelo, já que não se deve imitar o processo ditatorial de muitos governos na internet, alienando os usuários de outras fontes de informação. Sendo assim, a alegorização do algoritmo em um ditador pode ter alto grau persuasivo, já que afetará o páthos do auditório (o candidato da prova), evitando, assim, o uso de aplicativos que capturam os dados ao navegar na internet. Mesmo num país democrático, coerções midiáticas poderiam ser possíveis pela internet. Caso um usuário acesse sites mais liberais, os conservadores seriam ocultos a esse leitor. 95 A pouca subordinação – mais adjetiva – textual deixa-o mais direto e incisivo. O orador usa argumentos por definição. Sendo assim, o alto grau de argumentação é quase irrefutável, já que as definições, por exemplo, se pretendem universais. Porém, elas criam um ponto de vista. A conclusão-síntese do texto remete ao primeiro texto motivador: a não liberdade do cidadão em suas escolhas. Novamente, o lado positivo, caso haja, não é exposto. O texto apresenta-se em terceira pessoa desde o começo; há, pois, no final, o emprego da primeira pessoa do plural a fim de trazer a adesão ao que se afirma anteriormente no texto. Logo, o orador coloca-se próximo do auditório, ou seja, “há perigo na internet: nós que sofreremos com isso”. Figura 14 - Enem: Utilização da internet, 2018 O texto III é pautado na ordem da quantidade – uso ilustrativo de infográfico com dados e estatísticas. Os dados são expostos para ratificar os dois textos citados, de certa forma. A legitimação do texto é vista na paratextualidade: a fonte IBGE. A autoridade que valida a argumentação é o instituto. Porém, pode-se manipular com números, por exemplo. Sabe-se que o acesso à internet no Brasil ainda é precário; logo, não se sabe de qual camada da sociedade o texto trata, dentre outras informações necessárias para total compreensão. 96 O éthos construído pelo texto é de autoridade – intratextualmente, pelos números apresentados, levando o candidato apenas a uma direção: o uso exacerbado da internet; extratextualmente, a imagem simbólica do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, ou seja, o orador que atua como fonte da informação é legitimado, visto que é um instituto público da administração federal brasileira. A didaticidade do infográfico apresenta-se ao auditório de maneira facilitada, já que apresenta pouco texto verbal e com informação sintética. O raciocínio usado é o apodítico, uma vez que o contra-argumento teria de ser exposto com outros números. Contudo, o instituto fez a pesquisa selecionando certos números e ocultando outros. Embora não seja imparcial, o efeito de sentido obtido pela textualidade é a objetividade. Segundo Fiorin (2015, p. 144), “esse argumento está fundado numa lógica quantitativa, fazendo apelo à maioria, seja ela numérica, seja ela vinculada por sintagmas do tipo ‘clamor popular’, ou ao bom senso, considerado um atributo da maioria”. O caráter demonstrativo é maior do que o argumentativo. Sendo assim, consoante Plantin (2008), a demonstração tem posição monologal, enquanto a argumentação, dialogal. Instaurou-se, culturalmente, o uso de dados estatísticos como forma de provar, irrefutavelmente, um argumento. Contudo, segundo Huff (2016), a interpretação dos números pode ser subversiva e parcial, fazendo-se, assim, uso enviesado de dados para justificar certa posição26. Desse modo, a argumentação pauta-se no discurso autoritário, distanciando-se do auditório. Figura 15 - Enem: Como a internet influencia secretamente nossas escolhas, 2018 26 Cabe afirmar que o orador não diz que as distorções são sempre feitas pelos profissionais da área da Estatística, mas sim por pessoas várias que fazem uso desses dados. 97 O texto IV apresenta-se logo de início com o uso da primeira pessoa do plural, isto é, dando a impressão de proximidade entre orador e auditório. Em “mudanças sutis”, o adjetivo dá margem para uma inferência que atua em direção ao páthos do candidato, já que ínfimas mudanças nos sistemas de tecnologia, sendo elas imperceptíveis, podem alterar o comportamento do usuário. Em “mas nós praticamente não sabendo como isso tudo é filtrado”, temos novamente a emotividade direcionada ao candidato que, assim, se identifica com o orador. Ao se inserir no meio do público para quem fala, há o uso do argumento ad populum. Mesmo afirmando que não sabe como funciona o sistema de algoritmo, a falácia instaura-se porque se pode pesquisar o funcionamento desse complexo tecnológico. Exime-se do conhecimento, ou melhor, da aquisição dele ao tentar validar a proximidade com o público em geral. Por conseguinte, cria-se a oposição à tecnologia. O texto também apresenta oposições. Todavia, o resultado dessas contraposições é positivo ao lado da não tecnologia dos algoritmos. Pretende-se um raciocínio mais aberto; contudo, ao final, vê-se que é apenas figuração do orador. A alegorização – ou a personificação – da tecnologia pode ser usada como recurso para, talvez, induzir o auditório, fazendo-o ficar preocupado com a exposição nas mídias e até mesmo receoso na navegação na internet. A oposição feita no final – “decisão informada versus obediência influenciada” – não traz a contraparte: a não manipulação, mas sim a facilitação aos recursos on-line. Ou seja: novamente, não mostrando a parte que pode ser positiva. Sendo assim, o controle das pessoas sobre o uso de dados e de algoritmos deve prevalecer sob o uso “às escondidas” de muitas empresas e sistema de coleta de dados. Figura 16 - Enem: Proposta de redação, 2018 98 Ratifica-se, assim, que a proposta de redação deixa implícito, de maneira sutil, que o candidato deve seguir a vertente dos textos apresentados anteriormente. Ainda, há margem para uma contra-argumentação. Embora seja possível uma argumentação em outra direção, tem-se em mente que o candidato seguirá uma única vertente do tema proposto, já que o direcionamento dos textos motivadores foca apenas para um caminho possível, não apresentando um outro lado nesse debate. Confirma-se, dessa maneira, a perspectiva monologal do Enem, pois não se pronuncia sobre o outro lado da moeda, nesta temática analisada, ao menos. A argumentação – que é dialogal – está opaca ao orador do texto dissertativo-argumentativo (o candidato produtor da redação), gênero esse essencialmente expositivo e argumentativo. Mais uma vez, tem-se a impressão de que o orador institucional da prova – Enem – e os textos selecionados apenas focalizam o aspecto negativo, silenciando o outro lado: seja pela apresentação de depoimentos de cientistas da informação, seja pelas leis já existentes que garantem a proteção do usuário na internet. O discurso dominante – “as instituições falam através dos signos fechados, monossêmico, dos discursos de convencimento” (CITELLI, 1995, p.32) –, característico do discurso pedagógico, é evidenciado na prova de admissão ao ensino universitário. Todos os exemplos têm um tom de discurso deliberativo, isto é, desejam aconselhar o auditório a ter cuidado num futuro com a internet e o uso de dados pessoais nesses sistemas. Contudo, trabalham, os textos, com um viés verossímil, já que não há prova concreta do perigo. Pode, pensando pelo lado positivo, facilitar e otimizar a vida dos usuários da rede, o aprimoramento dos dados salvos na rede. O lado racional – lógos – deixa marcas nos textos. Contudo, o lado afetivo – éthos e páthos – é mais persuasivo, uma vez que os oradores se colocam dentro do espectro de preocupação com o futuro da tecnologia, imaginando, assim, uma espécie de ditadura virtual, coerção essa que estaria sendo feita às escondidas. Os éthe são convincentes pois estabelecem uma conexão com o auditório em termos de simpatia, não colocando imposições, mas suscitando a reflexão e o cuidado, isto é, uma nuance mais branda. 99 Há provas extrínsecas – vistas no gráfico e no texto II – e intrínsecas – construídas pelo orador, por exemplo, no texto I. Logo, todas as premissas se tornam verossímeis pela maneira da demonstração: afirma-se e, depois, conclui-se ratificando a ideia de prevenção, isto é, evidenciando-se uma argumentação mais pedagógica do que jurídica ou filosófica. Figurativamente, o caráter erigido pelos oradores é hiperbólico – aumentando as coisas em excesso (Reboul, 2000). Além disso, todos os textos expostos pelo Enem trabalham com a metalepse: a causa – evolução desenfreada e não regulamentada do uso e coleta de dados – e a consequência – risco iminente de uma ditadura cibernética. Similarmente, os textos motivadores designam-se em gradação ascendente, isto é, da sutileza até o alarme da pretensa ameaça. Todos os oradores são sujeitos preocupados com o avanço da tecnologia do século XX. Ou seja: apreensivos com o futuro camuflado e secreto da internet, argumentando contra o não debate e a não exposição da veracidade sobre a manipulação de dados. Fala- se a respeito do assunto devido à falta de regulamentação – de leis na internet e fora dela. A maneira com que os textos são expressos caracteriza o argumento do terceiro excluído: apenas duas soluções parecem prováveis para o candidato dissertar, isto é, a favor ou contra. Dessa forma, parece não haver parcimônia para um campo dialogal mais ampliado. A seguir, analisamos os textos das propostas de redação da Fuvest, dos anos 2009 e 2018. 3.2 Fuvest, propostas de redação, textos motivadores 3.2.1 A proposta de 2009 e os textos motivadores 100 Figura 17 - Fuvest, Holanda e Bélgica, 2009 A imagem acima é o primeiro contato do candidato com a proposta de redação da Fuvest-2009. No primeiro momento, apenas o título – Redação – anuncia o momento de produção escrita. Dessa maneira, o candidato somente terá ciência do tema após o processo de leitura dos textos motivadores que se seguem até o texto de instrução. Comparativamente, a proposta de redação do Enem-2018 também deixa para o último momento a delimitação da temática da prova. A configuração da proposta de redação, em sentido gráfico, apresenta uma estrutura dedutiva, visto que expõe textos e informações que são gerais para depois direcionar uma orientação temática delimitativa. Por meio desse modelo dedutivo, exige-se um grau de proficiência de leitura mais apurado e aguçado, dado que conexões textuais e extratextuais devem ser feitas para que, no momento da escrita da redação propriamente, consiga-se articular argumentativamente de maneira coesa e coerente a partir do que se solicita na delimitação temática, isto é, na frase encapsuladora do tema no texto de instrução. No entanto, mesmo que haja um breve resumo do que se pede no tema, o candidato deve ser capaz de criar correlações entre os textos. A sentença-guia indicadora do tema funciona como anáfora associativa, porém que só terá sentido para o candidato se houver compreensão dos textos motivadores. 101 A análise argumentativa da imagem disposta no começo da proposta é de difícil compreensão e assimilação sem o apoio dos outros textos. Logo, o texto sincrético exige amplo conhecimento de mundo do candidato, por exemplo, conhecimento geográfico para entender que ambos os países, Holanda e Bélgica, fazem fronteira um com o outro. Para mais, o conhecimento geográfico específico ajuda a entender que a imagem mostra a cidade de Baarle –entre Holanda e Bélgica –, que não está dividida ao meio dos dois países, mas sim possui 22 pedaços da Bélgica na Holanda e 8 da Holanda na Bélgica. A origem dessa particularidade remonta à Idade Média, quando a Holanda não era propriamente um país. Portanto, espera-se que a informação disposta na imagem seja de conhecimento partilhado entre os estudantes para serem capazes de fazer as inferências sobre o tema. Além disso, o conhecimento linguístico e simbólico ajuda na compreensão do sentido da imagem: delimitação/divisão geográfica expressa pelo símbolo (uma cruz) no chão da rua representada na imagem. Sendo assim, a imagem apresenta um nível denotativo e outro conotativo: aquele diz respeito aos elementos que denotam a separação de um lugar físico e definido entre dois países; este, aos elementos abstratos, duas nações diferentes, com valores e políticas distintas. Desse modo, além dos elementos não verbais, os verbais ancoram o sentido para os candidatos depreenderem o sentido primário – marcação geográfica e espacial – e o secundário – separação político-sócio- cultural. Por consequência, entende-se que o não verbal, nesse caso o pictórico/visual, se não recebesse a ancoragem linguística, seria passível de polissemia, dificultando mais ainda a interpretação do texto. O texto, assim, mostra-se complexo, num primeiro momento, pelo sincretismo e pela opacidade de sentido sem a ancoragem nos outros textos motivadores. Justamente por causa da polissemia do texto sincrético, pode-se pensar, por exemplo, num argumento pela divisão (partição) dos dois países – Holanda e Bélgica. Novamente, caso não se conheça a história da divisão geográfica, cria-se margem para um argumento de divisão por violência, isto é, por invasões e por guerras por território. Para mais, pode-se, também, interpretar a imagem como um argumento de comparação por oposição, que se sustenta exatamente pela divergência político-sócio-cultural, 102 levando-se, assim, à composição da categoria fórica: delimitado vs. não delimitado. Ainda, por exemplo, a divisão pode assumir conotações negativas pelo acionamento do conhecimento de mundo dos candidatos, em razão da concepção disfórica que se ativa ao pensar em divisão em espaços geográficos: guerras por território. Avaliando os outros componentes retóricos, por exemplo, a argumentação da imagem assume hierarquia igualitária, homogênea – pensando-se na autonomia política, social, cultural e histórica –, no entanto lê-se, na imagem, hierarquias desiguais, heterogêneas, isto é, do lado esquerdo da imagem, há valorização da Holanda, dado que possui a maior parte da foto; o lado direito, Bélgica, na foto, detém a menor parte. Sendo assim, a superioridade da Holanda se sobressai à da Bélgica, levando-se, assim, em consideração hierarquia abstratas: mais território, mais poder. Por meio dos modelos cognitivos, do conhecimento de mundo e da memória discursiva, assume-se, nesse texto, um espectro negativo das fronteiras, validando e ratificando um preestabelecido por meio de frames: conhecimento de senso comum de que fronteiras devem ser protegidas e que não se deve desrespeitar a demarcação do espaço do outro. O lugar retórico privilegiado no texto é o da preservação (proteção) e da tradição, a saber, pensa-se na preservação e na não invasão desses espaços geográficos. O lugar da ordem também exerce grande influência na imagem, já que se deve respeitar os limites acordados politicamente e as definições arbitrárias de espaço com tom autoritário imperativo. A ordem está presente também na autonomia e na soberania que ambos os países têm. No entanto, se não houver o entendimento histórico, o candidato será levado, possivelmente, a entender o lado negativo. Em Baarle, por exemplo, mesmo com a fronteira insólita, vive-se em harmonia entre belgas e holandeses. Sendo assim, pode-se construir um viés negativo, caso não haja os outros textos em rede de conexão de sentido. Consequentemente, entende-se que a complementação dos textos motivadores é importante para não se perder o sentido pretendido por aqueles que elaboraram a prova de redação. No primeiro texto, constrói-se um éthos mais hermético da redação da Fuvest, corroborando o senso que se criou em torno da prova por causa do seu alto grau de exigência conteudista. Vendo-se pelo primeiro texto, a sustentação de tal éthos é dado 103 pelo meio discursivo – conteúdo intricado da prova –, levando-se, por exemplo, à construção de um éthos institucional mais exigente, meticuloso e diferenciado. Questiona-se, por exemplo, se, nesse primeiro momento, a proposta de redação da Fuvest-2009 não se articula contra uma retórica da manutenção do previsível, ou melhor, se não se articula para uma retórica da mudança para a possibilidade de reflexão do candidato, exigindo-se dele maior repertório intelectual e cultural. Sendo assim, demanda-se do candidato capacidade inferencial sobre o mundo. Figura 18 - Fuvest, Fronteira, 2009 O segundo texto que compõe a coletânea de textos motivadores é uma definição do termo “fronteira”, ou seja, uma apresentação dos possíveis significados da palavra estabelecidos em um instrumento linguístico como o dicionário. Mesmo se tratando de uma definição lexicográfica – ou seja, um texto metalinguístico e utilitário –, há viés argumentativo no texto. Usa-se, por exemplo, para convencer o leitor, de argumento de definição: apresenta-se o elemento – “fronteira” – por meio de definições elaboradas pelo Dicionário Houaiss, escrito por uma equipe de lexicógrafos que também tiveram de realizar suas opções no tratamento do item lexical. O candidato, ao ler a entrada, depara- se com a definição normativa – maneira pelo qual se deve usar a palavra, isto é, de um consenso coletivo sobre o significado usual; no entanto, as acepções e as possibilidades de significado não são expressas em sua totalidade, uma vez que podem existir contextos não previstos de emprego do item “fronteira”. Todavia, retoricamente, tal definição, dependendo do contexto, pode-se apresentar como uma definição descritiva, a saber, o sentido conferido a um termo em uma área do saber, num momento histórico e cultural. Dessa maneira, a proposta de redação da 104 Fuvest-2009 propõe ao candidato uma outra forma de pensar o significado de “fronteira”: ressignificação do item lexical para um viés mais positivo e mais coletivo politicamente. O significado pensando na proposta de redação da Fuvest-2009 é contrário ao significado geográfico e mais comum do termo. Questiona-se, por exemplo, o candidato sobre outras acepções do item “fronteira”: imbricações culturais, políticas, históricas, não apenas um termo técnico geográfico de delimitação espacial. Ao se propor definições múltiplas ao item lexical, expande-se o debate, levando à sofisticação do tema abordado pela Fuvest: desloca-se a identificação unívoca da definição de “fronteira” para a multiplicidade de sentidos, revendo-se o uso em senso comum. Apresenta-se, então, o uso heterogêneo de um conceito abstrato, não se foca, portanto, no seu sentido concreto. Porém, só se pensa nessa possibilidade de dialogismo por causa do terceiro texto da coletânea (Figura 13), uma vez que põe em pauta o debate da definição do item lexical. Sendo assim, não se direciona para um discurso monologal no sentido de restrição de identificação do item “fronteira” e de fechamento de temática. Mesmo com o argumento de autoridade (representado pelo instrumento linguístico Dicionário Houaiss), autoridade intelectual – posição de destaque e reconhecimento da qualidade da edição do dicionário – e cognitiva – autoridade dentro de uma área de especialidade, a Fuvest-2009 propõe um debate mais amplo e não fechado para o tema até então apresentado: fronteira. Por outro lado, embora o éthos do texto apresente-se como autoritário no coletivo social, isto é, o impacto normativo do dicionário, pelo contexto da proposta, o raciocínio se dá pelo dialético: quebra da inflexibilidade normativa do dicionário. Por isso há uma reconstituição do éthos dentro do quadro contextual da proposta. Em se tratando do dicionário, não se pode pensar que haja neutralidade nas enumerações das definições das entradas lexicais. Ainda que haja uma tentativa de encapsular a realidade externa para termos linguísticos, a disposição dos significados encaminha o candidato para um percurso pensado pela prova. O recorte feito apenas apresenta quatro definições. Logo, o emprego do sentido figurado será importante para o próximo texto da coletânea. 105 A definição do item lexical dá ao candidato uma ampla visão sobre o que poderá escrever na dissertação-argumentativa. Pensando-se nisso estreita-se o sentido amplo e polivalente do primeiro texto da coletânea de textos da redação. O estreitamento do tema de redação conduz o candidato para o sentido pretendido pela prova. Ao mesmo tempo, no entanto, que se pretende guiar o candidato, deixa-se margem, pois, para que consiga inferir e deduzir os sentidos que estão sendo construídos. O lugar retórico, no texto como parte da coletânea, traça um rumo para a diferença, expandindo o significado mais denotativo e saindo de uma realidade objetiva determinada. Vê-se, assim, uma retórica de mudança de percepção do comum por uma ampliação de um significado denotativo para outra realidade contemporânea, instigando uma polissemia do item lexical dentro de múltiplos contextos discursivos. Até mesmo se associa ao lugar retórico do existente: relevância do eventual, a saber, a necessidade da compressão de outros tipos de fronteiras, seja no sentido denotativo, seja no conotativo. Afirma-se, então, a superioridade da inclusão dos outros sentidos em decorrência de uma necessidade de globalização. Retoricamente, o direcionamento da prova de redação da Fuvest-2009 é para uma mudança, ou melhor, para uma ecsemia – extensão de um sentido semântico para outros conceitos. A prova mostra, assim, uma hierarquia do abstrato no lugar do concreto, subordinando outros conceitos para focalizá-los em um único termo: por exemplo, as diversas noções do conceito abstrato de distância, restrição, limitação no item amplo “fronteira”. Para mais, a prova assume um valor abstrato: a necessidade do debate para compreender se as várias barreiras (fronteiras) são erigidas em outros contextos além do geográfico. No entanto, amplia-se o valor concreto das fronteiras – separação e delimitação de uma área – para enfatizar o valor abstrato – distância social, cultural e 𝑎𝑏𝑠𝑡𝑟𝑎𝑡𝑜 política. Portanto, o par retórico usado no texto é: . 𝑐𝑜𝑛𝑐𝑟𝑒𝑡𝑜 Sendo assim, leva-se o candidato a expandir o sentido de um item lexical delimitado a um único campo semântico para outros contextos com definições mais complexas. A classificação deixa evidente que o direcionamento da prova é para um viés mais humano e não físico ou morfológico do espaço geográfico. 106 Tendo em vista os raciocínios, a prova em si parte da dedução, uma vez que sai do geral para o específico, exigindo que o candidato tenha uma ampla visão do significado de “fronteira” para compreender o específico posteriormente. Todavia, no texto metalinguístico, tem-se o raciocínio por indução, dado que se parte do específico – fronteira física e geográfica – para entender o geral – outras acepções para o termo. A definição, assim, torna-se mais expressiva mesmo com um teor enviesado – manipulação discursiva – do uso do texto do dicionário, conferindo um polo positivo para o contexto de reflexão sociológica e filosófica da prova. Figura 19 - Fuvest, 2009 O terceiro texto da coletânea não apresenta autoria clara e definida, quer dizer, um enunciado aderente – nome próprio – que determinaria quem escreveu o texto. Pensa-se, então, que o orador seja a Fuvest, isto é, uma junta de professores ou um professor responsável que tenha escrito o texto com a definição de fronteira para outros campos do saber e do pensar. Por isso, a imagem que se constrói do texto mostra um éthos com uma autoridade quase máxima, a saber, por meio da não marcação explícita da autoria, o candidato precisa quase que obrigatoriamente ser fiador do discurso ali presente. O páthos do auditório – candidatos – é persuadido pelo medo de pensar ou de fugir do que é dito no pensar da Fuvest, uma vez que será avaliado por profissionais que seguirão criteriosamente as recomendações deixadas na proposta de redação. O texto começa com uma argumentação por definição do item “fronteira”, porém uma definição mais conceitual, isto é, não apresentando uma definição mais normativa, mas já apresentando e expondo um contra-argumento sobre o que já se pensava sobre o significado de “fronteira”. A definição do item encaminha o candidato para o pensamento posto e exigido na prova. A ressignificação do item lexical mostra um viés mais humano e social: “movimentos sociais e políticos de um ou mais grupos de pessoas”. Sendo assim, pretende-se encarar o tema de maneira mais sociopolítica para refletir sobre as 107 pessoas que dividem fronteira e não focar-se na divisão fria e calculista de terra, por exemplo. Vê-se o uso do “Além do significado [...]”, no segundo parágrafo, colocando em não remarcação a primeira definição que se encontraria no segundo texto da coletânea (o do dicionário). A inclusão – uso da expressão “além de” – apenas faz um realce considerando o significado primeiro do termo, no entanto visa, posteriormente, ao conceito ampliado: “... é utilizado também em sentido figurado, especialmente, quando se refere a diferentes campos do conhecimento”. Portanto, a definição até então primeira do item “fronteira” torna-se complexa, já que carrega em si diferentes significados a depender dos campos do conhecimento. O candidato, assim, depara-se com alta gama de possibilidade de pensamento para escrever sua redação, porque não poderá se apoiar no significado de “divisão espacial”. A nova identificação impõe que o candidato saia do lugar comum, vindicando, portanto, associações com outros conhecimentos além daqueles mais denotativos associados ao item lexical em destaque na proposta. O texto trabalha com o lugar retórico do novo sobre o antigo. Impõe-se, então, um dever de se pensar em outras situações e outros conceitos por meio do ponto de partida lexical. Por isso, quebra-se uma retórica da manutenção, porque não dá ao candidato um tema transparente, mas solicita-se uma construção de pensamento e articulação de saberes mais complexa e opaca. Embora o texto direcione para um ponto específico – “ressignificação” –, ainda assim deixa que o candidato seja autônomo ao pensar em qual área irá articular o item lexical “fronteira”: “Assim, existem fronteiras psicológicas, fronteiras de pensamento, da ciência, da linguagem etc.”. Segundo Reboul (2000, p. 172), apresenta-se uma definição mais oratória, “definição imperfeita, pois o que define e o que é definido não são realmente permutáveis”, ou seja, apropria-se de um termo vicário para outras ciências e outras áreas do saber, porém, ainda assim, fazendo uma conservação do significado primeiro. Por meio disso, o texto exprime-se pelo raciocínio dialético: a possibilidade de flexibilidade ao ser lidar com um tema, tendo-se mais de uma conclusão plausível, por exemplo. Dilui- se, nesse caso, o apodítico, grau de autoridade e verdade inquestionável. 108 Em vista disso, a construção do éthos, mesmo como se apresentado ao candidato como autoridade máxima, visto que representa a opinião e o juízo de valor sobre o tema, mostra-se de uma autoridade que reveja valores, colocando para debate outras informações para que haja cruzamento interdisciplinar. Dá-se, logo, corporalidade a esse éthos institucional por meio de características positivas: caráter questionador, progressista, indagador, interdisciplinar. Ao mesmo tempo, enuncia-se para um auditório (os candidatos) que pretensamente venha a ter as mesmas qualidades postas pelo orador (a Fuvest). Numa perspectiva interacional, o orador projeta no auditório uma imagem que precisa ser fiada e validada: pensador e questionador dos valores tradicionais arraigados na sociedade. O éthos prévio da instituição Fuvest reafirma-se como prova “difícil”27 e “bem-elaborada”, visão essa que se tem na sociedade corroborada por professores de diversas disciplinas do ensino médio e por vestibulandos, dado pela posição de prestígio que a Universidade de São Paulo detém no país. Sendo assim, o imaginário social dá validação para esse éthos da Fuvest. Ao mesmo tempo, enuncia-se de um topos que talvez seja além do domínio intelectual e do conhecimento de mundo dos candidatos, pois reivindica uma quebra de opinião partilhada e de ideia preconcebida sobre “fronteira” numa prova de redação. A formação ideológica do texto está atrelada a uma visão e a um posicionamento mais intelectual, ou seja, um lugar privilegiado de acesso ao saber. Ainda que se deem diretrizes e orientações, o acesso ao conhecimento interdisciplinar que a prova exige parte de uma bagagem de conhecimento médio e alto. Sendo assim, coage-se o candidato a fiar uma formação discursiva: o que dizer sobre o tema. Dentro dessa perspectiva discursiva, vindica-se uma formação discursiva reflexiva sobre “fronteira”, aproximando- se, assim, o candidato do ponto de vista questionador. Assujeita-se, então, o candidato para a adesão ao discurso. Adesão que “trata-se de uma preparação para o raciocínio que, mais do que uma introdução dos elementos, já constitui um primeiro passo para sua utilização persuasiva” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2014, p. 73). 27 https://g1.globo.com/educacao/noticia/professores-explicam-a-diferenca-entre-o-enem-e-a- fuvest.ghtml. Acesso em 16 mai. 2020. 109 O texto assume-se, assim, como juízo de valor validado pelo orador da prova, dado que expressa uma atitude progressista em relação ao tema. A inclusão da parte no todo colabora para o sentido construído por meio dos textos, ou seja, somam-se, assim, os sentidos dos outros textos para o resultado que se pretende: ressignificação e ampliação do item lexical “fronteira”. A quantidade de textos enfatiza o argumento e viés da prova no sentido de manter a simetria do pensamento que se deseja despertar nos candidatos. Para mais, a não antecipação do tema da redação, isto é, a não definição exata do que se pretende desde o começo, dá margem para que o candidato vá construindo sentidos ao ler os textos motivadores. O efeito de antecipação diluiria a reflexão proposta pela Fuvest, já que apresenta valores de adesão à temática. Portanto, a redefinição de um item lexical consagrado, por exemplo, propõe refutação de visões e posições tradicionais (AMOSSY, 2018). Para mais, o deslocamento semântico para um amplo campo do saber traz para o debate situações até então não colocadas em perspectiva. Sendo assim, a expansão de um domínio semântico cria, mesmo assim, uma isotopia: “mobilidade”. Tira-se, então, uma imagem de intransponível do item “fronteira”, significado esse negativado pelo seu uso comum. A Fuvest projeta um éthos da integração e da não restrição de espaço, “do pensamento, da ciência, da linguagem”. Dessa forma, embora haja “fronteiras”, “movimentos sociais e políticos de um ou mais grupos de pessoas”, é possível transgredi-las. Figura 20 - Fuvest, instruções, 2009 Os últimos dois textos da coletânea apresentam-se com tom imperativo, ordenando, assim, o que deve ser feito pelos candidatos. No entanto, diferentemente do Enem, a Fuvest não apresenta anáfora encapsuladora, isto é, uma frase-tema que delimita o que se deve escrever explicitamente. Além disso, a sugestão torna a proposta mais elaborada ainda “com base nas ideias sugeridas acima”. Não se impõe de maneira 110 evidente, ordena-se, assim, pelas razões implícitas para que o candidato se ponha como sujeito ativo de sua leitura e escrita. Há adesão ao tema, porém o candidato reconfigura-o com base na indicação e sugestão do texto imperativo de direcionamento temático, cooperando com a construção do sentido que pretende o vestibular da Fuvest. Cooperação essa que também persuade o candidato a aderir ao éthos fiado na prova, mas, ao mesmo tempo, dando margem para que se mostre de maneira original nos argumentos pelo seu próprio éthos discursivo na escrita da prova. A potencialidade argumentativa é mais eficiente porque capta o candidato de uma maneira persuasiva indireta. Conforme Amossy (2018, p. 178), parafraseando Ducrot, “alguns valores e posições têm muito mais impacto quando são apresentados sob o modo de uma evidência e introduzidas no discurso de maneira a não construir o objeto declarado a dizer”. Conquanto pudesse haver uma direção posta nos outros textos, em “escolha uma ou até duas [visões apontadas no texto antecedente] delas” dá se abertura para a seleção dos tópicos apresentados nos textos antecedentes para que se escrevam na redação “informações e argumentos que deem consistência a seu ponto de vista”. Ou seja, a marcação do pronome possessivo “seu” centraliza o protagonismo do candidato com as escolhas argumentativas e o coloca também em protagonismo. O lugar retórico da individualidade é marcado quando há possibilidade de escolha, ainda mais num tema que se mostra polifônico, dado que não se restringe a dados tão objetivos e tangíveis, ou seja, são apresentados aos candidatos conceitos abstratos para que se desperte o pensamento crítico e indagador. Por isso, a Fuvest ressalta o valor da autenticidade na prova de redação, promovendo possíveis relações interdiscursivas em relação ao tema “fronteira”. Na medida em que a proposta de redação da Fuvest apresenta uma plasticidade da noção de fronteira, plasticidade essa que flexibiliza a abordagem argumentativa de um tópico, não o delimitando a um único espectro de análise, torna-se menos rígida a centralização temática para um único cenário. 3.2.2 A proposta de 2018 e os textos motivadores Analisa-se, agora, a proposta de redação da Fuvest de 2018. No primeiro momento, vê-se que a proposta de redação mantém o mesmo padrão dedutivo de 111 apresentação: textos que vão se articulando sobre mesma temática para servir de motivação para o candidato articular, na redação, argumentos e informações relevantes. O único direcionamento apresentado no começo da proposta é a frase imperativa: “leia os textos para fazer sua redação”, diferentemente da proposta de 2009. Por meio do uso do imperativo – “leia” –, a prova conduz o candidato a uma leitura compulsória, isto é, o aspecto de obrigatoriedade é reforçado pelo tom imperativo do verbo. Mesmo que seja um texto essencialmente pedagógico, a autoridade é mais atenuada por causa do halo de autoridade do saber. Pode-se subentender a modulação de ordem mais acentuada, quer dizer, uma ordem mais deôntica, uma vez que o candidato precisa seguir a linha temática dada pela Fuvest. Figura 21 - Fuvest, 2018 O primeiro texto da coletânea é extraído em sua não totalidade do site iG (Internet Group). O papel do orador apresenta-se coletivizado pelo portal, isto é, não há uma autoria individualizada. Deduz-se, então, que seja a opinião do veículo sobre o tema: arte e sua polêmica. Para mais, os gêneros digitais apresentam-se por meio de uma forma híbrida, isto é, por meio de uma ampla grade de interface semiótica. Por isso, a noção de autoria torna-se problemática. A problematização da autoria faz com que a Fuvest fie o discurso sobre arte que dispõe ao candidato na coletânea da prova de redação. No entanto, questiona-se se o colocou apenas para construir visões divergentes sobre o mesmo tema: arte. O peso do argumento de autoridade acentua-se por meio do processo de fiar o discurso da Fuvest. O 112 éthos, por exemplo, hibridiza-se por uma polifonia discursiva. Ao longo das leituras, a Fuvest adere aos outros discursos que se somam à temática, construindo-se, assim, uma relação de aliança discursiva, legitimando e validando, argumentativamente, uma visão enviesada sobre o que se discute: “devem existir limites para a arte?”. O primeiro texto da coletânea faz uso de uma definição oratória – que apresenta imperfeições nos conceitos a que se propõe definir (REBOUL, 2000): “as obras de arte assumem a função de representação da cultura de um povo desde os tempos mais remotos da história da civilização”. Dada a imperfeição e a dificuldade da definição, visto que o definido – obras de arte – e o que define “representação da cultura de um povo” podem não ser permutáveis. Pensa-se, então, em uma definição mais ampla e genérica sobre “obras de arte”. Mesmo que se definam os aspectos culturais de um povo, em um tempo e numa civilização, as obras de arte podem apresentar outras dificuldades de definição e identificação, dependendo, então, da visão artístico-teórica adotada. Observa-se, pelo começo do texto, para qual direcionamento argumentativo a Fuvest conduz o candidato: expressão cultural da arte. O texto, por exemplo, mantém um tom conceitual ao prolongar a definição: “é através delas que o ser humano transmite uma ideia ou uma expressão sensível”. Novamente, adota-se uma visão da arte pelo lado mais humano, sensível, valorizando as expressões artísticas. Em “contudo algumas obras de arte fogem do conceito de retratação do belo e do sensível, parecendo terem sido feitas para chocar e causar polêmicas”, o marcador argumentativo “contudo” põe em destaque uma oposição com o conceito enunciado anteriormente. Essa ruptura não foi usada de maneira despretensiosa, marca-se, portanto, um destaque para outras formas de representação que a arte pode assumir, destaque que se apresenta como voz dissonante dos cânones artísticos, por exemplo. Por meio do marcador “contudo”, evidencia-se um argumento possível contra o decisivo. Admite-se a existência de teorias da arte que valorizam e enfatizam o belo em detrimento ao polêmico, no entanto, de forma sutil, salienta-se outro pensamento sobre a forma de arte: a polêmica, a crítica, o chocar. O texto, então, põe-se entre duas visões 𝑛𝑜𝑣𝑜 expressas no par retórico: . Pela apresentação do antigo, intensifica-se o novo por 𝑎𝑛𝑡𝑖𝑔𝑜 causa da posição textual. Apresentou-se o tradicional para revisitá-lo com novas ideias 113 sobre a arte. Sendo assim, o lugar retórico que se destaca é o do existente, “afirma a superioridade do que existe, do que é atual, real, sobre o possível, eventual ou impossível” (FERREIRA, 2010, p. 74). Interpreta-se, no texto, uma disputa entre argumentum ad antiquitatem vs. ad novitatem, porém com o direcionamento para este último, já que o operador argumentativo “contudo” enseja uma “refutação, retificação, ou ainda, justificação de uma recusa” (KOCH, 2011, p. 104). Abre-se, então, precedente “para chocar e causar polêmica” na arte. Amossy (2017, p. 49) diz que “a polêmica é, portanto, um debate em torno de uma questão de atualidade, de interesse público, que comporta os anseios das sociedades [...]”. Associa-se a definição de Amossy com a condução argumentativa que a Fuvest preconiza ao escolher o texto: possibilidade de debate sobre temas controversos na sociedade. O texto essencialmente apresenta o espírito argumentativo de gerar dissenso para que se debata sobre ele a fim de gerar reflexão. Todavia, há possibilidade de um não consenso sobre a arte e polêmica. Sendo assim, cogita-se, pois, uma lacuna de oportunidade – ou seja, a não informação divulgada e debatida sobre os outros meandros da arte – para a afirmação do “antigo”, “tradicional” da arte apenas representando o belo e o sensível, embora esteja pressuposto para qual coordenada o candidato deve dirigir-se ao argumentar, ou seja, o lugar preferível. Para comprovar o argumento posto, mostra-se um exemplo: “a principal obra do escultor inglês Marc Quinn é uma réplica de sua cabeça feita com cerca de 4,5 litros de seu próprio sangue – extraído ao longo de cinco meses”. Escolhe-se o exemplo para justificar o que se disse anteriormente, apresentando um elemento de presença ilustrativa para comprovar e reafirmar o dito. Por isso, o exemplo torna evidente o que é “chocar e causar polêmica”. O concreto – obra de Marc Quinn – transforma o abstrato – polêmica artística – tangível para o auditório (o candidato que lê o texto no momento da prova), exercendo uma força psicológica para a compreensão. A ilustração, segundo Fiorin (2015, p. 188), “serve para reforçar uma tese tida como aceita”. Por conseguinte, o éthos que se constrói discursivamente corrobora a visão mais crítica e questionadora sobre a arte. Ademais, o páthos do auditório é impactado com o exemplo usado para comprovar a polemicidade da arte de Quinn. Portanto, a retórica da manutenção é quebrada por uma 114 retórica da subversão e transgressão dos conceitos da arte. Impera-se, então, o novo sobre o antigo. Analisando o contexto discursivo do texto, pode-se pensar que o texto mire os jovens, uma vez que estão mais afeitos à rebeldia, tendo em vista o momento de transição da juventude para a vida adulta. E, além disso, os jovens da faixa etária 16-18 anos estão mais pertos da arte transgressiva, por exemplo, RAP, grafite etc. Ou seja, o olhar tradicional da arte está de certa forma aquém aos jovens. Porém, ao trazer o texto para debate, enfatiza-se o caráter de transgressão e questionamento dos conceitos da arte. Para mais, o texto está próximo da formação discursiva e ideológica dos jovens. Assim, os candidatos podem trazer para debate as artes que conhecem (são autorizados a falar sobre isso) e diversos contextos de arte (inserção política e cultural na sociedade). Retoricamente, ratifica-se o acordo com o mundo do candidato (se este for jovem ou se este compartilhar ideais geralmente associados a essa faixa etária), mesmo que haja lacunas na construção do seu conhecimento de mundo na formalização artística, o texto valida e autoriza o uso dos outros meios de arte. Sendo assim, o orador – Fuvest – já parte de uma visão harmônica com o auditório – candidatos. Ademais, o valor do objeto da arte é exposto de forma concreta para que o candidato entenda o que se debate, isto é, o valor positivo e acordado da prova é: arte deve ser crítica. Por isso, a hierarquia superior também pende mais para o lado da arte polêmica, crítica e transgressiva, para um uso social da arte. Figura 22 - Fuvest, Isto é, 2018 O segundo texto da coletânea foi publicado na revista IstoÉ. Neste texto, há indicação da autoria: Paula Alzugaray e Nina Gazire. Aquela é curadora, jornalista e crítica de arte, doutora pela PUC-SP em Comunicação e Semiótica. Esta, jornalista e 115 curadora do Festival de Animação Katsudo Shashin. Diferentemente do primeiro texto, o peso da autoria se mostra neste segundo. Mesmo que os candidatos não tenham conhecimento das autoras, o texto adquire um peso argumentativo, visto que há, no papel de orador, duas autoridades em arte expondo pontos relevantes no texto. O texto começa com “graças aos seus três urubus, a obra ‘Bandeira Branca’ é o acontecimento mais movimentado da 29ª Bienal [2010]”. O texto já vindica um conhecimento de arte mais específico. O mesmo modo de uso de exemplo/identificação do primeiro texto, também se usa neste segundo. No entanto, ao se começar com o exemplo da obra “Bandeira Branca”, obra de Nuno Ramos, exige-se um grau de conhecimento de mundo talvez desconhecido pelo candidato, todavia, usa-se, como no primeiro caso, apenas como motivação para o que se deseja afirmar: transgressão na arte. Poder-se-ia questionar a ausência de imagem quando se fala de obras de arte, nos primeiro e segundo textos, no entanto, compreende-se o eixo temático e o ponto centrípeto: a revisitação do conceito do que é propriamente arte. O uso de uma imagem poderia desvirtuar o objetivo da proposta de redação. Sendo assim, prefere-se apenas o uso do verbal para que não haja fugas da temática central. Para mais, entende-se que, por exemplo, o uso de imagens levaria o candidato a interpretá-las, dando juízos de valor ou apreciações artísticas. Além disso, a não seleção de imagens pode exigir do candidato o resgate de referências a pinturas e a obras que tenha estudado durante o Ensino Médio. Segue-se com o ponto-chave: “no dia da abertura, manifestantes de ONGs de proteção aos animais se posicionaram diante da instalação segundo cartazes com dizeres que pediam a libertação das aves”. Dessa forma, a subversão é feita pelo público, não, como visto no primeiro texto, pelo artista. A intervenção transgressiva não é feita com um propósito artístico, mas como forma de conscientização para uma temática importante no contexto atual: direito e preservação dos animais. Além do mais, persuade com mais intensidade o páthos do auditório por causa do impacto da mensagem no texto. Manipula- se, assim, por um desvio passional: choca-se o candidato por uma causa nobre, mesmo que seja contra a lei, considerada com vandalismo. No exemplo, entende-se que o efeito patético do trecho é uma emoção formulada em torno de uma justificativa relacionada a 116 um tema. Por meio desse recurso, a emoção encontra-se explícita por causa dos exemplos usados para justificar a ideia principal do texto. O efeito patético também é visto na voz do autor da obra: “‘me entristece o fato de que apenas os animais estejam sendo ressaltados. Espalharam informações erradas sobre como os urubus estão sendo tratados’, lamenta Nuno Ramos”. Pela isotopia, mantém-se um viés de tristeza na fala do autor e depois no verbo dicendi “lamenta”. Pensando nos três aspectos do páthos – docere, delectere e movere –, foca-se, nesse trecho, no movere, ou seja, a voz do orador tem cunho emotivo para convencer o auditório de que não havia maus tratos com os animais na exposição. Porém, durante o relato, sabe-se que a consideração da fala do artista é defender a própria obra; no entanto, o uso de animais no século XXI é combatido, reassegurando, assim, os direitos de preservação e bem-estar. Desperta-se a piedade do auditório para com o artista da obra, vê-se, por exemplo, no uso do pronome oblíquo átono “me” com verbo “entristecer”. Colocando-se como experimentador negativo da ação – vandalismo da obra – a artista desperta uma ação cujo fenômeno é a emoção para o auditório. Pensando-se, ainda, na sintaxe da frase, o artista se coloca em perspectiva ao usar a voz ativa, na qual o foco recai sobre o sujeito. Conquanto se optasse pelo uso da voz passiva analítica ou sintética, tirar-se-ia o foco do artista e dar-se-ia relevo e foco para os animais usados na obra. Todavia, mais adiante no texto, segue-se uma descrição de como os urubus estão sendo usados na obra e como esta funciona. Entretanto, foca-se no exemplo a seguir: “as aves tinham a permanência na Bienal autorizada pelo próprio Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, fundado em 1989), que, depois, voltou atrás, alegando que as instalações estavam inapropriadas para a manutenção dos animais”. No trecho, vê-se uma autoridade dúbia, com o aval para a permanência dos animais na Bienal, revogado posteriormente. Nesse caso, a imagem de autoridade projetada para o auditório é de uma autoridade respeitada e especialista no assunto, porém questionável, uma vez que apresentou uma atitude não tão assertiva, ou seja, não avaliou a situação de maneira tão criteriosa. A autoridade administrativa pode ser vista como incerta e discutível. Mesmo que se tenha experiência – o Ibama –, neste momento, apresenta-se quase com uma inexperiência. 117 Além disso, cruza-se, pois, o argumento de autoridade artística com o argumento de autoridade ambiental. Porém, conforme Walton (2012), o argumento de autoridade pode se apresentar como um especialista fora da sua área de estudo: “o apelo a uma autoridade a respeito de uma questão alheia à sua especialidade pode ser considerado um argumento falho”. Sendo assim, mesmo que o artista se defenda sobre o bom tratamento aos animais usados na exposição, o peso da autoridade do Ibama é maior, dada a área de atuação. Portanto, Nuno Ramos é, neste assunto, destituído do halo de autoridade. Ao mesmo tempo, as apresentações dos fatos não são tão específicas assim no texto para o Ibama ter revisto a autorização, ou seja, apenas se fala “que as instalações estavam inapropriadas para a manutenção dos animais”. Segundo Walton (2012), deve-se interpretar corretamente o que é dito pela voz do especialista: “se o parecer do especialista não foi citado, será que foram omitidas informações ou reservas importantes?” (p. 266). Traz-se, então, para o candidato uma “guerra dos ‘especialistas’”: Nuno Ramos e Ibama. Na parte final do texto, tem-se: “denúncias e proibições à parte, a obra de Nuno Ramos ganha sentido e fundamentação apenas na presença dos animais. Sem eles, a obra perde seu estatuto artístico e vira mero cenário, já que os animais são seus principais atores”. Entende-se, em “denúncias e proibições à parte”, principalmente pela expressão adverbial “à parte”, o empreendimento retórico para o qual se direciona o texto: a obra de arte é passível de uso de animais mesmo com a desautorização de instituições especializadas. Novamente, mesmo que não se fale, a compreensão torna-se implícita não só por esse texto, mas também pelos outros da coletânea, pois direcionam o candidato para o lado polêmico e subversivo da arte. O não-dito deve fazer parte da capacidade interpretativa do candidato. Segundo Amossy (2018, p. 179), “o implícito reforça a argumentação ao apresentar, sob uma forma indireta e velada, as crenças e opiniões que constituem suas premissas incontestadas”. Para mais, pode-se, por exemplo, negar o que pretende o dito para não se assumirem responsabilidades. Sendo assim, o auditório, se atento, infere que o sentido da proposta de redação é realmente questionar o estatuto da arte. 118 Por fim, o peso da arte é o que prevalece no texto. Ainda mais por causa das autoras, no papel de orador, que são do âmbito artístico. Sendo assim, somam-se três vozes em aliança para a defesa da arte: Paula Alzugaray, Nina Gazire e Nuno Ramos. O peso da autoridade cognitiva e acadêmica, principalmente das autoras, é visto no uso do argumento ad verecundiam, o qual recai na ordem do saber (artistas) e não no domínio do poder (Ibama) (FIORIN, 2015). Divide-se o texto em lugar da arte e em lugar do ambiental, mas se ratifica aquele em detrimento deste. Figura 23 - Fuvest, Folha de São Paulo, 2018 O terceiro texto da coletânea foi veiculado na Folha de São Paulo. Como o primeiro texto da coletânea, este não apresenta autoria também. Divulgou-se o texto no caderno Ilustrada, na sessão de artes plásticas. Em “A exposição ‘Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira’, realizada desde 15 de agosto no Santander Cultural, em Porto Alegre, foi cancelada após protestos em redes sociais”, usa-se a voz passiva analítica para ocultar-se o sujeito, no caso, o agente da passiva. Por isso, deixa-se indefinido o agente do cancelamento, isto é, tirando-se a responsabilidade de um único indivíduo, generaliza-se o orador. No entanto, sabe-se que o agente da ação foi um público que usou de “protestos em redes sociais” para o cancelamento do evento. O argumento populacional fez com que a exposição cedesse ao protesto em “mas o espaço cultural cedeu às pressões de internautas”. Para mais, subentende-se, novamente, o efeito do não-dito do texto visto que se chega à compreensão do sujeito da ação pelo conhecimento de mundo. Há, no Brasil, muito preconceito ainda com a comunidade gay, sendo assim, o grupo de internautas que pediu o cancelamento da exposição pode pertencer a um estrato da camada social brasileira com valores mais conservadores. Por isso, o texto marca uma ruptura de pensamento: tradicional vs. progressista. 119 Porém, mesmo que se marque um antagonismo, a posição do museu Santander Cultural foi a favor da comoção coletiva. Entende-se o uso do argumento ad baculum, ou seja, a força da voz do coletivo fez-se ouvida para o cancelamento da exposição sobre diversidade sexual. Consoante Abreu (2009, p. 66), “fundamenta-se no princípio de que é a força que faz o direito”. Mesmo que se escute a voz das pessoas em relação ao assunto, além disso mesmo que se haja democraticamente, sabe-se que a polemicidade do tema é grande. Citelli diz que “cria um novo centramento na relação entre os interlocutores, aumentando o grau de persuasão [...] há uma luta onde uma voz tenderá a derrotar a outra” (1995, p. 38). Consequentemente, cala-se a oposição progressista duas vezes: silenciamento numa sociedade tradicional, na qual se tolhe o direito de expressão sexual, e num âmbito artístico, palco para possíveis discussões e ressignificações do olhar tradicional sobre a comunidade LGBT. Presencia-se um direcionamento mais monologal da sociedade frente ao tema. Conforme Amossy (2018, p. 57), existe uma retórica da polarização que “consiste em estabelecer campos inimigos e é, portanto, um fenômeno social, e não uma divisão abstrata em teses antagônicas e inconciliáveis”. Por isso, é um embate de éthe, um em favor ao tradicional; outro em favor do progresso e do debate sobre as questões de gênero. Além disso, em “a seleção contava com 270 obras que tratavam de questões de gênero e diferença. Os trabalhos, em diferentes formatos, abordam a temática sexual de formas distintas, por vezes abstratas, noutras mais explícitas”, pode-se observar o lugar retórico pautado na quantidade. O uso dos números em “270 obras” traz um apelo emocional pelo uso do argumento ad populum visto que tenta angariar os sentimentos de um coletivo para ter aceitação. Logo, usam-se os números também para somar força argumentativa para que a exposição seja aceita. Além disso, usa-se identicamente o argumento de autoridade em “são assinados por 85 artistas, como Adriana Varejão, Cândido Portinari, Ligia Clark, Yuri Firmesa e Leonilson” para que o peso da importância da exposição tenha mais impacto no auditório. A enumeração dos nomes acima também traz um direcionamento argumentativo para persuadir grupos de especialidade, ou seja, pessoas relacionadas à 120 arte. O lugar retórico da quantidade – 270 obras e 85 artistas – mostra a superioridade da exposição; ao mesmo tempo, o uso dos nomes de artistas traz um peso para o lugar da essência, a superioridade das pessoas selecionadas para compor a exposição. Cria-se, assim, uma importância grande e necessária para a exposição. Grande por causa dos dados usados para convencer da magnitude do evento, muitas obras produzidas e muitos artistas envolvidos, e necessária para rever o conceito de gênero e sexualidade, tema esse ainda considerado tabu para grande parte da sociedade brasileira. Por isso, gera-se ambivalência no texto: se direcionado para pessoas relacionadas ao mundo da arte, um auditório particular, tem-se um impacto; um resultado diferente para pessoas não engajadas nas artes, auditório universal, sobre o qual não se tem controle (ABREU, 2009). No entanto, na prova de redação da Fuvest-2018, mesmo que o auditório seja heterogêneo, direciona-se, desde o primeiro texto da coletânea, o candidato para um engajamento mais reflexivo e crítico, porém este pode não adotar tal perspectiva, todavia espera-se que o candidato seja fiador da ideia desenvolvida dos textos tendo em vista a condução temática e conexão entre os textos de apoio que direcionam para um eixo argumentativo. Figura 24 - Fuvest, Santander, 2018 O quarto texto da coletânea, divulgado pelo Santander Cultural na sua página do Facebook não traz uma autoria definida. Porém, pode-se pensar que seja o éthos institucional do grupo bancário, ou seja, a opinião sobre arte incorporada à imagem do Santander construída por meio do discurso proferido na rede social. Entende-se isso em: “nos últimos dias, recebemos diversas manifestações críticas sobre a exposição”. No trecho destacado, usa-se a primeira pessoa do plural para significar a empresa, ou seja, 121 um sujeito coletivo que recebe crítica e que se posiciona em relação a elas. Coloca-se, assim, uma cumplicidade com o outro, dando importância para as dissonâncias sobre o tema. A instalação do diálogo do Santander pela mídia social – Facebook – põe em pauta o debate, o fazer retórico. Em “ouvimos as manifestações e entendemos que algumas das obras da exposição ‘Queermuseu’ desrespeitaram símbolos, crenças e pessoas, o que não está em linha com a nossa visão de mundo”, continua-se com a inclusão coletiva por meio do “nós”, uso que pressupõe também um “você”, justificando a ideia de pluralidade, não trazendo um “efeito de indireção”, uso com efeito objetivo de distanciamento da terceira pessoa (AMOSSY, 2018). Por isso não se exclui o efeito de diálogo criado no texto. Entretanto, ainda que se pretenda um diálogo direcionado para um auditório universal, o foco do texto afunila-se para um auditório particular: vozes das críticas negativas ao museu. Sendo assim, homogeneiza-se com o intuito de não diferenciar e não expor o auditório particular. Existem modalizações bem marcadas nos enunciados do Santander. Em “algumas das obras da exposição”, o uso do partitivo enseja que nem todas as obras, por exemplo, receberam críticas negativas. Sendo assim, há uma parte positiva dentro das manifestações negativas: a parte não compromete o todo. O Santander não transfere a negatividade das obras criticadas para o todo; mesmo que, por exemplo, as pessoas tentem, por meio da internet, criticar o todo, associando a parte ao todo. Enquanto o Santander opera pela divisão. As “diversas manifestações críticas” operam pela inclusão: o fechamento completo da exposição já que se assimila o teor sexual e subversivo a todo o museu. O valor abstrato também é considerado no texto: “desrespeitavam símbolos, crenças e pessoas, o que não está em linha com a nossa visão de mundo”. No trecho, há um cuidado com as verdades religiosas, filosóficas e científicas, ou seja, “sistemas complexos [...] que transcendem a experiência” (PERELMAN E OLBRECHTS- TYTECA, 2014, p. 77). Sendo assim, mesmo que a comunicação parta de um sistema dialógico, o Santander deseja manter acordo com o auditório particular. Embora o discurso da arte 122 atravesse outros discursos mais tradicionais e convencionais na sociedade, por ser crítica e “rebelde”, o texto do Santander pretende criar um efeito de neutralidade e objetividade ao não tomar partido no estatuto da arte: “o que não está em linha com a nossa visão de mundo”. Opera-se, então, por um esquema argumentativo que permite transferência de responsabilidade (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2014) para que não haja julgamento para a empresa propriamente. O Santander, para manter todos os tipos de cliente, tenta anular-se ideologicamente para não se prejudicar financeiramente. Ao fazer isso, não percebe que toma partido para o lado mais tradicional e conservador da sociedade, validando e legitimando as críticas feitas, mas desconsiderando um grupo ainda oprimido e marginalizado: comunidade LGBT. Acentua-se mais ainda a necessidade de um acordo “global” em “quando a arte não é capaz de gerar inclusão e reflexão positiva, perdeu seu propósito maior, que é elevar a condição humana”. De maneira não explícita, o Santander discrimina a comunidade gay já que não entendeu as críticas negativas e as manifestações on-line como uma forma de fomentar o debate sobre a polêmica ainda presente na sociedade: homossexualidade e outras formas e orientações de gênero sexual. A empresa, então, restringe-se a um acordo com o extrato mais tradicional e conservador da sociedade, excluindo, assim, a comunidade mais progressista. No entanto, não se rompe totalmente o acordo com o público LGBT: “garantimos, no entanto, que seguimos comprometidos com a promoção do debate sobre diversidade e outros grandes temas contemporâneos”. Mesmo com a tentativa de conciliar ambos os públicos, marcados pela divisão da polarização temática, a negociação pende negativamente para o público do Queermuseu, pois não se adere efetivamente ao “debate sobre diversidade”, anula-se a possibilidade do debate ao se encerrar a exposição. O pluralismo do Santander não é mantido pelo peso pragmático de sua ação, tenta-se, apenas, manipular o auditório do texto por meio de uma pretensa neutralidade linguística. Sendo assim, a isenção da empresa não proporciona o debate polêmico, ou seja, anula-se o dissenso do debate, o qual é uma regra e não uma exceção (AMOSSY, 2018). O texto tenta atuar por meio da “ingenuidade dialógica contemporânea”, expressão usada por Taguieff em Amossy (2018). Isto é, ignora-se que a base da 123 discussão seja o conflito. Dessa forma, o Santander apenas se expressa pela retórica da manutenção do conservadorismo na contemporaneidade, privando-se, então, de agir por meio de uma retórica da controvérsia. O texto, pois, privilegia o lugar da ordem, afirmando a superioridade do tradicional sobre o atual; o lugar da essência, privilegiando a camada da sociedade conservadora em detrimento dos grupos marginalizados e excluídos. Para mais, o empenho em mostrar um éthos híbrido pelo Santander não privilegia os grupos polarizados, apenas se mascara de mediador entre o tradicional e o progressista. Figura 25 - Fuvest, Solange Farkas, 2018 No último texto motivador, vê-se uma definição do exercício da arte: “a arte é um exercício contínuo de transgressão, principalmente a partir das vanguardas do começo do século 20. Isso dá a ela uma importância social muito grande, ao transgredir, ela aponta para novos caminhos e para soluções que ainda não tínhamos imaginado para problemas que muitas vezes sequer conhecíamos”. Nessa definição, o uso da metáfora do percurso, isto é, a jornada pela qual a arte passa e avança – “novos caminhos” – traz novos olhares para o momento histórico em que se vive, questionando e criticando comportamentos. Dessa forma, a definição oratória caracteriza positivamente a realização da arte, visto que a conceitua como um instrumento de “importância social” e que procura “soluções que ainda não tínhamos imaginado”. O texto é escrito por Solange O. Farkas – curadora e gestora cultural. Por isso, o peso do argumento de autoridade se faz presente novamente. O éthos discursivo de Farkas ganha relevo por causa da atuação profissional nas artes. No entanto, mesmo que os candidatos não saibam ou não conheçam a autora do texto, a seleção do texto para compor a prova de redação não é neutra ou não intencional. Sendo assim, a Fuvest endossa o discurso da autora, assim como também o fez com o primeiro texto ao dar uma 124 definição mais transgressiva da arte. Comparativamente, apresentaram-se conceitos sociais para a arte e, ao mesmo tempo, selecionaram-se fatos e notícias que não souberam aceitar o caráter disruptivo da arte. A prova de redação da Fuvest prestigia e fia o discurso de subversão do status quo proporcionado pela arte. Entende-se que em “novos caminhos e para soluções que ainda não tínhamos imaginado para problemas que muitas vezes sequer conhecíamos” o valor da arte é necessário para a saída da inércia, mesmo que seja uma saída conflituosa. Perelman e Olbrechts-Tyteca (2014, p. 120), dizem que “a inércia permite contar com o normal, o habitual, o real, o atual e valorizá-lo”. Por isso devem-se expor, por exemplo, as desigualdades e outros problemas sociais e políticos por meio da arte. Ao se escolher o texto, persuade-se o candidato por causa do valor atribuído à arte pelos textos da prova. Além disso, torna-se mais fácil e eficaz a persuasão por ser a prova destinada a um auditório, em tese, majoritariamente leigo, ou seja, sem conhecimentos teóricos profundos sobre o tema. O peso da voz da autora, no papel de orador, é sentido em “me fez ver que os artistas estão muito antenados com as diversas crises que estamos vivendo e oferecem uma visão inovadora para o nosso cotidiano e acho que isso é um bom exemplo” mesmo quando se imbrica com outras vozes em “estamos vivendo”, ou seja, amplia-se de um sujeito marcadamente subjetivo para um ampliado para afirmar que momentos de crise são vividos por ela e por todos. A metáfora da inovação e o lugar retórico do novo em “visão inovadora para nosso cotidiano” deixa implícito que outras visões não tinham surtido efeito para a mudança do cotidiano. Ainda assim, sente-se o valor subjetivo que se atribui à arte: “acho que isso é um bom exemplo”. Mesmo na tentativa de neutralizar o impacto da primeira pessoa por meio da ocultação do sujeito, Farkas assume o argumento de autoridade cognitivo para tecer o comentário feito com base em formação acadêmica, profissional e intelectual. No texto, há a valorização do artista. Isso mostra que existe uma comunhão partilhada, ou melhor, uma homogeneidade com um auditório especializado, os artistas, levando, então, a angariar a adesão do candidato também ao discurso. O texto persuade 125 para que o candidato compartilhe da mesma formação discursiva dos artistas – defesa à arte – e da mesma formação ideológica – críticas ao sistema político-social vigente. O tom epidíctico do texto traz uma comunhão acerca do assunto, criando uma “comunidade dos espíritos” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2014), que permite o questionamento de valores tradicionais, proporcionando a possibilidade de um debate democrático; no entanto, conforme Perelman e Olbrechts-Tyteca (2014, p. 65), a “interdição de prosseguir certas discussões pode ser uma manifestação de intolerância”, fato visto no quarto texto motivador da Fuvest. Figura 26 - Fuvest, instruções, 2018 O texto de instrução da Fuvest-2018, diferentemente do de 2009, apresenta um direcionamento mais delimitativo por meio de uma frase encapsuladora do tema “devem existir limites para a arte?”, mesmo que outras possibilidades de argumentação – “outras informações que julgar pertinentes” – sejam possíveis. Por meio dos textos motivadores, observa-se que existe uma resposta pronta para o questionamento: não existem limites. Os textos motivadores deram apenas os conceitos de crítica e de subversão do cotidiano das artes, embora tenham apresentado recortes pouco negativos em alguns momentos, as características e os comentários dos oradores dos textos dão uma visada positiva para o uso da arte para questionar a sociedade. Por isso, segundo Reboul, “o ensino não pode prescindir da pedagogia; e toda pedagogia é retórica” (2000, p. 104). Sendo assim, os textos selecionados são caminhos possíveis para os candidatos atuarem como fiadores durante o processo de escrita, dado que “o ensino é, pois, uma relação assimétrica que trabalha por sua abolição, para que o aluno se torne, se possível, igual ao mestre” (2000. p. 105). Portanto, a proposta de 126 redação da Fuvest-2018 manipula o candidato lhe dando os valores que ele deve aderir sobre arte. Ainda pensando na manipulação, conforme aponta Citelli (1995, p. 53) “esse tipo de obra [livro didático] costuma estar marcada por duas variáveis fundamentais: a estereotipada e a idealização”. Pode-se, pois, ampliar esse sentido para as propostas de redação, uma vez que a prova da Fuvest constrói de maneira negativa uma imagem do tradicionalismo, mesmo que sutilmente, e idealiza uma sociedade crítica e reflexiva sobre as questões sociais e políticas por meio da arte. 3.3 Mackenzie, propostas de redação, textos motivadores Passa-se, agora, à análise das propostas de redação da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Os textos motivadores da prova de redação fazem parte da prova de conhecimentos gerais, tendo como finalidade admissão do candidato a uma universidade particular, diferentemente das propostas de redação anteriormente analisadas (Enem e Fuvest). 3.3.1 A proposta de 2009 e os textos motivadores Figura 27 - Mackenzie, 2009 O enunciado injuntivo da proposta de redação do Mackenzie é sintético, distanciando-se dos enunciados injuntivos e diretivos do Enem e da Fuvest. A concisão do texto exige, assim, maior grau de atenção do candidato, dado que precisa depreender objetivamente o que se pede: “um tema comum aos textos”. Trabalha-se, nesse primeiro texto, com o raciocínio de analogia, visto que se faz fixar a atenção do vestibulando à leitura de todos os textos. Além disso, a atenção à leitura deve ser, por hipótese, maior por causa da ausência de uma frase encapsuladora e anafórica sobre a temática desenvolvida ao logo de todos os textos da coletânea. Para mais, o processo de leitura analógica – “raciocínio em que de uma proposição particular 127 se conclui uma proposição particular somente pela semelhança dos casos referidos” (FIORIN, 2015, p. 64) – exige alto grau de acuidade do candidato, porque, ao término das leituras, terá de enunciar e delimitar suas conclusões acerca do que entendeu. Não há uma direção dada a ser seguida na medida em que o processo de analogia é sempre por meio de uma conclusão provável (FIORIN, 2015). Durante a leitura, a atenção do candidato precisa estar direcionada para os elementos particularmente relevantes, evitando-se, assim, superficialidades de informações secundárias. Dessa maneira, busca-se que o candidato tenha bem desenvolvidas as técnicas de resumo de informação por causa da interconexão dos textos a fim de se ater às ideias principais, não se deixando, por exemplo, influenciar sobre outros tópicos que poderiam ser abertos para a argumentação. Há uma prova de redação, em grau diferente das outras propostas analisadas, que também se torna uma prova de leitura e de interpretação de texto. Primeiro trabalha-se com a habilidade de apreensão de sentidos. Por isso, não se separa leitura e escrita do mesmo modo como visto nos outros exames, por conta da indicação explícita do tema. Antes, devem-se mobilizar conhecimentos da bagagem cultural – repertório sociocultural – para, depois, operar com os elementos linguísticos para elaboração do texto escrito. Entende-se que se optou, inicialmente, pela leitura, pois, conforme Capistrano Junior (2011, p. 227), “longe de ser uma mera atividade mecânica de decodificação de signos gráficos, constitui-se num processo de construção e de negociação de sentidos”. Sendo assim, os sentidos não são dados aos candidatos prontamente na definição de um tema, já que eles o devem depreender. Tendo isso em vista, o ato de leitura pode ajudar a articular o eixo argumentativo do texto do candidato, pois pode contribuir com visões sobre a temática. Vê-se o processo bem marcado do dialogismo: 1. discursos dos textos da coletânea ora em aliança, ora em conflito; 2. discursos que permeiam, de alguma forma, a formação discursiva e ideológica dos (ou de alguns dos) candidatos, isto é, as vozes que constituem a bagagem sociocultural deles. Dessa forma, a prova de redação tem um movimento de descentrar a pretensa passividade do candidato, colocando-o no centro do produzir os sentidos: da leitura e da escrita. 128 A prova de redação do Mackenzie prioriza a interação entre auditório (os candidatos) e oradores (autores dos textos da coletânea), que, assim, concebem juntos os sentidos. Foca-se, então, na capacidade interativa que o candidato deve ter com seu texto e com os textos motivadores (a partir de sentidos direcionados pelo orador) para construir um sentido para o que foi lido. Entende-se, pois, que a prova do Mackenzie aceite outras possibilidades de sentido caso estejam justificadas e caso possam realmente ser depreendidas pelas marcas da superfície textual e suas sinalizações. Desse modo, o candidato deve acionar três estratégias: conhecimento linguístico, conhecimento de mundo e conhecimento interacional (KOCH; ELIAS, 2010). Somando-se a isso, a intencionalidade (o que os textos pretendem ou querem dizer) e a focalização (informações centrais) são elementos da coerência que devem ser considerados no processo de leitura dos candidatos para uma interpretação mais precisa sobre a temática. Por isso, reitera-se o grau de dificuldade, comparativamente, entre os três modelos de prova de redação: na proposta do Mackenzie, além dos dois mecanismos acima, pede-se um rol de habilidades para a primeira parte da prova: a leitura para depreensão temática. Figura 28 - Mackenzie, Nado Reis e Samuel Rosa, 2009 O primeiro texto da coletânea da prova de 2009 traz fragmento de uma letra de música – “Eu e a Felicidade” – de Nando Reis e Samuel Rosa – ambos músicos, aquele ex-membro da banda Titãs; este, membro da banda Skank. A música começa por uma definição “natural é ter um trabalho”, isto é, o elemento definidor (predicativo do sujeito) aparece em destaque na sentença: “Natural”. 129 Em seguida, aparecem os elementos definidos como “naturais”: ter um trabalho, um salário, um emprego. Sintaticamente, o sujeito é indeterminado, ao se usar o verbo no infinitivo impessoal “ter”, torna-se impossível identificar o agente da ação. Tendo isso em vista, aparecem valores tradicionais, reafirmados e validados pela sociedade. O lugar retórico do existente – ao reforçar valores que já existem no lugar do porvir – e da ordem – ao deixar legitimado o pensamento quase extemporâneo, dada a existência de outras possibilidades de se viver – são evidentes logo no primeiro verso da música. Ao longo do fragmento da música, afirma-se a legitimidade do estereótipo da expressão “vencer na vida”, comparando, indiferentemente, e classificando as pessoas que não se encaixam ou não desejam se encaixar como “fracassadas” ou “malsucedidas”. Parte-se, então, de um acordo prévio enraizado no imaginário social de sucesso: “ter um trabalho, um salário, um emprego/ Nome confiável, respeito na praça”, o qual é assumido como verdade, até mesmo porque não se conhecem outras possibilidades de “sucesso”, tendo em vista apenas o binarismo oposto e antagônico às ideias postas no início do fragmento da música. Sendo assim, a vida é assumida como uma grande definição oratória (REBOUL, 2000), cujo sentido é mal elaborado, considerando-se a não facilidade e possibilidade de estabelecer parâmetro para a “vida” e o “sucesso”. No segundo verso, interroga-se – “Mas, afinal, o que é felicidade?” – para gerar complexidade na resposta, em razão do cunho subjetivo da definição. Porém, o foco da pergunta não é obter uma resposta objetiva e clara; pretende-se gerar um descentramento do sujeito que a irá responder. A retoricidade da pergunta cumpre com o objetivo de deslocar o auditório do lugar da ordem e do existente a fim de trazer um aspecto de não normalidade acerca da temática. Sendo assim, “perguntar é também argumentar e influenciar o curso subsequente da argumentação” (WALTON, 2012, p. 39). A pergunta, porém, tenta reverter a petição de princípio do argumento e da visão do que é ter uma “vida de sucesso”. Pode-se, nesse caso, partir de um método socrático, cuja investigação recairia para o conceito de felicidade, a fim de o candidato se autoquestionar acerca do tema. No entanto, vê-se, no texto, uma resposta à pergunta: “É sossego”. Por meio dessa resposta, poder-se-ia fazer outra perguntar: “o que é sossego?”. Dessa forma, o fragmento da letra da música traz certa maiêutica em seu sentido, sendo 130 que faz com que o candidato reflita sobre as hierarquias e os valores que são dados como constituintes da sua sociedade. Discursivamente, o éthos do orador é reflexivo, indagativo e, de certa forma, epicurista dado que revisita um “dogma” social, colocando o auditório para pensar no normativo e se colocando contra a passividade. Visto que o uso da interrogação intensifica o sentido contido nela (FIORIN, 2014), o páthos do auditório é desencadeado por meio de uma espécie de meditação e de ponderações sobre o sucesso na vida. O orador apenas indaga o auditório sem explicitamente encaminhá-lo para suas convicções. O último verso, “Nesse mundo pequeno de tempo e espaço”, funciona como um adjunto adverbial de delimitação geográfica, em que a visão do orador é a de que o sossego é o ápice do viver, já que se vive num mundo finito. Sendo assim, deve-se aproveitar o que realmente importa: o sossego e não preocupações com o socialmente construído para se “vencer na vida”. Citelli (1995) traça duas vertentes para analisar as ideologias marcadas nos livros didáticos: estereotipia e idealização. Pode-se, então, fazer uso desses dois mecanismos de análise nesse texto. A sociedade é organizada em torno de valores de oposição – certo/errado, sucesso/fracasso etc. –, que são incutidos, normalmente em nossa sociedade, desde a infância, logo a validação entranha-se no cidadão natural e irrefletidamente. Dessa forma, atribuem-se qualidades negativas para as pessoas que fujam desse modelo tradicional de sucesso, mesmo que elas não estejam satisfeitas dentro desse frame. Já a idealização opera por meio da ocultação dos valores implementados no social, ou melhor, não se sabe ou se pretende, pontualmente por causa do apagamento histórico, não conhecer suas origens. Por consequência, adere-se a uma ideia considerada “neutra” no seio social, assumindo como verdade única pela fidelização de autoridades no meio educacional, no meio político e no meio midiático que consagram e que reafirmam ideias, aparelhos que podem controlar o meio cultural. A disruptura com a visão fidelizada do discurso autoritário, cuja função é impor, por meio de falares legitimados de pessoas notórias ou de instituições, um sucesso formulaico e pariforme a todos, torna-se árdua e complexa, pois é vista na sociedade, na família, na escola e na publicidade. Por isso, pode-se pensar que a escolha da música não 131 foi por acaso: gênero que aceita as transgressões do social, do cultural e do político por causa de um a fazer poético e social, misturando razão e emoção e atuando como prática social no contexto político-cultural. Por fim, enseja-se a quebra do argumento binário da “fórmula do viver” – ou sucesso, ou fracasso – por meio do argumento do terceiro excluído. A reafirmação apenas dos dois padrões estereotipados – sucesso e não sucesso – exclui a possibilidade de elementos intermediários, ou melhor, outros discursos sobre o tema. Dessa maneira, o questionamento de modelos socialmente legitimados coloca o sujeito em movimento, impelindo-o, assim, a sair da inércia. Figura 29 - Mackenzie, João Pereira Coutinho, 2009 O segundo texto da coletânea é assinado por João Pereira Coutinho – escritor e cientista político. Ele é português e, atualmente, escreve para a Folha de São Paulo. Em seu texto, Coutinho começa por meio de uma condicionalidade: “se a felicidade fosse convertida em projeto, ela seria igualmente convertida em insatisfação interminável”. No trecho, usa uma metáfora da organização, como se fosse um projeto a ser terminado. Além disso, há uma metáfora do percurso, ou seja, idealiza-se uma jornada para ser percorrida (ABREU, 2009) a fim de se obter a felicidade. A segmentação em subordinada (apódose) e em subordinante (prótase) implica uma relação de causa necessária ou suficiente. Neste caso, por exemplo, pode-se pensar que se a felicidade for trabalhada sempre como projeto, ela gerará insatisfação – condição suficiente –; porém, se ela não for tratada como um projeto, ela poderá ser obtida, condição necessária para se alcançá-la. Dessa maneira, o peso negativo recai sobre a cláusula subordinada. 132 A oração “jamais teremos o que queremos ter” não traz apenas a asseveração de Coutinho, mas sim de outras vozes experientes no assunto, porém estão ocultas na superfície textual. Consegue-se, por exemplo, identificá-las por causa do contexto social, cultural e político, no qual se veem as divisões do sistema capitalista e individualista no Brasil. Todavia, poder-se-ia questionar o uso dessa noção retórica do sentido de “felicidade”. No seu texto, Coutinho usa a plasticidade da noção de felicidade, ou seja, alargando e questionando seu sentido atual, sentido esse falho. O texto de Coutinho tem em mira a dubiedade e as hesitações que a vagueza de sentido de “felicidade” implicam no contexto atual. Renuncia-se, então, às normas sociais e às avaliações negativas para os que não convergem para o centro da definição imposta. Perelman (2004, p. 169) determina a justificação – “toda justificação pressupõe a existência, ou a eventualidade, de uma apreciação desfavorável referente ao que a pessoa se empenha em justificar”. Assim sendo, a controvérsia da felicidade imposta por um modelo social leva a uma justificação moral das pessoas que se encontram aquém da definição. 𝐹𝑒𝑙𝑖𝑐𝑖𝑑𝑎𝑑𝑒 𝑚𝑜𝑑𝑒𝑟𝑛𝑎 Observa-se o par retórico em “a felicidade moderna converteu- 𝐹𝑒𝑙𝑖𝑐𝑖𝑑𝑎𝑑𝑒 𝑎𝑛𝑡𝑖𝑔𝑎 se numa vigília permanente: a vigília de Homens insatisfeitos; de Homens esmagados pelos seus próprios ideais de felicidade e perfeição”. Esse binarismo ora pode ser eufórico, ora disfórico. No entanto, Coutinho delimita como eufórica uma felicidade sem projetos e sem planejamentos; disfórica uma sociedade em busca de padrões de perfeição e ideias irreais. Segundo Perelman (2004), toda argumentação se divide em espírito clássico (quantidade) ou romântico (qualidade) de acordo com os valores sociais, culturais e políticos. Nesse sentido, vive-se numa sociedade que privilegia o espírito clássico. À vista disso, o ter mais (objetos materiais) é o que traz mais felicidade na contemporaneidade. Pensando-se nos aspectos de temporalidade, consoante Perelman (2004, p. 369), “o tempo não tem a menor importância na demonstração; em contrapartida, ele é, na argumentação, primordial”. Sendo assim, as demonstrações científicas, quando provadas, são intemporais, no entanto, a argumentação é passível de revisitação por causa dos efeitos diacrônicos, isto é, ao evoluir-se cultural, social, intelectual e politicamente na 133 história, valores sociais são passíveis de reformulações: “sabe-se que os efeitos de uma argumentação não são definitivos, que a adesão é modificável com o tempo” (PERELMAN, 2004, p. 372). Corroborando-se essa ideia também, tem-se o princípio da antifonia (Fiorin, 2015, p. 23), que “mostra que toda ‘verdade’ construída por um discurso pode ser descontruída por um contradiscurso; uma argumentação pode ser invertida por outra”. Dessa maneira, Coutinho busca a redefinição do sentido de “felicidade”, uma definição mesmo clássica e mais romântica. Figura 30 - Mackenzie, Rebelado, 2008 O texto acima, sem autoria definida, começa com um relato em primeira pessoa, ou seja, de maneira subjetiva, sobre a “felicidade”. Em “eu lamento te informar mas este modelo de felicidade que lhe ensinaram desde criança e que costuma aparecer em filmes e novelas não existe”, o tom confessional evidencia um alerta para o construto imaginário reafirmado ao longo do desenvolvimento do cidadão, desde os primeiros anos até a vida adulta. A modulação subjetiva exprime uma proximidade com o auditório. Assemelha-se, assim, o orador do auditório numa conjuntura de troca de experiência; um mais experiente, outro inexperiente. Sendo assim, a proximidade constrói um grupo de ajuda: alertar sobre os efeitos ideológicos do imaginário da felicidade perfeita. Perelman e Olbrechts-Tyteca (2014, p. 367) dizem sobre o prestígio de grupo que “pode favorecer a propagação de suas ideias, costumes e modas [...]”. Conforme essa ideia, fez-se, então, o movimento de resistência e de objeção aos padrões normativos da felicidade imposta e incutida no imaginário coletivo. Conquanto a mídia salienta o 134 protótipo de “felicidade” por meio de “filmes e novelas”, o grupo de oposição começa a questionar a dóxa – “a dóxa foi definida [...] como ‘a Opinião Pública, o Espírito majoritário, o Consenso pequeno-burguês, a Voz do Natural, a Violência do Preconceito’” (FIORIN, 2015, p. 107). Consequentemente, o grupo de oposição à dóxa imposta possui o ônus da prova, ou seja, deve argumentar em favor da ruptura do padrão de felicidade com o intuito de convencer da necessidade da quebra da inércia. Conforme explicitado por Citelli (1995), em “mas é importante que você seja educado acreditando que este modelo é real e existe e que vale a pena perseguir ele. Por isto este modelo de felicidade se faz tão presente nos comerciais da TV, no cinema e nas novelas”, veem-se a idealização e a estereotipia de um modelo fidelizado no meio social, o qual penetra em todas as instâncias da cultura. As formações discursivas adotadas por sujeitos da linguagem confirmam as formações ideológicas dos aparelhos controladores (Aparelho de Estado e Aparelhos Ideológicos), privilegiando uma visão burguesa das profissões e do êxito da vida por meio do capital. Além do mais, turva-se a compreensão da felicidade pela edificação de uma verdade acerca do êxito profissional e de todos os privilégios que seriam obtidos caso se alcançasse esse padrão. No entanto, a opinião pública obtém status de verdade, que, se for investigada e indagada, carece de evidências para sustentar suas teses em relação à definição de felicidade. Perelman (2004, p. 365) diz que “as opiniões desaparecem diante da evidência”. Sendo assim, os textos, até agora, tentaram evidenciar a não univocidade do conceito de felicidade. As opiniões até então fixadas e decretadas como válidas no seio social são falhas e não completam toda uma variedade de alternativas da identificação de uma noção abstrata e identificada como sui generis. Portanto, a ironia no texto para se manter o lugar da ordem – “mas é importante que você seja educado acreditando [...]” – apresenta um panorama gerencial da manutenção do sistema em torno da venda do conceito de felicidade em vários setores. É, desse modo, a imposição de uma retórica oficial que predomina nas dimensões ideológicas no foro público, atestando e autenticando um único ponto de vista de felicidade. 135 Ao final do texto, por exemplo, comprova-se a venda de um produto-imagem industrializado para um grande rol de indivíduos por meio de mídias como televisão e cinema. A homogeneização exerce, então, uma forma de controle coletivo do corpo social, tornando a manutenção do poder bilateral: por meio das esferas midiáticas (dominador); e por meio da ilusão de escolha e liberdade da população (dominado). Consequentemente, segundo Fiorin (1990, p. 42), “Seu dizer é a reprodução inconsciente do dizer de seu grupo social”. Sendo assim, a legitimação de um único conceito de felicidade é reafirmada constantemente de maneira inconsciente: “o indivíduo não pensa e não fala o que quer, mas o que a realidade impõe que ele pense e fale” (FIORIN, 1990, p. 43). Figura 31 – Mackenzie, BBC Brasil, 2009 O texto acima, adaptação do texto da BBC Brasil, começa afirmando que “a felicidade não é apenas um conceito vago, mas algo tangível e resultante de atividade cerebral que pode ser vista, medida e até induzida, de acordo com neurologistas”. Aqui, diferentemente dos outros textos, há um argumento de autoridade generalizado por “neurologistas” e por “especialistas” Isto é, não se especifica no excerto mais detalhes sobre essas autoridades. Além disso, foca-se, no último texto da coletânea, uma perspectiva mais objetiva e científica do que seria considerado felicidade. Mesmo usando um argumento de autoridade (cognitiva) com fonte objetiva (WALTON, 2012) – comprovação por meio de investigações científicas –, a identificação do que é felicidade ainda assim não se mostra totalizante: “encontrar formas de ajudar a induzir o estado de felicidade”. Dessa forma, comprova-se, novamente, a 136 imaterialidade e a abstração do conceito por meio da cognição e da mente, buscando-se, assim, estímulos mentais para se conseguir tal sentimento e estado de alegria e satisfação. Indo-se mais longe, segundo Walton (2012, p. 249), poder-se-ia questionar as credenciais desses profissionais por meio da formação profissional. Além disso, “os especialistas podem estar sujeitos ao mesmo tipo de parcialidade e preconceito [...]” vistos nos não especialistas, quando tentam identificar a felicidade, conceito intangível. Para mais, ainda conforme Walton (2012, p. 252), “às vezes o apelo à autoridade é tão vago que o nome do especialista não é nem mesmo citado e o campo de especialidade não é identificado”, por exemplo, “pesquisadores”. E, embora os especialistas façam investigações teóricas e práticas, pode-se ter uma “guerra de especialistas” (WALTON, 2012). Origina-se, por conseguinte, essa guerra por causa do princípio da antifonia, o qual também pode ocorrer nas ciências. Em tal caso, as subdivisões de áreas das ciências exatas e biológicas podem divergir sobre a felicidade e como obtê-la. Em “assim, é possível que pesquisadores possam, um dia, encontrar formas de ajudar a induzir o estado de felicidade”, usa-se um modalizador de ordem alética, marcando a verdade ou a não verdade. No entanto, depreende-se um sentido de hipótese em “é possível”, uma probabilidade a ser conseguida. Marca-se, no texto, um lugar da novidade, indo de encontro ao tradicional – a imperfeição da noção de felicidade e sua conquista. Objeta-se, portanto, a qualidade do alcance da felicidade na contemporaneidade, por isso, visa-se, num futuro indeterminado, a uma felicidade induzida por meio de medicamentos: “uma busca farmacológica”. Todavia, não se sabe o grau de dependência da “uma busca farmacológica”, ou melhor, se o efeito da indução da felicidade será duradouro. O sentido hipotético em “é possível” marca que “o pronunciamento de um especialista pode não ser a palavra final” (WALTON, 2012, p. 261). Para mais, em “formas de ajudar a induzir o estado de felicidade, que deixará de ser uma busca filosófica”, frisa-se um contradiscurso, uma oposição entre ciência humana e ciência exata. Entende-se que esta pretende tornar um fato o múltiplo sentido de verdade (seja filosófica, seja religiosa do sentido de felicidade). Portanto, deseja-se sair do campo da argumentação (provável, preferível, possível) para um campo da demonstração, por causa 137 da possibilidade de se estruturar o sentido, extirpando as ambiguidades, as vaguezas e as incertezas sobre a felicidade. 𝑏𝑢𝑠𝑐𝑎 𝑓𝑎𝑟𝑚𝑎𝑐𝑜𝑙ó𝑔𝑖𝑐𝑎 No sistema de par filosófico, , encontra-se o primeiro elemento 𝑏𝑢𝑠𝑐𝑎 𝑓𝑖𝑙𝑜𝑠ó𝑓𝑖𝑐𝑎 (buscas farmacológica) com sentido eufórico, positivo; já o último, com sentido negativo. Sendo assim, a felicidade torna-se um conceito mais científico do que filosófico, já que se deve saciar as atividades cerebrais que desencadeiam o estado de ser feliz. Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2014, p. 150), “a necessidade de uma linguagem unívoca, que domine o pensamento científico, fez da clareza das noções um ideal, que, crê-se [...] esquecendo-se que esta mesma clareza pode ser um obstáculo a outras funções da linguagem”. Por isso, objetiva-se o aclaramento da felicidade por meios científicos, tirando o obscurecimento da noção de felicidade por meio da filosofia. A cientificidade do éthos discursivo do texto pretende persuadir por meio da clareza, elucidando-se, pois, a confusão das noções de felicidade. O efeito de neutralidade da ciência no texto pode ter elevado impacto na persuasão do auditório, uma vez que este poderia incorrer, na redação, em múltiplas descrições do termo felicidade e sua aplicação. Sendo, então, o último texto, e o único de cunho científico, o percurso feito pelo candidato – indefinição, quiçá sua impossibilidade, para definição objetiva – pode estabelecer uma hierarquia de valores: absoluto vs. relativo. Consoante Perelman (2004), a demonstração não é marcada temporalmente, isto é, encontra-se na intemporalidade; no entanto, a argumentação é passível dos efeitos diacrônicos, por isso é marcada temporalmente. Logo, porventura, a ciência objetiva emoldar novamente a felicidade como um juízo objetivo. 3.3.2 A proposta de 2018 e os textos motivadores 138 Figura 32 - Mackenzie, 2018 Equitativamente, a proposta de redação da prova do Mackenzie em 2018 ainda traz os mesmos traços analisados na proposta de 2009: necessidade de uma leitura interacional e dialógica entre os textos da coletânea e a bagagem intelectual de mundo do candidato. Apesar disso, o texto instrucional e injuntivo, nesta prova – 2018 –, traz uma observação a mais em relação ao texto de 2009: “Obs.: o texto deve ter título e estabelecer relação entre o que é apresentado nos textos da coletânea”. Sendo assim, a imposição de um título pode significar mais um esforço da capacidade de resumir do candidato, uma vez que precisa sintetizar os prontos centrais dos textos da coletânea e também definir um título que seja coerente com o todo da redação, encapsulando-se, assim, uma ideia em poucas palavras. Entende-se, então, que a exigência de um título esteja associada ao interesse de concentrar as ideias do candidato para uma força concêntrica, ou seja, evitar dispersão temática, assegurando, pois, que não se fuja ao tema. Além disso, procura-se também o exercício de coesão e de coerência: o título, nesse sentido, representaria, para o corretor, uma grande possibilidade de entender o texto do candidato por meio de uma catáfora resumidora, que poderia conter o resumo dos textos e das ideias conexas aos textos convergidos em um amplo centro de significação. Argumentativamente, o título requer posicionamento ideológico. Sendo assim, a seleção de um título para a redação constitui também o eixo persuasivo do candidato. Dessa forma, o título funciona como ampla etiqueta de sentido. Em Koch (2018a, p. 205), observa-se a integração entre leitura e produção de sentido: a pluralidade de leituras e de sentidos pode ser maior ou menos dependendo, por um lado, do texto, do modo como foi constituído, do 139 que foi explicitamente relevado, e do que foi implicitamente sugerido; por outro lado, da ativação, por parte do leitor, de conhecimento de natureza vária, bem como de seus objetivos e de sua atitude perante o texto. Por isso, pode-se considerar que a prova de redação do Mackenzie trabalhe com múltiplos aspectos de sentido: fatores linguísticos e fatores extralinguísticos. O diálogo dá-se por meio da inserção, ou melhor, dos preenchimentos das lacunas que o texto pode deixar. As elipses de sentido – sentidos que não estão dados completamente – podem ser identificadas e complementadas por meio do ato de ler do candidato, cerzindo sentidos e significados com o orador do texto. Dessa forma, ambos os princípios (da cooperação e da continuidade de sentido) podem ser capazes de sustentar o eixo central de sentido. Ainda conforme Koch (2018a, p. 206), os fatores relativos ao autor (orador, em nosso caso) e ao leitor (auditório, em nosso caso) são imprescindíveis, uma vez que “esses fatores referem-se ao conhecimento dos elementos linguísticos (uso de determinadas expressões, léxico antigo etc.), esquemas cognitivos, bagagem sociocultural, circunstâncias em que o texto foi produzido”. Figura 33 - Mackenzie, Sociologia em movimento, 2018 O primeiro texto da coletânea de 2018 foi extraído de um livro didático, Sociologia em movimento, da Editora Moderna. O livro conta com vários colaboradores na sua produção e é direcionado para o Ensino Médio. Dessa forma, entende-se que o auditório esteja adequado ao modo de construção do texto didático, nos aspectos temáticos e linguísticos. 140 O texto começa com um argumento genérico de opinião pública: “na sociedade moderna, um dos temas mais utilizados para refletir sobre a relação entre indivíduos e sociedade é o da identidade social”. Essa sociedade moderna, por exemplo, possui grupos que detêm o poder e, no caso, especialistas que são autoridades para definir o que é “identidade social”. Existe, pois, um argumento de autoridade cognitiva diluído, tendo em vista o consenso sobre a temática que o texto dá como válida e aceita na “sociedade moderna”. O texto apresenta, como forma de convencer seu auditório, uma porcentagem indireta – “um dos temas mais utilizados para refletir”, uma ordem da quantidade, porém generalizada por meio do escalonamento ou do partitivo numérico – uso da expressão “um dos” – para fazer o destaque da importância do tema. Em se tratando de um texto de livro didático, os dados mais científicos, ou seja, as especificidades são ocultadas para dar relevo ao conteúdo temático. Mais adiante, em “produto direto da interação entre o indivíduo e a coletividade, a identidade social é o modo pela qual os indivíduos se percebem no mundo e definem sua maneira de interferir nele”, há uma definição conceitual sobre identidade social. Pode-se analisá-la, no contexto, como uma definição normativa, que orienta o uso e o sentido do léxico e como, na sociedade, ele deve ser usado e compreendido. Ao mesmo tempo, como descritiva, já que nas subáreas da sociologia pode não haver consenso sobre o significado da expressão “identidade social”. A definição técnica, então, tenta cercear o entendimento de “identidade social” para um amplo coletivo, evitando outros sentidos, mesmo havendo estes. A explicação do texto progride por meio de justificativas: “se decodificamos o mundo mediante a cultura, é pela identidade social que o classificamos, nos damos conta de sua diversidade e nos posicionamos nas questões do dia a dia”. Nesse trecho, explica- se e dá-se um exemplo mais concreto da expressão e sua aplicação. A hipótese em “se decodificamos” marca uma aplicação contextual para aclarar sentidos da expressão. Dessa forma, a didaticidade do livro fica mais evidente. A neutralidade desse texto é apenas um efeito de sentido pedagógico, mas, como visto, faz-se um recorte do sentido da identidade social, restringindo, também, a um 141 campo da sociologia, privilegiando uma subárea de uma área de conhecimento. Para mais, deixa-se implícita uma pretensão do fazer retórico questionar para se quebrar a manutenção do olhar estático por meio dos quadros sociais legitimados nas pequenas questões do dia a dia. A visada argumentativa do texto didático é direcionada para uma quebra de inércia, propondo uma reflexão crítica e posições de juízo de valor para o que entende do rotineiro. O livro idealiza um estudante mais ativo no pensamento, indo de encontro a uma contemplação passiva da cultura, do social e do político. Rompe-se a estereotipagem da retórica da manutenção da admiração e da idealização de um aluno apático indiferente ao seu meio sociopolítico. Concebe-se tal perspectiva mais cidadã e indagadora por causa de uma formação discursiva mais progressiva nos ensinos de sociologia e de filosofia. E, por isso, a viabilidade de um discurso mais inovador nos pontos de vista sobre a sociedade e a cultura brasileiras. O lugar retórico da essência é utilizado na argumentação do texto porque se entende a superioridade dessa interpretação da realidade objetiva e subjetiva. Dessa forma, o silêncio, ou seja, por causa da crítica ao avesso desse discurso posto, marca um juízo de valor negativo – disfórico – à alteridade contra essa visão de enxergar a cultura. Figura 34 - Mackenzie, Mia Couto, 2018 O segundo texto da coletânea é escrito por Mia Couto – famoso escritor moçambicano. O trecho é um fragmento do livro E se Obama fosse africano? e outras interinvenções, de 2009. O autor começa o texto por meio de uma definição apoiada num jogo metonímico: “a verdade é que nós somos sempre não uma mas várias pessoas e deveria 142 ser norma que a nossa assinatura acabasse sempre por não conferir”. Mia Couto estabelece com a tese uma heterogeneidade de seres, marcando e afirmando as diferenças de cada um. A metonímia, por exemplo, com o concreto da assinatura e com o abstrato das relações que diferenciam as pessoas é elemento que mostra a alteridade. Usando-se a realidade do escrito, escolhe-se, então, a voz de uma pessoa que, por questões históricas, marca a importância do respeito à diversidade. Mia Couto usa a questão da identidade para indicar a singularidade da cultura de Moçambique em relação a Portugal, de quem obteve independência em 1975. Dessa forma, a afirmação da diferença é elemento-chave de Mia Couto em sua escrita de Literatura Africana, dando voz, assim, aos marginalizados. O argumento de autoridade, somado ao lugar de fala, de Mia Couto exerce grande força argumentativa no texto, mostrando a ausência que se tem para o outro, ou seja, pensa-se apenas num auditório homogêneo, extirpando as individualidades ou importando elementos culturais de uma parte dominante da sociedade. A credibilidade de Mia Couto é construída por meio da inventividade literária e sua potência criativa em arrolar temas políticos e culturais com uma linguagem característica da região. Por isso, vê-se o uso de primeira pessoa: a voz de Mia Couto associa-se diretamente com o que diz, construindo um efeito mais enfático para a mensagem. A formação ideológica de Mia Couto, isto é, momentos históricos que determinaram seu pensar implicaram a sua formação discursiva militante sobre o tema. Por isso, o lugar retórico da pessoa é elemento-suporte para sua credibilidade sobre a temática. O argumento de autoridade se constitui por meio da experiência vivencial do autor. Segundo Walton (2014, p. 247), “a autoridade cognitiva diz respeito sempre a uma área do conhecimento ou da experiência em que se costuma dar mais peso à opinião do perito do que à do leigo”. Além disso, Mia Couto, por sua profissão de escritor, torna-se um formador de opinião nesta área. O autor ganha peso por causa do apelo à popularidade de seus livros e seu reconhecimento no meio da literatura. Além disso, em “todos nós convivemos com diversos eus, diversas pessoas reclamando nossa identidade”, mostra-se a alteridade até mesmo dentro de um único indivíduo, ressaltando, de novo, a alteridade e a positividade disso. Mia Couto, por 143 exemplo, tenta, por meio do texto, ressemantizar a negatividade que se tem em mente da diversidade: “o segredo é permitir que as escolhas que a vida nos impõe não nos obriguem a matar a nossa diversidade interior”. Entende-se que Mia Couto vai contra os discursos de segregação social e racial, dado que o outro ajuda na nossa constituição também. Reafirma-se, então, o elemento eufórico da “diversidade interior”. A ruptura do discurso autoritário sobre a unidade é notória por meio do par 𝑢𝑛𝑖𝑑𝑎𝑑𝑒 filosófico: . Contraria-se, pois, a unidade – elemento anteriormente euforizado 𝑑𝑖𝑣𝑒𝑟𝑠𝑖𝑑𝑎𝑑𝑒 na sociedade – que é, hoje, elemento negativo, visto que segrega e diferencia o outro, apartando-o do social, pela imposição da diversidade – elemento, hoje, priorizado no seio da sociedade progressista. Mia Couto, no texto, propõe uma renovação da noção de “diferente”. Segundo Fiorin (1990, p. 53), “a linguagem cria a imagem do mundo, mas é também produto social e histórico”. Tendo isso em vista Mia Couto rompe a visão determinista que se tinha: “o melhor nesta vida é poder escolher, mas o mais triste é ter mesmo que escolher”, porém cria um paradoxo entre melhor e pior: ambos os pesos da escolha são marcados ora como positivos, ora como negativos. Aquele dá poder de escolha, liberdade; este, poder de enfrentar e assumir a escolha feita. Além disso, em “mas o mais triste é ter mesmo que escolher”, pode-se entender a não necessidade de se rotular ou até mesmo a necessidade de apenas realmente viver sem amarras e limitações: deixar que escolhas sejam feitas inconscientemente. Figura 35 - Mackenzie, André Monnerat, 2018 144 O último texto da coletânea traz o verbal e o não verbal para ser interpretado pelo candidato. A tirinha é de André Monnerat – escritor e desenhista – e tem como título O Artilheiro. A escolha pela tirinha pode validar a impressão de didaticidade da proposta de redação do Mackenzie, pois escolheram-se gêneros com os quais os candidatos têm mais contato em sala de aula: texto do livro didático, texto literário e a tirinha. O texto marca a fabricação da realidade. Presencia-se a proposta da segunda personagem para o artilheiro: desenvolvimento da autoimagem nas redes sociais. Porém a imagem que se deseja construir não é uma pautada na realidade e na verdade, mas sim numa pretensão, numa fabricação de personalidade: “Não. Não. Você não vai postar nada. Fica tudo por minha conta. Se for real demais, dá ruim”. Ou seja: a construção de um éthos para o jogador é imposição de marketing com fins à autopromoção. Por isso, a construção do éthos do jogador, para fazer sucesso, deve obedecer à vontade social, uma vontade não de cunho real, mas do que se espera que o jogador seja, cumprindo, assim, normas e validando valores já determinados no seio social. Para se obter sucesso, a tirinha mostra que a fabricação deve ser meticulosa, caso contrário, “dá ruim”. Compram-se os elementos imagéticos dispostos na mídia, isentando-se, assim, de polemicidade. Existem requisitos que devem apresentados ao coletivo: estereótipos e idealizações. Um jogador de futebol, por exemplo, tem sua imagem validada quando efetua certas ânsias da população: deve ter hábitos do povo, ser comprometido com seu rendimento em campo, sempre treinando, não se envolver em polêmicas etc. Fiorin (1990, p. 43) diz que “os agentes discursivos são as classes e as frações de classe”. Sendo assim, edifica-se e arquiteta-se uma imagem, um éthos, que seja autorizado por essas instâncias. Para mais, “o indivíduo não pensa e não fala o que quer, mas o que a realidade impõe que ele pense e fale” (FIORIN, 1990, p. 43). A elaboração de um éthos apenas cumpre os ditames da ideologia imposta. A personagem, então, apenas cumpre o que Perelman e Olbrechts-Tyteca (2014, p. 26-27) dizem: “o importante, na argumentação, não é saber o que o próprio orador considera verdadeiro ou probatório, mas qual é o parecer daqueles a quem ela se dirige”. A adaptação ao auditório é fator significativo para a persuasão. 145 O “verdadeiro” torna-se, assim, fabricado para suprir demandas da imagem que se costuma vender dos famosos nas redes socais. Dessa forma, o engajamento “como se fossem seus amigos mesmo!” apenas supre um consumo do espectador. Por isso, o éthos do jogador, na tirinha, cumpre um papel duplo: de educador e de propagandista. Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2014, p. 58): “enquanto o propagandista deve granjear, previamente, a audiência de seu público, o educador foi encarregado por uma comunidade de tornar-se o porta-voz dos valores reconhecidos por ela”. Usa-se, aqui, educador com o sentido de pessoa influente, já que apenas reafirma o que se está na dimensão político-social-cultural, operando por um efeito de manutenção do sistema. Ao mesmo templo, conquista-se o sucesso publicitário pelo logro da imagem fabricada. O influenciador, no lugar de usar sua voz para revisitar valores, usa sua imagem falsamente construída para reafirmar valores – estereótipos e idealizações – já concebidos no social. Dessa maneira, comungam-se duas dimensões: uma institucional, outra pessoal. Aquela visando ao lucro com a imagem, esta ratificando as vontades das pessoas que consumem conteúdos nas redes sociais: uma perfeição imagética. Pretende-se, pois, atender às demandas de um amplo auditório, homogeneizando o éthos do jogador para encaixar-se em múltiplos contextos. Conforme Perelman e Olbrechts-Tyteca (2014, p. 334): “a construção da pessoa humana, que se vincula aos atos, é ligada a uma distinção entre o que se considera importante, natural, próprio do ser de quem se fala, e o que se considera transitório, manifestação exterior do sujeito". Isso posto, a fala no último quadrinho reafirma, pois, a vinculação do ato-pessoa: ou seja, os atos feitos pelo jogador, caso sejam considerados polêmicos, poderiam prejudicar a imagem vendida para o público: “a reação do ato sobre o agente é capaz de modificar constantemente a nossa concepção da pessoa” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2014, p. 337), mesmo que “o ato não pode ser considerado um simples indício, revelador do caráter íntimo da pessoa” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2014, p. 338). 146 CONCLUSÃO Entende-se, portanto, que a argumentação seja inerente ao uso da língua em diversas instâncias da comunicação, admite-se, no entanto, que existam graus de argumentatividade em meio a diferentes gêneros discursivos. Há no texto dissertativo- argumentativo uma predominância elevada de argumentação por causa da característica do tipo textual articulado a gêneros que destacam essa especificidade. Os textos das coletâneas aqui examinados, por ensejar temáticas polêmicas (questões retóricas), não estão destituídos de argumentação, embora sejam apresentados aos candidatos dos exames como textos de cunho didático, uma vez que servem de suporte e orientação para a produção de uma redação. Estratégia presente em muitos livros didáticos com os quais os candidatos porventura tenham tido contato. Nesta pesquisa, por conseguinte, buscou-se evidenciar as tramas e as estratégias retóricas dos textos motivadores de três exames – Enem, Fuvest e Mackenzie – com o intuito de desvelar os direcionamentos argumentativos e os componentes retóricos desses textos que compõem as coletâneas, cujo objetivo é elucidar aos candidatos dos exames possíveis perspectivas para a argumentação na elaboração da redação. Durante a análise, apontaram-se recursos retóricos utilizados para persuadir os candidatos não só da relevância da temática abordada, mas também de uma reflexão e de uma possível mudança de quadro social. Optou-se por um recorte temporal relativamente distante – propostas de 2009 e de 2018 – e por modelos de prova distintos – Enem, Fuvest e Mackenzie – para se examinar um provável modelo de proposta de redação, que se tornou “canônico”: um texto instrucional e textos motivadores desenvolvendo e discutindo a temática da prova de redação. Dessa forma, existem alterações mínimas, ressaltando-se, então, apenas escolhas e características que constituem singularidades de cada prova. Na perspectiva comparativa, portanto, o resultado apontou para a permanência de um estilo e de uma forma que consagram a proposta de redação e a coletânea de textos motivadores como um gênero já estabilizado no contexto educacional em relação a provas de redação 147 efetivamente aplicadas nos exames e atividades de redação (presentes em livros ou outros materiais para formação de alunos, futuros candidatos dos exames). Entende-se, por exemplo, que a prova de redação do Enem mantém-se uníssona em relação à temática que se discute, ou seja, o eixo de convergência dos textos de apoio soma força retórica para uma única perspectiva. A prova da Fuvest chega a apresentar ideias dissonantes dentre os textos motivadores para provocar uma reflexão crítica no candidato, dado que sua prova de redação tem um teor mais filosófico-sociológico. A prova de redação do Mackenzie exige uma capacidade leitora sofisticada uma vez que não encapsula o tema numa frase ou expressão resumidora. Além disso, no recorte temporal, as provas mantêm uma identidade, ou seja, um padrão de aplicação, como apontamos, fato que evidencia ainda mais a estabilidade do gênero coletânea de textos numa proposta de redação. O aporte teórico ratificou a indissociabilidade da retórica nas estruturas linguísticas e no funcionamento discursiva da língua. Dessa maneira, as propostas de redação, por meio da coletânea de textos motivadores, procuram se adequar aos candidatos que estão prestes a entrar no ensino superior (em sua maioria jovens recém- saídos do Ensino Médio). Por isso, pensa-se que a revisitação dos valores tradicionais é quase um lugar-comum nos textos motivadores: angaria-se força para criticar lugares retóricos privilegiados e legitimados no seio social por meio dos jovens ingressantes na universidade (entendido como a maioria do público dos exames). Por meio desta dissertação, chegou-se paralelamente à observação de como os estudos retóricos, com as devidas adaptações aos níveis de ensino, podem contribuir para análises de texto no âmbito pedagógico, mais especificamente com a desmistificação da neutralidade do discurso. Ao firmar-se como orador de um discurso retórico, o falante posiciona-se argumentativamente, validando ou não ideias da coletividade. Sendo assim, entende-se que o saber retórico se encontra inseparável da prática de linguagem, tendo, portanto, um espaço na formação dos alunos na educação básica, em especial no Ensino Médio. A análise retórica não deve se limitar, como costuma ainda a acontecer, ao estudo das figuras de linguagem, deixando-se de lado, assim, um conhecimento que permite compreender e produzir diferentes efeitos de sentido nos textos. 148 Nas análises realizadas, levaram-se em consideração as estruturas linguísticas bem como os discursos e as ideologias para entender os valores, as hierarquias e os acordos da dimensão social. Dessa forma, partiu-se da dóxa para depreender os lugares retóricos privilegiados nos textos motivadores. Entende-se, pois, a argumentação não como uma verdade demonstrativa, mas sim como persuasão pelo provável, possível e preferível. Por isso, no decorrer da pesquisa, explorou-se e averiguou-se a estrutura argumentativa de cada texto motivador nas coletâneas. Em vista disso, não se separaram elementos linguísticos da prática real da língua, ou seja, partiu-se também da análise das dimensões sócio-político-culturais para se apreender a realidade extralinguística dos argumentos postos nos textos. Por isso, de acordo com a perspectiva desta dissertação, firma-se a necessidade da análise dos argumentos na imanência da língua – estrutura – com o contexto sociocultural. Por isso, o fazer linguístico-retórico pauta-se num contexto pragmático da língua, não numa cisão entre língua e fatores contextuais. As estratégias argumentativas nos textos motivadores analisados trazem um olhar social questionador. Todos os textos tinham pontos de vista bem estruturados e desenvolvidos sobre os temas propostos, levando, assim, o candidato não apenas a ponderar sobre elas, mas também a se fiar ao afirmado pelos autores de cada texto, no papel de orador de um discurso retórico. Dessa forma, os éthe discursivos dos textos mostravam-se avessos ao tradicional, visando, sempre, ao lado progressista da sociedade. Isto posto, fica-se manifesto um direcionamento, mesmo que não intencional, das propostas de redação ao privilegiarem determinadas observações e considerações sobre o contexto do momento (2009 e 2018). Entre os argumentos mais usados nos textos motivadores, encontra-se o argumento de autoridade, uma vez que os recortes textuais foram escritos por diversos autores. Além disso, notou-se uma disruptura com o lugar da ordem, ou melhor, um confronto com a retórica da manutenção do tradicional. Para mais, os textos foram extraídos majoritariamente de jornais, confirmando o teor de argumentatividade dado o gênero do discurso. 149 Viu-se, também, uma sequencialidade temática, ou seja, a parte (textos selecionados) unia forças argumentativas com o todo (integralidade dos textos), trazendo, portanto, coerência interna. Ainda, deixou-se clara a importância do argumentar para defender uma tese, ajudando implicitamente o candidato na sua própria produção escrita. Mas, ao mesmo tempo, não se abriram lacunas para questionamentos. Sabe-se do princípio da antifonia, no entanto, textos dissidentes não foram selecionados e apresentados aos vestibulandos. Esse fato poderia elevar ainda mais o efeito retórico dos textos motivadores: adesão total do candidato ao que se diz, mitigando, assim, os eventuais contra-discursivos para o mesmo assunto na proposta de redação. Em síntese, há, no corpus analisado, uma unicidade argumentativa, encaminhando-se, portanto, o candidato a apenas um único espectro de leitura argumentativa, mesmo que seja possível a leitura de outros discursos silenciados. Além disso, mostram-se que os conhecimentos de mundo dos candidatos no momento da leitura dos textos motivadores devem ser mobilizados, dada a complexidade de temáticas abordadas, ou seja, deve-se ter uma ampla bagagem de leitura, não só de livros, mas também de jornais e revistas etc., a fim de ativarem e articularem o conhecimento de mundo e conhecimento linguístico. Dessa forma, inquiriram-se os elementos retóricos como estratégias persuasivas para levar o auditório – candidatos – a aderir aos acordos propostos nos textos motivadores por meio da apresentação de valores, de hierarquias sociais e de lugares retóricos. Além disso, propuseram-se mudanças de noções ao ressemantizarem-se conceitos privilegiados pela sociedade e pela cultura. Para isso, os textos, por exemplo, apresentaram um amplo rol de argumentos quase-lógicos, argumentos baseados na estrutura do real, argumentos fundados na estrutura da realidade e outras técnicas argumentativas. Comprova-se, por fim, que uma análise retórica é pautada na persuasão dos espíritos para adesão a uma tese. Nos textos motivadores, as técnicas discursivas levaram o candidato ao eixo argumentativo visado das provas. E, nas argumentações dos textos, partiu-se de opiniões que são dominantes e de princípios e conceitos quase indubitáveis para propor uma outra possibilidade de reflexão sobre o social e o cultural. Para mais, há 150 uma reciprocidade entre orador e auditório, dado que, após a leitura dos textos motivadores, os candidatos precisam escrever a própria redação. Reforça-se, por fim, a perspectiva de que o discurso das propostas de redação – por meio dos textos das coletâneas do Enem, da Fuvest e do Mackenzie – é altamente argumentativo. As técnicas argumentativas subjazem às associações feitas pelas teses socioculturais desenvolvidas nas provas, usam-se, assim, argumentos que estabelecem uma ligação – um acordo – com o auditório, técnicas pensadas para a construção de um raciocínio provável. Sendo assim, mostra-se a importância da análise linguística – e seus elementos estruturais – em diálogo com a compreensão do fazer retórico. 151 152 Referências Bibliográficas ABREU, Antônio Suárez. A arte de argumentar: gerenciando razão e emoção. 13. ed. Cotia: Ateliê Editorial, 2009. ABREU, Antônio Suárez. Texto e gramática: uma visão integrada e funcional para a leitura e a escrita. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2012. ALENCAR, Elisabeth; FARIA, Graça. In: ELIAS, Vanda Maria (Org.). Ensino de língua portuguesa: oralidade, escrita e leitura. São Paulo: Contexto, 2011. p.145-157. ALEXANDRE Júnior. Manuel. Prefácio e introdução. In: ARISTÓTELES. Retórica. Prefácio e introdução de Manuel Alexandre Júnior. 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