UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE LEANDRO ANTONIO DE LIMA APOCALIPSE COMO LITERATURA: UM ESTUDO SOBRE A IMPORTÂNCIA DA ANÁLISE DA ARTE LITERÁRIA EM APOCALIPSE 12-13 SÃO PAULO 2012 LEANDRO ANTONIO DE LIMA APOCALIPSE COMO LITERATURA: UM ESTUDO SOBRE A IMPORTÂNCIA DA ANÁLISE DA ARTE LITERÁRIA EM APOCALIPSE 12-13 Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Letras. Orientadora: Profa Dra Maria Luiza Guarnieri Atik SÃO PAULO 2012 2 L732a Lima, Leandro Antonio de Apocalipse como literatura : um estudo sobre a importância da análise da arte literária em apocalipse 12-13 / Leandro Antonio de Lima. 2012. 229 f. : il. ; 30 cm Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2012. Referências bibliográficas : f. 220-229 . 1. Análise literária. 2. Arte da narrativa. 3. Apocalipse. 4. Apocalipse como literatura. 5. Apocalipse 12-13. I. Título. CDD 801.9 3 LEANDRO ANTONIO DE LIMA APOCALIPSE COMO LITERATURA: UM ESTUDO SOBRE A IMPORTÂNCIA DA ANÁLISE DA ARTE LITERÁRIA EM APOCALIPSE 12-13 Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Letras. Aprovado em ____/___/____ Banca examinadora _____________________________________________________ Profa. Dra. Maria Luiza Guarnieri Atik Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM) ______________________________________________________ Prof. Dr. João Cesário Leonel Ferreira Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM) _____________________________________________________ Prof. Dr. Augustus Nicodemus Gomes Lopes Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM) ______________________________________________________ Prof. Dr. Lourenço Stelio Rega Faculdade Teológica Batista de São Paulo ____________________________________________________ Prof. Dr. Gilberto Pinheiro Passos Universidade de São Paulo (USP) 4 AGRADECIMENTOS A Deus, pela vida, e pela existência do Livro do Apocalipse. À minha esposa Vivian e ao filhinho Vicktor, pela compreensão e apoio. À orientadora Maria Luiza, pelo trabalho inestimável. Aos membros da banca pelas importantes sugestões. A todos os professores do Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Mackenzie. À Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde já conclui dois mestrados e agora tenho o privilégio de fazer o doutorado. À minha mãe, Dulci. 5 RESUMO O livro do Apocalipse atribuído a João, o Apóstolo, o último livro do Canon Bíblico, é um dos mais lidos e pesquisados ao longo da história, tanto da perspectiva popular quanto da acadêmica. Por seus simbolismos e descrições catastróficas causou grande influência no mundo ocidental, deu nome a um gênero específico de literatura antiga (a literatura apocalíptica), e foi objeto de estudos, ilustrações e temas de romances por quase dois mil anos. Apesar de toda essa “popularidade”, o livro foi pouco avaliado a partir de suas qualidades literárias e da arte de sua narrativa, a não ser através de estudos críticos que estiveram mais preocupados em fragmentá-lo em fontes desconexas do que em entender a riqueza de sua confecção literária. Mesmo entre os estudiosos que detectaram a complexa estrutura recapitulativa, a análise literária não foi além, e se preocupou mais em fornecer subsídios para sistemas teológicos ou respostas para angústias dos tempos em que viveram seus intérpretes. Uma análise cuidadosa de seus recursos literários, contudo, revela a grandiosidade de seu estilo, o senso de seus propósitos e a unidade da obra. Nas ricas relações intertextuais com o Antigo Testamento, especialmente Gênesis e Daniel, usando recursos como repetição, numerologia, referências cruzadas, o Apocalipse desenvolve um enredo cíclico em que se sobressai a ideia de Deus como o Soberano cósmico que dirige o mundo para o cumprimento de seus propósitos; como também a interpretação do inimigo, o dragão que se lhe opõe, explicando assim, espiritualmente, a paradoxal realidade do Cristianismo do primeiro século, que enfrentava toda a perseguição do Império Romano. Ao se considerar a arte da narrativa do texto do Apocalipse, não só o livro fica muito mais extraordinário para o leitor, como seus significados teológicos e morais se tornam mais acessíveis. Palavras chaves: análise literária, arte da narrativa, Apocalipse, Apocalipse como literatura, Apocalipse 12-13 6 ABSTRACT The book of Revelation ascribed to the Apostle John, is the last book of the Biblical Canon, and one of the most read and researched throughout History, from both popular and academic perspectives. Its symbolisms and catastrophic descriptions greatly influenced the western world, gave name to a specific genre of ancient literature (apocalyptic literature), and were object of studies, illustrations and romance themes for almost two thousand years. In spite of the book’s popularity it wasn’t much examined for its literary qualities and the art of its narrative, except by some critics who were more interested in fragmenting it in disconnected sources rather than understanding the richness of its literary production. Even among the scholars who detected the complex recapitulation theory of the book, the literary analyses didn’t get far, and was more focused on providing subsidies for theological systems or answers for the distresses of its interpreter’s times. A thorough analysis of its literary resources, however, reveals the greatness of its style, the sense of its purposes and the unity of the book. There are rich intertextual relations with the Old Testament, especially with Genesis and Daniel, as there are common features such as repetition, numerology, and cross-references. The book of Revelation also develops a cyclic plot in which the idea of God as a cosmic sovereign who guides the world to the fulfillment of his purposes excels; as well as interpretations for the enemy, the Dragon that opposes to him, thus explaining the paradoxical reality of first century Christianity which was under persecution by the Roman Empire. By considering the art in the narrative text of Revelation not only does the book get much more extraordinary for the reader, but its theological and moral meanings become more accessible. Keywords: literary analysis, art of narrative, Revelation, Revelation as literature, Apocalypse, Revelation 12-13 7 “Bem-aventurados aqueles que leem e aqueles que ouvem as palavras da profecia e guardam as coisas nela escritas, pois o tempo está próximo” (Ap 1.3). 8 SUMÁRIO Introdução  .....................................................................................................................  12   1.  A  história  da  interpretação  do  livro  ................................................................  23   1.1.  A  interpretação  teológica  espiritual  .......................................................................................  23   1.2.  A  interpretação  teológica  histórico-­‐profética  ....................................................................  26   1.3.  A  interpretação  crítica  ..................................................................................................................  32   1.4.  Interpretações  teológicas  e  críticas  de  Apocalipse  12-­‐13  ............................................  36   2.  O  contexto  literário  do  Apocalipse  ...................................................................  52   2.1.  A  literatura  apocalíptica  como  culminação  da  literatura  bíblica  ...............................  52   2.2.  O  apocalipse  e  a  literatura  apocalíptica:  Enoque  e  Daniel  ............................................  65   2.2.1.  O  livro  de  Enoque  ..................................................................................................................  68   2.2.2.  O  livro  de  Daniel  .....................................................................................................................  71   3.  As  principais  características  literárias  do  Apocalipse  ..............................  80   3.1.  Os  principais  padrões  literários  ...............................................................................................  83   3.1.1.  O  padrão  de  números  ..........................................................................................................  84   3.1.2.  As  referências  cruzadas  ......................................................................................................  98   3.1.3.  As  paródias  ............................................................................................................................  110   3.1.4.  Estrutura  de  quiasmo  .......................................................................................................  113   3.2.  O  enredo  do  Apocalipse  ............................................................................................................  117   3.2.1.  As  quatro  divisões  do  macroenredo  ..........................................................................  118   3.2.2.  As  sete  seções  paralelas  do  microenredo  ................................................................  123   4.  Análise  literária  de  Apocalipse  12-­‐13  ...........................................................  154   4.1  Estrutura  literária  de  Apocalipse  12-­‐13  .............................................................................  155   4.2.  O  uso  do  Antigo  Testamento  em  Apocalipse  12-­‐13  ......................................................  162   4.2.1.    Intertextualidade:  Gênesis  3/  Apocalipse  12  ........................................................  165   4.2.2.    Intertextualidade:  o  livro  de  Daniel/  Apocalipse  13  ..........................................  169   4.3.  Os  principais  padrões  literários  em  Apocalipse  12-­‐13  ...............................................  173   4.3.1  O  padrão  de  números  ........................................................................................................  173   4.3.2.    Repetições  ............................................................................................................................  180   9 4.3.3.  As  paródias  ............................................................................................................................  183   4.3.4.  Estrutura  de  quiasmo  .......................................................................................................  185   4.3.5  Outros  recursos  literários  ................................................................................................  187   4.4.  Análise  do  enredo  na  narrativa  de  Apocalipse  12-­‐13  ..................................................  191   4.4.1.  Ap  12.1-­‐6:  a  mulher,  o  dragão  e  o  filho  .....................................................................  193   4.4.2.  Ap  12.7-­‐16:  Miguel,  o  dragão  e  a  mulher  .................................................................  199   4.4.3.  Ap  12.17-­‐13.10:  O  dragão,  os  descendentes,  e  a  besta  .......................................  205   4.4.4.  Ap  13.11-­‐18:  O  dragão,  a  besta  da  terra  e  os  marcados  ....................................  209   Considerações  finais  ................................................................................................  214   Referências  Bibliográficas  .....................................................................................  220   10 LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Bamberg Apocalipse – The seven headed dragon attempts to harm the woman by spewing out a torrent of water ................................................................................ 38   Figura 2 – Trinity Apocalipse – Imagem 553 ...................................................................... 39   Figura 3 – Trier Apocalipse – fol. 38r ................................................................................. 41   Figura 4 – Joaquim de Fiore Apocalipse – O dragão de sete cabeças ............................... 43   Figura 5 – Durer Apocalipse – São Miguel e seus anjos lutando contra o dragão ............ 44   LISTA DE QUADROS 1 - Quadro comparativo entre Apocalipse e Daniel ............................................................. 74   2 - Quadro comparativo de expressões repetidas ................................................................. 99   3 - Quadro comparativo Alfa e Ômega .............................................................................. 104   4 - Quadro comparativo de abertura e fechamento ............................................................ 105   5 - Quadro comparativo de estruturas inversas .................................................................. 109   6 - Quadro comparativo de paródia ................................................................................... 111   7 - Quadro comparativo de paródia ................................................................................... 112   8 - Quadro comparativo de paródia ................................................................................... 112   9 - Estrutura de quiasmo semântico ou temático ............................................................... 116   10 - As três divisões do enredo segundo Barr .................................................................... 119   11 - O enredo principal em quatro cenas ........................................................................... 120   12 - Entrelaçamento do macroenredo com o microenredo ................................................ 126   13 - Quadro comparativo entre as sete igrejas ................................................................... 130   14 - Quadro comparativo entre as sete igrejas ................................................................... 131   15 - Os principais temas do microenredo .......................................................................... 153   16 - Quadro comparativo Gênesis 3 e Apocalipse 12 ........................................................ 165   17 - Quadro comparativo Daniel 7 e Apocalipse 13 .......................................................... 170   18 - Quadro comparativo de repetição Ap 12 .................................................................... 180   20 - Quadro comparativo das quatro narrativas de Ap 12-13 ............................................ 212   11 Introdução O termo “Apocalipse”, ao longo dos séculos, adquiriu significados relacionados a mistérios, cataclismos, tragédias, guerras nucleares, destruição em massa, ou seja, ao fim do mundo. Entretanto, a palavra “Apocalipse” originalmente não tem esse significado. Ao contrário de “mistério”, a palavra grega significa revelar, descobrir (SWANSON, 1997, p 637). Trata-se da primeira palavra que aparece no último livro canônico da Bíblia, que é atribuído a João, o Apóstolo. (“Apocalipse de Jesus Cristo” Ap 1.1). O termo foi tomado como o título do livro, e por ser um livro cheio de visões referentes supostamente ao fim do mundo, passou a designar todo um gênero literário que se baseia em visões celestiais, apontando para o fim desta era (RUSSEL, 1997, p. 16.). A expressão “apocalipse”, portanto, teve uma influência retroativa, pois estabeleceu o gênero até mesmo a certas obras que foram escritas antes dele. Porém, “a associação com escatologia deriva não do significado do termo, mas do conteúdo do livro do Apocalipse e de outras obras relatadas” (HIMMELFARB, 2010, p.1). Assim, é preciso falar em Apocalipse e literatura apocalíptica. O primeiro se referindo ao livro atribuído ao Apóstolo João, e o segundo como uma designação de toda uma gama de literatura que encontra semelhanças com o livro do Apocalipse1. O livro do Apocalipse tem exercido grande fascínio sobre as pessoas ao longo de quase vinte séculos. É comum que seja lido como uma espécie de código secreto que possa revelar os acontecimentos futuros aos que o consigam desvendar. Artistas retrataram (e continuam retratando) visões espetaculares a partir desse livro, romancistas sempre fizeram alusões aos seus personagens e conflitos, e muitos romances e ficções viraram best-sellers abordando os temas apocalípticos. O cinema, por sua vez, utiliza suas visões para atrair as 1 Nesse trabalho, deixamos de lado a ideia de Apocalipse como um evento final catastrófico, que é o modo comum como a mídia se refere a esse termo. Usaremos o termo com letra maiúscula para designar o livro bíblico “Apocalipse de João”, e com letra minúscula para fazer referência aos demais livros considerados apocalípticos. 12 pessoas alimentando-se de, e alimentando o medo do fim do mundo. Como disse o poeta alemão Herder (1744–1803), um livro que durante milhares de anos instiga o coração, desperta a alma e não deixa nem amigo nem inimigo indiferente, e dificilmente tem um amigo ou inimigo comedido, em tal livro deve haver algo de substancial, digam o que disserem (apud McGinn, 1997, p. 582). Percebe-se que o fascínio que o Apocalipse exerce sobre as pessoas deriva-se muito mais dos sentimentos e do apelo psicológico que os assuntos abordados despertam, do que de uma consideração do livro em si mesmo, em sua complexidade e valor literário. Apesar de ser amplamente conhecido, admirado ou temido, o Apocalipse é um livro que possui qualidades literárias nem sempre percebidas. Os estudiosos do Apocalipse, por sua vez, dividem-se entre aqueles que o leem como uma verdadeira revelação de Deus (entre esses estão muitos que procuram descobrir os acontecimentos históricos que, segundo se crê, aparecem como que “criptografados” no livro), e aqueles que o estudam de uma perspectiva crítica, aplicando as técnicas de análise textual e histórica a fim de dizer quais foram suas fontes, formas, redações, etc. Uma análise dos principais estudos sobre o Apocalipse revela que os aspectos literários presentes no processo de construção do texto narrativo não é a principal preocupação da maioria dos estudiosos2. Isso pode ser visto nos comentários de Lange & Schaff (1874), Seiss (1909), Charles (1920) Féret (1968), Ford, (1975), Mounce (1977), Ladd (1986), Morris (1989), Wilcock (1993), Aune (1998), Caird (1999), Witherington III (2003). Arens & Díaz Mateos (2004), Kistemaker3 (2004). Esses são uns poucos exemplos de uma lista que poderia se estender bastante, de comentários que abordam o livro do Apocalipse em uma perspectiva religiosa ou crítica (e as vezes mesclando as duas). Recentemente, muitos comentários buscaram a perspectiva libertadora (teologia da libertação), como os de Richard (1996), Mesters & Orofino (2003), Bortolini (2003), Leloup (2009), que também são poucos exemplos entre muitos, mas que não fogem da regra anterior, dividindo-se entre os que estudam o Apocalipse como teologia para a igreja ou da perspectiva crítica. Raramente aparece algum dedicado aos efeitos da recepção. Nesse sentido, destaca-se o comentário de Kovacs & Rowland (2004). O trabalho de Barr 2 O mesmo pode ser dito do restante da Bíblia em que também a preocupação da maioria dos intérpretes é com a teologia ou com a história. 3 Embora o comentário de Kistemaker se enquadre dentro do padrão “teológico”, há uma excelente introdução onde o autor lista diversos aspectos literários do livro. 13 (1998), que busca ler o Apocalipse como narrativa, é praticamente uma solitária empreitada. Entretanto, nenhum desses textos trata especificamente dos aspectos literários. O que há de mais completo é o estudo de Bauckham sobre as qualidades literárias do Apocalipse, que ele próprio avaliou como pioneiro e preliminar (1993b, p.1). Por vezes percebe-se que o autor está ainda primordialmente preso aos aspectos históricos. Embora, entre os livros bíblicos, o Apocalipse seja o que recebe uma maior atenção por parte dos estudiosos em seus aspectos literários, especialmente por parte dos que encontraram nele a estrutura da recapitulação desde Vitorino de Pettovio no século IV, o tratamento literário é ainda muito incipiente. O método histórico-crítico, certamente o mais praticado entre os exegetas bíblicos nos séculos XIX e XX, entende que a análise literária focaliza-se na história das formas bíblicas. Assim, “a ênfase do método se dirigia para os modos como foram agrupados em um texto final os diversos materiais oriundos de tempos e tradições díspares” (ZABATIERO & LEONEL, 2011, p. 128). O pressuposto por trás dessa análise é que a compilação dessas formas foi realizada para atender demandas religiosas específicas de certas épocas, feita muitas vezes de forma abrupta, sem preocupações estéticas. Houve, sem dúvida, nesse tipo de análise, um menosprezo do texto bíblico como ele se apresenta. Alter generaliza esse tipo de estudo como uma tentativa de fazer “escavações” (2007, p. 29). Ele diz que as “escavações” sempre são feitas seja de modo literal, com o emprego da pá do arqueólogo e o exame de seus achados, seja com o uso de diversas ferramentas analíticas concebidas para escavar os sentidos originais das palavras na Bíblia, as situações originais em que foram usados certos textos específicos, as várias fontes a partir das quais foram articulados textos mais extensos (ALTER, 2011, p. 29). Nesse sentido podemos dizer que o estudo crítico se preocupou com os aspectos literários da Bíblia (e do Apocalipse). O objetivo maior foi demonstrar como os teólogos estavam errados em seu modo de estudar o texto bíblico, e isso foi feito através de um constante ataque ao caráter supostamente uniforme da Bíblia, numa tentativa de fragmentá-la no máximo de partes possível, para depois vincular essas partes a seus contextos originais, resgatando assim para a história um corpo de textos que a tradição religiosa havia santificado na eternidade para além de considerações históricas exatas (ALTER, 2007, p. 34-35). Assim, muitos desses estudiosos frequentemente estiveram mais interessados em dizer como um texto foi utilizado em um determinado e hipotético ritual religioso 14 primitivo, ou como foi emprestado de outras tradições religiosas, do que analisar a força da poesia do texto ou o propósito literário de ele estar na posição em que se encontra no texto bíblico. Frye faz uma análise interessante desse movimento: “ao invés de emergir de uma crítica ‘de base’, ou seja, dos estudos sobre os textos, a maior parte daquela erudição enterrou-se numa crítica de porão onde desintegrar o texto virou um fim em si mesmo”. (2006, p. 16). Aqui mesmo no Brasil, estudiosos ainda se engajam nessa tarefa. Carlos Mesters e Franscisco Orofino dizem: “O Apocalipse se parece mais com uma casa popular que foi construída aos poucos, ao longo dos anos, de acordo com o crescimento e as necessidades da família” (2003, p. 71). Em seguida, esses autores se dispõem a tentar encontrar “os sinais deste crescimento ainda visíveis nas paredes, no piso e no teto do Apocalipse” (2003, p. 71). Por outro lado, o estudo teológico, por vezes, na busca por encontrar subsídios e provas para sistemas teológicos e doutrinas praticadas por grupos religiosos se esqueceu completamente das variadas características e gêneros literários presentes nas Escrituras (ZABATIERO & LEONEL, 2011, p. 128). Desse modo, muitos teólogos que consideram a Bíblia a revelação divina para a humanidade têm preferido indagar sobre a visão bíblica do homem, a noção bíblica da alma, a visão bíblica da escatologia, em detrimento de fenômenos como a construção dos personagens, as motivações e a estrutura narrativa, como se fosse inadequado considerar tais aspectos no estudo de um documento essencialmente religioso (ALTER, 2007, p. 35). Portanto, ambos os grupos tendem a desconsiderar os aspectos artísticos literários da Bíblia. Por aspectos artísticos literários queremos dizer os elementos internos constitutivos de sentido de um texto que incluem enredo (a relação entre os incidentes de uma história), caracterização (a apresentação dos atores), ponto de vista (como a história é focada) e distorções temporais (tais como anacronismos, repetição, presságio e duração), entre outros (BARR, 2010, p. 647). E além disso, as numerosas modalidades de exame do uso engenhoso da linguagem, das variações no jogo de ideias, das convenções, dicções e sonoridades, do repertório de imagens, da sintaxe, dos pontos de vista narrativos, das unidades de composição e de muito mais. (ALTER, 2007, p. 28). Estudar esses aspectos literários não significa ignorar a pesquisa histórica, ou as descobertas das escavações arqueológicas e nem mesmo os conceitos teológicos aceitos pelas comunidades religiosas, pois 15 a aplicação da análise literária em textos bíblicos, a bem da verdade, não exclui os benefícios trazidos pela pesquisa crítica, nem menospreza o caráter sagrado atribuído à Bíblia pela teologia e pelas comunidades religiosas. A abordagem literária se aproxima de um texto de maneira simples e respeitosa: considerando-o como texto em si mesmo e investigando as suas categorias (ZABATIERO & LEONEL, 2011, p. 128- 129). Portanto, o que se propõe nesse trabalho é que uma análise literária do Apocalipse é fundamental para a leitura e interpretação do livro. Nosso esforço será o de mostrar a importância dessa análise para a compreensão do Apocalipse de João, sem esquecer que é sempre um desafio lidar com “um corpo literário antigo, soterrado sob comentários não literários” (ALTER, 2007, p. 80). Serão norteadores para essa pesquisa os conceitos de Robert Alter e seu trabalho sobre os aspectos distintivos da Bíblia como literatura, especialmente em seu livro A Arte da Narrativa Bíblica (2007). Embora o trabalho de Alter se destine a examinar as narrativas da Bíblia Hebraica (Antigo Testamento) e não do Novo Testamento, encontramos nesse autor os fundamentos para a pesquisa, principalmente devido ao seu método de buscar os elementos literários subjacentes ao texto bíblico. A tese do referido autor é que as narrativas bíblicas devem ser lidas como “prosa de ficção”. Segundo Alter, ao se considerar as narrativas bíblicas “é importante ir além da análise das estruturas formais para uma compreensão mais profunda dos valores, da perspectiva moral contida num tipo particular de narrativa (2007, p. 11). Ou seja, considerar a Bíblia como literatura é essencial para entender a própria Bíblia. Alter define a arte literária na conformação da narrativa bíblica como: um papel finamente modulado a cada momento, quase sempre determinante na escolha exata de palavras e detalhes, no ritmo da narração, nos pequenos movimentos do diálogo e em toda uma teia de relações que se ramificam pelo texto (2007, p. 15). Prestar atenção a esses detalhes artísticos será útil para entender de forma mais completa o sentido de cada texto. Isso obviamente não significa abrir mão das ferramentas tradicionais da exegese das passagens bíblicas, nem do conceito de história, mas é olhar para o texto como um elemento completo e com sentido próprio sem determiná-lo por concepções historicizantes (LIMA, 2011). Robert Alter propõe uma análise literária da Bíblia que serve de referencial teórico desse trabalho, mas analisar a Bíblia de forma literária exige que se supere diversos obstáculos. O primeiro deles é justamente como lidar, da perspectiva literária, com um 16 texto sagrado que inspira respeito e reverência. A pergunta básica é se a Bíblia pode ser considerada uma obra literária, pois é considerada um livro religioso. Então, a pergunta é: Pode um livro religioso também ser literatura? Ou ainda, pode um livro religioso ser estudado da perspectiva literária, respeitando seu caráter religioso? Um fato é analisar um romance de Flaubert, Tolstoi, Cervantes ou Tolkien, em que parece lógico tentar encontrar os artefatos ficcionais deliberadamente criados, às vezes através de documentações ou testemunhos dos próprios autores; outro é fazer isso com textos que são considerados “divinos”. Para Frye “a abordagem da Bíblia de um ponto de vista literário não é de per si ilegítimo: nenhum livro poderia ter uma influência literária tão pertinaz sem possuir, ele próprio características de obra literária” (2006, p. 14)4. O esforço de Frye em mostrar a capacidade do texto bíblico em suscitar a imaginação das pessoas é similar a resposta de Alter sobre a razão de estudar a Bíblia como literatura, pois, apesar de seu caráter religioso, e independente de concepções normativas ou reivindicações de inspiração, os autores bíblicos foram, antes de qualquer coisa, escritores, e utilizaram recursos literários para transmitir suas mensagens (2007, p. 46). Essa resposta, por sua vez, não elimina a afirmação de Frye que a “intenção primeira da Bíblia não é literária” (2006, p. 80). Sem dúvida, a intenção primária da Bíblia é teológica. A tese de Alter é que se deve insistir “na ideia de uma fusão completa de uma arte literária com um modo teológico, moral ou histórico-filosófico de ver o mundo, sendo que a plena percepção do segundo depende do pleno entendimento da primeira” (2007, p. 38)5. Isso significa que estudar o texto bíblico da perspectiva literária não se torna apenas um estudo com preocupações estéticas, pois, se é preciso uma fusão entre o conceito de teologia e o conceito literário, e se o primeiro depende do segundo, então, o estudo literário lançará luz sobre o estudo teológico. É nossa hipótese que o Apocalipse é uma peça literária muito bem construída, com detalhes e recursos estilísticos que reforçam seu sentido. Estudar o Apocalipse como literatura, portanto, poderá ajudar a entender melhor o seu conteúdo teológico e/ ou moral. No entanto, uma ressalva de Alter, seguida de uma afirmação, precisa ser feita aqui: 4 Para uma análise sobre em que sentido a Bíblia pode ser vista como literatura, ver: FERREIRA, João Cesário Leonel. A Bíblia como Literatura - Lendo as narrativas bíblicas. [s.d]. Disponível em: http://www.metodista.br/ppc/correlatio/correlatio13/a-biblia-como-literatura-lendo-as-narrativas-biblicas. Consultado em 22 de Julho de 2011. 5 O próprio Alter diz que essa tese foi proposta também por Joel Rosenberg. A citação de Rosenberg é a seguinte: “O valor da Bíblia como documento religioso está estreita e inseparavelmente ligado a seu valor como literatura” (ALTER, 2007, p. 38). 17 faço questão de dizer desde logo que, ao atribuir tamanha importância ao teor ficcional, não tenho a intenção de diminuir o impulso histórico que permeia a Bíblia hebraica. O Deus de Israel, como tantas vezes já se observou, é acima de tudo o Deus da história: a realização dos Seus desígnios na história é um processo que cativa a imaginação dos hebreus e desperta nela um interesse fundamental pela natureza concreta e diferenciada dos acontecimentos históricos. O fato é que a ficção era o principal recurso à disposição dos escritores bíblicos para compreender a história (2007, p. 57-58). Importantes perguntas norteadoras sobre o texto bíblico que deixaram de ser consideradas pela pesquisa bíblica tradicional (crítica ou teológica) precisam ser feitas: por que, por exemplo, o narrador atribui motivos ou sentimentos a seus personagens em certas situações e prefere silenciar em outras? Por que certas ações são descritas sumariamente, ao passo que outras são amplificadas por meio de sinônimos e detalhes? O que explica as mudanças radicais na escala temporal de alguns acontecimentos? Por que se introduzem diálogos em algumas circunstâncias, e qual é o princípio de seleção que governa a atribuição de palavras específicas aos personagens? Num texto tão econômico no uso de epítetos e descrições, por que a identidade singular de alguns atores é registrada pelo narrador em certos momentos da história? A repetição é uma característica bem conhecida da Bíblia, mas não é absolutamente um recurso automático: quando se dá a repetição literal, e quais são as variações relevantes nas fórmulas verbais repetitivas? (ALTER, 2007, p. 41). Essas perguntas nortearão a presente tese no livro do Apocalipse, muito embora seja necessário reconhecer diversas limitações dessa pesquisa, pois responder a todas as perguntas implicaria num estudo de proporções muito maiores do que é possível no presente momento. Levando em conta que grande parte dos comentários e trabalhos sobre o Apocalipse, tanto da área teológica quanto da área crítica, deixam de responder a essas questões, procuraremos analisar os procedimentos narrativos6, os detalhes estilísticos, os padrões numéricos, as paródias, as referências cruzadas, as repetições e a estrutura do enredo que compõe o livro do Apocalipse. Num primeiro momento, isso será feito através de uma análise generalizada do Apocalipse, e posteriormente, mais detalhadamente, no estudo dos capítulos 12 e 13, escolhidos por comporem uma unidade literária que oferece diversos desses elementos para nossa análise7. 6 Não faz parte dos objetivos centrais dessa tese analisar a narrativa do Apocalipse dentro do campo da teoria literária derivada do estruturalismo, intitulada de narratologia, da qual os praticantes mais influentes foram o lituano A. J. Greimas, o búlgaro Tzvetan Todorov e os críticos franceses Gérard Genette, Claude Bremond e Roland Barthes (EAGLETON, 2006, p. 155-156). Porém, alguns conceitos relacionados certamente aparecerão. 7 É nossa convicção que outras porções do livro poderiam ser igualmente escolhidas para a análise localizada. Por exemplo, os capítulos 4-6 que descrevem a coroação de Cristo no céu, recebendo do Pai o poder e a 18 Além de Alter, Frye, Barr, Bauckham e dos demais autores já citados, também trazem contribuições importantes, embora em menor grau, os trabalhos de José Pedro Tosaus Abadia (2000) e de John B. Gabel e Charles B. Wheeler (1993). O primeiro sendo uma introdução à Bíblia como literatura, é uma tentativa de estabelecer em que sentido a Bíblia é literatura, além de propor um método próprio de interpretação. O segundo, um manual geral da Bíblia sem grande contribuição específica para a leitura do Apocalipse como literatura, mas que se destaca pelo esforço em apreender os diferentes gêneros literários que perpassam o texto bíblico. Seguindo uma estrutura semelhante desse último, porém, muito mais volumoso e desenvolvido há o Guia Literário da Bíblia (1997). Como diz Ferreira “É um livro sem igual no mercado brasileiro” (2008). De fato, contém ótimas análises de todos os livros da Bíblia e foi publicado por uma importante editora não religiosa, mostrando que há potencial em estudar a Bíblia como literatura fora dos estudos teológicos. Entretanto, a parte que trata do Apocalipse assinada pelo respeitado estudioso de literatura apocalíptica, Bernard McGinn, constitui-se num sumário das interpretações e não trata especificamente das características literárias do Apocalipse. Para nossa análise serão úteis os conceitos bakhtinianos8 de intertextualidade e dialogismo. No final do século XX e início do século XXI, conceitos tais como intertextualidade, interdiscursividade, alteridade, dialogismo, polifonia, carnavalização começaram a ganhar destaque entre os estudos literários. Associados ao nome do estudioso russo Mikhail Bakhtin, tais conceitos ganharam corpo a partir da circulação e divulgação das obras do chamado círculo de Bakhtin9. As duas principais obras que tratam da intertextualidade e do dialogismo são: Marxismo e filosofia da linguagem (1997 [1929]) e Problemas da poética de Dostoiéviski (2002 [1929]). Segundo Beth Brait, as contribuições teórico-metodológicas do pensamento bakhtiniano não configuram, efetivamente, uma proposta fechada e linearmente organizada. Constituem, no entanto, um corpo de conceitos, noções e autoridade para abrir os selos do livro que descreve os eventos finais da história do mundo; ou os capítulos 20-22 que formam o último ciclo recapitulativo do livro e fecham o enredo. Por isso, é preciso admitir que a escolha dos capítulos 12 e 13 foi por conveniência e interesse próprio do autor, a partir da compreensão de que eles contém a maioria dos elementos literários necessários para a abordagem e encontram-se exatamente no centro da padrão sétuplo exposto nessa tese. 8 Intertextualidade foi um termo cunhado por Kristeva. Intertextualidade não se refere meramente a uma influência de um texto sobre o outro, não é uma mera dependência, antes um diálogo, por isso o termo “dialogismo”. Embora esses conceitos sejam importantes para algumas partes dessa tese, não serão referenciais teóricos dela como um todo. 9 O círculo completo é composto por: Mikhail BAKHTIN (1895–1975) Matvei Isaevich KAGAN (1889- 1937) Pavel Nikolaevich MEDVEDEV (1891-1938) Lev Vasilievich PUMPIANSKII (1891-1940) Ivan Ivanovich SOLLERTINSKII (1902-1944) Valentin Nikolaevich VOLOSHINOV (1895-1936). 19 categorias que especificam a postura dialógica diante do corpus discursivo, da metodologia, e do pesquisador (2006). O conceito de intertextualidade é fundamental para o entendimento do texto do Apocalipse e de seu caráter literário. Entretanto, pelas próprias limitações da pesquisa, não será possível fazer um estudo mais abrangente da teoria bakhtiniana10. O Apocalipse, como todo texto literário, faz uso da intertextualidade. Há intertextualidade com a literatura apocalíptica do período em que ele surge, com o contexto histórico e literário em que viviam os seus primeiros leitores, e principalmente, com Antigo Testamento, sobre o qual ele constrói a maioria de suas visões. Como diz Barr: intertextuality refers not just to the relationship of one text to another, but to their ongoing mutual influence. Thus John’s use of the Hebrew scriptures must be viewed not only as their having an influence on him, but also as his having an influence on them. Having taken up Daniel’s Son of Man (Dan. 7:13), John changes the way Daniel is read by identifying this Son of Man with the Risen Jesus (Rev. 1:13; in Daniel it was a corporate image for Israel, Dan. 7:18). And, of course, by reappropriating this corporate image, the reader of the Apocalypse might develop new insights into John’s characterization of Jesus. It is an ongoing dialectical process (2010, p. 640-641)11. Para a análise da arte literária do texto do Apocalipse, especialmente do enredo dos capítulos 12 e 13, serão úteis os conceitos de Tzvetan Todorov sobre as estruturas das narrativas (1980), (2008), e também de Yves Reuter (1996), (2002). No primeiro capítulo faremos um sumário da história da interpretação do livro, analisando as principais correntes interpretativas e também algumas expressões artísticas influenciadas pelos capítulos 12-13 do Apocalipse (objeto principal de nossa análise). Isso servirá para situar o leitor sobre a posição que o Apocalipse ocupa na história, e demonstrar que o livro tem sido interpretado de uma perspectiva teológica-religiosa ou crítica, recebendo pouca atenção para seus recursos literários. 10 Para uma análise do pensamento de Bakhtin recomendamos BRAIT, Beth. Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2010. BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. Campinas, SP: Ed. UNICAMP, 1997. FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006. CLARK, Katerina; HOLQUIST, Michael. Mikhail Bakhtin. São Paulo: Perspectiva, 1998. 11 “Intertextualidade refere-se não só a relação de um texto com outro, mas ao curso de sua mútua influência. Assim, o uso que João faz das Escrituras Hebraicas deve ser encarado como tendo uma influência sobre ele, mas também como tendo uma influência sobre elas. Tendo retomado o filho do homem de Daniel (Dn 7:13), João muda a forma como Daniel é lido por identificar este filho do homem com o Jesus ressuscitado (Ap. 1:13; em Daniel era uma imagem corporativa para Israel, Dn 7:18). E, claro, por reapropriar essa imagem corporativa, o leitor do Apocalipse pode desenvolver novos insights sobre a caracterização de João a respeito de Jesus. É um processo dialético” (tradução nossa). 20 No segundo capítulo nos voltaremos para a literatura apocalíptica propriamente dita, bem como para os fundamentos literários e históricos que formam o arcabouço literário do Apocalipse canônico. Será possível apreender o diálogo do Apocalipse em relação a outros textos da Bíblia Hebraica e também com outras obras consideradas apocalípticas. Aqui o aspecto intertextual do Apocalipse ficará estabelecido e conceituado, e se mostrará que, de fato, o conceito de história não pode ser abandonado para uma boa leitura do livro, porém, não é suficiente para uma compreensão mais abrangente. No terceiro capítulo procuraremos ver os elementos ficcionais presentes na narrativa, como a complexidade e intensidade da trama e dos personagens e como o texto se constrói de forma coesa e intencional. Especial atenção será dada ao enredo; como ele se compõe a partir da numerologia, das repetições, das paródias, das referências cruzadas e de outros mecanismos literários que estruturam o padrão de recapitulação12 empregado no livro. No quarto e último capítulo, concentraremos nossos esforços na análise de um texto selecionado do Apocalipse, os capítulos 12-13. Além dos aspectos já considerados nos capítulos anteriores que voltarão a ser úteis, analisaremos a rede de relações que se estabelece entre o referido texto com o Antigo Testamento. Especial atenção será dada à intertextualidade que há entre o capítulo 12 de Apocalipse e o capítulo 3 de Gênesis e também, entre o capítulo 13 de Apocalipse e o livro de Daniel. Por fim uma análise da narrativa buscará definir especialmente os recursos utilizados para a construção do enredo desses capítulos, mostrando como o autor manteve o padrão narrativo cíclico nas partes menores. Essa tese pretende estabelecer a validade de um estudo da arte literária nesse texto que primordialmente é aceito como religioso, e estudado prioritariamente da perspectiva crítica ou teológica. Analisar esses aspectos será útil para melhor apreciação do livro do Apocalipse e do gênero apocalíptico, reforçará o sentido de unidade literária do texto, como, também trará recursos úteis para sua leitura e interpretação que, somados aos conceitos históricos e teológicos, revelará com maior profundidade os mistérios do Apocalipse de João. 12 Por “recapitulação” nos referimos ao estilo repetitivo através do qual o autor constrói a história do livro. Ao contrário de seguir uma estrutura linear ou cronológica, o autor recapitula fatos e reconta a mesma história várias vezes. Essas históricas recapituladas são chamadas de “seções”. 21 O estudo do texto do Apocalipse será feito primordialmente na versão Almeida revista e atualizada (1993) por ser a que o autor tem mais familiaridade, e por ser uma tradução já consagrada no Brasil. Todas as citações bíblicas, portanto, são dessa versão, salvo em exceções expressamente indicadas. No caso do texto grego, quando necessário, se utilizará a versão The Greek of New Testament, 4a edição, com o texto de Nestle Aland 26a edição, editado por Allen Wikgren. 22 1. A história da interpretação do livro Partindo do pressuposto de McGinn, que “a história da interpretação de um texto é parte integral de seu significado, especialmente no caso de obras tão influentes e controvertidas como o Apocalipse” (1997, p. 569), faremos agora um sumário das principais interpretações do livro. Especial atenção será dada aos chamados pais anti- nicenos, por serem os que estavam mais próximos em termos temporais, da elaboração textual do Apocalipse. Listaremos também algumas interpretações críticas influenciadas pelo Iluminismo. Essa parte será útil para lembrar e estabelecer aquilo que foi dito na introdução, sobre a tendência de sempre buscar os significados teológicos do livro, em detrimento de seus aspectos literários, ou então, de buscar as fontes anteriores que teriam sido usadas por algum editor para compor o texto final. O Apocalipse foi interpretado de dois modos principais pelos teólogos antigos: como um livro que tem uma mensagem espiritual vinculada indiretamente à história, sem querer traçar uma linha histórica específica, como uma linha do tempo; ou do modo exatamente oposto, como uma história literal, uma profecia de eventos específicos que podem ser identificados ao longo dos séculos. Bernard McGinn faz um extrato dessas leituras no Guia Literário da Bíblia e também em suas obras maiores Apocalypticism in the Western Tradition (1994) e Visions of the End: Apocalyptic Traditions in The Middle Ages (1998). Vários de seus conceitos serão retomados em nosso estudo. 1.1. A interpretação teológica espiritual Os primeiros a oferecer uma interpretação espiritual do Apocalipse foram, provavelmente, Orígenes e Metódio de Olimpo. Orígenes (aprox. 185 D.C, ou 250 D.C.) 23 deu ao livro o mesmo tratamento alegórico que deu a toda a Escritura (MCGINN, 1997, p. 571). Como era próprio de seu método exegético, não demonstrou preocupação em interpretar literalmente o texto (Orígenes, Primeiros Princípios, 2.11.2, apud MCGINN, 1997, p. 571). No entanto, foi o primeiro a rejeitar explicitamente a ideia do milênio literal (KOVACS & ROWLAND, 2004, p. 16). Metódio de Olimpo (c. 250-311 D.C.) ofereceu interpretações espirituais para as principais passagens do Apocalipse. Em seu Symposium, apresentou uma interpretação interessante de Apocalipse 12. A mulher é identificada com a Igreja dando à luz aos que são lavados no batismo, ao passo que o dragão é o demônio, cujas cabeças e chifres representam vícios. Os 1260 dias da permanência da mulher no deserto não são considerados um período histórico real, mas sim um símbolo do conhecimento perfeito da Igreja acerca da Trindade (apud MCGINN, 1997, p. 571). As primeiras interpretações mais consistentes do livro foram feitas por Vitorino de Poetovio (304 D.C.) e Ticônio (380 D.C.). Ambos escreveram comentários completos do livro. Vitorino foi um bispo que sofreu martírio nos dias de Diocleciano. Seu comentário de Apocalipse foi revisado por Jerônimo e, por certo, sofreu modificações, especialmente no texto sobre o milênio que, ao que tudo indica, foi reescrito por Jerônimo, tendo retirado o aspecto literal (BACKUS, 2000, p. xiii). O comentário original de Vitorino permaneceu desconhecido até 1916. Ele analisou o Apocalipse não como uma profecia, mas como uma revelação de Cristo a respeito do verdadeiro sentido da Escritura (BACKUS, 2000, p. xiii). Escrito em latim, cerca de 300 D.C, é o comentário completo mais antigo que permanece. Vitorino é, provavelmente, o primeiro comentarista a falar explicitamente sobre a teoria da recapitulação, embora ainda apenas como uma noção: We must not regard the order of what is said, because frequently the Holy Spirit, when He has traversed even to the end of the last times, returns again to the same times, and fills up what He had before failed to say. (VITORINO, 1885, p. 352)13. Essa é a ideia que viria a dominar muitas interpretações posteriores: o Apocalipse não possibilita uma leitura linear, cujos capítulos seguem uma ordem cronológica, mas recapitula em seções paralelas elementos da mesma história. Vitorino se preocupa mais 13 “Nós não precisamos prestar atenção para a ordem do que é dito, porque frequentemente o Espírito Santo, quando Ele está viajando até o fim dos tempos, retorna novamente ao mesmos tempos e completa o que ele deixou de dizer antes”. (tradução nossa). 24 com as aplicações morais e teológicas do Apocalipse do que com seus aspectos históricos. Apesar disso, ele interpretou o milênio do capítulo 20 como literal. O comentário de Ticônio precisa ser reconstruído a partir das citações de Beatus, Primasius e Bede. Segundo Ticônio, o Apocalipse era a profecia do sofrimento e esperança de sua igreja (BACKUS, 2000, p. xiii). Ticônio foi um donatista e viveu durante um período de relativa tranquilidade em relação a perseguições. Foi quem provavelmente deu a mais completa interpretação do Apocalipse nessa linha espiritualizadora. Para ele, não há possibilidade de que os eventos referentes ao milênio, por exemplo, sejam literais. McGinn diz: “Embora Agostinho e Jerônimo fossem amplamente responsáveis pelo legado dessa interpretação a-histórica, moral, eclesiológica e antimilenária aos comentadores posteriores, ela se originou em Ticônio” (1997, p. 572-573). Ele rejeitou a ideia de que as duas testemunhas e o próprio Anticristo fossem pessoas reais; as duas testemunhas referiam-se à igreja dos dois testamentos (Antigo e Novo) e o Anticristo representava o mal onipresente e os falsos cristãos (BACKUS, 2000, p. xiii). O maior teólogo da antiguidade a adotar o modelo espiritual de interpretação foi Agostinho de Hipona (354–430 D.C.), mas sua primeira interpretação foi literal. Num sermão (259), Agostinho havia adotado a posição milenarista, ou seja, de que haveria mil anos literais de Cristo na terra antes do julgamento final (BACKUS, 2000, p. xiv)14. Entretanto, no clássico Cidade de Deus, Agostinho mudou sua visão anterior de uma interpretação literal milenária futurista baseada principalmente em Apocalipse 20.1-6, para uma visão espiritual. O próprio Agostinho disse que essa mudança de interpretação se deu porque percebeu que o livro mesclava expressões literais e figurativas, e isso dificultaria escolher entre umas e outras (AGOSTINHO, 2000, 20.7 e 9, MCGINN, 1997, p. 569). A interpretação não literal do Apocalipse alicerçada em Agostinho, Ticônio e parcialmente em Vitorino perdurou por setecentos anos. Essa linha não negava os aspectos proféticos do livro, preocupava-se, contudo, mais com os aspectos morais, e abstinha-se de tentar interpretar os eventos do fim como algum momento histórico específico (MCGINN, 1997, p. 573). Do mesmo modo, não via o livro como uma história sequencial, mas composto de diversas recapitulações. 14 Para uma análise da fase milenarista de Agostinho ver: FOLLIET, Georges. La typologie du sabbat chez s. Augustin – son interpretation millénarist entre 389 et 400, in: Revue des Études Augustiniennes 2, 1956. Pp.371-390. Essa exposição já se tornou clássica. 25 Entre os mais eminentes intérpretes posteriores dessa linha encontram-se Primásio (c. 560 D.C) que foi bispo de Hadrumetum na África, e Bede (672-735 D.C), o monge beneditino inglês. Ambos, segundo Backus, fizeram extenso uso das interpretações de Ticônio, adaptando sua obra para o uso católico (2000, p. xiv). Bede, provavelmente, foi o primeiro intérprete a dividir a obra em sete seções ou sumários. Ele explicou esse procedimento no prefácio de sua epístola para Eusébio (PL 93:130-131, in BACKUS, 2000, p xiv). A primeira seção engloba o endereçamento às sete igrejas que representam a igreja universal e a promessa do retorno de Cristo (Ap 1-3). A segunda seção descreve a abertura dos sete selos do livro em que o Cordeiro lerá os conflitos e triunfos que a igreja tem sido confrontada desde a Encarnação (Ap 4-8.5). A terceira seção segue o mesmo padrão, repetindo os mesmos eventos na forma de sete trombetas (Ap 8.6-11.19). A quarta seção descreve as alegrias e tribulações da igreja (Ap 12-14). A quinta seção aflige a terra com sete pragas (Ap 15-16). A sexta seção descreve o julgamento da grande Babilônia (Ap 17-20). A sétima seção descreve a Jerusalém celestial e a paz eterna após o julgamento final (Ap 21-22) (BACKUS, 2000, p. xiv-xv). É interessante notar que praticamente todos os intérpretes citados viveram entre Constantino e o século nono. O tempo das perseguições já havia passado, a igreja havia triunfado, portanto, pouca identificação das imagens assustadoras do Apocalipse podia ser feita com a realidade. Sendo assim, buscaram o significado espiritual do texto. É claro que não se pode desconsiderar a força da tradição agostiniana e seu forte impacto nas interpretações posteriores. Percebe-se que essas interpretações não levaram em conta a maioria dos aspectos literários do Apocalipse, exceto é claro, sua estruturação em seções. 1.2. A interpretação teológica histórico-profética Os primeiros teólogos que podem ser considerados historicistas15 são: Justino (100- 165 D.C.), Irineu (c. 130-202 D.C.), e Hipólito (c.170-235). Todos acreditavam num milênio literal após a segunda vinda de Jesus (KOVACS & ROWLAND, 2004, p. 15). Todos viveram no período anterior a Constantino. Como foi visto acima, a partir de 15 Os anteriores, como já foi dito, também são historicistas no sentido de que identificam o Apocalipse com algum tipo de cumprimento histórico generalizado, porém não específico como os que serão estudados agora. 26 Ticônio-Agostinho, essa interpretação foi abandonada. Entretanto, retornou com força no início do segundo milênio. Os três primeiros intérpretes a oferecer definições consistentes do Apocalipse na tradição histórico-profética foram Rupert de Deutz (1129 D.C), Joaquim de Fiore (1183 D.C.) e Nicolau de Lira (1340 D.C). O monge alemão Rupert de Deutz considerou o conflito entre a mulher e o dragão no capítulo 12 uma profecia ou um prenúncio da luta entre Gregório VII e Henrique IV (MCGINN, 1997, p. 573). Na verdade, Rupert viu o Apocalipse como uma descrição da História desde Adão até o Concílio de Niceia (BACKUS, 2000, p. xvi). Nesse sentido, “fez um uso sem precedentes de paralelos entre eventos históricos e símbolos do Apocalipse” (MCGINN, 1997, p. 573), utilizando inclusive citações das obras de Eusébio e Josefo e harmonizando-as com os eventos descritos no Apocalipse (BACKUS, 2000, p. xvi). O abade franciscano calabrês Joaquim de Fiore pode ser considerado o maior inovador da linha de interpretação histórica. Segundo McGinn, ele disse ter recebido a chave da interpretação através de uma inspiração divina (1997, p. 573). McGinn ressalta: sem abrir mão das dimensões eclesiológica e moral da linha ticoniana- agostiniana, e concordando plenamente que a recapitulação era um traço essencial do texto, o calabrês produziu a primeira leitura histórica suficientemente desenvolvida do Apocalipse, que mostrava em detalhes não só como os símbolos do livro tinham correlação com eventos mais importantes da história da Igreja, mas também como eles permitiam ao leitor ver, ao menos em linhas gerais, o que estava por vir (1997, p. 573- 574). Joaquim escreveu seu comentário em 1195 e dividiu-o em oito partes. Diferente de Bede, ele começou a parte sete com Apocalipse 20 e não com Apocalipse 2116 (BACKUS, 2000, p. xvii). Para Joaquim, o Apocalipse engloba os dois últimos status da história: a Era do Filho e a Era do Espírito. As primeiras seis partes de seu comentário referem-se à Era do Filho (quarenta e duas gerações com cerca de trinta anos), e a parte sete aborda a Era do Espírito. A parte oito, extremamente curta, trata dos eventos meta-históricos na Jerusalém celestial (BACKUS, 2000, p. xvii). A parte 1 (Ap 1-3) contém sete gerações e trata da luta dos apóstolos contra a sinagoga. A parte 2 (Ap 4.1-8.1) enfoca a luta dos mártires contra as perseguições pagãs. A parte 3 (Ap 8.2-11.18) abrange a luta dos doutores da Igreja contra os hereges até o estabelecimento de Constantino. A parte 4 (Ap 11.19-14.20) refere-se à 16 Isso tem implicações para a consideração do milênio, pois se a sétima recapitulação inicia no capítulo 20, então o milênio não está no fim da história, mas no começo. 27 luta das ordens monásticas contra o Islã. A parte 5 (Ap 15.1-16.17) representa o conflito entre a Igreja de Roma e o Sacro Império. A parte 6 (Ap 16.18-19.21) expõe a luta dos homens espirituais (representado por duas novas ordens religiosas), contra o dragão e contra as duas bestas, que representam, respectivamente, Saladino (contemporâneo de Joaquim) e o maximus Antichristus, uma pessoa que combina a heresia do Islã e todas as heresias ocidentais. A Era do Filho, de acordo com seus cálculos, acabaria em 1260 e seria sucedida pela Era do Espírito retratada na parte 7 (Ap 20.1-10), quando Satanás seria acorrentado e a igreja liberta de todas as perseguições após o conflito final. Nesse momento, a ordem contemplativa tomaria posse da igreja e haveria uma completa renovação espiritual (BACKUS, 2000, p. xvii-xviii). Joaquim não via o milênio como literal, no sentido de mil anos fechados, e seguia, até certo ponto, a interpretação de Agostinho de que o milênio começara com a ressurreição de Jesus. Entretanto, para ele, o Anticristo seria uma pessoa procedente de Roma (BACKUS, 2000, p. xviii), possivelmente, um Papa. O comentário do franciscano Nicolau de Lira popularizou uma nova forma de leitura linear profética do Apocalipse (MCGINN, 1997, p. 575). Segundo Backus, foi muito mais fundamentado em eventos históricos que teve lugar entre a ascensão de Cristo e seu próprio tempo. Os selos referem-se, assim, ao reinado de Domiciano, e as trombetas simbolizam a era das heresias, particularmente a heresia ariana. A primeira besta da Apocalipse 13 é Kavat, filho de Cósroes (o inimigo persa do imperador Heráclio), e a segunda Besta é o Islã. As sete taças são derramadas durante as primeiras cruzadas. De acordo com Nicolau de Lira, Ap 19.11 (o cavalo branco com o seu cavaleiro, fiel e verdadeiro) não se refere a Cristo, mas a Baldwin, o rei cristão instalado em Jerusalém (após a primeira cruzada de 1099) que finalmente capitulou diante de Saladino em 1187 (BACKUS, 2000, p. xvi). Algumas declarações são ainda mais intrigantes: O livro que João tem ordem de comer em Ap 10.9 é o Digesto Justiniano (MCGINN, 1997, p. 575). Entretanto, ele não defende um milênio literal. Novamente, isso se deve aos resquícios da influência agostiniana. Os próximos teólogos a interpretarem o Apocalipse numa busca por identificá-lo com o momento histórico em que viviam foram os reformadores. Exceção deve ser feita a João Calvino (1509-1564), pois o Apocalipse foi um dos poucos livros que ele não comentou. Lutero (1483-1546) interpretou o livro no sentido linear-histórico, entendendo que a história o capacitava a decifrar o Apocalipse (MCGINN, 1997, p. 576). É curiosa a 28 interpretação dos três “ais” anunciados pela águia em Ap 8.13. O primeiro “ai” era o herético Ário, o segundo, o ataque maometano à Igreja, o terceiro, o império papal (MCGINN, 1997, p. 576). O que havia em comum em praticamente todos os intérpretes da Reforma era a concepção de que o Papa era o Anticristo. Lutero teve inicialmente dificuldades em aceitar a própria canonicidade do livro, pois fazia pouca referência a Cristo segundo o reformador alemão, entretanto, como diz Backus, parafraseando Lutero, The Apocalypse was indeed obscure and did not teach Christ. It could, however, teach the Antichrist, who could be and indeed had been identified with the pope in many of the radical fourteenth and fifteenth century commentaries (2000, p. 07)17. Posteriormente, segundo McGinn, os luteranos encontraram um local para o próprio Lutero no Apocalipse, identificando-o com o anjo que transporta o Evangelho eterno em Apocalipse 14.6-7 (1997, p. 577). Os católicos, por sua vez, apresentaram uma outra interpretação; Robert Bellarmine (1542-1621) identificou o anjo do abismo, a figura demoníaca de Apocalipse 9.11, com Lutero e o luteranismo (KOVACS & ROWLAND, 2004, p. 20). Como já foi dito, Calvino não se manifestou sobre o Apocalipse, mas seus discípulos se pronunciaram. A Geneva Bible, uma Bíblia comentada pelos calvinistas do século XVI, atribuiu sem pudor a identidade do Anticristo ao Papa. No comentário de Apocalipse 9.3 que descreve os gafanhotos demoníacos saindo do abismo, a nota diz: Locusts are false teachers, heretics, and worldly subtil Prelates, with Monks, Friars, Cardinals, Patriarchs, Archbishops, Bishops, Doctors, Bachelors and masters which forsake Christ to maintain false doctrine (1602, 1989, Ap 9:3)18. E mais à frente, quando aparece o chefe das criaturas, o anjo do abismo, o mesmo que os católicos disseram ser Lutero, a nota explicativa da Bíblia diz: “Which is Antichrist the Pope, king of hypocrites and Satan’s ambassador” (1602, 1989, Ap, 9:11)19. 17 “O Apocalipse era certamente obscuro e não ensinava Cristo. Poderia, entretanto, ensinar o Anticristo, que poderia ser e certamente tinha sido identificado com o Papa em muitos dos comentários radicais dos séculos 14 e 15” (tradução nossa). 18 “Gafanhotos são falsos mestres e hereges mundanos, prelados, monges, frades, cardeais, patriarcas, arcebispos, bispos, doutores, bacharéis e mestres, que abandonaram Cristo para manter a falsa doutrina” (tradução nossa). 19 “Esse Anticristo é o Papa, rei dos hipócritas e embaixador de Satanás” (tradução nossa). 29 Os puritanos calvinistas da Inglaterra cristalizaram na Confissão de Fé de Westminster (1648) a interpretação clássica do Papa como o Anticristo: Não há outro Cabeça da Igreja senão o Senhor Jesus Cristo; em sentido algum pode ser o Papa de Roma o cabeça dela, mas ele é aquele Anticristo, aquele homem do pecado e filho da perdição que se exalta na Igreja contra Cristo e contra tudo o que se chama Deus (XXV.6). Os séculos XVI e XVII foram de grande embate entre católicos e protestantes, e ambos os grupos tiveram a tendência de identificar os rivais com as figuras tenebrosas do Apocalipse. Frye apresenta o seguinte comentário a respeito dessas interpretações: Com o passar do tempo interpretou-se o Apocalipse como uma profecia dos problemas que esperavam a Igreja no futuro, o que deixou os comentaristas à vontade para identificarem as imagens sinistras do Anticristo e da Grande Prostituta com tudo aquilo que lhes inspirava medo em sua própria época (2006, p. 124). No século XIX, a interpretação histórico-profética acentuou-se a partir dos movimentos fundamentalistas iniciados por John Nelson Darby (1800–1882), o fundador de Plymouth Brethren (Irmãos de Plymouth). A correlação do Apocalipse com a história, especialmente a história futura de um milênio literal e terreno, passou a ser dominante entre os evangélicos (especialmente norte-americanos). Essa visão está vinculada principalmente ao dispensacionalismo20 teológico que vê o retorno de Israel em 1948 para a Palestina como o primeiro dos sinais apocalípticos modernos que antecede a segunda vinda de Jesus. Entre os autores que defendem essa posição estão L. S. Chafer (2008), J. D. Pentecost (1998), J. F. Walvoord (1963). Na visão desses intérpretes, o Apocalipse é uma peça do grande quebra-cabeça bíblico e oferece informações para construir a sequência exata dos acontecimentos do século XX. No Brasil, esse movimento se popularizou através da chamada Bíblia de Referência de Scofield, que foi publicada pela primeira vez nos Estados Unidos em 1909. O século XX tem sido interpretado por essa corrente teológica como a era da carta de Laodicéia (Ap 3.14-22), devido ao declínio religioso e moral dos últimos tempos (KOVACS & ROWLAND, 2004, p. 23). O Apocalipse é visto como contendo profecias a respeito de instituições contemporâneas como a ONU e a União Europeia. Os dispensacionalistas esperam uma conversão final dos judeus a Cristo antes do fim do mundo. Isso, segundo KOVACS & ROWLAND é 20 O dispensacionalismo é uma corrente doutrinária de forte inclinação sionista, que divide a história bíblica em sete dispensações. A sétima é o milênio literal após a segunda vinda de Jesus. 30 a mixture of eschatological hope and practical politics that is at least as old as Oliver Cromwell, who in the 1650s allowed the Jews back into England because he saw their return as part of the eschatological events dawning in his day (2004, p. 25)21. Da perspectiva da literatura de fantasia merece destaque um romance de ficção popular que segue a Bíblia de Referência Scofield. São os treze livros da série Left Behind (em português: Deixados para Trás) de Tim LaHaye e Jerry Jenkins (1995-2002) que vendeu 35 milhões de cópias em sete anos. O primeiro volume que deu nome à série, Deixados para Trás, descreve o desaparecimento misterioso de milhares de pessoas. Então, descobre-se que o juízo final chegou e que as pessoas arrebatadas eram os verdadeiros cristãos. O volume 2, Comando Tribulação, descreve a formação de uma equipe de cristãos nominais que não foram arrebatados e não se submeteram ao Anticristo e aliaram-se para lutar contra ele durante os sete anos de seu reinado. O Anticristo chama-se Nicolae Carpathia, e é um líder político que promete paz e prosperidade. Ele tem poder sobre as Nações Unidas e estabelece um império mundial totalitário com base no Iraque, a Nova Babilônia. No volume 3, A Colheita, no 21º mês após o arrebatamento, um terremoto assola a terra. O mundo é obrigado a decidir de que lado vai ficar. Em Apoliom, o volume 4, o Comando Tribulação reúne-se em Israel para a grande conferência. Apoliom, o principal demônio do abismo, lidera a praga dos gafanhotos demoníacos. No volume 5, intitulado Assassinos, um exército de cavaleiros sobrenaturais extermina um terço da população. O Comando Tribulação torna-se, definitivamente, um grupo clandestino. O volume 6, O Possuído, descreve o assassinato do Anticristo. Mas ao fim de 3 dias, ele ressuscita, possuído pelo demônio. A Marca, o título do Volume 7, é o número da besta que Nicolae Carpathia ressuscitado obriga todos a portarem na testa ou na mão, intensificando-se a perseguição aos cristãos. No Volume 8, Profanação, depois de sua ressurreição, Nicolae entra em Jerusalém imitando a entrada triunfal de Cristo. Com mais uma perda no Comando Tribulação, os "rebeldes" necessitam desenvolver novas táticas para sobreviver e combater o demônio da besta. Em O Remanescente (Volume 9), o Anticristo prepara sua vingança. Seus inimigos aglomeram-se no lugar ideal para uma destruição em massa. Ninguém poderá sair vivo dali, a não ser por um milagre. O volume 10 descreve o Armagedom. O Anticristo, desesperado, intensifica a perseguição aos que não aceitaram sua 21 “Uma mistura de esperança escatológica e prática política que é pelo menos tão antiga quanto Oliver Cromwell, que na década de 1650 permitiu os judeus na Inglaterra porque ele viu seu retorno como parte dos eventos escatológicos” (tradução nossa). 31 marca e se recusaram a adorá-lo. Em O Glorioso Aparecimento (volume 11) Nicolae, à frente de um exército numeroso e fortemente armado, conta com toda tecnologia disponível para perseguir os cristãos. Há uma única esperança para aqueles que resistem às forças da Comunidade Global: o retorno de Cristo. O último volume, A Vitória Final, descreve o fim dos horrores da tribulação. Jesus Cristo voltou e consolidou o seu reinado na terra. Quando Satã é liberto da prisão de mil anos, ele levanta seus seguidores para o último conflito entre o bem e o mal. Muitas aventuras da obra são baseadas em interpretações literais de partes do Apocalipse, descrevendo os selos, trombetas e taças de Ap 6-9, as duas bestas de Ap 13 e o milênio de Ap 20. É uma história ficcional que considera a possibilidade literal de interpretação de todos os eventos do Apocalipse e, divulga as interpretações feitas acima pela corrente dispensacionalista. Constata-se que os intérpretes da linha histórico-profética viveram nos períodos mais conturbados da história. Os primeiros (segundo e terceiro século D.C.) eram oriundos de uma igreja perseguida pelo imenso Império Romano. Os próximos (sec. 11-12) foram, na maioria, franciscanos radicais que buscavam a purificação da Igreja segundo os ideais monásticos; os da época da Reforma (sec. 16-17) estavam em meio ao grande conflito com o papado. E os últimos vivendo entre e após as guerras mundiais do século XX. O que todos têm em comum é a realidade de uma igreja questionada, uma sociedade cada vez mais arredia ao Evangelho, e acontecimentos globais cada vez mais assustadores. Assim, as cenas do Apocalipse alimentaram e continuam alimentando as visões da realidade. 1.3. A interpretação crítica É notório o efeito que o Iluminismo e seus desdobramentos causaram sobre a interpretação da Bíblia. Os métodos de pesquisa científica e histórica passaram a ser aplicados ao texto bíblico. Essa forma de abordagem, embora não tenha rejeitado a fé cristã, nunca esteve disposta a aceitar que tudo o que está registrado na Bíblia é verdadeiro, no sentido histórico, e, portanto, repudiou identificações de imagens e profecias do Apocalipse com momentos históricos futuros, e do mesmo modo, deu pouca atenção à mensagem espiritual do livro. Uma forma de abordagem, nesse sentido, ficou conhecida 32 como criticismo histórico. Nessa linha de abordagem, os eruditos tentam descobrir “o que realmente aconteceu”, ou seja, a história verdadeira por detrás das narrativas, uma vez que não as aceitam como fidedignas. Isto é feito notando discrepâncias em acontecimentos paralelos relatados em mais de um texto, e examinando material da história secular. Um desenvolvimento desse método ficou conhecido como crítica da fonte22. Esta abordagem tenta identificar as fontes usadas nos escritos bíblicos e sua relação entre si. Os defensores da crítica da fonte tentam provar que os escritores ou editores usaram uma ou mais fontes a que aderiram, mas se sentiram livres para acrescentar eventos e interpolações, e não foram cuidadosos sobre a precisão dos detalhes históricos. Outra abordagem crítica do Novo Testamento é a crítica da forma. Rudolf Bultmann foi um dos pioneiros dessa crítica, e considerou os Evangelhos sinóticos “literatura popular”. Os escritores dos Evangelhos, segundo Bultmann, colecionaram e editaram material e escreveram o modo como a Igreja tradicionalmente entendia os eventos, mais do que relataram eventos históricos acurados. A crítica da forma do Novo Testamento constrói-se sobre a crítica da fonte e tenta explicar como Marcos e a fonte “Q”23 surgiram. Marcos teria sido um produto da igreja primitiva, que supervalorizou a vida de Cristo ampliando os acontecimentos e transformando-os em eventos sobrenaturais. Mateus e Lucas teriam usado Marcos com adicionais complementos para formar seus Evangelhos. Esses acréscimos teriam se tornado indistinguíveis dos fatos históricos. Existe ainda a crítica da redação. Esta abordagem busca determinar o ponto de vista do escritor bíblico que teria feito o trabalho de redator das fontes primárias. O escritor não teria sido meramente um historiador, ele teria se tornado um teólogo ao modificar, compor e criar a tradição. A crítica da redação busca descobrir quais foram as modificações teológicas que o escritor (redator) teria feito em suas fontes originais. Essas metodologias foram aplicadas ao estudo do Apocalipse. Durante o período de 1875 a 1925, o método crítico foi amplamente desenvolvido. Segundo Aune, nessa época, os eruditos bíblicos tinham grande confiança de conseguir “dissecar” as composições bíblicas em fontes que a constituíam (1998b, p. cvi). O método consistiu em tentar 22 A crítica da fonte começou com a análise do Antigo Testamento, especificamente do Pentateuco. A autoria mosaica do Pentateuco foi rejeitada e, em seu lugar, foi desenvolvida a teoria de que o Pentateuco foi dividido em diversas ramificações que seguiriam fontes anteriores e que teriam sido compiladas por alguém depois do Exílio. Assim fala-se em fonte Y (partes que utilizam o nome Yahweh para Deus), fonte E (partes que utilizam o termo Elohim), fonte D (o Deuteronômio) e fonte P (que contém os ensinos sacerdotais). 23 A fonte “Q” seria o evangelho original, um texto talvez escrito em aramaico que se perdeu, mas que serviu de base para os três evangelhos sinóticos. 33 encontrar os documentos hipotéticos que teriam dado origem ao texto do Apocalipse, e estabelecer o modo como essas fontes foram “arranjadas” no texto final. A partir de 1920 as principais teorias que tentam explicar a forma final do Apocalipse são as chamadas “teorias de compilação”, “teorias de revisão” e “teorias de fragmentação”. F. Spitta, M. E. Boismard, F. Rousseau e H. Sterling defendem a “compilação”, ou seja, que dois ou mais originais apocalipses separados foram combinados para formar o Apocalipse. R. H. Charles, H. Kraft e P. Pringent sustentam a “revisão”, que propõe que um texto unitário apocalíptico foi objeto de uma revisão por um editor ou séries de editores. J. Weiss, W. Bousset, P. Vielhauer e U. B Müller defendem que várias unidades de textos foram mescladas para formar o Apocalipse de João (AUNE, 1998b, p. cx). Aune, em seu comentário para o Word Biblical Commentary defende uma teoria de duas edições. O texto do Apocalipse, segundo Aune, chegou à presente forma literária em dois estágios principais, que ele define como “Primeira Edição” e “Segunda Edição”. A primeira edição consiste de Ap 1.7-12 e 4.1-22.5. Seria uma composição com forte ênfase apocalíptica e poderia ter sido anônima ou pseudônima. A segunda edição acrescentou 1.1- 3 e 22.6-21, além de diversas expansões e interpolações nas seções anteriores, e tem uma orientação fortemente profética. Segundo Aune, “These two major editions represent the two primary stages in the composition of Revelation that are the easiest to detect”. (1998b, p. cxxi)24. Foge do escopo desse trabalho uma análise mais abrangente do método histórico- crítico aplicado ao Apocalipse, mas é suficiente para nossos propósitos notar o modo como o método priorizou o estudo literário com o objetivo de fragmentar o texto e não para entendê-lo em si mesmo. Para isso, escolhemos a análise da teoria de R. H. Charles, que escreveu seu comentário em 1920. Charles defende que João, o autor original do Apocalipse, morreu antes de terminar o livro: John died when he had completed 1-20.3 of his work, and that the materials for its completion, which were for the most part ready in a series of independent documents, were put together by a faithful but 24 “Essas duas edições principais representam os dois estágios primários na composição do Apocalipse que são os mais fáceis de detectar” (Tradução nossa). 34 unintelligent disciple in the order which he thought right (1920, vol. 1, p. l)25. Não há qualquer evidência histórica que comprove isso, mas Charles chega a essa conclusão através de sua análise do texto. Charles chama esse discípulo de “ignorante” ou “pouco inteligente” porque entende que esse editor teve pouca habilidade em trabalhar o texto de Ap 20.4-22.21 para torná-lo harmonioso com a obra de João, embora fosse mais habilidoso no uso do grego do que João (1920, vol. 1, p. l-liv). Esse editor foi responsável por pelo menos quarenta e três interpolações no texto de João, as quais podem ser identificadas, segundo Charles, porque se chocam com o contexto e modificam o estilo linguístico original do autor (1920, vol. 1, p. lvi-lviii). Charles insiste que But though a fair Greek Scholar, the editor is very unintelligent. He has made a chaos of 20.4-22, and wherever else he has intervened he has introduced confusion and made it impossible in many cases for students, who accepted his interpolations as part of the text, to understand the author (1920, vol 1, p. li).26 Em Ap 1.4, por exemplo, Charles entende que o editor buscou, através de sua interpolação, fazer o texto enumerar as pessoas da trindade, o que ele considera uma concepção grotesca. Novamente em Ap 1.8, Charles presume que o editor acrescentou oito palavras entre as expressões “Deus” e “todo-poderoso”. O verso inteiro é o seguinte: “Eu sou o Alfa e Ômega, diz o Senhor Deus, aquele que é, que era e que há de vir, o Todo- Poderoso”. Segundo Charles, João nunca quebraria a expressão “Senhor Deus Todo- Poderoso”, pois é um hebraísmo oriundo da expressão do Antigo Testamento “Senhor dos Exércitos”. Outra interpolação que Charles considera importante é em Ap 14.3-4, para a frase que descreve os 144 mil vencedores: “São estes os que não se macularam com mulheres, porque são castos”. Charles entende que ao interpolar essa frase o editor revelou que era um ascético e introduziu ideias pagãs, pois o Cristianismo jamais exaltou a castidade e sim a pureza sexual. Analisando a suposta interpolação de Ap 14.14-20, Charles conclui que o editor chegou ao “clímax da sua estupidez” (the climax of his stupidity). Isso 25 “João morreu quando ele completou 1-20.3 de sua obra, e que os materiais para sua realizacão, que estavam na maior parte prontos em uma série de documentos independentes, foram colocados juntos por um discípulo fiel, mas ignorante na ordem que ele pensou fosse correto”. (minha tradução). 26 “Mas apesar de um melhor estudioso do grego, o editor é muito ignorante. Ele fez um caos de 20.4-22, e sempre que ele interveio ele introduziu confusão e tornou impossível, em muitos casos para estudantes, que aceitam suas interpolações como parte do texto, conseguir entender o autor” (tradução nossa). 35 aconteceu porque ao acrescentar os versículos de Apocalipse 14.15-17, o editor teria dividido o julgamento messiânico em dois atos, o primeiro sendo a colheita da terra e o segundo a vindima. Para Charles apenas a vindima é o modo apropriado para as descrições de julgamento em João. Ele considera ainda que o editor dividiu o julgamento atribuindo metade para Cristo e metade para um anjo, o que ele considera uma estúpida heresia. Na interpolação de Ap 20.13, Charles conclui que há algo ainda pior, pois “dishonesty has taken the part of incapacity”.27 Isso se deve ao fato de o editor ter mudado algumas palavras do texto intencionalmente para poder afirmar uma ressurreição física. É curioso que a própria ameaça feita no final do livro a respeito de uma maldição para todos aqueles que acrescentassem ou subtraíssem algo do texto do livro, é visto por Charles como a pior de todas as interpolações do editor, que revela o que há de pior em seu caráter (CHARLES, 1920, vol. 1, p. li-lv). Esse sumário do método de um dos principais eruditos críticos do Apocalipse é suficiente para perceber que a preocupação da escola crítica não foi analisar os aspectos literários para tentar encontrar o sentido do texto, mas o oposto disso, para mostrar que o texto não tem sentido, sendo uma mescla de textos e opiniões contraditórias. Percebe-se também a subjetividade das análises dos estudiosos que se expressa no fato de raramente os críticos concordarem entre si sobre o que deve ser considerado interpolação ou marca redacional, assim como dificilmente concordarem sobre o número e a extensão do uso das fontes. 1.4. Interpretações teológicas e críticas de Apocalipse 12-13 O texto que descreve as batalhas entre a mulher, o dragão, o filho e as duas bestas é um dos mais conhecidos do livro do Apocalipse. Identifica-se uma grande variedade de métodos interpretativos e de recursos exegéticos utilizados para descobrir o sentido do texto, ao longo da história do Cristianismo. Uma vez que, nesse trabalho, nos propomos a analisar esses capítulos da perspectiva literária, faz-se necessário aqui um substrato das interpretações deles, que deve ser somado ao que já foi abordado nos tópicos anteriores desse capítulo. Utilizaremos também algumas ilustrações medievais para exemplificar as 27 “Desonestidade tem ocupado o lugar da incapacidade” (Tradução nossa). 36 tendências interpretativas de alguns períodos, e mencionaremos, a título de extrato, interpretações críticas. A mulher vestida de sol A mulher de Apocalipse 12 recebe diversos significados ao longo dos dois milênios da história cristã. Após a consolidação da Igreja Católica e do culto a Maria, a identificação mais comum, obviamente, se tornou com a Virgem, sendo que a mais antiga identificação conhecida vem do sexto século na obra de Oecumenio. Por isso, “this passage is unusually prominent in Christian lectionaries because of its Marian connections and its association with the feast of Michael and all angels” (KOVACS & ROWLAND, 2004, p. 135)28. Entretanto, as primeiras interpretações da mulher vestida de sol identificavam-na mais com a igreja do que com Maria. Hipólito sustentava que usando a imagem da mulher, João pretendia “meant most manifestly the Church, endued with the Father’s word, whose brightness is above the sun” (1885, Antichrist, 61, p. 217)29. Ticônio e Metódio também sustentavam essa interpretação eclesiástica da mulher (KOVACS & ROWLAND, 2004, p. 136), sendo que Metódio também a considerava como uma espécie de “mãe das virgens” (1885, p. 336). Vitorino via no símbolo a igreja do Antigo Testamento e também a igreja do Novo Testamento. Ele disse: the woman clothed with the sun, and having the moon under her feet, and wearing a crown of twelve stars upon her head, and travailing in her pains, is the ancient Church of fathers, and prophets, and saints, and apostles, which had the groans and torments of its longing until it saw that Christ, the fruit of its people according to the flesh long promised to it (VITORINO, 1885, p. 355)30. Depois, ele a identificou diretamente com a Igreja Cristã (VITORINO, 1885, p. 355-356). A Geneva Bible endossou essa interpretação (KOVACS & ROWLAND, 2004, p. 136). Em uma das ilustrações do chamado Apocalipse de Bamberg, reproduzida a seguir, duas figuras são representadas na composição: a da mulher e a do dragão. 28 “Esta passagem é extraordinariamente proeminente nos lecionários cristãos por causa de sua conexão mariana e suas associações com a festa de Miguel e de todos os anjos” (tradução nossa). 29 “Manifestar a Igreja, investida com a palavra do Pai, que brilha acima do sol” (tradução nossa). 30 “A mulher vestida com sol, e tendo a lua sobre seus pés, e usando uma coroa de doze estrelas sobre sua cabeça, e sofrendo dores, é a antiga Igreja dos pais, e dos profetas, e dos santos e apóstolos, que tem a dor e o tormento de sua longa espera até que Cristo, o fruto de sua pessoa segundo a carne, após a longa espera da promessa, se torne carne” (tradução nossa). 37 Figura 1 – Bamberg Apocalipse – The seven headed dragon attempts to harm the woman by spewing out a torrent of water 31 Na parte superior, destaca-se uma figura feminina alada, com a cabeça ornada por uma coroa de doze estrelas. Na parte inferior, tem-se a representação de um dragão com sete cabeças, sendo que a maior lança um jato de água, que não atinge, contudo, a mulher. Sob uma superfície plana, sem profundidade, destaca-se a simetria das cores terrosas e as formas sinuosas que compõem a ilustração. A mulher poderia ser identificada com a Igreja, 31 O Apocalipse de Bamberg foi, provavelmente, encomendado pelo imperador Otto da Alemanha por volta do ano 1000. Suas 50 ilustrações são notáveis pela expressividade e representação de ação violenta. Bestas inspiram terror, enquanto figuras humanas com olhos arregalados demonstram horror ou adoração diante dos eventos que se desenrolam (KOVACS & ROWLAND, 2004, p. 33). Disponível em: http://faculty.virginia.edu/kovacs/VanderMeer600/Rev.12BambergWoman(1).jpg. Consultado em 21 de Julho de 2011. Tradução do título: “O dragão de sete cabeças tenta destruir a mulher expelindo uma torrente de água”. 38 uma vez que a devoção e o culto à Virgem Maria passaram a ser representados nas artes, em especial nas artes clássicas, posteriormente, sendo um dos grandes temas dos mestres do Renascimento e do Barroco. A identificação com Maria, por sua vez pode ser encontrada na ilustração de um manuscrito inglês conhecido como Trinity Apocalipse, reproduzida a seguir. Figura 2 – Trinity Apocalipse – Imagem 55332 Nesta ilustração, duas cenas distintas compõem a criação pictórica. Na cena superior, à esquerda, as sete cabeças do dragão alado estão direcionadas para a mulher (à 32 As ilustrações de manuscritos ingleses formam outra tradição importante que começou por volta do ano 1250 D.C. e continuou até o século 15. O Trinity Apocalipse é datado de 1250-60, conhecido por suas cores ricas, utilização de folha de ouro e desenho gracioso. Provavelmente foi encomendado por algum nobre, talvez, Eleanor esposa do rei Henrique III (KOVACS & ROWLAND, 2004, p. 35). Está disponível em: http://faculty.virginia.edu/kovacs/VanderMeer600/Rev12TrinApocWoman.jpg. Consultado em 22 de Julho 2011. 39 direita), que entrega seu filho a um anjo. Na parte superior, à direita, tem-se a representação do anjo levando consigo a criança. Na cena inferior, as sete cabeças do dragão estão voltadas para diferentes ângulos, em posição ofensiva, enquanto que a imagem feminina, rodeada por flores coloridas, demonstra serenidade. Na cena superior, nota-se a predominância da cor azul na veste feminina que contrasta com tom vermelho, agressivo, da figura do dragão. Na cena inferior, Maria aparece com a auréola de santa e predomina o tom ocre com reflexos dourados em sua roupa, que enfatiza o aspecto calmo e tranquilo do seu semblante. A figura, portanto, reflete com bastante pertinência a concepção da Virgem que começava a se tornar predominante na Idade Média. Outras interpretações não identificaram a mulher de Apocalipse 12 nem com a Igreja, nem com Maria. Uma das mais curiosas interpretações foi feita por Joanna Southcott. Em 1814, ela anunciou-se como a mulher de que fala o Apocalipse, e intitulou- se a nova Eva, argumentando que estava grávida aos 60 anos, e que seu filho seria o messias, e receberia o nome de Shiloh (KOVACS & ROWLAND, 2004, p. 137). Ela morreu pouco tempo depois, mas sua profecia continuou tendo impacto popular. Antes disso, em 1774, Ann Lee Stanley chegou aos Estados Unidos vinda da Inglaterra, com oito seguidores. Após experimentar um transe de 36 horas, convenceu-se de que era a encarnação feminina da Divindade. Seus seguidores intitulados “The Shakers” identificaram-na com a mulher vestida com o sol (KOVACS & ROWLAND, 2004, p. 138)33. Assim, percebe-se como as interpretações foram se tornando cada vez mais específicas. Da igreja para a pessoa de Maria e, posteriormente, para mulheres individuais. Isso mostra como na história da interpretação do livro pode se ver um movimento do “espiritual” para o “histórico” na identificação das cenas. Por outro lado, os estudiosos críticos buscaram a origem dessa figura nas fontes pagãs e míticas. Charles concorda com diversos estudiosos como Gunkel, Bousset e Jeremias, que a coroa de doze estrelas é uma referência aos doze signos do zodíaco, assim a figura original do texto, oriunda de contextos mitológicos não cristãos, seria a de uma deusa coroada com os doze signos (CHARLES, 1920, vol. 1, p. 315-316). 33 Nesse mesmo estilo de interpretação que busca encontrar o cumprimento das profecias ou descrições apocalípticas em momentos históricos específicos, Hal Lindsey interpretou as asas da águia que são dadas à mulher para fugir do dragão como os jatos da força aérea americana que transportarão judeus para protegê-los do Anticristo (KOVACS & ROWLAND, 2004, p. 144). 40 A batalha no céu A cena da guerra angélica nos céus, provavelmente, seja a cena mais explorada nas interpretações artísticas. Vitorino de Pettovio descreveu a guerra como acontecendo no advento do Anticristo, quando após a pregação de Elias (Igreja) e o tempo de paz, o dragão é expulso do céu e então aparece o Anticristo (VITORINO, 1895, p. 356) Orígenes relata confusamente a história da queda do dragão como tendo acontecido no começo da criação, na queda dos anjos, enquanto André de Cesaréia vê duas referências: primeiro, a expulsão do dragão e seus anjos na queda original deles e, depois, sua expulsão através da cruz de Cristo (KOVACS & ROWLAND, 2004, p. 138). Figura 3 – Trier Apocalipse – fol. 38r34 34 Trata-se do mais antigo manuscrito de um comentário ilustrado. Foi produzido na França aproximadamente no ano 800 D.C.. Esse comentário possui 74 ilustrações de página inteira. A cena da guerra no céu é 41 No Trier Apocalipse, reproduzido acima, provavelmente, encontre-se a mais antiga ilustração preservada da batalha dos anjos contra o dragão. Sobre um pano de fundo azul de um céu com manchas escuras, os anjos expulsam o dragão dos céus. Anjos bons e anjos maus são praticamente idênticos na ilustração. Somente o dragão é diferente, embora curiosamente mantenha as asas angelicais. Há um personagem em destaque no canto inferior direito da cena. Como não tem asas, deve ser João que está vendo a cena. Ele está na terra e parece um pouco assustado com o acontecimento. Sua posição é de alguém que está se preparando para fugir. Os anjos bons e João têm auréolas na cabeça. Os anjos que estão caindo não as têm mais, pois deixaram de ser santos. Os anjos bons não são descritos como guerreiros medievais revestidos de armaduras e portando espadas, mas como santos, e usam o que parece ser um guincho com o qual estão arrastando o dragão para fora do céu. É evidente que o imaginário dos guerreiros das cruzadas ainda não se sobrepôs sobre a interpretação da cena como seria comum em ilustrações posteriores. Os dois planos da passagem, João na terra, e os anjos do céu caindo para a terra, e a própria posição de João, de como quem precisa fugir, aponta para o resultado da expulsão do dragão do céu, que é justamente perseguição na terra. Ou seja, os atos ocorridos nos céus influenciam diretamente a história dos homens na terra, mas a cena não procura se identificar com algum momento específico da história medieval. Há diversas interpretações que, por sua vez, tentam identificar a cena da batalha no céu com elementos históricos. Hipólito identificou as sete cabeças do dragão com diversos reis e impérios, como Assíria, Babilônia, Medo-Pérsia, Alexandre, Antíoco Epifânio e outros (HIPÓLITO, 1885, Antichrist, 25-27, 49, p. 209-210, 214). Vitorino se referiu às sete cabeças do dragão como sete imperadores de Roma, porém não os nominou (1895, p. 355). Joaquim de Fiore interpretou em seu comentário ilustrado o dragão de sete cabeças, como sete perseguidores da Igreja. O método hermenêutico de Joaquim em relação ao Apocalipse é um dos mais complexos que já foram formulados, como foi possível ver na divisão anterior. Não faz parte dos propósitos desse trabalho entrar nos detalhes metodológicos que o levaram a interpretar as cenas do Apocalipse35. É suficiente para nossa intitulada: Apocalipse 12.7-9, Trierer Apocalypse, Stadtbibliothek (Trier, Germany), fol. 38r. Disponível em: http://medieval.library.nd.edu/facsimiles/apocalypse/trier/38r.html, consultado em 21 de Julho de 2011. 35 Para um excelente estudo sobre a hermenêutica de Joaquim de Fiore ver ROSSATTO, MARASCHIN & NASCIMENTO (2010). Segundo os autores, “Joaquim de Fiore divide a história da humanidade em três estados (status) do mundo de acordo com a matriz trinitária. Cada estado está subdividido internamente em 42 análise destacar que, para Joaquim, cada uma das sete cabeças do dragão, na imagem ilustrada a seguir, estava relacionada a um dos períodos de perseguição que a “Igreja do Filho” suportou durante a época que ele denominou “segundo estado”. Figura 4 – Joaquim de Fiore Apocalipse – O dragão de sete cabeças36 Os períodos são os seguintes: 1) judeus (Herodes); 2) pagãos (Nero); 3) hereges (Constantino ariano); 4) sarracenos (Maomé); 5) filhos da Babilônia (Henrique IV); 6) perseguição em ato (Saladino); 7) perseguição iminente (primeiro Anticristo). Joaquim chamava sua interpretação de intelligentia spiritualis, sendo que “a alegoria e a tipologia, juntamente com a concórdia, compõem os três pilares de seu sistema três conjuntos de 21 gerações de 30 anos cada um deles, sendo que dois destes conjuntos coincidem. O primeiro estado, em que os homens viveram segundo a carne, teve início (germinatio) em Adão, frutificou (fructificatio) em Jacó e se consumou (consummatio) nas 21 gerações entre o rei Osias (de Judá) e José, pai de Jesus. O segundo estado, no qual os homens viviam entre a carne e o espírito, começou a germinar nas gerações precedentes (de Osias a José), frutificou nas 21 gerações seguintes (de Jesus a São Bento, que viveu de 480 a 547) e se consumaria 21 gerações depois (entre 1200 e 1230), período em que Joaquim escrevia sua obra. Por fim, o terceiro estado espiritual, que já se havia iniciado na sequência das 21 gerações anteriores, frutificaria 21 gerações depois, a contar de 1260, e se consumaria nas 21 gerações que coincidem com fim do mundo” (2010, p. 333). 36O desenho do dragão está intercalado pelo texto do Apocalipse e pelos comentários de Joaquim. Disponível em http://faculty.virginia.edu/kovacs/Joachim%20of%20Fiore%201/Joachim14abDragon.jpg. Consultado em 28 de Março de 2012. 43 hermenêutico” (ROSSATTO, MARASCHIN & NASCIMENTO, 2010, p. 337). É importante notar que Joaquim mesclava, portanto, métodos alegóricos e “espirituais” de interpretação, mas ao mesmo tempo procurava identificar os eventos e personagens com situações e pessoas históricas. Uma das mais criativas e “históricas” xilogravuras da batalha dos anjos foi feita por Albrecht Durer (1497-8), reproduzida abaixo. Figura 5 – Durer Apocalipse – São Miguel e seus anjos lutando contra o dragão37 Trata-se da décima primeira imagem da Série “O Apocalipse de São João”. A série Apocalipse inclui quinze xilogravuras publicadas em forma de livro. A cena descreve com dramaticidade a vitória de Miguel e seus anjos sobre o dragão e seus demônios. Os anjos na 37 A “São Miguel e seus anjos lutando contra o Dragão” é a xilogravura de 1496-8, disponível em: http://faculty.virginia.edu/kovacs/VanderMeer600/Rev12Durer10Michael.jpg Consultado em 21 de Julho de 2011. 44 ilustração de Durer são ferozes e os demônios são criaturas macabras. Há um distanciamento, nesse sentido, em relação à ilustração do Trier Apocalipse, pois nessa ilustração, os anjos são guerreiros com espadas, escudos e arcos medievais. O rosto dos guerreiros representa ferocidade. Eles têm cabelos encaracolados como geralmente os anjos têm nas ilustrações, porém suas expressões demonstram a luta árdua na qual estão envolvidos. A posição do corpo de Miguel também aponta para isso, o arcanjo está contorcendo-se com as asas eretas, enquanto encrava a lança na garganta do dragão. Chama a atenção igualmente o contraste entre os estados do céu (escuro) e da terra (clara). A batalha terrível está acontecendo no céu, enquanto isso, abaixo na terra, tudo parece tranquilo. Há plantações e inclusive uma igreja. A ilustração reflete o clima conturbado do final do século XV e cria uma expectativa no observador, que pode imaginar como a situação tranquila abaixo ficará quando aquela batalha chegar e os demônios caírem38. John Bale (1495 -1563), um bispo inglês, interpretou a cena numa mistura de história e tipologia aos moldes de Joaquim de Fiore. A primeira cabeça do dragão é a serpente que tentou Eva; a segunda é o começo da idolatria nos tempos de Ninrode; as quatro seguintes são os assírios (leão), os persas (urso), os gregos (leopardo) e Roma (cabeça estranha). A sétima cabeça é o papado (KOVACS & ROWLAND, 2004, p. 143). Segundo Suzanne Lewis, muitas dessas ilustrações medievais contribuíram para a formação de um “estado de mente” e uma “ansiedade” em relação ao fim dos tempos e do juízo final que foram característicos da Idade Média (2010, p. 4-5). Elas popularizaram o Apocalipse, ou pelo menos, as interpretações dele, e tornaram as cenas descritas no livro de João parte do imaginário e das expectativas das pessoas. Os estudos críticos seguiram a rotina de buscar a identificação do dragão com os mitos antigos, especialmente babilônicos que descreviam a batalha dos deuses na formação do mundo. Charles diz: “The primeval strife between Yahweh and the powers of chaos is transformed into a final struggle between God and Satan at the world’s close” (1920, vol. 1, p. 318)39. No caso da descrição do dragão como tendo dez diademas, uma vez que Charles não consegue identificar a imagem com alguma fonte primitiva, prefere pensar que a referência às diademas possa ser uma interpolação posterior (1920, vol. 1, p. 319). Ford, por sua vez, entende que a mulher representa o sacerdócio fiel e a comunidade profética, a 38 Para uma análise completa da obra de Dürer ver: PANOFSKY, Erwin. Albrecht Dürer. Princeton NJ: Princeton University Press, v. 1, 1945. 39 “A contenda entre Yahweh e os poderes do caos primitivo é transformada em uma luta final entre Deus e Satanás no fim do mundo”. 45 criança um proeminente líder, e o dragão é Satanás. Assim, a comunidade infiel aliada aos anjos caídos ataca a comunidade fiel (1975, p. 205)40. As bestas A besta do mar, a besta da terra e a marca da besta compõem o conteúdo principal do capítulo 13. Segundo Kovacs & Rowland, “interpretations of this chapter epitomize the different approaches to the Apocalypse: eschatological prediction, historical calculation, contemporary actualization and spiritual exhortation” (2004, p. 148)41. Ticônio entendeu a besta num sentido figurado. Sua interpretação que acabou sendo estabelecida por Agostinho, contrastou a cidade de Deus com a cidade do demônio, ambas existindo ao mesmo tempo. A cidade de Deus está presente na igreja, mas a cidade do demônio está no mundo atual, simbolizado pela besta do Apocalipse (KOVACS & ROWLAND, 2004, p. 149, AGOSTINHO, 2000, VIII.24). Lactâncio (c. 250-325 D.C) estabeleceu um programa detalhado do cumprimento das profecias do Apocalipse, especialmente ligado aos capítulos 12 e 13. Ele disse que quando o fim dos tempos se aproximasse, um grande profeta seria enviado por Deus para trazer aos homens conhecimento e receberia poder para realizar coisas maravilhosas. Mas o homens não o ouviriam e esse profeta fecharia os céus para não chover e infligiria grandes castigos aos homens. Quando suas obras terminassem, “another king shall arise out of Syria, born from an evil spirit” (LACTÂNCIO, 1885, p. 214)42. Esse rei seria o destruidor da raça humana. Ele lutaria contra o profeta de Deus e o feriria e também perseguiria os cristãos, ao ponto de todos os cristãos terem que se refugiar numa montanha. Então, o rei cercaria a montanha, mas os fiéis clamariam a Deus e “God shall hear them, and send from heaven a great king to rescue and free them, and destroy all the wicked with fire and sword” (LACTÂNCIO, 1885, p. 215)43. 40 Ford seguiu na primeira versão do comentário The Anchor Bible a ideia de que o Apocalipse era um livro composto em duas etapas, a primeira (Ap 4.1-11.19) era uma revelação para João Batista, e a segunda (Ap 12.1-19.21) uma revelação de um discípulo de João Batista. Porém, segundo Aune, ela mudou de ideia na revisão do seu comentário, e em uma carta em 1995 ao referido autor, afirmou que o livro é uma unidade, com uma possível exceção para as sete cartas, e mesmo essas fizeram parte do texto original (AUNE, 1998b, p. cxi). 41 “Interpretações deste capítulo tornam manifestas as diferentes abordagens ao Apocalipse: predição escatológica, cálculos históricos, atualizações contemporâneas e exortações espirituais” (tradução nossa). 42 “Outro rei se levantará da Síria, nascido de um espírito maligno” (tradução nossa). 43 “Deus os ouvirá e enviará do céu um grande rei para resgatá-los e libertá-los, e destruirá todos os ímpios com fogo e espada” (tradução nossa). 46 Vitorino de Pettovio disse que o surgimento da besta do mar “signifies the kingdom of that time of Antichrist, and the people mingled with the variety of nations” (1885, p. 356)44. Quanto à imagem que a segunda besta manda erigir da primeira, interpretou: “He shall cause also that a golden image of Antichrist shall be placed in the temple at Jerusalem” (VITORINO, 1885, p. 356)45. Hipólito entendia que a segunda besta era a falsa religião, uma imitação de Cristo simbolizada pelos dois chifres como cordeiro, mas com boca de dragão (1885, Antichrist, 49, p. 214). A cena abaixo reproduzida, do Trinity Apocalipse, (c.1255-1260), ilustra com detalhes precisos os versos do Apocalipse em painéis com pano de fundo azul e vermelho. Figura 6 – Trinity Apocalipse – A morte da besta de sete cabeças46 44 “Significa o reino do tempo do Anticristo e as pessoas das mais variadas nações” (tradução nossa). 45 “Ele fará também uma imagem de ouro do Anticristo que será localizada no templo em Jerusalém” (tradução nossa). 46 Disponível em http://www.english.cam.ac.uk/medieval/zoom.php?id=553, consultado em 21 de Julho de 2011. 47 Na parte de cima da ilustração, o dragão vermelho com sete cabeças passa sua autoridade à besta escura. A autoridade é simbolizada através de um cetro. Nobres assistem admirados à cena no canto direito da ilustração e o Apóstolo João está do lado esquerdo com uma expressão de repúdio. Na parte de baixo, frades aparecem na figura atacando a besta com espadas. Há uma figura feminina que, inclusive, aparece em outras cinco ilustrações da série. Provavelmente, a figura da mulher que, corajosamente empunha a espada, seja Leonor de Provença, rainha de Henrique III, que encomendou a ilustração (KOVACS & ROWLAND, 2004, p. 35). Assim, o ilustrador concede a essa importante senhora a honra de fazer parte de uma cena apocalíptica. Outras interpretações são igualmente bastante específicas. Para Gregório IX, a primeira besta é o imperador Frederico, e a besta com a ferida mortal curada é Frederico II que o sucedeu (MCGINN, 1998, p. 174, KOVACS & ROWLAND, 2004, p. 152). Para a Geneva Bible, o leopardo, o leão e o urso na primeira besta significam “the Macedonians, Persians and Chaldeans whom the Romans overcame” (1602, 1989, Ap 13:2)47 . E “according to Herder, the beast from the sea is the rebel leader Simon ben Gurion in the Jewish War, and the beast from the land is his subordinate Johannan ben Levi” (KOVACS & ROWLAND, 2004, p. 152)48. Por sua vez, Hal Lindsey vê o Mercado Comum Europeu como o começo da confederação das dez nações preditas pelo Apocalipse (KOVACS & ROWLAND, 2004, p. 152). Os Adventistas do Sétimo Dia e as Testemunhas de Jeová identificam a segunda besta com os Estados Unidos da América. Os primeiros afirmam que essa nação obriga a observância do Domingo, e os últimos acreditam que os Estados Unidos, juntamente com a Inglaterra, formaram inicialmente a liga das nações, responsável pelo imperialismo atual (Watchtower Bible, 194–5, in KOVACS & ROWLAND, 2004, p. 153). A maioria dos estudos críticos identificaram as duas bestas com as criaturas da mitologia hebraica, ou seja, Leviatã e Behemot (FORD, 1975, p. 217). Charles descreve a teoria de Wellhausen sobre o uso de fontes gregas, mas conclui que isso é impossível, e afirma o uso de fonte hebraicas para a formação do texto (1920, vol 1, p. 339-340). A partir da remoção das interpolações do texto, especialmente de Ap 13.7b,9, Charles acredita 47 “Os macedônios, persas e caldeus que Roma conquistou” (tradução nossa). 48 “De acordo com Herder, a besta do mar é o líder rebelde Simon ben Gurion na Guerra Judaica, e a besta da terra seu subordinado Johannan ben Levi” (tradução nossa). 48 chegar à fonte hebraica primitiva do texto, que consiste de Ap 13.1abd, 2, 4-7a, 10. Ele assume que esse texto foi um “apocalipse” escrito por um fariseu quietista antes da queda de Jerusalém em 70 d.C., descrevendo Roma como a besta do mar, e o cerco de Jerusalém de três anos pelo romanos (CHARLES, 1920, vol 1, p. 340-341). O número 666 Em relação ao número da besta, observamos entre os teólogos a mesma tendência “espiritualizadora” ou “historicista” em interpretar o enigma, e entre os críticos, de identificar os elementos históricos submersos pelas marcas redacionais. Um dos primeiros a interpretar o número foi Irineu (130-202). Ele o explicou como sendo “six times a hundred, six times ten, and six units” (IRINEU, 1885, 02, p. 557)49. Irineu relacionou isso com o número dos dias da criação que foram seis, e buscou o entendimento de 2Pedro 3.8 para formalizar que um dia para Deus equivale a mil anos. Então, entendendo que Deus descansou no sétimo dia, viu nisso uma profecia do fim, portanto, a vinda de Jesus teria que ser após o final do sexto milênio. Assim concluiu: “it is evident, therefore, that they will come to an end at the sixth thousand year” (IRINEU, 1885, 03, p. 557)50. Por outro lado, Irineu não se sentia a vontade para tentar decifrar o nome do Anticristo. Ele citou os nomes Evanthas, Latinos, Tito, como possíveis soluções gemátricas, mas entendia que é um nome do futuro, e se fosse necessário que eles soubessem, o autor o teria revelado (IRINEU, 1885, 03, p. 559-560). Vitorino também citou o nome Tito para o número da besta, e, a partir do significado do nome que é Sol, e tomando o nome em Latim, chegou a “antífrase DICLUX” cujas letras também somam 666. Esse nome significa luz, e ele disse que embora Satanás esteja privado da luz, ainda sabe se transformar em anjo de luz (VITORINO, 1885, p. 356). Não é possível saber se Vitorino estava sendo irônico com essa interpretação, ou se ele estava de fato propondo um nome. Hipólito foi precavido em relação à interpretação do número da besta, mas mesmo assim propôs: with respect to his name, it is not in our power to explain it exactly, as the blessed John understood it and was instructed about it, but only to give a 49 “seis tempos mil, seis tempos dez e seis unidades” (tradução nossa). 50 “É evidente, portanto, que o fim virá no sexto milênio” (tradução nossa). 49 conjectural account of it (...) Many names indeed we find, the letters of which are the equivalent of this number: such as, for instance, the word Titan, an ancient and notable name; or Evanthas, (...) it is manifest to all that those who at present still hold the power are Latins. If, then, we take the name as the name of a single man, it becomes Latinus. (1885, Antichrist, 50, p. 215)51. Entretanto, Hipólito não insistiu nesse nome e entendia que o importante era estar preparado, pois quando essas coisas acontecessem, os verdadeiros cristãos não seriam enganados52. A Geneva Bible interpretou o número como significando Lateinus ou Latim, através da soma dos números das letras dessas palavras (gematria), identificando assim com Roma (1602, 1989, Ap 13.18). O nome de Hitler também pode ser proposto como o 666, desde que se inicie a contagem das letras a partir de 100. Os estudos críticos buscaram identificar a prática de gematria proposta por João com nomes de imperadores de sua época, sendo mais comum identificá-lo como uma referência ao imperador Nero, e ao mito do redivivus, ou seja, à ideia de que Nero havia ressuscitado, como veremos ao tratar especificamente do texto nos capítulos 3 e 4. A partir das análises acima, pode ser dito que duas linhas de interpretação dominaram a leitura do Apocalipse ao longo dos quase vinte séculos dentro dos estudos religiosos ou teológicos. A linha espiritualizadora perdurou durante o período de menos conturbação social do Cristianismo, ou seja, dos séculos quarto a nono. A interpretação historicista perdurou no período de perseguições anterior a Constantino, e, também, a partir do século X. A linha espiritualizadora procurou interpretar o Apocalipse sem identificar as cenas com algum momento específico, porém tentou identificá-lo com a história como um todo, entendendo que ele contém as informações morais e teológicas para todo o período da igreja. A linha escatológica ou historicista procurou identificar as cenas do Apocalipse com 51 “Com respeito ao seu nome, não está em nosso poder explicá-lo com exatidão, como o abençoado João o entendeu e foi instruído acerca dele, mas somente dar uma abordagem conjectural dele (...) Muitos nomes nós podemos encontrar nas cartas que são equivalentes deste número: como, por exemplo, a palavra Tito, um antigo e notável nome; ou Evanthas (...) é manifesto para todos que aqueles que até o presente sustentam o poder são Latinos. Se, então, tomarmos o nome como o nome de um simples homem, ele torna-se Latinus” (tradução nossa). 52 Num texto considerado espúrio, Hipólito teria dito que o significado do número seria a palavra “eu nego” (1885b, p. 249). Na verdade, o que ele fez foi somar as letras da palavra grega “eu nego” chegando ao 666. A referida citação encontra-se no Apêndice das obras de Hipólito, nos escritos intitulados espúrios ou duvidosos, pois não há certeza se foi mesmo Hipólito quem os escreveu. Não obstante, mostra que era antiga a noção de que era impossível calcular o número da besta e identificá-lo com um homem. 50 algum momento histórico específico, muitas vezes, o próprio momento em que o intérprete vivia, e as vezes, os intérpretes se tornaram “personagens” do Apocalipse. É possível concluir que, para ambos os grupos, a chave da interpretação do livro sempre foi buscada fora do próprio livro, em algum ponto específico da história ou na história como um todo. A linha dos estudos críticos, por sua vez, divide-se em infindáveis teorias sobre as fontes hebraicas ou gregas que foram utilizadas por autores e editores variados na composição do texto. Apesar de analisar detalhadamente o texto do Apocalipse, em busca das marcas de revisão ou de interpolações, também buscou o significado fora do texto, nas fontes perdidas que o compuseram ou na história por detrás do registro. Pouca ou nenhuma atenção foi dada aos aspectos essencialmente literários que constroem o sentido do texto em si mesmo na ampla maioria dessas interpretações. 51 2. O contexto literário do Apocalipse O Apocalipse deve ser visto como a culminação de todo um movimento literário. Ele foi colocado como o último livro da Bíblia, encerrando o movimento literário-religioso (em termos canônicos) que teve início com os judeus vários séculos antes de Cristo e se desenvolveu com os primeiros cristãos, mas antes disso, deve ser visto dentro de um movimento literário bem específico, a literatura apocalíptica. Nesse capítulo, analisaremos como a literatura apocalíptica se desenvolveu historicamente em seus temas e estilo literário. Isso demonstrará o valor da história para a leitura do Apocalipse, pois ao se enfatizar os elementos literários internos do texto como necessários para uma boa leitura do mesmo, não se pretende excluir os resultados da pesquisa histórica, entendemos que há a necessidade de uma consideração conjunta dos elementos histórico-teológicos e literários. 2.1. A literatura apocalíptica como culminação da literatura bíblica A literatura apocalíptica é um movimento complexo, que abrange os escritos judaicos e cristãos compreendidos principalmente entre os séculos III A.C e II D.C. Caracteriza-se especialmente pelo uso de simbolismo, visões, transcendentalismo, mitologia, etc., para fazer uma descrição fantástica da realidade, quase sempre apontando para um futuro de julgamento divino sobre o mundo, de destruição dos inimigos do povo de Deus e de salvação do povo fiel. A Bíblia como um todo apresenta-se como a revelação divina para o ser humano. O assunto principal, portanto, é Deus. A Bíblia não tenta “provar” a existência de Deus, ela simplesmente assume que Deus existe, sua preocupação é definir “quem é esse Deus”. A literatura apocalíptica (na qual o Apocalipse se encaixa, e à qual o próprio Apocalipse deu 52 nome53) reflete um estágio avançado, em termos temporais, do conceito de Deus em relação ao restante das Escrituras, especialmente do Antigo Testamento. O conceito da pessoa do Deus Yahweh54 na literatura apocalíptica que precedeu o Apocalipse reflete o estágio final dessa longa história, mas está também relacionado aos estágios anteriores, sem os quais não existiria. Será interessante, para que se situe o período e as intenções teológicas da literatura apocalíptica, fazer uma comparação sumarizada do conceito de Deus, desde os primórdios da narrativa bíblica até o período da literatura apocalíptica judaica, dentro do qual, surge o Apocalipse tido como a primeira literatura cristã desse gênero. Essa análise será feita com o objetivo de estabelecer o contexto histórico-teológico dentro do qual o Apocalipse deve ser interpretado. Nosso objetivo não é discutir o conceito de “revelação” em si mesmo, antes mostrar como essa “revelação” foi lida pelo povo que a recebeu, e, a partir disso, entender a própria concepção desse povo a respeito do seu Deus55. Inicialmente, é preciso observar que, desde o surgimento da literatura bíblica, o contexto muitas vezes é o de conflito de Israel com outras nações. Nos primórdios, Israel saiu do Egito, e então passou a enfrentar as nações vizinhas de Canaã; depois a enfrentar e a se sujeitar aos impérios mundiais56. Como aponta McFague em seu estudo do modelo monárquico de Deus, quanto mais poderoso é um povo, mais há a tendência de acreditar que o seu Deus é todo-poderoso: se “nosso Deus é realmente Deus, o senhor todo-poderoso e Rei do Universo, a quem ninguém pode vencer, por consequência, também nós somos invencíveis” (1994, p. 117).57 Sem dúvida, a concepção judaica a respeito de Deus relaciona-se a sua própria identidade 53 É interessante que o livro do Apocalipse se apresenta como uma profecia (Ap 1.3, 22.7,10,18,19). Nesse sentido, o autor não quis definir seu texto como um tipo novo ou diferente de revelação. Toda a revelação bíblica é profecia, pois o próprio autor diz que o “testemunho de Jesus é o espírito da profecia” (Ap 19.10). Por isso, o Apocalipse é uma “profecia”, porém faz uso de elementos que devem ser vistos como uma espécie de desenvolvimento da “profecia”. É nesse sentido também que usamos o termo literatura apocalíptica nesse trabalho, lembrando que parte do estilo “apocalíptico” adotado pelo autor está presente em livros do Antigo Testamento como Isaías, Ezequiel e Daniel. 54 Yahweh é uma possível leitura do tetragrama hebraico que representa o nome de Deus. São quatro consoantes (YHWH). 55 Não sendo esta uma tese focada prioritariamente em questões teológicas, muitos conceitos seguirão apenas a linha apropriada aos estudos literários. Por isso, não há aqui a intenção de definir “revelação” conforme os estudos teológicos, mas lidar com o texto como um produto literário. Isso, por sua vez, não nega o conceito de revelação ou inspiração. 56 Estamos seguindo aqui a leitura tradicional da Bíblia Hebraica. Não é nossa intenção tratar de teorias sobre fontes, redação, crítica da forma, etc, que foram desenvolvidas no século XIX buscando estabelecer aspectos da formação do texto. Para fins de estudos literários, tomamos o texto como foi recebido. 57 McFague é uma teóloga feminista que idealiza a substituição do modelo monárquico de Deus por um modelo que ela chama de “mãe, amante e amigo(a)” (1994, p. 139ss). 53 nacional. A questão é que, no caso do povo judeu, parece haver algo paradoxal em relação ao que McFague propõe. Nem sempre o “tamanho” de Deus é proporcional ao “tamanho” do povo. Nos momentos mais difíceis para os judeus, especialmente nos períodos que antecederam ou sucederam o exílio da Babilônia, quando a nação praticamente deixou de existir, os judeus chegaram a uma concepção filosófica e teologicamente mais elevada sobre Deus. Nos primórdios da religião em Israel (tempo do Êxodo e dos Juízes), percebe-se que os conceitos de Deus e do próprio monoteísmo não são muito bem definidos58. Israel sabe que o seu Deus tem uma identidade pessoal e própria, e que foi o responsável pela sua libertação do Egito e pela apropriação da terra de Canaã (embora isso tenha que ser sempre relembrado pelos profetas). Após vencer os monstros marinhos que representam o Egito (Sl 89.9-10), Yahweh convive com várias deidades locais. O próprio título com que Israel chama seu Deus, o título El, é o que praticamente todos os povos do antigo Oriente também o chamavam. Na literatura ugarítica que oferece a mais extensiva fonte sobre El59, os textos utilizam a palavra tanto no sentido genérico, quanto para o nome próprio de um Deus (SMITH, 2001, p. 135). Na mitologia ugarítica, El aparece como um patriarca divino por excelência. Ele é o pai dos deuses, um soberano patriarcal. Há evidências de que El também era cultuado entre os fenícios, em Aram e na Transjordânia (SMITH, 2001, p. 137-139). Isso pode significar que Israel, em seus primórdios, concebia o seu Deus de uma forma não muito diferente do modo como seus vizinhos concebiam suas divindades, mas com o tempo o conceito foi se diferenciando. Mesmo para uma visão conservadora, essa perspectiva não deve oferecer problemas, pois geralmente se defende a ideia de uma “revelação progressiva”, ou seja, a teologia conservadora aceita que a revelação de Deus foi gradual e adaptativa. Gerhardus Vos conceituou a revelação como sendo “histórica, progressiva, orgânica e adaptável”. Histórica, porque se deu num dado momento histórico em que aconteceu o evento redentivo. Progressiva, porque nem tudo foi revelado de uma só vez. Orgânica, porque o conhecimento da redenção foi suficiente em cada estágio de desenvolvimento. E adaptável, porque tudo o que Deus autorrevelou veio como resposta às necessidades religiosas práticas 58 Não estamos advogando que os escritos bíblicos fossem primeiramente politeístas e depois monoteístas, mas que o povo que deixou o Egito era politeísta e teve grandes dificuldades iniciais com o monoteísmo, mesmo que esse viesse a estar expresso no texto sagrado. 59 Ver o épico de Baal em http://www.theologywebsite.com/etext/canaanite/baal.shtml, consultado em 29 de Março de 2012. 54 de seu povo na medida em que estas iam surgindo no decorrer da história (VOS, 1948, p. 17). Segundo a visão conservadora, Deus foi se revelando ao povo de Israel em estágios que, cada vez mais e melhor, foram demonstrando ao povo quem era Deus e qual era sua vontade. Há, possivelmente, algum paralelo entre o Deus El da mitologia ugarítica como patriarca dos deuses, presidindo a assembleia divina, com o Deus Yahweh também rodeado de hostes celestes em muitas passagens bíblicas antigas (Sl 82.1, 1Rs 22.19,Is 6.1-8, Sl 29.1-2,10, Sl 89.5-8, Is 14.13-14, Jr 23.18,22). Smith sustenta que El foi o Deus original de Israel, mas aos poucos, Yahweh foi se identificando com El, e finalmente, substituiu-o, mantendo, entretanto o seu nome (2001, p. 143).60 Percebe-se que a concepção israelita sobre Deus nesse período ainda estava em busca de uma forte identidade individual. Não há polêmica entre Yahweh e El na Bíblia Hebraica, o que corrobora para o fato de que ambas as divindades podiam ter sido até certo ponto identificadas ainda num estágio primitivo da religião de Israel (SMITH, 2002, p. 33). Deve ser lembrado que há diversos textos bíblicos mostrando que Deus se revelava a outros povos antes da formação da nação de Israel. Por exemplo, nos dias de Abraão, Deus tem um “sacerdote” misterioso e desconhecido: Melquisedeque, chamado de “sacerdote de El Elyom” (Deus altíssimo). (Gn 14.18). Ou seja, o Deus Yahweh que se revela a partir de Moisés não é um “Deus novo”, antes é o único e verdadeiro Deus que criou o mundo e já se revelou anteriormente. Porém, agora ele se revela de um modo mais completo. O texto bíblico parece explicar essa conjunção de nomes e personalidades quando o Deus de Israel se revela a Moisés dizendo: “Falou mais Deus a Moisés e lhe disse: Eu sou o SENHOR. Apareci a Abraão, a Isaque e a Jacó como Deus Todo-Poderoso; mas pelo meu nome, SENHOR [YWHW]61, não lhes fui conhecido” (Êx 6.2-3). Segundo essa concepção, Deus teria se revelado aos patriarcas como El-Shadday (Deus todo-poderoso), mas não 60 Smith utiliza o texto de Deuteronômio 32.8-9 para comprovar essa hipótese, através de uma exegese que pode ser discutível, onde El aparece como aquele que divide os povos e concede a Yahweh o povo de Israel. Assim, Yahweh poderia ter sido originalmente um dos deuses do primeiro escalão de El, um Deus guerreiro. (2001, p. 143-144). Mark Smith acredita que Israel importou o Deus Yahweh dos Edomitas. Com base no texto de Juízes 5.4, que descreve Deus como “vindo de Edom”, Smith acredita que a partir do comércio realizado entre os dois povos, o Deus Yahweh passou a ser o Deus de Israel. Smith diz: “os edomitas partilharam a adoração deste deus com os israelitas das terras montanhosas no período do Ferro antigo (c. 1150 a.C.)”. (2006, p. 53-54). 61 A versão Revista e Atualizada de Almeida (ARA) traduz Yahweh por SENHOR em letras maiúsculas. 55 como Yahweh. Agora, entretanto, estava revelando a Moisés seu verdadeiro nome. Era o mesmo Deus, mas agora havia um nome que apontava para exclusividade62. A grande polêmica do Deus Yahweh de Israel não é com El, mas com Baal, tido na literatura ugarítica como um dos guerreiros de El, ou seja, um deus inferior63. Isso aponta para dois caminhos: primeiro que Yahweh é reconhecido como uma divindade exclusiva de Israel, e segundo que, para o povo, ainda não estava plenamente estabelecido o monoteísmo. O simples fato de que Baal, um deus do segundo escalão que acabou tendo proeminência na mitologia ugarítica, seja citado tantas vezes na Bíblia Hebraica, chamado pelo nome e disposto em relação com o culto a Yahweh, demonstra que era uma divindade, de algum modo, reconhecida e rival, mesmo que fosse uma divindade falsa (Jz 6.31). Entretanto, nesse período, a supremacia de Yahweh começava a se acentuar sobre os deuses estrangeiros, pois quando a arca de Deus foi levada para a casa de Dagon, a estátua de Dagon caiu prostrada diante da arca (1Sm 5.2-4). Esse é o tempo em que se estabelece a identidade do povo como distinta e superior a dos povos vizinhos. Por isso, a importância de Samuel para a consolidação do profetismo e da identidade nacional não pode ser subestimada. Como diz Eichrodt, “achamo-nos, pois, diante de um dos espíritos mais destacados da história israelita em um momento crucial” (2005, p. 266). A competição decisiva entre o Deus de Israel e os outros deuses se torna clara a partir do momento em que o templo é construído. Com a centralidade do templo, foi preciso eliminar os cultos familiares e também os cultos sobre os altos, geralmente 62 É claro que o autor do Pentateuco não ignora que Deus havia se manifestado para os patriarcas, mas de algum modo Deus está dizendo a Moisés que agora estava revelando o sentido de seu nome que antes não havia sido revelado. Kaiser diz: “o nome, portanto, revelava o caráter, as qualidades, os atributos e a essência das pessoas assim designadas?”. (1984, p. 111). 63 Desde as descobertas dos manuscritos ugaríticos em Ras Shamra-Ugarit, o estudo da Bíblia Hebraica, especialmente do livro dos Salmos, nunca mais foi o mesmo. Se antes havia uma noção de que a Bíblia Hebraica tinha influências das comunidades vizinhas a Israel, após a descoberta desses textos em 1928-29, isso se tornou uma certeza. O próprio Ugarítico que até aquele momento não era conhecido, passou a ter “seu lugar como uma língua maior (ou mais propriamente, um dialeto cananita) na família das línguas semíticas” (DAHOOD, 1965, p. xviii). Entre as diversas descobertas arqueológicas encontradas no sítio, tabletes que descrevem o chamado “ciclo de Baal” foram de especial significado, pois ajudaram a estabelecer o pano de fundo para os frequentes relacionamentos descritos na Bíblia Hebraica entre o povo de Israel e o culto a Baal. Os tabletes foram datados do período de 1375-1340 A.C, mas dizem respeito a mitos e lendas muito antigos, do terceiro milênio antes de Cristo (DAHOOD, 1965, p. xviii). Segundo o autor, os textos de Ras Shamra mostram que muita da fraseologia dos Salmos, seu imaginário e ideias centrais eram correntes na Palestina há muito tempo (DAHOOD, 1965, p. xxx). O mesmo pode ser dito de seus princípios poéticos, pois até mesmo o famoso paralelismus memborum pode ser encontrado nos poemas ugaríticos de Ras Shamra. Segundo Dahood, os profetas e salmistas adaptaram os mitos pagãos cananitas para seus próprios propósitos teológicos, e isso não diminui a originalidade ou o significado deles, pois Leviathan, Tehom, Mot, Resheph e outras figuras da religião pagã não foram reais para os poetas bíblicos como para os Babilônios e Cananitas, mas meramente referenciais mitológicos que serviram para demonstrar a majestade e a onipotência de Yahweh. (DAHOOD, 1965, p. xxxv). 56 mesclados. Mas isso não foi fácil de acontecer. O velho problema do sacrifício nos altos esteve presente (2Rs 12.3, 15.4, 16.4), o que demonstra que a religião ortodoxa sempre teve dificuldades de ser assimilada entre o povo comum. Von Rad pergunta a respeito da situação daqueles dias: Mas era ainda Javé [Yahweh] que era cultuado? Não era talvez Baal, o autor das bênçãos naturais, ao qual simplesmente se havia dado o nome de Javé? Ou ainda uma outra coisa, uma realidade indefinível, situada entre Javé e Baal? (1974, Vol II, 1974, p. 20). Para diferenciar um do outro, o ministério de Elias foi crucial. A maior derrota de Baal nos dias de Elias foi justamente não conseguir fazer descer fogo do céu, que era, em tese, sua maior capacidade, afinal ele era o deus dos raios. Em contrapartida, quando Elias invocou Yahweh, prontamente o fogo desceu para consumir o holocausto (1Rs 18.21-40). Foi justamente nos dias de Elias e Eliseu que o profetismo alcançou sua definitiva consolidação e revelou a supremacia plena da figura de Yahweh. É nesse período que Israel se fechou mais firmemente em torno do conceito de Deus como único e separado, apesar da difícil divisão com o reino do norte (Samaria). A partir daí, a história de Yahweh estará cada vez mais ligada à história judaica. Elias e Eliseu, contudo, mantêm ainda um conceito maior de Israel, incluindo Samaria, onde Baal era cultuado livremente. Von Rad assinala que “ninguém, nesta época, percebia, como Elias, a incompatibilidade entre o culto de Baal e as antigas tradições javistas de Israel” (1974, p. 21). Por isso, quando Elias convoca o povo no Carmelo para escolher entre Yahweh e Baal, o povo simplesmente não sabe o que responder (1Rs 18.21). Parece não haver um sentimento de culpa, há apenas ignorância. Von Rad conclui: “Foi necessário que Elias fizesse intervir forças gigantescas para obrigar o povo a tomar uma decisão, pois ninguém percebia a necessidade” (1974, Vol. II, p. 21). Segundo a narrativa, no alto do Carmelo, Elias demonstrou que apenas o Deus de Israel tinha poder de ação e que Baal era impotente. Nesse período, o Deus de Israel estava em franca guerra contra os deuses vizinhos. Se por um lado a existência de Baal não era negada, por outro ficava claro que ele era totalmente impotente diante do Deus de Elias. Até esse momento, o conceito de Deus era explicitado em termos de aquele que ajudava o povo a conquistar as batalhas e a se sobressair sobre seus vizinhos. Quando o povo lhe era infiel, então, sofria derrotas locais, mas nada que ameaçasse sua existência. Israel tinha um Deus exclusivo. Os deuses das outras nações eram inferiores. Yahweh só agia em Israel. Isso, porém, mudaria muito com a aproximação do Exílio (século VI A.C.). 57 Nos tempos de Oséias, Isaías e Jeremias (c. séc. VII-VI A.C), a situação internacional se tornou muito diferente. Israel ainda se relacionava e se mesclava com seus vizinhos, e estava dialeticamente envolvido com os cultos pagãos, pois ao mesmo tempo em que tentava extirpá-los através dos movimentos proféticos, a idolatria permanecia tanto entre os reis, quanto entre o povo comum. Porém, novas ameaças surgiram no horizonte com o crescimento do Egito, da Assíria e posteriormente da Babilônia. Ameaças maiores do que as das conhecidas nações vizinhas. O conceito antigo de Deus em Israel era insuficiente para explicar essa nova fase da nação. Começa a despontar, então, o conceito de um Deus de nível mais elevado, no sentido de que ele não era apenas um Deus superior às deidades locais, mas o Deus que governava o mundo para o bem de Israel. Em última instância, ele era o único Deus. O colapso de Israel diante das potências estrangeiras foi explicado não nos termos que poderiam parecer lógicos, ou seja, que os deuses daquelas nações eram mais poderosos, mas no sentido de que foi o próprio Yahweh que entregou o reino de Israel nas mãos dos inimigos para puni-lo por seus pecados e, para mostrar sua soberania e compaixão ao restabelecê-lo. Não há, pois, uma contradição entre as concepções desse momento e as anteriores e sim um desenvolvimento. Nesse período, o conceito de Yahweh tendeu para a internacionalização. Deus controla as nações, porém o foco de interesse é o de seu povo. Talvez a passagem bíblica que demonstra mais fortemente essa ideia seja Isaías 40.12-31. O Deus descrito nessa passagem não é um Deus tribal buscando supremacia sobre os deuses rivais locais. É uma espécie de soberano cósmico que consegue tomar toda a água da terra na concha da mão e medir os céus a palmos (Is 40.12). Diante dele, as nações são insignificantes, menos do que um pingo que cai de um balde (Is 40.15-17). Assim, aquilo que poderia ofender a supremacia do Deus de Israel sobre os demais deuses devido à fraqueza da nação em relação à grandeza das estrangeiras fora minimizado e as potências Egito, Assíria e Babilônia passaram a não ter tanta importância, pois eram apenas instrumentos de Deus. Nesse momento, os deuses pagãos não são mais entidades reais, apenas estátuas que não têm qualquer poder, precisando do homem para ter existência (Is 40.19-20). Em contrapartida, Yahweh é o Senhor cósmico que “está assentado sobre a redondeza da terra, cujos moradores são como gafanhotos” (Is 40.22). Ele manda nos príncipes e até nas estrelas, pois é o criador de tudo (Is 40.23-26). Em outras palavras, o profeta explica-lhes que o exílio não foi um acidente de percurso ou uma fraqueza de Deus, e sim um castigo 58 pelos pecados do povo. Foi algo planejado e executado conforme a sabedoria inescrutável de Yahweh. O Deus de Israel é grande, maior do que se poderia imaginar, maior do que se pode compreender, um Deus misterioso (Is 45.15; 55.8–12). Nesse ponto, há uma clara evolução em relação ao conceito anterior que o povo possuía de Deus. Esse mesmo Deus, que castigava, poderia fortalecer o povo e possibilitar o seu retorno (Is 40.27-29), pois ele era o soberano entre as nações. Nesse período, como assinala Gunneweg, há um monoteísmo plenamente desenvolvido, pois não é mais apenas uma questão de que Yahweh é o Deus exclusivo de Israel, pois essa exclusividade ainda não era um monoteísmo que negasse a existência de todos os demais deuses, mas “esse passo é dado agora expressis verbis [= textualmente]: Eu sou o primeiro e eu sou o último, e além de mim não há Deus (Is 44.6)” (2005, p. 292)64. Paradoxalmente, a literatura judaica elevou o conceito da supremacia do Deus Yahweh apesar dos reveses da história, mas o conceito a respeito da divindade ainda não estava finalizado. O próximo passo seria dado pela literatura de Sabedoria e, por fim, pela Apocalíptica. A literatura sapiencial do período exílico e pós-exílio buscou explicar a razão do sofrimento do povo de Deus e dos reveses da história de modo semelhante ao dos profetas do período. Se o profetismo interpretou a situação elevando a envergadura de Deus para a de um soberano cósmico que estava punindo Israel devido a seus pecados e, ao mesmo tempo, revelando propósitos misteriosos em restaurá-lo, parte do discurso de Sabedoria apontou para outra solução. A explicação da literatura de Sabedoria, especialmente a que pode ser encontrada em Jó, é um marco importante na concepção da pessoa de Deus. É crucial lembrar que um novo tipo de sofrimento estava surgindo no período do exílio. Se antes Israel era punido por Deus por causa de seus pecados, agora era punido pelas nações por conta de sua fidelidade a Deus. A literatura sapiencial hebraica no início não era até certo ponto muito diferente das literaturas sapienciais de seus vizinhos, ou seja, descrevia o homem digno pan-oriental por excelência como o que sabia se controlar, que não deixava as paixões o dominarem (FOHRER, 1982, p. 177). Aos poucos, essa sabedoria foi sendo “israelitizada”, quando palavras e conotações próprias da religião de Israel começaram a reformular os discursos de sabedoria. 64 Embora seja preciso lembrar que o Deuteronômio já dizia isso: “Ouve, Israel, o SENHOR, nosso Deus, é o único SENHOR” (Dt. 6.4). 59 A literatura de Sabedoria evoluiu apresentando explicações menos simplistas para a razão do sofrimento e do mal. Os livros de Eclesiastes e Jó trouxeram outros esclarecimentos. As explicações do livro do Eclesiastes, por vezes, parecem ser pessimistas e, até mesmo niilistas65. As do livro de Jó refletem um novo momento da identidade judaica: o último estágio do conceito a respeito da pessoa do Deus Yahweh antes do período apocalíptico. Embora seja difícil estabelecer uma data precisa em relação à escritura do livro de Jó, pois não há nenhuma tradição consistente quanto à autoria da obra, é provável que tenha sido escrito durante ou depois do exílio judaico de 586-538 (SMITH, 2006, p. 107). O colorido aramaico da linguagem do livro aponta para uma datação não anterior ao quinto século (ROWLEY, 1980, p. 22). Na conhecida passagem do Talmude Babilônico, sobre a origem dos livros do Antigo Testamento é dito que Moisés escreveu seu próprio livro e as passagens sobre Balaão e Jó. Na discussão que se segue, vários Rabis localizam o livro de Jó, ora na época de Isaque, ora de Jacó, ora de José; ou ainda na época dos espias, dos Juízes, do retorno do cativeiro ou até dos asmoneus (Bava Bathra, [s.d.] 14b, 15a). As evidências externas põem um limite para o ano 100 A.C para a composição do livro, pois nesse período ele já aparece traduzido para o grego, inclusive com o discurso de Eliú (DRIVER & GRAY, 1977, p. lxv). A data aproximada que tem sido proposta de forma mais consistente é a que estabelece o século quinto A.C. como mais provável para a escritura do livro (DRIVER & GRAY, 1977, p. lxx-lxxi). Maimônides entendia que o personagem era fictício e que era impossível determinar o momento em que os fatos ocorreram (1963, p. 486). Entretanto, não é impossível que um homem chamado Jó tenha existido e vivido em alguma época da antiguidade. Ao que tudo indica, o personagem Jó era conhecido de Ezequiel e é citado ao lado de Enoque e Daniel como um homem justo da antiguidade (Ez 14.14). Provavelmente, alguém se utilizou das tradições orais antigas sobre um homem chamado Jó e as registrou em forma poética, principalmente os discursos entre o prólogo e o epílogo (SCHMIDT, 1994, p. 317). Jó é um homem íntegro, próspero e feliz. Sua situação começa a mudar quando ocorre o encontro de um dos “filhos de Deus”, Satanás66, com o próprio Deus (Jó 1-2). 65 Embora possa se considerar que o Eclesiastes aborda a nulidade da vida da perspectiva do homem terreno que não crê em Deus. Sua vida é pura vaidade e perda de tempo. A solução para essa falta de sentido seria justamente se tornar crente em Deus. 66 Essa informação de que Satanás é um “filho de Deus” e que se apresenta perante Deus para acusar Jó será muito importante para o Apocalipse. 60 Após Deus chamar a atenção de Satanás para Jó, este duvidou de sua integridade, caso não fosse abençoado por Deus. Com duas autorizações divinas para que Satanás primeiro tirasse os bens e os filhos de Jó e depois sua própria saúde, o livro descreve Jó se mantendo fiel a Deus. Três amigos vêm de longe para consolá-lo. A chegada desses amigos marca o início dos longos diálogos do livro. Os três amigos de Jó são representantes, até certo ponto, da teologia dos Provérbios67: o que aqui se faz aqui se recebe, tanto em termos de bênçãos, quanto em termos de maldição. Jó começa os discursos dizendo que nada fez de tão grave para merecer tudo aquilo, e amaldiçoa sua vida e a data de seu nascimento. Os três amigos estão convencidos de que Jó cometeu uma falta muito grave em relação a Deus. Como diz Dhorme, “seus amigos buscam aplicar soluções normais para seu caso excepcional” (1967, p. cxxxv) e insistem que ele precisa se arrepender de seus pecados. Jó começa a questionar os próprios métodos de Deus. Imagina que houve algum equívoco do Todo-poderoso. Ele deseja ter um encontro com Deus, para poder expor perante ele a sua causa, acreditando que assim, poderia se justificar (Jó 23.1-7). Após uma série de diálogos amargos com os amigos, Deus finalmente concede a Jó o tão desejado encontro. Mas, ao invés de Jó falar com Deus, é Deus quem fala com Jó do meio de um redemoinho (Jó 38). A conversa de Deus parece-lhe, a princípio, muito estranha. Deus não faz referência aos seus sofrimentos, limita-se a falar sobre a criação do mundo e a manutenção de todas as coisas. Deus está sempre perguntando a Jó se ele tem algum entendimento de suas obras e se estava presente no momento em que as planejou e as executou. O objetivo vai ficando claro: Deus quer mostrar a Jó o quanto o seu entendimento é limitado diante da grandeza de suas obras. Jó acaba reconhecendo não ter direito de falar com Deus, e não ter entendimento suficiente a respeito do modo como Deus age (Jó 42). Assim, o propósito do livro é dizer que mesmo diante do sofrimento injusto, Jó deveria confiar em Deus e em seus planos. Segundo Fohrer, a resposta que ele dá ao problema do comportamento na dor também é formulada em termos humanos: entrega a Deus, humilde e confiante silêncio, com base na convicção de que o sofrimento tem seu fundamento 67 Acredita-se, em geral, que o propósito principal do livro de Jó seja o de ensinar a fidelidade a Deus, não importando a situação enfrentada. Há, contudo, um propósito bem mais profundo no livro de Jó, o de refletir sobre o próprio sofrimento. O livro deseja oferecer uma resposta sobre o sentido do sofrimento, ainda que não uma resposta para a “causa do sofrimento”. Segundo Gottwald, “o autor está satisfeito por estabelecer que, na verdade, existe sofrimento inocente, algo que a dogmática sapiencial não poderia tolerar”. (1988, p. 533). Segundo Clines, “Jó confronta a ideologia dos Provérbios em um ponto diferente (...), o Livro de Jó é um assalto à validade geral da doutrina da retribuição”. (1998, Introdução, LLSystem). É claro que de um ponto de vista teológico, não é preciso pensar que haja uma contradição entre Jó e Provérbios, mas apenas a explicação mais desenvolvida de que nem tudo é tão lógico. 61 em uma misteriosa e inescrutável, mas sábia ação de Deus e na certeza da comunhão com Deus, a ponto de tornar secundário todo o restante (1982, p. 201). Deus não esclareceu os mistérios do universo ou seus propósitos, apenas indicou para Jó a realidade deles. Portanto, “segue havendo no futuro cósmico enigmas que ele não pode penetrar, senão unicamente aceitar com respeito e humildade, como provenientes do único sábio, do Criador” (EICHRODT, 2005, p. 551). Não há explicação, há um convite a confiar nos propósitos do soberano que criou e sustenta todas as coisas. Como afirma Smith “este Deus é conhecido e desconhecido” (2006, p. 148). Por isso, a reação de Jó ao discurso de Deus é imensamente sugestiva: “Bem sei que tudo podes, e nenhum dos teus planos pode ser frustrado [...]. Eu te conhecia só de ouvir, mas agora os meus olhos te veem. Por isso, me abomino e me arrependo no pó e na cinza” (42.2,5-6). O livro de Jó tem grande importância para a literatura apocalíptica e para o próprio Apocalipse, não só pela conceituação da pessoa de Deus como um soberano cósmico que tem propósitos difíceis de compreender, mas também pela própria conceituação de Satanás, o Adversário. Há quatorze referências a Satanás no Antigo Testamento, e apenas três não estão no livro de Jó (uma em 1Crônicas 21.1, e duas em Zacarias 3.1-2). É possível dizer que o Satanás que o autor do Apocalipse conhece é o do livro de Jó. O Apocalipse descreve Satanás como um anjo que tinha acesso ao céu, que operava fazendo acusações contra os fiéis, mas que de lá foi expulso; que é capaz de produzir terríveis males na terra, porém em última instância está debaixo do controle de Deus. A literatura apocalíptica situa-se como o último estágio no conceito judaico a respeito de Deus no período bíblico. Os livros chamados de “apocalípticos”68 são um desenvolvimento do profetismo, ou talvez, poderíamos dizer, uma consumação69. O melhor modo de definir a literatura apocalíptica é dizer que ela mescla elementos tanto do profetismo quanto da sabedoria. É profetismo porque tenta ver o futuro e a vontade de Deus de forma mística tanto quanto os profetas; é sabedoria porque demonstra paixão pelo conhecimento, que somente pode ser alcançado por aqueles que são iluminados por Deus; 68 Ou seja, aqueles que se enquadram na chamada literatura apocalíptica, cujo nome se deu a partir do Livro do Apocalipse. 69 Uma das diferenças básicas entre a profecia e os apocalipses está justamente no gênero. Como diz Rowley, “Os oráculos [proféticos] são apresentados usualmente em forma poética; os apocalípticos, em prosa, com ocasionais trechos poéticos” (1980b, p. 14). Mas a diferença maior é justamente o conteúdo e a forma como o conteúdo é apresentado. 62 vai além de ambos, porque a resposta final para a razão das coisas não está no tempo presente, mas num futuro, no escaton. Segundo Paul Hanson, no fundo de todo movimento apocalíptico há um “colapso de uma cosmovisão que estava em ordem e que definia para um povo os valores e as ordens do universo, colapso este que então o lança no caos da anomia e da falta de sentido” (1983, p. 36). O exílio, de fato, foi um colapso. Por isso ele é o grande pano de fundo do surgimento da literatura apocalíptica. O exílio foi uma catástrofe nacional sem precedentes que nunca foi completamente revertida. A volta dos exilados após o decreto de Ciro não significou uma verdadeira recuperação do orgulho nacional. Os judeus foram autorizados a retornar para a Judéia no período do Império Persa, que substituiu o Império Babilônico, responsável pela captura do reino dos judeus em 586 A.C. Ciro permitiu aos judeus voltar à terra prometida para reconstruir o templo em 538 A.C. Segundo o texto bíblico, Ester, uma judia, se tornou rainha da Pérsia (470 A.C.). Esdras (456 A.C.) e Neemias (443 A.C.) voltaram ao país e instituíram reconstrução. O Império Persa foi derrubado por Alexandre Magno (335-323 A.C.), que passou a governar grande parte do mundo. Alexandre conquistou a terra de Israel, e pouca coisa mudou nesse período no sentido político. Alexandre morreu jovem e não deixou sucessor. Basicamente, o gigantesco Império Grego ficou divido em dois: ao sul, com os Ptolomeus do Egito, e ao norte, com os Selêucidas da Síria. Os judeus ficaram primeiramente sob o domínio do Egito (323-204 A.C.) e posteriormente foram subjugados por Antíoco o Grande, da Síria (204-166). Este segundo período foi bem mais difícil do que o primeiro, pois com a ascensão de Antíoco Epifânio ao trono da Síria, iniciou-se uma das mais sombrias épocas da história judaica. O novo rei, em seu desejo de helenizar os judeus, desestimulou os velhos costumes e as práticas religiosas nacionais. Aos poucos a situação entre os judeus e Antíoco foi se tornando insustentável, até que, para mostrar seu desprezo pela religião judaica, e para impor a helenização sobre o território, o rei entrou no Santo dos Santos do Templo de Israel, sacrificou uma porca sobre o altar e espargiu o sangue sobre o edifício. Os sacrifícios e os cultos foram proibidos e o templo passou a ser de Zeus (ROWLEY, 1980b, p. 47-48). É neste período que apareceram os livros que foram reconhecidos como “apocalípticos”. Surgiram para “preencher um vácuo”, explicando os motivos do domínio do mal e apontando para uma futura intervenção de Deus que salvaria os oprimidos (DOUGLAS, 1995, p. 89-90). Mounce diz que “o maior 63 objetivo dos apocalipses foi explicar porque o justo sofre e porque o reino de Deus demora” (1997, p. 03). A mudança de perspectiva é notada quando se considera que para os profetas, os grandes impérios mundiais eram instrumento nas mãos de Deus, para executar sua vontade em benefício do seu povo fiel, controlados por Deus, cuja vontade domina toda a história. Para os autores de apocalipses, os grandes impérios mundiais são adversários de Deus, tenazmente resistindo a sua vontade, que não triunfaria por meio deles, mas com sua aniquilação (ROWLEY, 1980b, p. 38). Assim, os apocalipses (livros com semelhanças com o Apocalipse de João), ou a literatura apocalíptica desenvolve o conceito dos verdadeiros adversários de Deus. Há forças espirituais malignas agindo no mundo. Mais uma vez, o exílio babilônico foi fundamental para isso. A partir do exílio, a pessoa de Satanás começou a ganhar destaque. Não há nenhuma referência a Satanás na Bíblia Hebraica antes do exílio. A partir daí, o inimigo de Deus se torna a razão invisível para todo o sofrimento do povo de Deus. Os apocalipses tentam demonstrar que existe uma realidade oculta por trás da realidade física. Essa realidade oculta é o que dá sentido para a realidade física. Assim, o profeta que teve a visão apocalíptica é alguém que adentrou a esse mundo invisível e, através de um anjo mediador, recebeu a revelação de mistérios (ver Ap 4). Ao ver o mundo invisível, ele percebe quem são os verdadeiros inimigos do povo, mas também percebe que o curso inteiro da história do mundo já foi predeterminado por Deus, e todos os acontecimentos estão seguindo este cronograma que parece incompreensível a princípio, mas que no final demonstrará toda a sua harmonia (Ver Ap 5-6). Segundo Gunneweg, uma característica marcante dos apocalipses é que “a história terrena transcorre segundo uma sequência sólida subdividida em períodos, que tem de ser obedecida. Tudo somente acontece quando o tempo previsto por Deus está cumprido” (2005, p. 337). Diante da terrível situação aparentemente insolúvel do tempo presente, os profetas apocalípticos lançam-se totalmente na noção da soberania de Deus, e tentam consolar o povo dizendo que, apesar de tudo o que está acontecendo, Deus ainda está no controle, conduzindo a história para o cumprimento de seus secretos e misteriosos propósitos. Ao mesmo tempo, desafiam o povo a permanecer fiel a Deus, pois sem isso não desfrutará da libertação futura. Entretanto, não foi apenas a concepção teológica que evoluiu nos apocalipses em relação aos textos anteriores. O próprio estilo de escrever também mudou. As narrativas e 64 poesias que perduraram durante praticamente todo o Antigo Testamento dão lugar a um novo estilo de escrever a “revelação de Deus”: o estilo apocalíptico, que será alvo de nossos estudos a seguir. 2.2. O apocalipse e a literatura apocalíptica: Enoque e Daniel No tópico anterior mostramos como a literatura apocalíptica é a consumação teológica do movimento literário-religioso expresso em toda a Bíblia Hebraica. Agora pretendemos tratar mais especificamente da relação entre o Apocalipse e o restante da literatura apocalíptica. Há duas dificuldades iniciais nessa empreitada: delimitar o gênero apocalíptico e delimitar as características exclusivas do Apocalipse canônico. Paul D. Hanson propõe uma distinção entre “apocalipse”, “escatologia apocalíptica” e “apocalipsismo”. Para acrescentar precisão à terminologia utilizada na discussão do fenômeno vagamente chamado de apocalíptico, Hanson diz que “apocalipse”, veio, então, designar um gênero literário, em contraste com os conceitos relacionados “escatologia apocalíptica” e “apocalipsismo” (1976, p. 279-292). Essa tríplice distinção se fundamenta em gênero (apocalipses), cosmovisão (escatologia apocalíptica) e movimento social (apocalipsismo). É importante ressaltar que, seguindo essa diferenciação, trabalharemos especificamente com o conceito de gênero apocalíptico, usando os termos “apocalipses” e “literatura apocalíptica” nesse sentido. E, como já foi dito, utilizamos nesse trabalho o termo Apocalipse especificamente para o livro atribuído a João. Mesmo se tratando do conceito de gênero, não é simples estabelecer precisamente suas delimitações. John J. Collins (1984, p. 03) apresenta três razões para o uso variado do termo “apocalipse”: primeiro porque designa uma ampla gama de elementos literários, sociais e fenomenológicos. Segundo porque não há clareza em reconhecer e classificar esse gênero na Antiguidade, uma vez que o próprio gênero só foi reconhecido a partir do Apocalipse de João. Terceiro porque os apocalipses judaicos abrangem formas literárias muito distintas (visões, lendas, testamentos, etc.). 65 Mesmo assim, apesar dessa dificuldade, é possível estabelecer que, entre os séculos terceiro A.C e segundo D.C., há um movimento literário complexo e que inclui diversos tipos de literatura, reconhecível pelo seu estilo peculiar, que ficou conhecido como apocalíptico70. D. S. Russel lista dezessete livros e propõe datas, como pertencendo a esse tipo de literatura (1964, p. 37-39): • O livro de Daniel (165 A.C.). • I Enoque 1-36 , 37-71, 72-82, 83-90 , 91-108 (164 A.C.). • O Livro dos Jubileus (c. 150 A.C.). • Os Oráculos Sibilinos, Livro III (c. 150 A.C.). • O Testamento dos Doze Patriarcas (segunda metade do segundo século A.C.). • Os Salmos de Salomão (c. 48 A.C.). • A Assunção de Moisés (6-30 D.C). • O Martírio de Isaías (Judeu ou cristão?). • A Vida de Adão e Eva ou o Apocalipse de Moisés (c. 70 D.C.). • O Apocalipse de Abraão 9-32 (c. 70-100 D.C.). • O Testamento de Abraão (primeiro século D.C.). • II Enoque ou O Livro dos Segredos de Enoque (primeiro século D.C.). • Os Oráculos Sibilinos, Livro IV (c. 80 D.C.). • II Esdras (=4 Ezra) 3-14 (c. 90 D.C.). • II Baruque ou O Apocalipse de Baruque (depois de 90 D.C.). • III Baruque (segundo século D.C.). • Os Oráculos Sibilinos, Livro V (segundo século D.C.). Russel acrescenta ainda algumas obras de Qumran que, direta ou indiretamente, se associam com os livros apocalípticos: • Comentários em Isaías, Oséias, Naum, Habacuque, Sofonias e Salmo 37. • O Documento Zadoquita (ou Documento de Damasco). • O Manual de Disciplina (ou Ordem da Comunidade). • A Ordem da Congregação. 70 O livro de Daniel pode ter sido escrito antes disso, como será visto adiante. 66 • O Livro das Bênçãos. • O Livro do Testemunho (ou uma Antologia Messiânica). • Hino de Ação de Graças. • A Guerra dos Filhos da Luz contra os Filhos das Trevas. • O Livro dos Mistérios. • A Midrash dos Últimos Dias. • A Descrição da Nova Jerusalém. • Uma Liturgia Angélica. • A Oração de Nabonidos e o Apocalipse do Pseudo-Daniel. • O Gênesis Apócrifo. Russel (1964, p. 105) delimita a literatura apocalíptica por meio das seguintes marcas: transcendentalismo, mitologia, orientação cosmológica, visão pessimista da história, dualismo, divisão do tempo em eras, ensino de duas eras, numerologia, falsos êxtases, argumentos artificiais de inspiração, pseudonímia, esoterismo, unidade da história, concepção da história cósmica tratando da terra e céu, noção de primordialidade, especulação sobre a origem do mal, conflito entre luz e trevas (bem e mal, Deus e Satanás), Filho do Homem, vida depois da morte, individualismo. Percebe-se que tal definição é muito ampla, o que nos leva a questionar se uma obra deve conter todos esses aspectos, ou apenas alguns, para ser considerada apocalíptica. C. M. Rist em um artigo intitulado Apocalypticism (IDB, 1: 157ss) distingue entre os elementos que constituem o padrão básico da literatura apocalíptica dos fatores secundários que estão frequentemente presentes nos apocalipses, mas que não são normativos ou constitutivos. O padrão básico constitui-se de: 1) Dualismo (não metafísico, mas oposicional: Bem e Mal, Céu e Terra, etc.) 2) Escatologia (duas eras, a nova era não como um crescimento da presente, mas uma irrupção). Os fatores secundários seriam: Visões, pseudonímia, um messias, angeologia e demonologia, simbolismo animal, numerologia, previsão de catástrofes, influências astrais. A partir dos pressupostos de Rist, podemos afirmar que a literatura apocalíptica se preocupou em descrever as oposições tensionais entre Deus e o Mal, dentro de uma perspectiva escatológica de duas eras: a era presente e a futura, utilizando-se de símbolos variados. 67 Quanto ao dualismo é possível identificar que foi uma herança do convívio com o mundo persa, pois “a religião dos persas admitia o dualismo: dois princípios absolutos, o bem e o mal, a lutarem entre si” (MESTERS & OROFINO, 2003, p. 29). Este dualismo foi em parte assimilado pelos judeus e pelos cristãos, tornando-se uma característica fundamental da visão do mundo dos apocalípticos. É preciso ressaltar, contudo, que para os apocalipses somente o princípio do bem era absoluto (MESTERS & OROFINO, 2003, p. 29). O dualismo se expressa na correlação de fatores e de enfrentamentos oposicionais, não em termos de igualdade de poder. Os dois principais apocalipses judaicos são o Livro de Enoque e o Livro de Daniel. Ao analisá-los, poderemos ver in loco essas características e, ao mesmo tempo, perceber como influenciaram o livro do Apocalipse. 2.2.1. O livro de Enoque Enoque é citado na Bíblia Hebraica como o sétimo descendente de Adão através de Sete. Sobre ele foi escrito: “Todos os dias de Enoque foram trezentos e sessenta e cinco anos. Andou Enoque com Deus e já não era, porque Deus o tomou para si” (Gn 4.23-24). Esse arrebatamento misterioso de Enoque, fez com que ele se tornasse um personagem importante da literatura judaica. Vários apocalipses foram atribuídos a ele, como foi visto na lista de Russel, e sua tradição também se estende ao Livro dos Jubileus. O principal dos apocalipses da tradição de Enoque é o “Livro dos Vigilantes”. Segundo Himmelfarb (2010, p. 15), esse não é o apocalipse mais primitivo, pois o “Livro Astronômico”, também atribuído ao patriarca Enoque, o precede. Sem dúvida é o mais importante dos apocalipses judaicos extra-canônicos71, e todos os apocalipses posteriores que contêm alguma “subida aos céus” de algum modo fazem referência a ele (ver Ap 4). A cópia preservada desse apocalipse é uma tradução etíope, mas há fragmentos do aramaico original entre os pergaminhos do mar morto. O Livro dos Vigilantes, como um trabalho completo, remonta ao início do segundo século A.C, mas possivelmente ele seja anterior, pois alguns conceitos podem remontar ao próprio período persa (HIMMELFARB, 2010, p. 15). O ponto de partida para o livro é a história da descida dos filhos de Deus para tomar como esposas as filhas do homem (1Enoch 6, interpretando Gn 6.1-4). As informações de 71 O mais importante é o canônico Daniel. 68 Gênesis 6 de que o casamento dos filhos de Deus com as filhas do homem (que teve consequências nocivas para a humanidade, gerando inclusive o Dilúvio), influenciou a produção do Livro dos Vigilantes. Entretanto, esse livro não só procurou oferecer uma explicação mais completa do Dilúvio, como também uma explicação diferente. O livro descreve os efeitos devastadores desta violação da ordem do universo através dos descendentes dos seres divinos (os Vigilantes) e de suas esposas humanas. Esses descendentes eram gigantes (Nephilins) com um apetite insaciável e devoravam não só bestas, mas também seres humanos. Nesse ponto, o livro de Enoque traz uma explicação para a origem do mal que difere da do livro do Gênesis. Para o Gênesis, a origem do mal estava na desobediência do homem (Gn 3). Para o Livro dos Vigilantes, na desobediência dos anjos. Ao mesmo tempo, explica a razão do conhecimento e da tecnologia no mundo, como oriundas dos anjos decaídos. O primeiro anjo mencionado no livro, Asael, revelou aos homens as artes da guerra, das joias e dos cosméticos (1Enoque 8.1). Segundo Himmelfarb, “the power of the story is clear: it absolves humanity of the blame, or, in the reading that places the revelation of knowledge first, some of the blame, for the evils around us” (2010, p. 18)72. Quando Deus ordenou o Dilúvio para destruir os filhos gigantes dos Vigilantes, seus espíritos sobreviveram. Essa é, pois, a explicação para a origem dos demônios. No Apocalipse, João não retoma essa história; antes retorna ao Gênesis e identifica o dragão como a antiga serpente de Gênesis 3 (Ap 12.9). Entretanto, em Gênesis 3 não há qualquer referência a outros anjos caídos. Enoque aparece no livro como um escriba comissionado pelos Vigilantes que não pecaram com as mulheres. Eles incumbem-no de entregar uma mensagem de condenação para os que caíram (1Enoque 12). Os anjos caídos ouvem a mensagem, mas pedem a Enoque que apresente um pedido de clemência ao Senhor. Enquanto Enoque recita o pedido de clemência, ele adormece e, em seu sonho, é levado até a presença do trono de Deus (1Enoque 13–14). No céu, Enoque se depara com um edifício maravilhoso, composto de fogo e gelo. O local é uma descrição mesclada com elementos do tabernáculo construído no livro do Êxodo, do templo de Jerusalém do livro dos Reis, e da visão do templo restaurado em Ezequiel. Enoque vê o trono de Deus e cai prostrado diante do Senhor que, vestido com roupas brilhantes, está sentado em um trono de Querubins. Enoque parte, 72 “O poder da história está claro: absolve a humanidade da culpa, ou, na leitura que coloca a revelação do conhecimento pela primeira vez, parte da culpa, para os males que nos rodeiam” (tradução nossa). 69 então, em uma jornada até os confins da terra, em companhia dos arcanjos para ver coisas inacessíveis aos seres humanos (1Enoque 17–36). Essa descrição se parece bastante com a visão do Apocalipse, apesar de que, João não adormece, antes sobe ao céu conscientemente (em espírito: Ap 4.2). Entretanto, sua primeira visão também é a do trono. Após presenciar diversos acontecimentos, João parte com os anjos para diferentes lugares onde enxerga as realidades ocultas do conflito das forças do mal contra a igreja. Como os anjos do Apocalipse, são os arcanjos em Enoque que servem de guias e explicam o significado dos sinais. Nota-se que a partir do Exílio, os anjos passaram a ser cada vez mais importantes na literatura judaica. Antes, praticamente não há referências a eles, depois recebem nomes e funções. Enoque vê a punição dos Vigilantes (1Enoque 19), e o lugar onde as almas dos seres humanos aguardam o julgamento (1Enoque 22). Como diz Himmelfarb, these sights are the first clear expression of a belief in post- mortem reward and punishment in Jewish literature. […] The sights reflect an understanding of the fate of souls after death as having two stages: storage in the appropriate chamber to await the Last Judgment, which already constitutes reward or punishment, and then a more intense reward or punishment after the Last Judgment (2010, p. 25)73. No Apocalipse de João, a situação das almas também é muito importante. Duas vezes, pelo menos, João vê as almas no céu, porém não estão a espera do julgamento pessoal, estão repousando (Ap 6.9) e reinando (Ap 20.4). O que elas aguardam é o julgamento dos ímpios. Um aspecto apocalíptico do Livro dos Vigilantes que vai repercutir claramente no Apocalipse de João é a noção da soberania de Deus. Toda a viagem de Enoque, ao final, mostrou apenas que o pedido dos Vigilantes caídos não foi atendido. Não há referências sobre os eventos finais, apenas sobre o julgamento final. Nesse sentido, tem pouco a falar sobre o curso da história. O templo celestial continua em sua plenitude, e o mundo criado atesta a grandeza de Deus (HIMMELFARB, 2010, p. 28). No Apocalipse de João, Deus está sentado no trono e decide os eventos futuros do mundo. Por isso, o povo de Deus, mesmo sofrendo todo tipo de perseguições, deve ter esperança. 73 “Esses sinais são a primeira expressão clara de uma crença na recompensa e punição pós–morte na literatura judaica [...] Eles refletem uma compreensão do destino da alma após a morte como tendo duas fases: armazenamento no local apropriado para aguardar o julgamento final, que já constitui recompensa ou castigo e, em seguida, uma recompensa mais intensa ou castigo após o julgamento final” (tradução nossa). 70 2.2.2. O livro de Daniel Dentro da literatura apocalíptica judaica, o livro de Daniel merece destaque em razão da sua antiguidade e pelo fato de fazer parte do Cânon. O autor e a data do livro de Daniel são objetos de discussão há muito tempo. Os estudos críticos influenciados pelo Iluminismo e sua visão racionalista do mundo fixaram a data do livro em meados do segundo século antes de Cristo. A razão para isso, sem dúvida, é o suposto elemento profético e sobrenatural presente, pois o mesmo teria previsto a sucessão de impérios mundiais a partir de Babilônia até o surgimento de Roma. Autores conservadores, como Young (1949), Leopold (1969), Baldwin (1983), e Archer Jr. (1986), argumentam que há evidências de que o livro seja do sexto século antes de Cristo, com base em certas afirmações do próprio livro, e de outros livros, como o de Ezequiel, que cita o nome de Daniel junto com o de Jó e o de Noé (Ez 14.14,20; 28.3). Não há qualquer referência a um homem sábio e importante chamado Daniel em nenhum outro lugar da Bíblia Hebraica, exceto no próprio livro de Daniel. Isso sugere que Ezequiel poderia realmente estar falando de alguém que já era conhecido naqueles dias. Ezequiel profetizou durante o período do exílio. Assim, ele estaria utilizando a figura de três personagens importantes: um do mundo antigo, um do passado próximo e um do presente (LEOPOLD, 1969, p. 5-7). Outros livros como a tradução grega do Pentateuco, o livro de Enoque e dos Macabeus parecem ter sofrido influência do livro de Daniel, como se pode constatar por meio das citações (YOUNG, 1949, p. 20). Isso, sem dúvida, sugere uma data anterior ao segundo século A.C. Por outro lado, o hebraico e o próprio aramaico do livro podem sugerir uma data posterior devido ao seu desenvolvimento, pelo menos um século depois do exílio, principalmente pela presença de palavras estrangeiras vindas do período persa e até mesmo do mundo grego, o que indicaria que o livro pertenceria ao período helenístico (MONTGOMERY, 1979, p. 59). O Aramaico no livro (2.4b-7.28) é uma forma do Aramaico Imperial, a língua internacional do Oriente Médio daquele período. Ele contém um razoável número de palavras Persas e Acádias, e no terceiro capítulo há três palavras gregas. O aramaico no livro é diferente do Aramaico posterior de Qumran e pode ser datado em qualquer momento entre os séculos VI e II a.C. As palavras gregas, entretanto, podem exigir uma data posterior, quando a cultura grega já estava espalhada no Oriente. Entretanto, são palavras usadas para descrever instrumentos musicais e é difícil afirmar a 71 partir de que momento, na história, esses instrumentos ficaram conhecidos com nomes gregos dentro da cultura babilônica e judaica. O livro de Daniel começa a mostrar o conceito de diglósia que seria tão comum no povo de Judá após o cativeiro. O hebraico passou a ser a língua de cunho elevado e santo, destinada ao uso separado, e o aramaico a língua comum. Isso se torna interessante porque o Aramaico irrompe no livro justamente a partir do discurso dos magos babilônicos ao rei, argumentando que não tinham condições de adivinhar o que o rei tinha sonhado. Uma provável resposta para essa mudança de idioma pode ser a de que aquela parte do livro seria de interesse para não-judeus, ou mesmo, que tivesse sido publicada separadamente (BALDWIN, 1983, p. 32). Outro aspecto importante que denota a influência persa é justamente a mediação dos anjos que não só trazem a revelação, como são também responsáveis por sua explicação. Esses seres espirituais parecem influenciar certas regiões do mundo, como a Grécia e a Pérsia. Dois importantes anjos servem como protetores para Israel e recebem nomes próprios: Miguel e Gabriel. É importante lembrar que antes do exílio, jamais os anjos foram nomeados, nem há descrições deles como seres pessoais. Tornam-se, a partir de então, descritos como seres individuais, com personalidade e nomes próprios, e começam a influenciar decisivamente os eventos. Há anjos bons (Gabriel e Miguel) e há anjos maus (os príncipes da Grécia e da Pérsia). E eles lutam entre si. Em Apocalipse 12, Miguel e seus anjos lutam contra Satanás e seus anjos, num evidente desenvolvimento desse pensamento. Quanto à sua estrutura, o livro de Daniel divide-se em duas partes. A primeira (capítulos 1-6) narra o sucesso de Daniel na corte da Babilônia. Daniel é apresentado como um judeu que foi para o exílio e obteve sucesso como conselheiro na corte de vários imperadores babilônicos e medo-persas. A narração da devoção e do sucesso de Daniel está em conformidade com as figuras judaicas mais antigas que prosperaram em cortes estrangeiras como conselheiros, sendo o grande protótipo o próprio José (também Neemias). Para os judeus oprimidos, essa narração é muito importante, pois mostra como o judeu mesmo em tempos difíceis, permanecendo fiel a Deus, consegue prosperar. Como assinala Smith, todos eles enfrentam privações e até ameaças de morte, geralmente tramadas por seus rivais na corte. Através dessas dificuldades, o sábio e devoto judaíta sobrevive, em parte devido ao seu respeito à sua herança e em parte graças ao apoio divino que opera por trás dos acontecimentos (2006, p. 118). 72 O povo deve se manter fiel e confiar que Deus continua agindo no mundo, de modo que os livramentos vêm da mão invisível de Deus. Essa mão de Deus não apenas cuida de seu povo, como dirige a história universal. Como diz Rowley: todas estas narrativas inculcam apaixonada lealdade a todo custo, e em parte alguma vê vitória que seria conquistada pelo honrado braço forte dos rebeldes, a não ser por intervenção sobrenatural divina. Ele encoraja antes fortitude [sic] na perseguição que revolta contra o opressor e nisto ele é o precursor dos outros autores de apocalipses. O grande apocalipse do Novo Testamento fala da guerra, tal qual o livro de Daniel, como sendo contra os santos, mas não pensa em qualquer réplica militar por parte dos santos. Eles apenas sofrem, sustentados pela esperança de libertação que virá em seu favor (1980b, p. 21). A segunda parte (capítulos 7–12) trata das visões celestes, as quais permitem a Daniel receber o conhecimento dos eventos futuros. É nessa parte que a concepção de Deus se eleva para a de um Deus cósmico, que controla todas as coisas, que dita o rumo da história e das nações. Os tempos turbulentos em que tantos impérios surgiram e caíram com certeza transmitiam insegurança aos homens. O livro mostra que tudo estava acontecendo exatamente como Deus decretou. A principal descrição de Deus no livro de Daniel aparece no capítulo 7: continuei olhando, até que foram postos uns tronos e o Ancião de Dias se assentou; sua veste era branca como a neve, e os cabelos da cabeça, como a pura lã; o seu trono eram chamas de fogo, e suas rodas eram fogo ardente. Um rio de fogo manava e saía de diante dele; milhares de milhares o serviam, e miríades de miríades estavam diante dele; assentou- se o tribunal, e se abriram os livros (Dn 7.9-10). Não é difícil encontrar uma descrição semelhante de Yahweh em outros textos antigos, pois muitos descrevem a figura de Deus rodeado de seres celestes (1Rs 22:19–22; Is 6; Ez 1; Sl 82; 1Enoque 14.18–22; 40.1; 60.1–2; 71; 91.15–16). Uma descrição paralela pode ser encontrada no ugarítico épico de Aqhat (3.6.48), que apresenta El como “o rei, o pai de anos” (SMITH, 2001, p. 141). Porém, em Daniel, Deus é uma figura cósmica, um ser eterno e atemporal que controla o tempo e julga a todos. Os animais (figuras de impérios mundiais) serão julgados por ele, assim os monstros marinhos serão mais uma vez abatidos como nos épicos cananitas. Daniel 7 reflete um conflito em termos cósmicos. Yahweh é aquele que subjuga o cosmos. Ele é o Juiz de todos. Constata-se que nenhum dos profetas anteriores descreveu alguma forma de Deus. O autor do livro de Jó se contentou em dizer que ele estava no meio do rodamoinho. Na descrição de Daniel, Yahweh é visível, quase 73 palpável. Ao mesmo tempo, é o soberano cósmico, atemporal, o controlador da história do mundo. O autor do Apocalipse se utiliza de diversas figuras do livro de Daniel, porém, não faz nenhuma citação direta do livro. Se o autor do Apocalipse foi um prisioneiro em Patmos (Ap 1.9), por certo, ele não dispunha de uma Bíblia Hebraica. Entretanto, possuía um extensivo conhecimento do Antigo Testamento, pois fez 644 citações indiretas da Bíblia Hebraica (Segundo o texto grego UBS - FEKKES, 1994, p. 62)74. Daniel é, sem dúvida, um dos mais citados. A partir desse livro, João construiu toda a sua visão dos inimigos escatológicos do povo de Deus. Entretanto, João não copiou as cenas descritas em Daniel, ele se apropriou delas, transformou-as e aplicou-as aos seus propósitos. O seguinte quadro comparativo que tem por base o trabalho de Fekkes (1994, p. 82– 83) ajuda a ver. 1 - Quadro comparativo entre Apocalipse e Daniel Apocalipse Descrição Daniel Quando tiverem, então, 1 Eu olhava e eis que este chifre concluído o testemunho que Os santos são vencidos pela fazia guerra contra os santos e devem dar, a besta que surge besta. prevalecia contra eles (7.21) do abismo pelejará contra elas, e as vencerá, e matará (11.7) Viu-se, também, outro sinal no 2 Eu continuava olhando nas céu, e eis um dragão, grande, visões da noite, e eis aqui o vermelho, com sete cabeças, Dez chifres. quarto animal, terrível, dez chifres e, nas cabeças, sete espantoso e sobremodo forte, o diademas (12.3) qual tinha grandes dentes de ferro; (...) era diferente de todos os animais que apareceram antes dele e tinha dez chifres (7.7) 74 Não há concordância entre os estudiosos do número de citações feitas por João do Antigo Testamento. De 250 até 700 são catalogadas. (FEKKES, 1994, p. 62). Isso, sem dúvida, se deve ao fato de não haver citações diretas. Assim, cada autor tem sua própria metodologia para considerar uma citação. Mas, de qualquer modo, todos concordam que o número de alusões é muito elevado. 74 A sua cauda arrastava a terça 3 Cresceu até atingir o exército parte das estrelas do céu, as Lançando as estrelas do céu dos céus; a alguns do exército e quais lançou para a terra; para a terra. das estrelas lançou por terra e (12.4). os pisou (8.10). E foram dadas à mulher as duas 4 Proferirá palavras contra o asas da grande águia, para que Tempo, tempos e metade de Altíssimo, magoará os santos voasse até ao deserto, ao seu um tempo. do Altíssimo e cuidará em lugar, aí onde é sustentada mudar os tempos e a lei; e os durante um tempo, tempos e santos lhe serão entregues nas metade de um tempo, fora da mãos, por um tempo, dois vista da serpente (12.14). tempos e metade de um tempo (7.25). Vi emergir do mar uma besta 5 Quatro animais, grandes, que tinha dez chifres e sete Besta sobe do mar. diferentes uns dos outros, cabeças e, sobre os chifres, dez subiam do mar (7.3). diademas (13.1). Vi emergir do mar uma besta 6 Era diferente de todos os que tinha dez chifres (13.1) A besta tem dez chifres animais que apareceram antes dele e tinha dez chifres (7.7). A besta que vi era semelhante 7 Depois disto, continuei a leopardo, com pés como de Besta como um leopardo. olhando, e eis aqui outro, urso e boca como de leão semelhante a um leopardo (13.2) (7.6). A besta que vi era semelhante a 8 Continuei olhando, e eis aqui o leopardo, com pés como de Besta como um urso segundo animal, semelhante a urso e boca como de leão um urso, o qual se levantou (13.2). sobre um dos seus lados; na boca, entre os dentes, trazia três costelas; e lhe diziam: Levanta- te, devora muita carne (7.5) A besta que vi era semelhante a 9 O primeiro era como leão e leopardo, com pés como de Besta como leão tinha asas de águia; (7.4). urso e boca como de leão (13.2). 75 Foi-lhe dada uma boca que 10 e eis que neste chifre havia proferia arrogâncias e Boca que fala blasfêmias. olhos, como os de homem, e blasfêmias e autoridade para uma boca que falava com agir quarenta e dois meses; insolência (Dn 7.8). (13.5). Foi-lhe dada uma boca que 11 e eis aqui outro, semelhante a proferia arrogâncias e Autoridade dada à besta. um leopardo, e tinha nas costas blasfêmias e autoridade para quatro asas de ave; tinha agir quarenta e dois meses; também este animal quatro (13.5). cabeças, e foi-lhe dado domínio (Dn 7.6). E abriu a boca em blasfêmias 12 Este rei fará segundo a sua contra Deus, para lhe difamar Blasfêmias contra Deus vontade, e se levantará, e se o nome e difamar o engrandecerá sobre todo deus; tabernáculo, a saber, os que contra o Deus dos deuses habitam no céu (Ap 13.6). falará coisas incríveis e será próspero, até que se cumpra a indignação; porque aquilo que está determinado será feito (11.36, ver também 7.25). Foi-lhe dado, também, que 13 Foi-lhe dado domínio, e glória, pelejasse contra os santos e os Adoração de toda tribo, povo, e o reino, para que os povos, vencesse. Deu-se-lhe ainda língua e nação. nações e homens de todas as autoridade sobre cada tribo, línguas o servissem; o seu povo, língua e nação; e domínio é domínio eterno, que adorá-la-ão todos os que não passará, e o seu reino habitam sobre a terra (13.7– jamais será destruído (7.14). 8) Os dez chifres que viste são 14 Os dez chifres correspondem dez reis, os quais ainda não Dez chifres são dez reis. a dez reis que se levantarão receberam reino, mas recebem daquele mesmo reino; e, depois autoridade como reis, com a deles, se levantará outro, o qual besta, durante uma hora (17.12) será diferente dos primeiros, e abaterá a três reis (7.24). 76 Mas a besta foi aprisionada, e 15 Então, estive olhando, por com ela o falso profeta que, Besta lançada no lago de fogo. causa da voz das insolentes com os sinais feitos diante dela, palavras que o chifre proferia; seduziu aqueles que receberam estive olhando e vi que o a marca da besta e eram os animal foi morto, e o seu corpo adoradores da sua imagem. Os desfeito e entregue para ser dois foram lançados vivos queimado (7.11). dentro do lago de fogo que arde com enxofre (19.20). Segundo o estudioso russo Mikhail Bakhtin: “A língua vive e evolui historicamente na comunicação verbal concreta, não no sistema linguístico abstrato das formas da língua nem no psiquismo individual dos falantes” (1929/1997, p. 124). Sendo assim, segundo o autor: de tudo o que dissemos, decorre que o problema das formas de enunciação considerada como um todo adquire uma enorme importância. Já indicamos que o que falta a linguística contemporânea é uma abordagem da enunciação em si. Sua análise não ultrapassa a segmentação em constituintes imediatos. E, no entanto, as unidades reais da cadeia verbal são as enunciações. Mas, justamente, para estudar as formas dessas enunciações, convém não separá-las do curso histórico das enunciações. Enquanto um todo, a enunciação só se realiza no curso da comunicação verbal, pois o todo é determinado pelos seus limites, que se configuram pelos pontos de contato de uma determinada enunciação com o meio extra verbal e verbal (isto é, as outras enunciações). (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1997, p. 124). No Apocalipse, João estabelece uma rica relação intertextual com todo o Antigo Testamento, especialmente com o livro de Daniel. Há uma intertextualidade explícita. Ele construiu seus personagens antagônicos baseados nas figuras descritas por Daniel. Não fez citações diretas, mas o quadro comparativo acima mostra a abundância de alusões ao texto- fonte. Há, portanto, um diálogo intencional e criativo entre o texto joanino e o texto de Daniel75. Por isso, só é possível entender o texto do Apocalipse à luz da intertextualidade com Daniel. 75 Nesse ponto, não ignoramos as dificuldades teológicas surgidas a partir do conceito de gênero. Da perspectiva da teologia, e também segundo o que o próprio autor do livro relata, ele está escrevendo o que “viu”. Ou seja, teologicamente a dificuldade está em definir se João viu todas aquelas imagens que se relacionavam com as imagens do Antigo Testamento e apenas as registrou, ou se ele as criou, a partir das imagens do Antigo Testamento. Talvez, teologicamente e também para fazer justiça ao que ele próprio 77 Segundo Laurent Jenny, em relação ao conceito de intertextualidade, “a obra literária entra sempre numa relação de realização, de transformação ou de transgressão” com outras obras literárias (1979, p. 05). Tentaremos mostrar como isso ocorre com o texto do Apocalipse em relação ao livro de Daniel. Algumas ideias entre os quadros expostos acima são correlatas, apontando para um sentido de “realização”. No quadro 1, a ideia de que o inimigo vence o povo de Deus (temporariamente), é correlata. Esse é um dos temas do Apocalipse: a igreja padece sob a pressão das forças malignas (dragão, Anticristo, império romano), mas ao final triunfará sobre elas. Os quadros 10 e 11 também são correlatos, destacando as blasfêmias proferidas pelo inimigo e o tempo que recebeu para agir. Aqui, João apenas se apropriou das ideias de Daniel e transportou-as para seu próprio momento, mantendo mais ou menos estáveis os significados propostos. Todos os demais quadros sofrem algum tipo de transformação ou transgressão. No caso das faces da besta dos quadros 7, 8 e 9, no livro de Daniel, quatro animais surgem um após o outro, na seguinte ordem: um leão com asas de águia; um urso; um leopardo com quatro asas e quatro cabeças; o quarto é o mais terrível, praticamente indescritível; destacam-se seus dentes de ferro e os dez chifres. João, por sua vez, vê apenas uma besta, porém, na sua descrição sequencial, ela é semelhante ao (3) leopardo, (2) tem pés como os de urso, (1) e boca como a de leão. João transformou a visão registrada em Daniel, reunindo os quatro animais descritos pelo profeta judeu em um só e em uma sequência inversa. Isso mostra que ele sabia exatamente a ordem de surgimento dos quatro animais conforme descritos no livro do Antigo Testamento. Qual seria o propósito dessa inversão? A explicação que foi dada no livro de Daniel a respeito dos animais é que eles representavam os quatro impérios, os quais possivelmente foram: Babilônia; Pérsia; Grécia e Roma. Era, provavelmente, isso o que João entendia, uma vez que estava vivendo nos dias do Império Romano. Ele descreve inicialmente a besta como Roma, porém ela traz em sua essência a combinação dos três impérios anteriores. O quadro 13 é o mais problemático. Há uma “transgressão” explícita. Em Daniel, refere-se ao domínio e adoração recebida pelo “Filho do Homem”. Em João, refere-se à registrou, se devesse pensar numa possibilidade intermediária, ou seja, ele viu as cenas, porém ao registrá-las, fez uso de seu patrimônio literário. 78 adoração recebida pela besta. Isso, provavelmente, seja uma paródia76. É assim que João costumeiramente apresenta os personagens antagônicos, como paródias dos personagens protagonistas. Uma leitura do Apocalipse sem considerar esses aspectos intertextuais, por certo, conduz o leitor para longe do sentido pretendido pelo autor. Como culminação da literatura bíblica, a literatura apocalíptica, e mais especificamente o Apocalipse de João representam um momento histórico específico de grande desenvolvimento teológico, e de adaptação de conceitos desenvolvidos anteriormente, ou seja, ao longo do difícil exílio babilônico e dos sucessivos domínios imperiais a que o povo de Israel foi submetido. O Apocalipse consuma um movimento literário-teológico, apontando para a concepção final da pessoa de Deus no contexto canônico. Deus é o senhor do tempo e da história. As forças malignas rebeladas subjugam o mundo através dos grande impérios e oprimem o povo de Deus. Este deve permanecer resignado diante do sofrimento, e confiando na libertação que se manifestará numa “vinda” catastrófica de Deus ao mundo para destruir os inimigos e recompensar o povo fiel. Prisioneiro em Patmos, o autor do Apocalipse construiu sua visão da realidade através de um extensivo e contextualizado uso de temas, figuras e interpretações teológicas do livro de Daniel e também de outras fontes de literatura apocalíptica, como o livro de Enoque. Entretanto, ele adaptou esses temas e figuras para seus propósitos. Em momento algum fez citações diretas dessas literaturas, mas demonstrou um amplo conhecimento das mesmas. Construiu suas próprias figuras e interpretações sobre aquelas numa relação intertextual que se expressou em realização, transformação e transgressão. Isso aponta para a importância do conhecimento dos conceitos de gênero e de intertextualidade para uma leitura acurada do texto.   76 Nesse trabalho ainda falaremos sobre o uso da paródia no Apocalipse para descrever o inimigo. 79 3. As principais características literárias do Apocalipse Tendo estabelecido o contexto literário do Apocalipse e já demonstrando alguns aspectos da literatura apocalíptica, agora, concentraremos a análise especificamente nos aspectos artísticos-literários do Apocalipse de João. Mas antes, alguns detalhes sobre a obra ainda precisam ser estabelecidos. A questão da autoria do livro não é primordial para o nosso estudo, mesmo assim, deve ser lembrado que o autor se identifica como João, cujo nome, sem qualquer outra qualificação, aponta para o Apóstolo João, autor do Quarto Evangelho e das três Epístolas Joaninas segundo a tradição cristã ortodoxa. Embora muitos estudiosos rejeitem esta ideia (FORD, 1975, CHARLES, 1920), há evidências suficientes para manter a opinião tradicional da Igreja de que o Apóstolo João escreveu o Apocalipse. A principal evidência externa a favor da autoria joanina é o testemunho praticamente unânime dos pais da igreja. Dentre eles, dois merecem destaque. O primeiro testemunho é de Justino Mártir que escreveu em aproximadamente 135 D.C., e disse: there was a certain man with us, whose name was John, one of the apostles of Christ, who prophesied, by a revelation that was made to him, that those who believed in our Christ would dwell a thousand years in Jerusalem (1885, LXXXI, p. 239-240)77. Como aponta Kistemaker (2004, P. 34), entre o final da vida de João estimado em 98 D.C e o pronunciamento de Justino se passaram menos de 40 anos, o que significa que testemunhas oculares poderiam confirmar a veracidade da informação. O segundo testemunho é o de Irineu que foi discípulo de Policarpo. Escrevendo sobre o número da besta, ele disse: 77 “Houve um certo homem conosco, cujo nome era João, um dos apóstolos de Cristo, que profetizou, por revelação que lhe foi feita, que aqueles que creram em nosso Cristo poderiam habitar mil anos em Jerusalém” (tradução nossa). 80 such, then, being the state of the case, and this number being found in all the most approved and ancient copies [of the Apocalypse], and those men who saw John face to face bearing their testimony [to it]; while reason also leads us to conclude that the number of the name of the beast, [if reckoned] according to the Greek mode of calculation by the [value of] the letters (1985,XXX, 1 p. 558)78. Irineu conheceu, provavelmente, Policarpo e Papias que, por sua vez, conheceram João pessoalmente. Eles testemunhavam que João, o Apóstolo, era o autor do Apocalipse. A evidência interna, além da identificação explícita do autor que se nomina João, vem das semelhanças do Apocalipse com os outros escritos atribuídos ao Apóstolo (Evangelho e Cartas). Há, todavia, diferenças gramaticais entre os referidos escritos. O Apocalipse tem um estilo gramatical mais pobre do que o do Evangelho e o das cartas. Isso poderia ser explicado pelo fato de que, em Patmos, João não teria ajuda de um secretário para redigir o texto. A época da escrita é importante para o entendimento da obra. A data mais provável é a do final do reinado de Domiciano (81-96). Irineu afirma explicitamente que o livro havia sido revelado nessa época: “For that was seen no very long time since, but almost in our day, towards the end of Domitian’s reign” (1895, XXX, 3, p. 560)79. Domiciano foi o primeiro Imperador a reivindicar para si todos os direitos divinos. A adoração ao Imperador se tornou uma questão difícil para o Cristianismo, uma vez que esta se opõe ao primeiro mandamento. A religião tornou-se, assim, oficialmente inimiga do Estado (POHL, 2001, p. 23). O livro do Apocalipse era originalmente uma carta circular enviada para sete igrejas da Ásia (Ap 1.4): Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodicéia. Esta carta circular deveria ser lida perante a congregação que se reunia em cada uma dessas cidades. Como já foi apontado anteriormente, muitas são as semelhanças entre o Apocalipse e a literatura apocalíptica. Richard Bauckham (1993, p. 09-12), por sua vez, assinala algumas diferenças relevantes para a nossa análise: o Apocalipse de João é mais prolixo no uso de imagens, e tem menos informações e/ou interpretações de visões decorrentes dos seres angelicais, em comparação aos outros textos da literatura apocalíptica. João insere, 78 “E este número sendo encontrado em todas as mais aprovadas e antigas cópias [do Apocalipse], e aqueles homens que viram João face a face deram seus testemunhos, e também a razão leva-nos a concluir que o número do nome da besta, de acordo com o modo grego de calcular pelo valor das letras”. (tradução nossa). 79 “Pois que foi visto não muito tempo atrás, mas quase em nossos dias, no final do reino de Domiciano” (tradução nossa). 81 em seu texto, narrativas proféticas bem menores do que a de outros textos apocalípticos. O livro de João é bem mais coeso do que os demais apocalipses. Além disso, cria um mundo de imagens que adquirem significados diversos que podem ser evocados a qualquer momento ao longo de sua narrativa. A unidade e a continuidade das imagens fazem do Apocalipse de João um livro distinto. Os outros apocalipses são pseudoepígrafos, ou seja, foram escritos invocando a autoridade de alguém do passado, enquanto que o Apocalipse de João fala das coisas do presente e não apenas de eventos futuros. Uma importante diferença entre o Apocalipse de João e os outros Apocalipses é o caráter de otimismo da obra. Os textos da apocalíptica judaica são essencialmente pessimistas e só veem a redenção em termos de uma era vindoura. João, apesar de antever a era vindoura como o momento final de libertação, vê a história como o desenrolar do soberano propósito redentor de Deus, ou seja, descreve Deus agindo no presente, transformando as realidades, dirigindo os eventos para a realização final de seus propósitos. O recorrente tema da necessidade de evangelização ao longo do livro aponta para isso. Logo, a Igreja deve não só confiar, mas também se purificar no tempo presente, e servir a Deus, pregando a mensagem salvadora ao mundo. Deus é o Senhor da igreja, do futuro, e da História, e usa a igreja para transformar o presente. Como já foi visto anteriormente, o maior problema com a interpretação do Apocalipse é que muitos se aproximam dele desejosos em descobrir acontecimentos que poderiam ocorrer no futuro. Entretanto, como ressalta Marshall (2004, p. 548), o propósito do livro não é satisfazer a curiosidade sobre o curso de eventos futuros, e sim preparar e encorajar um grupo de igrejas a enfrentar as dificuldades que testariam a fé até o seu limite máximo80. Portanto, em consonância com o restante da Bíblia, o Apocalipse traz um conteúdo teológico e moral. É nossa hipótese que esse conteúdo se expressa mais claramente quando analisamos o texto em si mesmo, prestando atenção aos seus aspectos literários que veiculam essa mensagem. Lembraremos mais uma vez quais são os aspectos narrativos que estamos analisando, conforme a abordagem de Barr: these narrative aspects include plot (the relationship between the incidents of a story), characterization (the presentation of the actors), point of view (how the story is focused), and temporal distortions (such as 80 Com isso não se pretende dizer que o Apocalipse não contém informações importantes para outras épocas. 82 anachronisms, repetition, foreshadowing, and duration), among others (Barr, 2010, p. 647)81. E também o enfoque de Alter: as numerosas modalidades de exame do uso engenhoso da linguagem, das variações no jogo de ideias, das convenções, dicções e sonoridades, do repertório de imagens, da sintaxe, dos pontos de vista narrativos, das unidades de composição e de muito mais. (2007, p. 28). Entre os “muito mais” aspectos que Alter e Barr deixam em aberto, podemos acrescentar paródias, padrões frásicos, estruturas narrativas que são elementos recorrentes na construção do discurso literário. Como ressalta Alter “é importante ir além da análise das estruturas formais para uma compreensão mais profunda dos valores, da perspectiva moral contida num tipo particular de narrativa” (2007, p. 11). Nossa análise se dá em consonância com a proposta de Alter, ou seja, a de que se deve insistir na ideia de uma fusão completa de uma arte literária com um modo teológico, moral ou histórico-filosófico de ver o mundo, sendo que a plena percepção do segundo depende do pleno entendimento da primeira (2007, p. 38). A seguir, portanto, veremos como isso se comprova no estudo do Apocalipse. 3.1. Os principais padrões literários Uma análise superficial do livro do Apocalipse pode conduzir a uma impressão errada sobre o mesmo: a de que o autor juntou uma miscelânea de informações e imagens sem qualquer nexo ou significado. Muitos autores como Charles (1975) e Ford (1920), à luz da crítica da fonte, consideraram o Apocalipse como um livro fragmentado ou de múltipla autoria. Os principais argumentos associados à crítica da fonte contra a falta de unidade do Apocalipse são: 1) a presença de paralelos, quando a mesma cena ou visão é descrita duas vezes ou mais; 2) as rupturas sequenciais, quando pessoas ou objetos são introduzidos aparentemente pela primeira vez, quando na verdade, já haviam sido mencionados anteriormente; 3) 81 “Estes aspectos narrativos incluem enredo (a relação entre os incidentes de uma história), caracterização (a apresentação dos atores), ponto de vista (como a história é focada) e distorções temporais (tais como anacronismos, repetição, presságio e duração), entre outros” (tradução nossa). 83 versículos aparentemente mal empregados; 4) conteúdo distinto dentro das seções que não se ajustam ao restante do livro (PATE, 2003, p. 17). De fato, essas quatro situações textuais podem ser encontradas no texto do Apocalipse, pois há uma junção de imagens, de números, de repetições e de figuras estranhas que podem causar a impressão de que o livro não tem qualquer sentido, que é desconexo. Uma análise mais cuidadosa dessas repetições ou junções pode indicar outro caminho, o de que o livro foi cuidadosamente construído com propósitos específicos, e o que é aparentemente desconexo ou repetitivo, na verdade, são marcas textuais importantes para a constituição de sentido do texto. A seguir, apontaremos em forma de sumário alguns recursos literários empregados pelo autor a fim de entender a importância deles no texto. 3.1.1. O padrão de números O primeiro aspecto que se percebe na construção do texto do Apocalipse são os padrões numéricos. Os números aparecem do primeiro ao último capítulo. A seguir, analisaremos os principais. O número sete A análise do uso desse número já seria suficiente para perceber como o Apocalipse é um texto literário construído de forma inteligente. Esse número é utilizado explícita e implicitamente de modo frequente (KISTEMAKER, 2004, p. 14). A seguir uma lista dos versículos em que o número sete aparece, apontando para a abundância de referências: • Apocalipse 1:4 João, às sete igrejas que se encontram na Ásia, graça e paz a vós outros, da parte daquele que é, que era e que há de vir, da parte dos sete Espíritos que se acham diante do seu trono • Apocalipse 1:11 dizendo: O que vês escreve em livro e manda às sete igrejas: Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodicéia. • Apocalipse 1:12 Voltei-me para ver quem falava comigo e, voltado, vi sete candeeiros de ouro 84 • Apocalipse 1:16 Tinha na mão direita sete estrelas, e da boca saía-lhe uma afiada espada de dois gumes. O seu rosto brilhava como o sol na sua força. • Apocalipse 1:20 Quanto ao mistério das sete estrelas que viste na minha mão direita e aos sete candeeiros de ouro, as sete estrelas são os anjos das sete igrejas, e os sete candeeiros são as sete igrejas. • Apocalipse 2:1 A o anjo da igreja em Éfeso escreve: Estas coisas diz aquele que conserva na mão direita as sete estrelas e que anda no meio dos sete candeeiros de ouro: • Apocalipse 3:1 Ao anjo da igreja em Sardes escreve: Estas coisas diz aquele que tem os sete Espíritos de Deus e as sete estrelas: Conheço as tuas obras, que tens nome de que vives e estás morto. • Apocalipse 4:5 Do trono saem relâmpagos, vozes e trovões, e, diante do trono, ardem sete tochas de fogo, que são os sete Espíritos de Deus. • Apocalipse 5:1 Vi, na mão direita daquele que estava sentado no trono, um livro escrito por dentro e por fora, de todo selado com sete selos. • Apocalipse 5:5 Todavia, um dos anciãos me disse: Não chores; eis que o Leão da tribo de Judá, a Raiz de Davi, venceu para abrir o livro e os seus sete selos. • Apocalipse 5:6 Então, vi, no meio do trono e dos quatro seres viventes e entre os anciãos, de pé, um Cordeiro como tendo sido morto. Ele tinha sete chifres, bem como sete olhos, que são os sete Espíritos de Deus enviados por toda a terra. • Apocalipse 6:1 Vi quando o Cordeiro abriu um dos sete selos e ouvi um dos quatro seres viventes dizendo, como se fosse voz de trovão: Vem! • Apocalipse 8:2 Então, vi os sete anjos que se acham em pé diante de Deus, e lhes foram dadas sete trombetas. • Apocalipse 8:6 Então, os sete anjos que tinham as sete trombetas prepararam-se para tocar. • Apocalipse 10:3 e bradou em grande voz, como ruge um leão, e, quando bradou, desferiram os sete trovões as suas próprias vozes. 85 • Apocalipse 10:4 Logo que falaram os sete trovões, eu ia escrever, mas ouvi uma voz do céu, dizendo: Guarda em segredo as coisas que os sete trovões falaram e não as escrevas. • Apocalipse 11:13 Naquela hora, houve grande terremoto, e ruiu a décima parte da cidade, e morreram, nesse terremoto, sete mil pessoas, ao passo que as outras ficaram sobremodo aterrorizadas e deram glória ao Deus do céu. • Apocalipse 12:3 Viu-se, também, outro sinal no céu, e eis um dragão, grande, vermelho, com sete cabeças, dez chifres e, nas cabeças, sete diademas. • Apocalipse 13:1 Vi emergir do mar uma besta que tinha dez chifres e sete cabeças e, sobre os chifres, dez diademas e, sobre as cabeças, nomes de blasfêmia. • Apocalipse 15:1 Vi no céu outro sinal grande e admirável: sete anjos tendo os sete últimos flagelos, pois com estes se consumou a cólera de Deus. • Apocalipse 15:6 e os sete anjos que tinham os sete flagelos saíram do santuário, vestidos de linho puro e resplandecente e cingidos ao peito com cintas de ouro. • Apocalipse 15:7 Então, um dos quatro seres viventes deu aos sete anjos sete taças de ouro, cheias da cólera de Deus, que vive pelos séculos dos séculos. • Apocalipse 15:8 O santuário se encheu de fumaça procedente da glória de Deus e do seu poder, e ninguém podia penetrar no santuário, enquanto não se cumprissem os sete flagelos dos sete anjos. • Apocalipse 16:1 Ouvi, vinda do santuário, uma grande voz, dizendo aos sete anjos: Ide e derramai pela terra as sete taças da cólera de Deus. • Apocalipse 17:1 Veio um dos sete anjos que têm as sete taças e falou comigo, dizendo: Vem, mostrar-te-ei o julgamento da grande meretriz que se acha sentada sobre muitas águas, • Apocalipse 17:3 Transportou-me o anjo, em espírito, a um deserto e vi uma mulher montada numa besta escarlate, besta repleta de nomes de blasfêmia, com sete cabeças e dez chifres. 86 • Apocalipse 17:7 O anjo, porém, me disse: Por que te admiraste? Dir-te-ei o mistério da mulher e da besta que tem as sete cabeças e os dez chifres e que leva a mulher: • Apocalipse 17:9 Aqui está o sentido, que tem sabedoria: as sete cabeças são sete montes, nos quais a mulher está sentada. São também sete reis, • Apocalipse 17:11 E a besta, que era e não é, também é ele, o oitavo rei, e procede dos sete, e caminha para a destruição. • Apocalipse 21:9 Então, veio um dos sete anjos que têm as sete taças cheias dos últimos sete flagelos e falou comigo, dizendo: Vem, mostrar-te-ei a noiva, a esposa do Cordeiro. Os intérpretes desde Vitorino e Bede perceberam que o próprio livro se divide em sete seções cíclicas ou paralelas. Isso é denominado de “teoria da recapitulação”. Essa teoria estabelece que o livro não possui uma sequência narrativa cronológica e linear, mas cíclica. O número sete que é abundante e central no livro, estabelece o número de recapitulações que o autor faz. O uso desse número é bastante explícito em algumas seções. Por exemplo, há sete igrejas nos capítulos 1-3, sete selos nos capítulos 4-7, sete trombetas nos capítulos 8-11, e sete taças nos capítulos 15-16. Nesse trabalho, ainda serão demonstradas as sete seções cíclicas do Apocalipse, e o modo como o número sete pode ser encontrado nas outras três divisões ou seções. O uso implícito do número sete é também marcante. Há sete “bem aventuranças” no livro, conforme a listagem abaixo: • Apocalipse 1:3 Bem-aventurados aqueles que leem e aqueles que ouvem as palavras da profecia e guardam as coisas nela escritas, pois o tempo está próximo. • Apocalipse 14:13 Então, ouvi uma voz do céu, dizendo: Escreve: Bem- aventurados os mortos que, desde agora, morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, para que descansem das suas fadigas, pois as suas obras os acompanham. • Apocalipse 16:15 Eis que venho como vem o ladrão. Bem-aventurado aquele que vigia e guarda as suas vestes, para que não ande nu, e não se veja a sua vergonha. 87 • Apocalipse 19:9 Então, me falou o anjo: Escreve: Bem-aventurados aqueles que são chamados à ceia das bodas do Cordeiro. E acrescentou: São estas as verdadeiras palavras de Deus. • Apocalipse 20:6 Bem-aventurado e santo é aquele que tem parte na primeira ressurreição; sobre esses a segunda morte não tem autoridade; pelo contrário, serão sacerdotes de Deus e de Cristo e reinarão com ele os mil anos. • Apocalipse 22:7 Eis que venho sem demora. Bem-aventurado aquele que guarda as palavras da profecia deste livro. • Apocalipse 22:14 Bem-aventurados aqueles que lavam as suas vestiduras no sangue do Cordeiro, para que lhes assista o direito à árvore da vida, e entrem na cidade pelas portas. O acúmulo das “bem-aventuranças” no final do livro pode sugerir a intencionalidade do autor, como se tivesse percebido a necessidade de completar o número sete para atingir o padrão. Se lembrarmos que o livro era para ser lido diante de uma congregação atenta, acostumada a esse tipo de procedimento, que sabia da importância dos detalhes de um livro como esse, as repetições causariam impressões profundas nos ouvintes. É importante notar que a maioria das “bem-aventuranças” diz respeito ao testemunho da fé diante de um mundo hostil. São bem-aventurados aqueles que creem e que foram redimidos por Cristo e sustentam até a morte esse testemunho diante dos homens. Nesse sentido, há uma intertextualidade com as conhecidas “bem-aventuranças” do Sermão do Monte registrado em Mateus 5.1-11. Embora a estrutura das “bem-aventuranças” em Mateus 5 seja um pouco diferente, havendo inclusive 9, o tema da resignação diante do sofrimento injusto e das perseguições é comum. Kistemaker (2004, p. 15) nota que há dois cânticos de louvor entoados pelas hostes celestiais e há um padrão de sete na composição dos cânticos: “proclamando em grande voz: Digno é o Cordeiro que foi morto de receber o poder, e riqueza, e sabedoria, e força, e honra, e glória, e louvor” (Ap 5.12). Em Apocalipse 7.12, outra vez: “dizendo: Amém! O louvor, e a glória, e a sabedoria, e as ações de graças, e a honra, e o poder, e a força sejam ao nosso Deus, pelos séculos dos séculos. Amém!”. Tanto o Cordeiro, quanto o próprio Deus são exaltados com cânticos que atribuem sete expressões similares de adoração. A 88 igualdade do Pai e do Filho, a perfeição de sua glória e louvor são sugeridas por esse padrão. Há sete referências a respeito da brevidade do juízo e da segunda vinda de Jesus no livro, todas utilizando expressões como “em breve” e “sem demora”: • Apocalipse 1.1 Revelação de Jesus Cristo, que Deus lhe deu para mostrar aos seus servos as coisas que em breve devem acontecer e que ele, enviando por intermédio do seu anjo, notificou ao seu servo João. • Apocalipse 2.16 Portanto, arrepende-te; e, se não, venho a ti sem demora e contra eles pelejarei com a espada da minha boca. • Apocalipse 3.11 Venho sem demora. Conserva o que tens, para que ninguém tome a tua coroa. • Apocalipse 22.6 Disse-me ainda: Estas palavras são fiéis e verdadeiras. O Senhor, o Deus dos espíritos dos profetas, enviou seu anjo para mostrar aos seus servos as coisas que em breve devem acontecer. • Apocalipse 22.7 Eis que venho sem demora. Bem-aventurado aquele que guarda as palavras da profecia deste livro. • Apocalipse 22.12 E eis que venho sem demora, e comigo está o galardão que tenho para retribuir a cada um segundo as suas obras. • Apocalipse 22.20 Aquele que dá testemunho destas coisas diz: Certamente, venho sem demora. Amém! Vem, Senhor Jesus! Considerando que os cristãos do final do primeiro século aguardavam ansiosamente o retorno de Cristo, que parecia demorado diante do sofrimento ao qual eram submetidos, ouvir sete vezes que ele virá “em breve” e “sem demora”, certamente reforçava essa expectativa e esperança. É igualmente interessante notar que essas alusões sobre o retorno iminente de Cristo aparecem nos capítulos iniciais e finais do livro. Três no início e quatro acumuladas no fim. Assim, o livro começa e termina com a repetida asseveração de que Cristo não vai demorar. E junto com essa notícia aparece em várias das declarações uma exortação para “permanecer firme”, para guardar as palavras do livro, o que resultará em recompensa. Sete vezes aparecem também referências diretas à Palavra de Deus (logos): 89 • Apocalipse 1:2 o qual atestou a palavra de Deus e o testemunho de Jesus Cristo, quanto a tudo o que viu. • Apocalipse 1:9 Eu, João, irmão vosso e companheiro na tribulação, no reino e na perseverança, em Jesus, achei-me na ilha chamada Patmos, por causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesus. • Apocalipse 6:9 Quando ele abriu o quinto selo, vi, debaixo do altar, as almas daqueles que tinham sido mortos por causa da palavra de Deus e por causa do testemunho que sustentavam. • Apocalipse 17:17 Porque em seu coração incutiu Deus que realizem o seu pensamento, o executem à uma e deem à besta o reino que possuem, até que se cumpram as palavras de Deus. • Apocalipse 19:9 Então, me falou o anjo: Escreve: Bem-aventurados aqueles que são chamados à ceia das bodas do Cordeiro. E acrescentou: São estas as verdadeiras palavras de Deus. • Apocalipse 19:13 Está vestido com um manto tinto de sangue, e o seu nome se chama a Palavra de Deus; • Apocalipse 20:4 Vi também tronos, e nestes sentaram-se aqueles aos quais foi dada autoridade de julgar. Vi ainda as almas dos decapitados por causa do testemunho de Jesus, bem como por causa da palavra de Deus, tantos quantos não adoraram a besta, nem tampouco a sua imagem, e não receberam a marca na fronte e na mão; e viveram e reinaram com Cristo durante mil anos. As sete alusões à Palavra de Deus apontam para duas direções: da veracidade da “palavra” que é atestada por Deus, e da necessidade de os homens testemunharem-na perante o mundo. O número sete também aparece em relação às forças das trevas, quase sempre apontando para o juízo sobre elas. Assim, a série de gafanhotos de Apocalipse 9.7-10, enviados para julgar o mundo apresenta sete características: o aspecto dos gafanhotos era semelhante a cavalos preparados para a peleja; na sua cabeça havia como que coroas parecendo de ouro; e o seu rosto era como rosto de homem; tinham também cabelos, como cabelos de mulher; os seus dentes, como dentes de leão; tinham couraças, como couraças de ferro; o barulho que as suas asas faziam era como o barulho 90 de carros de muitos cavalos, quando correm à peleja; tinham ainda cauda, como escorpiões, e ferrão; na cauda tinham poder para causar dano aos homens, por cinco meses. (grifos meus) É difícil saber se há alguma intenção adicional com essas repetições acima, além do objetivo mnemônico de manter o padrão de sete. Richard Bauckham (1993, p. 10), em sua análise, assinala ainda que a palavra prostituição (porneia), referindo-se aos pecados da grande prostituta, aparece sete vezes; o mesmo ocorre em relação ao termo “foice”, nas sete ocorrências referindo-se ao julgamento de Deus: • Apocalipse 14:14 Olhei, e eis uma nuvem branca, e sentado sobre a nuvem um semelhante a filho de homem, tendo na cabeça uma coroa de ouro e na mão uma foice afiada. • Apocalipse 14:15 Outro anjo saiu do santuário, gritando em grande voz para aquele que se achava sentado sobre a nuvem: Toma a tua foice e ceifa, pois chegou a hora de ceifar, visto que a seara da terra já amadureceu! • Apocalipse 14:16 E aquele que estava sentado sobre a nuvem passou a sua foice sobre a terra, e a terra foi ceifada. • Apocalipse 14:17 Então, saiu do santuário, que se encontra no céu, outro anjo, tendo ele mesmo também uma foice afiada. • Apocalipse 14:18 Saiu ainda do altar outro anjo, aquele que tem autoridade sobre o fogo, e falou em grande voz ao que tinha a foice afiada, dizendo: Toma a tua foice afiada e ajunta os cachos da videira da terra, porquanto as suas uvas estão amadurecidas! • Apocalipse 14:19 Então, o anjo passou a sua foice na terra, e vindimou a videira da terra, e lançou-a no grande lagar da cólera de Deus. Nas várias ilustrações medievais os anjos aparecem empunhando espadas, arcos ou lanças. No Apocalipse, eles usam “foices” e sua função é “colher”. Os anjos não se apresentam como guerreiros para lutar contra os ímpios. Eles são segadores. Passam a foice e o fim chegou. A expressão “Senhor, todo poderoso” também aparece sete vezes ao longo do texto. Exemplificando: 91 • Apocalipse 1:8 Eu sou o Alfa e Ômega, diz o Senhor Deus, aquele que é, que era e que há de vir, o Todo-Poderoso. • Apocalipse 4:8 E os quatro seres viventes, tendo cada um deles, respectivamente, seis asas, estão cheios de olhos, ao redor e por dentro; não têm descanso, nem de dia nem de noite, proclamando: Santo, Santo, Santo é o Senhor Deus, o Todo-Poderoso, aquele que era, que é e que há de vir. • Apocalipse 11:17 dizendo: Graças te damos, Senhor Deus, Todo-Poderoso, que és e que eras, porque assumiste o teu grande poder e passaste a reinar. • Apocalipse 15:3 e entoavam o cântico de Moisés, servo de Deus, e o cântico do Cordeiro, dizendo: Grandes e admiráveis são as tuas obras, Senhor Deus, Todo-Poderoso! Justos e verdadeiros são os teus caminhos, ó Rei das nações! • Apocalipse 16:7 Ouvi do altar que se dizia: Certamente, ó Senhor Deus, Todo-Poderoso, verdadeiros e justos são os teus juízos. • Apocalipse 19:6 Então, ouvi uma como voz de numerosa multidão, como de muitas águas e como de fortes trovões, dizendo: Aleluia! Pois reina o Senhor, nosso Deus, o Todo-Poderoso. • Apocalipse 21:22 Nela, não vi santuário, porque o seu santuário é o Senhor, o Deus Todo-Poderoso, e o Cordeiro. João usou essas repetições intencionalmente. Sete referências à vinda iminente de Cristo, sete referências à bem-aventurança dos que permanecem fiéis mesmo diante do sofrimento injusto, sete referências à veracidade da Palavra de Deus, sete referências ao juízo de Deus sobre o mundo, e sete ao caráter “todo-poderoso” do divino. O que tudo isso transmite? Numa palavra: esperança. O padrão sétuplo de referências que pode ser visto ao longo do texto atesta contra as noções críticas de subdividir a obra em edições ou insistir em interpolações. Para Aune, o livro foi composto em duas edições, a primeira incluindo Ap 1.7-12 e 4.1-22.5, com forte ênfase apocalíptica, e a segunda que acrescentou 1.1-3 e 22.6-21 com uma orientação fortemente profética (1998b, p. cxxi). Mas o padrão sétuplo só se completa considerando as duas partes conjuntamente. O mesmo pode ser dito em relação à teoria de Charles de que o autor original morreu ao completar Ap 1.1-20.3. Além disso, se o editor que acrescentou os 92 capítulos finais tivesse tido o cuidado de completar o padrão sétuplo de referências, já não se poderia dizer que tratava-se de um “fiel, porém ignorante discípulo” (CHARLES, 1920, vol. 1, p. l). Esse padrão sétuplo que pode ser encontrado ao longo do texto do Apocalipse seria coincidência demais se fosse aleatório. Ele destaca a significativa arte literária empregada pelo autor do Apocalipse, aponta para a unidade da obra, e reforça o sentido de que o livro foi escrito para transmitir esperança para os cristãos atribulados do primeiro século, e, por consequência, de todas as épocas. O número quatro O próximo número em importância utilizado por João é o quatro. A seguir uma lista das passagens onde ele aparece: • Apocalipse 4:6 Há diante do trono um como que mar de vidro, semelhante ao cristal, e também, no meio do trono e à volta do trono, quatro seres viventes cheios de olhos por diante e por detrás. • Apocalipse 7:1 Depois disto, vi quatro anjos em pé nos quatro cantos da terra, conservando seguros os quatro ventos da terra, para que nenhum vento soprasse sobre a terra, nem sobre o mar, nem sobre árvore alguma. • Apocalipse 7:2 Vi outro anjo que subia do nascente do sol, tendo o selo do Deus vivo, e clamou em grande voz aos quatro anjos, aqueles aos quais fora dado fazer dano à terra e ao mar, • Apocalipse 9:13 O sexto anjo tocou a trombeta, e ouvi uma voz procedente dos quatro ângulos do altar de ouro que se encontra na presença de Deus, • Apocalipse 9:14 dizendo ao sexto anjo, o mesmo que tem a trombeta: Solta os quatro anjos que se encontram atados junto ao grande rio Eufrates. • Apocalipse 20:8 e sairá a seduzir as nações que há nos quatro cantos da terra, Gogue e Magogue, a fim de reuni-las para a peleja. O número dessas é como a areia do mar. Percebe-se que todas essas estruturas quádruplas apontam primordialmente para eventos terrenos, da natureza ou da cultura humana. 93 Segundo Kistemaker (2004, p. 16), o número quatro descreve a criação divina, pois remete-nos aos quatro cantos da terra, às quatro direções do vento. Pode-se também notar que as atividades a que se vincula esse número, relacionam-se a julgamentos sobre a criação. As figuras emblemáticas dos quatro seres viventes, provavelmente seres angelicais, representam criaturas terrenas: “O primeiro ser vivente é semelhante a leão, o segundo, semelhante a novilho, o terceiro tem o rosto como de homem, e o quarto ser vivente é semelhante à águia quando está voando” (Ap 4.7). Kistemaker (2004, p. 16) aponta diversas estruturas quádruplas que permeiam implicitamente todo o livro: • Apocalipse 5:9 e entoavam novo cântico, dizendo: Digno és de tomar o livro e de abrir-lhe os selos, porque foste morto e com o teu sangue compraste para Deus os que procedem de toda tribo, língua, povo e nação. O mesmo padrão ocorre em Apocalipse 13.7; 14.6. • Apocalipse 5:13 Então, ouvi que toda criatura que há no céu e sobre a terra, debaixo da terra e sobre o mar, e tudo o que neles há, estava dizendo: Àquele que está sentado no trono e ao Cordeiro, seja o louvor, e a honra, e a glória, e o domínio pelos séculos dos séculos. • Apocalipse 6:8 E olhei, e eis um cavalo amarelo e o seu cavaleiro, sendo este chamado Morte; e o Inferno o estava seguindo, e foi-lhes dada autoridade sobre a quarta parte da terra para matar à espada, pela fome, com a mortandade e por meio das feras da terra. • Apocalipse 9:21 nem ainda se arrependeram dos seus assassínios, nem das suas feitiçarias, nem da sua prostituição, nem dos seus furtos. • Apocalipse 10:11 Então, me disseram: É necessário que ainda profetizes a respeito de muitos povos, nações, línguas e reis. • Apocalipse 16:18 E sobrevieram relâmpagos, vozes e trovões, e ocorreu grande terremoto, como nunca houve igual desde que há gente sobre a terra; tal foi o terremoto, forte e grande. O mesmo padrão ocorre em Apocalipse 4.5; 8.5; 11.19. 94 • Apocalipse 18:22 E voz de harpistas, de músicos, de tocadores de flautas e de clarins jamais em ti se ouvirá, nem artífice algum de qualquer arte jamais em ti se achará, e nunca jamais em ti se ouvirá o ruído de pedra de moinho. Em Ap 5.9, 13.7, 14.6, a estrutura quádrupla representa a humanidade como alvo da mensagem do Evangelho (também 10.11) e, ao mesmo tempo, como algo que as forças das trevas desejam dominar. Em 5.13 uma estrutura quadrupla de criaturas celestes e terrenas oferece a Deus uma adoração também composta de quatro atributos. Em 6.18 uma terrível destruição atinge uma quarta parte da terra, a destruição se expressa através de quatro flagelos (também em 16.18). Em 9.21, os homens terrenos, alvos dos juízos divinos, não se arrependem de seus quatro tipos de pecados. E em 18.22 quatro tipos de instrumentos musicais que embalavam os homens em seus pecados silenciam quando da queda de Babilônia. Kistemaker percebe que a palavra Cordeiro (grego arnion), referindo-se a Cristo, aparece vinte e oito vezes no Apocalipse, que corresponde a soma de sete vezes quatro. Esse autor entende que “[...] enquanto o número sete significa completude, o número quatro é o símbolo numérico do mundo criado” (2004, p. 16). Portanto, conforme essa interpretação, as vinte e oito referências ao Cordeiro trazem a ideia da perfeição da criação e da redenção juntas, pois o Cordeiro é o símbolo máximo da redenção através de toda a Bíblia82. Bauckham, por sua vez, destaca que a lista das mercadorias que Babilônia (Roma) importava dos mercadores da terra compreendia vinte e oito itens (4x7) (1993b, p. 31). A relação entre os números “sete” e “quatro”, portanto, é muito significativa no Apocalipse. Sete é o numero divino da perfeição celeste, quatro é o número terreno e humano que reflete o estado decaído da humanidade, a oferta da salvação e a condenação para os rebeldes. Essas informações voltarão a ser úteis quando tratarmos da divisão do livro propriamente dita em sete seções, uma vez que entendemos que há quatro divisões maiores e sete menores na estruturação recapitulativa do mesmo. Esses dois números representam a micro e a macro estrutura do livro. 82 Os cordeiros eram sacrificados para realizar expiação de pecados durante todo o Antigo Testamento. 95 O número três O número três é importante para toda a teologia cristã. É o número da Trindade. O resumo feito por Kistemaker mostra a importância do mesmo através do livro inteiro: três quartos de cevada (6.6); três anjos (8.13); três pragas de fogo, fumaça e enxofre (9.18); três espíritos imundos (16.13); a grande cidade foi dividida em três partes (16.19); três portões de cada lado: leste, norte, sul, oeste (21.13). A série de três se refere à Deidade com o tríplice clamor das criaturas viventes, dizendo ‘Santo, santo, santo’ (4.8); e uma descrição do poder de Deus que era, que é e que há de vir (4.8; ver 1.4,8). Jesus Cristo é a fiel testemunha, o primogênito dos mortos e o soberano dos reis da terra (1.5). Aliás, a série de três ocorre por todo livro (2004, p. 17). Evidentemente, esse tipo de referência é esperado de um livro cristão. E permite ver que o conceito da Trindade já estava em formação no primeiro século, embora só viesse a ser consolidado no quarto século durante o Concílio de Nicéia (325 D.C). O número seis A importância do número seis não está tanto em sua repetição, mas no modo como ele é utilizado. Provavelmente, esse número seja o número do mal. Se sete é o número divino, talvez atribuir seis à Satanás seja uma maneira de dizer que o objetivo de Satanás é ser o mais parecido possível com Deus (KISTEMAKER, 2004, p. 27, HENDRIKSEN, 1987, p. 182), e, ao mesmo tempo, de jamais conseguir atingir a perfeição divina. O número da besta é um triplo seis (666). As maiores atividades julgadoras de Deus sobre o mal também acontecem nas sequências de seis: no sexto selo (Ap 6.12–17), na sexta trombeta (Ap 9.13–21), na sexta taça (Ap 16.12–16). Talvez, tudo isso seja uma referência intertextual ao fato de que o homem foi criado no sexto dia. O número seis será abordado com mais detalhes no próximo capítulo em conexão com a análise dos capítulos 12 e 13 do livro. O número dez O número dez também está associado ao mal. O diabo iria perseguir a igreja de Esmirna por dez dias (Ap 2.10). O dragão tem dez chifres (Ap 12.3). A besta que emerge do mar tem dez chifres e dez diademas (Ap 13.1). A grande prostituta está montada numa besta com dez chifres (Ap 17.3). Os dez chifres representam os dez reis que estão do lado das forças do mal (Ap 17.12). O número do exército da cavalaria maligna é “vinte mil vezes dez milhares” (Ap 9.16). E o número de anos que o dragão fica preso é mil (dez 96 vezes mil). Não há um motivo explícito para atribuir o número dez ao mal. Parece apenas uma escolha estilística de João. O número doze Se dez é o número que se refere às forças das trevas, doze é o número do povo de Deus (BAUCKHAM, 1993b, p. 36). Porém, aqui a associação é mais evidente. O Apocalipse utiliza o número doze em conexão com dois usos anteriores: doze patriarcas (tribos) de Israel (Antigo Testamento), e doze apóstolos de Jesus Cristo (Novo Testamento). Junto aos quatro seres vivente (da criação), diante do trono há vinte e quatro anciãos, ou seja, duas vezes doze (Israel e Igreja). E há doze referências a esses anciãos no livro (KISTEMAKER, 2004, p. 17), o que é, sem dúvida, algo muito relevante. O Apocalipse 7.5-8 narra a atividade angélica de selar os escolhidos de Deus. São doze mil de cada tribo de Israel, chegando ao número cento e quarenta e quatro mil. A mulher vestida de sol, em Apocalipse 12.1, tem uma coroa com doze estrelas na cabeça. E, finalmente, a cidade santa, a Nova Jerusalém tem doze portas e doze anjos (Ap 21.12), sua muralha tem doze fundamentos com os nomes dos doze apóstolos (Ap 21.14), seu tamanho quadrangular tem doze mil estádios (Ap 21.16: um cubo perfeito em múltiplos de doze), e, no meio de sua praça, na visão final, está a árvore da vida produzindo doze frutos (Ap 22.2). Kistemaker diz: “No Apocalipse, o contraste entre dez e doze é de fato notável. O número doze descreve o povo de Deus; o número dez está associado a Satanás, seus seguidores e suas ações” (2004, p. 17). Portanto, o uso recorrente dos números e o simbolismo expresso através deles atestam a complexidade e a coerência do texto do Apocalipse, destacando a arte e a unidade de seu estilo literário. Fica evidente que “sua meticulosa composição deu-lhe uma incomum profundidade e densidade de significados que se rende à compreensão de seu caráter literário” (BAUCKHAM, 1993b, p. 02). Utilizar essas repetições para apontar uma suposta fragmentação como geralmente é feito na tradição interpretativa crítica está longe de ser o melhor caminho de considerar o livro. O autor repete esses números para fixar sentidos na mente de seus leitores e/ou ouvintes. Eles funcionam como auxílios mnemônicos, pois repetem conceitos chaves e os subdividem em padrões. Sete para Deus e para as realidades celestes. Quatro para a terra que será conduzida aos propósitos de Deus. Dez para o mal e seis para seu julgamento. Doze para o povo de Deus que aguarda o seu retorno. Ao mesmo 97 tempo, os leitores são “convocados” a se identificar com esses números. São sete vezes bem-aventurados? Incluem-se entre os 24 anciãos e farão parte da cidade com 12 fundamentos? Sim, se eles mantiverem o sétuplo testemunho da Palavra de Deus, se continuarem aguardando o retorno iminente de Cristo sete vezes anunciado, e se recusarem o 666 para estarem livres das destruições do sexto selo, da sexta trombeta e do sexto flagelo. A arte literária expressa na numerologia do Apocalipse não é apenas distinta pela capacidade de subdividir os temas e assuntos de forma padronizada, mas também pelo conteúdo teológico e moral que se deduz a partir dela. Assim, percebemos que a análise desses aspectos literários somada à análise histórica e teológica do livro, conduz a um entendimento mais profundo e completo do livro. 3.1.2. As referências cruzadas Uma das características relevantes da arte literária do Apocalipse é a repetição. O texto repete números, esquemas, nomes e uma mesma história sete vezes. Como já foi dito, os estudiosos atentos aos postulados da crítica das fontes encontram nisso a base para afirmar que o livro é oriundo de diversas fontes ou autores; que é obra de redatores desencontrados, etc. Alter diz que “um dos maiores obstáculos que se impõem ao leitor moderno na compreensão da sutileza imaginativa das narrativas bíblicas é o lugar extraordinário que a repetição literal ocupa” (2007, p. 137). O leitor moderno não está acostumado com isso e julga falta de coesão um texto repetitivo (ou então fontes desconexas para os críticos), mas a repetição é um dos modos utilizados pelos escritores bíblicos em sua arte literária para construir o sentido dos textos. É provável que uma das razões para a utilização da técnica de repetição esteja no caráter até certo ponto oral do livro, pois o mesmo era para ser lido nas igrejas (Ap 1.3). Segundo Alter, como várias indicações na própria Bíblia sugerem, as narrativas costumavam ser lidas em voz alta a partir de rolos de papiro para algum tipo de plateia (parcialmente analfabeta), em vez de circular de mão em mão para ser lidas como faríamos hoje. Assim, o próprio ato de desenrolar o papiro correspondia de certa forma ao desenrolar da bobina de um projetor de cinema: nessas condições, o tempo e a sequência dos acontecimentos apresentado não podiam ser detidos ou alterados, e o único modo de fixar e destacar uma ação ou frase consistia em repeti-la (2007, p. 140). 98 Se, por um lado, a repetição era necessária para fixar o conteúdo na mente dos ouvintes, logo os escritores descobriram que, ao fazer pequenas modificações nessas repetições, o efeito era ainda maior, pois “pequeníssimas variações estratégicas do padrão poderiam servir ao comentário, à análise, à antecipação e à afirmação temática, com efeitos admiráveis de insinuação e intensidade dramática” (ALTER, 2007, p. 141). Faremos agora um levantamento das principais repetições do livro. Frases e conceitos repetidos Muitas frases aparecem duas ou três vezes no livro do Apocalipse, porém em passagens separadas e com formatos ligeiramente diferentes. Bauckham diz que essas repetições criam uma espécie de “referência cruzada textual” (1993b, p. 22). Entretanto, não se trata de uma repetição aleatória (1993b, p. 22). A seguinte tabela comparativa possibilita apreender essa complexa rede de referências. Algumas expressões são repetidas duas vezes, outras até mesmo três. 2 - Quadro comparativo de expressões repetidas Revelação de Jesus Cristo, que Deus lhe deu Disse-me ainda: Estas palavras são fiéis e para mostrar aos seus servos as coisas que em verdadeiras. O Senhor, o Deus dos espíritos dos breve devem acontecer e que ele, enviando por profetas, enviou seu anjo para mostrar aos seus intermédio do seu anjo, notificou ao seu servo servos as coisas que em breve devem acontecer João (Ap 1.1) (Ap 22.6) Tenho, todavia, contra ti algumas coisas, pois Tenho, porém, contra ti o tolerares que essa que tens aí os que sustentam a doutrina de mulher, Jezabel, que a si mesma se declara Balaão, o qual ensinava a Balaque a armar profetisa, não somente ensine, mas ainda seduza ciladas diante dos filhos de Israel para comerem os meus servos a praticarem a prostituição e a coisas sacrificadas aos ídolos e praticarem a comerem coisas sacrificadas aos ídolos (Ap prostituição (Ap 2.14) 2.20) Eu, João, irmão vosso e companheiro na Vi ainda as almas dos decapitados por causa do tribulação, no reino e na perseverança, em Jesus, testemunho de Jesus, bem como por causa da achei-me na ilha chamada Patmos, por causa da palavra de Deus, tantos quantos não adoraram a palavra de Deus e do testemunho de Jesus (Ap besta, nem tampouco a sua imagem, e não 1.9) receberam a marca na fronte e na mão (Ap 20.4) 99 Estão cheios de olhos, ao redor e por dentro; não A fumaça do seu tormento sobe pelos séculos têm descanso, nem de dia nem de noite, dos séculos, e não têm descanso algum, nem de proclamando: Santo, Santo, Santo é o Senhor dia nem de noite, os adoradores da besta e da Deus, o Todo-Poderoso, aquele que era, que é e sua imagem e quem quer que receba a marca do que há de vir (Ap 4.8). seu nome (Ap 14.11). Viu-se, também, outro sinal no céu, e eis um Vi emergir do mar uma besta que tinha dez dragão, grande, vermelho, com sete cabeças, dez chifres e sete cabeças e, sobre os chifres, dez chifres e, nas cabeças, sete diademas (Ap 12.3). diademas e, sobre as cabeças, nomes de blasfêmia (Ap 13.1). Porquanto derramaram sangue de santos e de E nela se achou sangue de profetas, de santos e profetas, também sangue lhes tens dado a beber; de todos os que foram mortos sobre a terra (Ap são dignos disso (Ap 16.6). 18.24). Seguiu-se outro anjo, o segundo, dizendo: Caiu, pois todas as nações têm bebido do vinho do caiu a grande Babilônia que tem dado a beber a furor da sua prostituição. Com ela se todas as nações do vinho da fúria da sua prostituíram os reis da terra. Também os prostituição (Ap 14.8). mercadores da terra se enriqueceram à custa da sua luxúria (Ap 18.3). Pois o Cordeiro que se encontra no meio do E lhes enxugará dos olhos toda lágrima, e a trono os apascentará e os guiará para as fontes morte já não existirá, já não haverá luto, nem da água da vida. E Deus lhes enxugará dos olhos pranto, nem dor, porque as primeiras coisas toda lágrima (Ap 7.17). passaram (Ap 21.4). Pelejarão eles contra o Cordeiro, e o Cordeiro os Tem no seu manto e na sua coxa um nome vencerá, pois é o Senhor dos senhores e o Rei inscrito: REI DOS REIS E SENHOR DOS dos reis; vencerão também os chamados, eleitos SENHORES (Ap 19.16|). e fiéis que se acham com ele (Ap 17.14). E foi expulso o grande dragão, a antiga serpente, Ele segurou o dragão, a antiga serpente, que é o que se chama diabo e Satanás, o sedutor de todo diabo, Satanás, e o prendeu por mil anos; o mundo, sim, foi atirado para a terra, e, com lançou-o no abismo, fechou-o e pôs selo sobre ele, os seus anjos (Ap 12.9). ele, para que não mais enganasse as nações até se completarem os mil anos (Ap 20.2–3). A fumaça do seu tormento sobe pelos séculos Segunda vez disseram: Aleluia! E a sua fumaça dos séculos, e não têm descanso algum, nem de sobe pelos séculos dos séculos (Ap 19.3). dia nem de noite, os adoradores da besta e da sua imagem e quem quer que receba a marca do seu nome (Ap 14.11). 100 Se alguém leva para cativeiro, para cativeiro vai. Aqui está a perseverança dos santos, os que Se alguém matar à espada, necessário é que seja guardam os mandamentos de Deus e a fé em morto à espada. Aqui está a perseverança e a Jesus (Ap 14.12) fidelidade dos santos (Ap 13.10). E adorá-la-ão todos os que habitam sobre a terra, E aqueles que habitam sobre a terra, cujos aqueles cujos nomes não foram escritos no Livro nomes não foram escritos no Livro da Vida da Vida do Cordeiro que foi morto desde a desde a fundação do mundo, se admirarão, fundação do mundo (Ap 13.8). vendo a besta que era e não é, mas aparecerá (Ap 17.8). Aqui está a sabedoria. Aquele que tem Aqui está o sentido, que tem sabedoria: as sete entendimento calcule o número da besta, pois é cabeças são sete montes, nos quais a mulher está número de homem. Ora, esse número é sentada. São também sete reis (Ap 17.9). seiscentos e sessenta e seis (Ap 13.18). Irou-se o dragão contra a mulher e foi pelejar Aqui está a perseverança dos santos, os que com os restantes da sua descendência, os que guardam os mandamentos de Deus e a fé em guardam os mandamentos de Deus e têm o Jesus (Ap 14.12). testemunho de Jesus (Ap 12.17). E nos constituiu reino, sacerdotes para o seu E para o nosso Deus os constituíste reino e Deus e Pai, a ele a glória e o domínio pelos sacerdotes; e reinarão sobre a terra (Ap 5.10). séculos dos séculos. Amém! (Ap 1.6). E, no meio dos candeeiros, um semelhante a E os sete anjos que tinham os sete flagelos filho de homem, com vestes talares e cingido, à saíram do santuário, vestidos de linho puro e altura do peito, com uma cinta de ouro (Ap resplandecente e cingidos ao peito com cintas de 1.13). ouro (Ap 15.6). Os pés, semelhantes ao bronze Ouvi uma voz do céu como voz Então, ouvi uma como voz de polido, como que refinado de muitas águas, como voz de numerosa multidão, como de numa fornalha; a voz, como grande trovão. (14.2) muitas águas e como de fortes voz de muitas águas. (1.15) trovões (19.6) A sua cabeça e cabelos eram Ao anjo da igreja em Tiatira Sai da sua boca uma espada brancos como alva lã, como escreve: Estas coisas diz o afiada, para com ela ferir as neve; os olhos, como chama de Filho de Deus, que tem os nações; e ele mesmo as regerá fogo (Ap 1.14). olhos como chama de fogo e os com cetro de ferro e, pés semelhantes ao bronze pessoalmente, pisa o lagar do polido (Ap 2.18). vinho do furor da ira do Deus Todo-Poderoso (Ap 19.15). 101 Gravarei também sobre ele o Vi também a cidade santa, a E me transportou, em espírito, nome do meu Deus, o nome da nova Jerusalém, que descia do até a uma grande e elevada cidade do meu Deus, a nova céu, da parte de Deus, ataviada montanha e me mostrou a santa Jerusalém que desce do céu, como noiva adornada para o cidade, Jerusalém, que descia vinda da parte do meu Deus, e seu esposo (Ap 21.2) do céu, da parte de Deus (Ap o meu novo nome (Ap 3.12) 21.10). Evidencia-se a partir do levantamento acima a existência das inter-relações entre as partes do livro, como um modo não apenas de fixar um conteúdo, mas de apresentá-lo ligeiramente diferente em alguns casos, a fim de suscitar não apenas memorização, mas análise por parte do ouvinte. O autor está sempre retomando os temas e as declarações principais. O objetivo, sem dúvida, é chamar a atenção para os fatos, como algo crucial do conteúdo que pretende transmitir. A repetição de expressões em contextos diferentes é significativa também, pois além de fixá-los, questiona, levanta novas opções, antecipa fatos, frustrando expectativas que pareciam certas, ou seja, acima de tudo, dialogando com o leitor. Podemos observar isso, a título de exemplo, no quadro em destaque abaixo, extraído do quadro acima: Eu, João, irmão vosso e companheiro na Vi ainda as almas dos decapitados por causa do tribulação, no reino e na perseverança, em testemunho de Jesus, bem como por causa da Jesus, achei-me na ilha chamada Patmos, por palavra de Deus, tantos quantos não adoraram a causa da palavra de Deus e do testemunho de besta, nem tampouco a sua imagem, e não Jesus (Ap 1.9) receberam a marca na fronte e na mão (Ap 20.4) No primeiro capítulo, João se apresenta como alguém que está sofrendo por causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesus. Ele é o último dos Apóstolos, o único que, segundo a tradição, não foi martirizado. No entanto, ele é de certa forma um mártir, como as almas dos decapitados que ele vê no capítulo 20, que foram martirizados por causa do testemunho de Jesus, bem como da palavra de Deus. Ambos os grupos são mártires pelo Evangelho: aqueles que estão na terra sofrendo pela causa (João e seus leitores, Ap 1.9) e aqueles que já estão no céu, após terem sido mortos. Certamente, portanto, ambos serão recompensados também. Outro quadro interessante, é o que descreve dois aspectos diferentes da eternidade: 102 Estão cheios de olhos, ao redor e por dentro; não A fumaça do seu tormento sobe pelos séculos têm descanso, nem de dia nem de noite, dos séculos, e não têm descanso algum, nem de proclamando: Santo, Santo, Santo é o Senhor dia nem de noite, os adoradores da besta e da Deus, o Todo-Poderoso, aquele que era, que é e sua imagem e quem quer que receba a marca do que há de vir (Ap 4.8). seu nome (Ap 14.11). A expressão “não têm descanso, nem de dia nem de noite” é usada em duas situações de grande contraste entre si. A primeira para relatar o contínuo louvor no céu por parte dos seres angelicais diante do Deus todo-poderoso, e a segunda para descrever o tormento eterno dos adoradores da besta. Assim, o leitor-ouvinte identifica duas vezes a mesma declaração, mas a mudança do contexto o leva a meditar sobre a duração similar dos estados opostos dos salvos e dos perdidos. Uns louvam eternamente o seu Criador, outros sofrem eternamente por seus pecados. Outro quadro que podemos destacar é o que descreve a derrota, a expulsão e a queda do dragão. Usando termos ligeiramente modificados, duas vezes João fala sobre isso: E foi expulso o grande dragão, a antiga serpente, Ele segurou o dragão, a antiga serpente, que é o que se chama diabo e Satanás, o sedutor de todo diabo, Satanás, e o prendeu por mil anos; o mundo, sim, foi atirado para a terra, e, com lançou-o no abismo, fechou-o e pôs selo sobre ele, os seus anjos. Por isso, festejai, ó céus, e ele, para que não mais enganasse as nações até vós, os que neles habitais. Ai da terra e do mar, se completarem os mil anos (Ap 20.2-3). pois o diabo desceu até vós, cheio de grande cólera, sabendo que pouco tempo lhe resta. (Ap 12.9, 12). A primeira citação ocorre na metade do livro, quando após tratar dos eventos terrestres e celestes que resultaram na coroação do Filho, o dragão foi expulso do céu. A segunda no encerramento do livro. O paralelismo das duas passagens reforça a concepção de uma leitura não linear do Apocalipse, mas cíclica, e, ao mesmo tempo, sua unidade. Outro exemplo a ser analisado destaca três vezes a expressão “voz, como voz de muitas águas”: 103 Os pés, semelhantes ao bronze Ouvi uma voz do céu como voz Então, ouvi uma como voz de polido, como que refinado de muitas águas, como voz de numerosa multidão, como de numa fornalha; a voz, como grande trovão (14.2) muitas águas e como de fortes voz de muitas águas. (1.15) trovões. (19.6) Na ilha de Patmos, João devia estar acostumado com o barulho das ondas batendo constantemente nas rochas. O barulho assustador das águas tumultuosas, contudo, assume outra conotação no livro. Representa vozes de vitória. Três vezes o leitor-ouvinte perceberia a expressão, mas em nenhuma delas o sentido seria o mesmo. Na primeira vez, a “voz como de muitas águas” é a própria voz de Cristo, que se apresentou para João na ilha de Patmos através de uma aparência gloriosa e assustadora. Mas essa mesma voz retumbante, quando fala com João, é terna e consoladora, dizendo-o que não se atemorize (Ap 1.17). A segunda referência é à voz dos 144 mil selados de Israel. Sua voz é retumbante como as águas, como o trovão, mas ao mesmo tempo é suave como o som da harpa. Eles cantam um cântico secreto de louvor ao Cordeiro que os redimiu. Na terceira vez, a voz como de muitas águas origina-se de uma grande multidão. Na estrutura do livro, os 144 mil são os salvos de Israel e a grande multidão os salvos do restante da terra. Essa grande e inumerável multidão proclama com voz retumbante a vitória e o reinado de Jesus. Assim, a sequência é a seguinte: Jesus vitorioso sobre a morte fala com voz de muitas águas, os 144 mil vitoriosos sobre o mundo louvam com voz de muitas águas, a grande multidão redimida proclama a vitória e o reinado de Deus com voz de muitas águas. A vitória do povo de Deus será estrondosa. Mas o significado subliminar é: A vitória de Jesus é a vitória do povo de Deus. Portanto, é possível ver no Apocalipse um uso intencional dessas repetições que formam conceitos teológicos e morais para quem está ouvindo (ou lendo). Outro exemplo interessante nesse sentido é o emprego das expressões “alfa e ômega, princípio e fim”. 3 - Quadro comparativo Alfa e Ômega Apocalipse 1.8: Deus diz: “Eu sou o Alfa e o Ômega”. 104 Apocalipse 1.17 e 2.8: Jesus diz “Eu sou o primeiro e o último”. Apocalipse 21.6: Deus fala: “Eu sou o alfa e o ômega, o princípio e o fim”. Apocalipse 22.13: Jesus diz: “Eu sou o alfa e o ômega, o primeiro e o último, o princípio e o fim”. Na primeira linha em destaque, Deus usa a primeira e a última letra do alfabeto grego para definir sua existência. Na sequência, Jesus, por duas vez, declara que ele é “o primeiro e o último”. Então, Deus outra vez diz que ele é o “alfa e o ômega” e acrescenta outros dois termos “o princípio e o fim”. Por fim, Jesus fecha a história reunindo as três declarações. Essas repetições intercaladas pelo Pai e pelo Filho têm uma função clara: destacar a igualdade dos dois. Abertura e fechamento O autor do Apocalipse fez um trabalho minucioso em correlacionar as partes de seu livro. Seus temas são desenvolvidos de seção em seção com repetições propositais de palavras e sentenças que vão reforçando o conteúdo proposto. O seguinte quadro comparativo de “abertura” e “fechamento” baseado na obra de Barr (2010, p. 14), impressiona pelo número de palavras e temas do início que são repetidos no final do livro. Isso cria um forte senso de unidade e propósito, que são, em nossa avaliação, o resultado direto da arte literária do autor do Apocalipse. 4 - Quadro comparativo de abertura e fechamento Abertura Pontos de correspondência Fechamento Revelação de Jesus Cristo, que O nome de João. Eu, João, sou quem ouviu e viu Deus lhe deu para mostrar aos estas coisas. E, quando as ouvi seus servos as coisas que em e vi, prostrei-me ante os pés do breve devem acontecer e que anjo que me mostrou essas ele, enviando por intermédio coisas, para adorá-lo (Ap 22.8). do seu anjo, notificou ao seu servo João (Ap 1.1). 105 Revelação de Jesus Cristo, que Um anjo enviado. Disse-me ainda: Estas palavras Deus lhe deu para mostrar aos são fiéis e verdadeiras. O seus servos as coisas que em Senhor, o Deus dos espíritos breve devem acontecer e que dos profetas, enviou seu anjo ele, enviando por intermédio para mostrar aos seus servos as do seu anjo, notificou ao seu coisas que em breve devem servo João (Ap 1.1). acontecer (Ap 22.6). Revelação de Jesus Cristo, que Coisas que em breve devem Disse-me ainda: Estas palavras Deus lhe deu para mostrar aos acontecer. são fiéis e verdadeiras. O seus servos as coisas que em Senhor, o Deus dos espíritos breve devem acontecer e que dos profetas, enviou seu anjo ele, enviando por intermédio para mostrar aos seus servos as do seu anjo, notificou ao seu coisas que em breve devem servo João (Ap 1.1). acontecer (Ap 22.6). Revelação de Jesus Cristo, que Os servos. Disse-me ainda: Estas palavras Deus lhe deu para mostrar aos são fiéis e verdadeiras. O seus servos as coisas que em Senhor, o Deus dos espíritos breve devem acontecer e que dos profetas, enviou seu anjo ele, enviando por intermédio para mostrar aos seus servos as do seu anjo, notificou ao seu coisas que em breve devem servo João (Ap 1.1). acontecer (Ap 22.6). Bem-aventurados aqueles que O que guarda é abençoado. Eis que venho sem demora. lêem e aqueles que ouvem as Bem-aventurado aquele que palavras da profecia e guardam guarda as palavras da profecia as coisas nela escritas, pois o deste livro (Ap 22.7). tempo está próximo (Ap 1.3). Bem-aventurados aqueles que O tempo está próximo. Disse-me ainda: Não seles as lêem e aqueles que ouvem as palavras da profecia deste palavras da profecia e guardam livro, porque o tempo está as coisas nela escritas, pois o próximo (Ap 22.10). tempo está próximo (Ap 1.3). Àquele que nos ama, e, pelo Lavar os pecados Bem-aventurados aqueles que seu sangue, nos libertou dos lavam as suas vestiduras no nossos pecados (Ap 1.5) sangue do Cordeiro, (Ap 106 22.14). Eu sou o Alfa e Ômega, diz o Alfa e Ômega. Eu sou o Alfa e o Ômega, o Senhor Deus, aquele que é, que Primeiro e o Último, o era e que há de vir, o Todo- Princípio e o Fim (Ap 22.13). Poderoso (Ap 1.8) Achei-me em espírito, no dia Espírito O Espírito e a noiva dizem: do Senhor, e ouvi, por detrás de Vem! Aquele que ouve, diga: mim, grande voz, como de Vem! Aquele que tem sede trombeta (Ap 1.10). venha, e quem quiser receba de graça a água da vida (Ap 22.17). Quanto ao mistério das sete Estrelas e anjos. Eu, Jesus, enviei o meu anjo estrelas que viste na minha para vos testificar estas coisas mão direita e aos sete às igrejas. Eu sou a Raiz e a candeeiros de ouro, as sete Geração de Davi, a brilhante estrelas são os anjos das sete Estrela da manhã (Ap 22.16). igrejas, e os sete candeeiros são as sete igrejas (Ap 1.20). Quando o vi, caí a seus pés João se prostra. Eu, João, sou quem ouviu e viu como morto. Porém ele pôs estas coisas. E, quando as ouvi sobre mim a mão direita, e vi, prostrei-me ante os pés do dizendo: Não temas; eu sou o anjo que me mostrou essas primeiro e o último (Ap 1.17). coisas, para adorá-lo (Ap 22.28). Graça e paz a vós outros, da Bênção A graça do Senhor Jesus seja parte daquele que é, que era e com todos (Ap 22.21). que há de vir, da parte dos sete Espíritos que se acham diante do seu trono (Ap 1.4) Há uma evidente intenção do autor do livro em retomar no último capítulo os assuntos que ele havia mencionado no primeiro. Alguns são temas evidentemente teológicos como a redenção, o lavar os pecados e a iminência da vinda de Jesus. Outros são mais circunstanciais, como a menção ao nome de João, o fato de um anjo ser o porta- 107 voz da mensagem, e os servos os seus receptores. O texto apresenta, pois, uma estrutura circular muito bem planejada; e que reforça o sentido de validade da esperança cristã. Promessa e cumprimento Já ficou estabelecido que o autor do Apocalipse tinha uma grande preocupação com a coerência de sua obra. Isso é bastante interessante, pois seu estilo de escrever é absolutamente enigmático e misterioso. Não obstante, ele faz questão de dar desfecho a todos os temas que inicia. Durante as exortações que são feitas às sete igrejas nos capítulos 2-3, diversas promessas são pronunciadas, porém sem grande explanações. Cada uma dessas promessas é retomada antes de finalizar a obra, e o significado delas é explicado. Um exemplo disso são as diversas referências feitas às sete igrejas sobre as promessas escatológicas para “aqueles que vencerem” (Cap 2-3). No capítulo 21, a descrição das benesses da Nova Jerusalém destina-se aos vencedores: “O vencedor herdará estas coisas, e eu lhe serei Deus, e ele me será filho” (Ap 21.7, cf. Ap 2.11). No mesmo sentido, a árvore da vida prometida para o vencedor em Éfeso (Ap 2.7) aparece na cidade santa (Ap 22.2). O vitorioso de Esmirna não experimentará a “segunda morte”. Só sabemos o que isso se trata quando chegamos em 21.8, que explica que a segunda morte é, na verdade, o Lago de Fogo. Os vitoriosos em Sardes teriam seu nome escrito no Livro da Vida (Ap 3.5), e esse livro aparece como o fator de salvação ou condenação no Juízo do grande trono branco em Ap 21.27. Os vencedores de Laodicéia recebem a promessa de sentar com Jesus no seu trono (Ap 3.21). A descrição de Ap 22.5 diz que os servos de Deus reinarão pelos séculos dos séculos. Demonstrando concretamente como as promessas iniciais encontram cumprimento no final do livro, reforça-se a ideia de confiança, e, acima de tudo, paciência. A recompensa só chegará ao final. É preciso esperar e suportar o sofrimento do tempo presente. Há um forte sentido teleológico no livro: o fim (escaton) prestará contas com o princípio. Não ficam pontas soltas no projeto de Deus. 108 Estruturas inversas Uma intrigante técnica utilizada pelo escritor do Apocalipse e identificada por Thompson (1990, p. 42-43) é a de colocar elementos numa espécie de relacionamento inverso. O quadro abaixo ajuda a entender: 5 - Quadro comparativo de estruturas inversas Depois disto, vi quatro anjos em pé nos quatro O sexto anjo tocou a trombeta, e ouvi uma voz cantos da terra, conservando seguros os quatro procedente dos quatro ângulos do altar de ouro ventos da terra, para que nenhum vento soprasse que se encontra na presença de Deus, dizendo ao sobre a terra, nem sobre o mar, nem sobre árvore sexto anjo, o mesmo que tem a trombeta: Solta alguma. Vi outro anjo que subia do nascente do os quatro anjos que se encontram atados junto sol, tendo o selo do Deus vivo, e clamou em ao grande rio Eufrates. Foram, então, soltos os grande voz aos quatro anjos, aqueles aos quais quatro anjos que se achavam preparados para a fora dado fazer dano à terra e ao mar dizendo: hora, o dia, o mês e o ano, para que matassem a Não danifiqueis nem a terra, nem o mar, nem as terça parte dos homens (Ap 9.13-15) árvores, até selarmos na fronte os servos do nosso Deus. (Ap 7.1-3) Thompson percebe que no capítulo 7, quatro anjos seguram os quatro ventos da terra para que não soprem, enquanto que um anjo sobe da nascente do sol e clama para que eles não danifiquem a criação até que os escolhidos sejam selados. No capítulo 9, uma voz procedente dos quatro ângulos do altar ordena ao anjo da sexta trombeta que solte os quatro anjos que estão presos junto ao Eufrates para que matem um terço dos homens. Há uma inversão de objetos na passagem, e segundo Thompson “reversal of subject and object of the command results in reversed consequences” (1990, p. 43)83. De outro modo, isso pode ser visto também nas duas cenas em que se menciona um livro aberto, no capítulo 5 e no capítulo 10. No capítulo 5, João vê um livro selado com sete selos, ao qual ninguém pode abrir. Surge, então, o Leão da Tribo de Judá, o Cordeiro, que é digno para abrir o livro. Assim, o conteúdo do livro que estava selado é revelado ao mundo. No capítulo 10, a sequência de ação inverte a do capítulo 5 (THOMPSON, 1990, p. 43). João vê um livrinho aberto na mão de um anjo poderoso. Associada à visão do livrinho sete trovões desferem sete vozes. 83 “Inversão de sujeito e objetos do comando resulta em consequências invertidas” (Tradução nossa). 109 Ao ouvir as vozes, que provavelmente estavam relacionadas ao conteúdo do livro, João se pôs a anotar, mas uma voz do céu o proibiu de fazê-lo. Assim, o conteúdo do livro aberto não foi revelado, ou seja, há uma inversão de valores nas duas cenas. O primeiro livro está selado, mas precisa ser aberto, caso contrário as promessas e os propósitos de Deus para o mundo não se cumprirão. O segundo livro, por sua vez, não pode ser revelado, pois possivelmente diz respeito a coisas que os homens não devem tomar conhecimento. Posteriormente, é dito a João, que ele deve comer o livrinho para mantê-lo secreto. Não obstante, após comer o livro, é dito a João que deve profetizar a respeito de muitos povos, nações, línguas e reis (Ap 10.9-11). É difícil, porém, estabelecer a intenção dessas inversões. Concluímos que, de fato, as referências cruzadas no texto do Apocalipse compõem aquilo que Alter define por arte literária dos escritos bíblicos, como sendo um papel finamente modulado a cada momento, quase sempre determinante na escolha exata de palavras e detalhes, no ritmo da narração, nos pequenos movimentos do diálogo e em toda uma teia de relações que se ramificam pelo texto (2007, p. 15). As referências cruzadas estudadas até aqui apontam para essa teia de relações que se ramificam pelo texto do Apocalipse, cujo propósito foi não apenas de memorização dos assuntos e cenas descritas, mas de assimilação e interpretação dos profundos temas teológicos abordados. Ao contrário de serem interpolações descuidadas feitas por algum editor pouco inteligente, são indícios fortes de unidade e propósito. Assim, destaca-se mais uma vez a importância desse tipo de estudo literário para compreender o Apocalipse. A coerência e a eficiência do Deus descrito por João se reforça através de todas essas repetições, coadunando com o conceito “elevado” de Deus da literatura apocalíptica. Ele é o soberano cósmico, os eventos no mundo fazem parte da “rede” que compõe o seu plano perfeito. 3.1.3. As paródias Outros recursos literários utilizados pelo autor embora não sejam tão úteis para demonstrar a unidade do livro, demonstram a meticulosidade da arte literária do autor do 110 Apocalipse, reforçando a ideia de que esses aspectos precisam ser analisados para compreender a mensagem do livro. Destacamos as paródias e os quiasmos84. Segundo a definição de Carlos Ceia, no E–dicionário de termos literários, “a paródia, enquanto termo literário, refere-se ao processo de imitação textual com intenção de produzir um efeito de cômico”. Distingue-se de outros recursos como sátira, pastiche e paráfrase pela intenção de deformar, censurar, imitar e desenvolver um texto preexistente. O recurso de paródia é frequente no texto de João. Mesmo sem dar uma definição explícita de paródia, Fekkes entende que “os inimigos escatológicos são quase sempre apresentados no Apocalipse em termos de paródia do poder divino” (1994, p. 84). Entretanto, ao invés de efeito cômico, o autor estabelece com a paródia um efeito de ironia e, às vezes, possivelmente até drama. Não são dois poderes iguais, o mal é uma imitação do bem, assim como o dragão e as bestas são imitações de Deus e de Cristo. Portanto, não temos aqui um estilo de paródia convencional. Até por que, o texto não está parodiando outro texto, mas é o próprio autor que utiliza uma imagem como paródia de outra. Talvez, devêssemos falar em uma “paródia imagética” 85, pois o autor descreve o Império Romano e o próprio Satanás com características quase divinas, como se tentassem ser divinos sem consegui-lo. Um exemplo interessante de paródia nesse sentido relaciona-se ao uso de um título especial para Deus que aponta para sua eternidade86, como pode ser visto no quadro: 6 - Quadro comparativo de paródia Apocalipse 1.4: da parte daquele que é, que era e que há de vir Apocalipse 1:8: aquele que é, que era e que há de vir, o Todo-Poderoso. Apocalipse 4.8: o Todo-Poderoso, aquele que era, que é e que há de vir. A besta satânica, por sua vez, é apresentada três vezes numa irônica comparação: 84 No caso dos quiasmos, considerados em seus aspectos mais semânticos, podemos dizer que também apontam para a unidade do livro, como será visto na seção apropriada. 85 Devo essa definição ao Prof. João Leonel, que fez parte da banca. 86 Há, por certo, reminiscência com o próprio significado do tetragrama YHWH, o EU SOU O QUE SOU, de Êxodo 3.14. 111 7 - Quadro comparativo de paródia Apocalipse 17.8a: a besta que viste, era e não é, está para emergir do abismo e caminha para a destruição. Apocalipse 17.8b: a besta que era e não é, mas aparecerá Apocalipse 17.11: E a besta, que era e não é, também é ele, o oitavo rei, e procede dos sete, e caminha para a destruição. Deus é aquele que é, que era e que é de vir. Três vezes se diz isso. O Deus trino é eterno e logo virá para estabelecer seu reino. A besta é aquela que era e não é, mas virá e será destruída. Estabelece-se que o destino da besta é um só: imitar a Deus, mas ser destruída no fim. Outra espécie de paródia, segundo Fekkes (1994, p. 85) também pode ser vista na sequência abaixo: 8 - Quadro comparativo de paródia Apocalipse 11.7: Quando tiverem, então, concluído o testemunho que devem dar, a besta que surge do abismo pelejará contra elas, e as vencerá, e matará. Apocalipse 13.7: Foi-lhe dado, também, que pelejasse contra os santos e os vencesse. Deu-se-lhe ainda autoridade sobre cada tribo, povo, língua e nação; Apocalipse 17.14: Pelejarão eles contra o Cordeiro, e o Cordeiro os vencerá, pois é o Senhor dos senhores e o Rei dos reis; vencerão também os chamados, eleitos e fiéis. Percebe-se que três vezes aparecem referências à peleja da besta (forças do mal) contra as forças do bem. Na primeira (11.17), a besta surge do abismo, peleja contra as duas testemunhas e as vence. Na segunda (13.7) a besta peleja contra os santos e vence-os. Na terceira vez (17.14) cria-se um suspense ao se dizer que os inimigos pelejarão contra o Cordeiro, mas o desfecho é diferente, este os vencerá. Sem dúvida, há algo de ironia no modo como as declarações são feitas. Vários exemplos podem ser adicionados sobre a imitação satânica do divino (KISTEMAKER, 2004, p. 18). João retrata com frequência a Trindade no Apocalipse. Pai, Filho e Espírito Santo recebem diversas nomeações (Ap 1.4,5). As forças do mal exibem 112 uma espécie de paródia da Trindade divina, é a trindade satânica: o dragão, a besta e o falso profeta (Ap 12-13). Deus reveste seu Filho com autoridade (Ap 1.1), então Satanás dá autoridade à sua besta (Ap 13.2). Jesus se assenta em seu trono (Ap 3.21), Satanás também tem o seu trono (Ap 2.13, 16.10). O Filho é descrito como “o Cordeiro que foi morto” (Ap 5.6), na paródia maligna, a besta com sete cabeças tem uma delas ferida mortalmente, porém curada (Ap 13.3). Uma das descrições mais claramente parodiadas é Apocalipse 13.11: “Vi ainda outra besta emergir da terra; possuía dois chifres, parecendo cordeiro, mas falava como dragão”. A besta da terra se parece com Jesus (o cordeiro), mas suas palavras revelam a sua verdadeira identidade, portanto, é uma paródia de Jesus. Segundo Frye, “um dos temas básicos das imagens demoníacas é a paródia, que arremeda a exuberante peça artística sugerindo sua imitação em termos de vida real (1957, p. 148). Com o uso frequente das paródias, João estabelece o sentido de que o mal é sempre uma deturpação do bem, pois tudo o que Satanás pode fazer é tentar imitar a Cristo. Mas ele jamais consegue fazer isso perfeitamente, restando-lhe sempre o fracasso. Assim, o objetivo das paródias no texto é demonstrar a superioridade divina em relação a Satanás. 3.1.4. Estrutura de quiasmo Segundo Mary Leapor o termo literário “quiasmo” que vem do grego Khiasmus, é uma figura de estilo que se traduz pela inversão da ordem das palavras (o que poderá conduzir à repetição das mesmas) e de duas frases que se opõem, permitindo não só diversificar o ritmo frásico, bem como levar à obtenção de certos efeitos semânticos, a partir da posição que as palavras ocupam no enunciado. Num enunciado constituído por quatro elementos, dispostos segundo um ritmo binário, para se obter esta figura de retórica, a ordem sintagmática da segunda parte do enunciado, é a inversão dos elementos da primeira parte, segundo a fórmula AB/BA. (Ceia, E- Dicionário). O quiasmo é representado pela letra grega X, apontando para um cruzamento de ideias. É uma figura de retórica baseada na simetria que, na sua forma mais comum, é construída com quatro termos, sendo dois geralmente repetidos, porém inversamente. Um modo de explicar isso de forma mais simples é dizer que o quiasmo dispõe os termos como num espelho.A poesia hebraica, como muitas outras formas literárias, utiliza o quiasmo bastante comumente. É o desenvolvimento da ideia básica de paralelismo sinonímico, sintético ou antitético (SILVA, 2007, p. 78). No caso do quiasmo hebraico, a melhor 113 definição é de paralelismo invertido (SILVA, 2007, p. 79), que se expressa na ordem A B B A. Um exemplo bíblico vem do Salmo 137:5–6: “Se eu de ti me esquecer, ó Jerusalém, que se resseque a minha mão direita. Apegue-se-me a língua ao paladar, se me não lembrar de ti, se não preferir eu Jerusalém à minha maior alegria” (Sl 137.5–6). O quiasmo nesse texto se configura da seguinte maneira: A Se eu de ti me esquecer, ó Jerusalém, B que se resseque a minha mão direita B Apegue-se-me a língua ao paladar, A se me não lembrar de ti, se não preferir eu Jerusalém. Um exemplo desse tipo de quiasmo pode ser visto em Apocalipse 21.1a–5a: vi novo céu e nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já não existe. Vi também a cidade santa, a nova Jerusalém, que descia do céu, da parte de Deus, ataviada como noiva adornada para o seu esposo. Então, ouvi grande voz vinda do trono, dizendo: Eis o tabernáculo de Deus com os homens. Deus habitará com eles. Eles serão povos de Deus, e Deus mesmo estará com eles. E lhes enxugará dos olhos toda lágrima, e a morte já não existirá, já não haverá luto, nem pranto, nem dor, porque as primeiras coisas passaram. E aquele que está assentado no trono disse: Eis que faço novas todas as coisas. A estrutura simplificada do quiasmo fica assim: A Novo céu e nova terra (1a) B o primeiro céu e a primeira terra passaram, (1b) C o mar já não existe (1b) D a cidade santa [...] descia do céu, da parte de Deus (2) D Eis o tabernáculo de Deus com os homens. Habitará com eles (3-4a) C a morte já não existirá, já não haverá luto, nem pranto, nem dor (4b) B porque as primeiras coisas passaram (4b) A Novas todas as coisas (5a) Geralmente, o objetivo do quiasmo é destacar o elemento central. No caso da estrutura acima, destaca-se a presença de Deus junto com seu povo após a consumação de 114 todas as coisas. A presença de Deus garante a não existência da morte, da dor, do pranto, e, ao mesmo tempo, é a razão da renovação de todas as coisas. Na literatura hebraica existe também uma forma comum de modificação desse princípio quando o número de partes é ímpar. Então, há um elemento solitário e em destaque no centro. Um exemplo assim pode ser visto em Apocalipse 9.17b-18: “e de sua boca saía fogo, fumaça e enxofre. Por meio destes três flagelos, a saber, pelo fogo, pela fumaça e pelo enxofre que saíam da sua boca, foi morta a terça parte dos homens”. Na tradução portuguesa (ARA), a estrutura de quiasmo se perdeu pela colocação da frase “foi morta a terça parte dos homens” no final. Segundo o texto grego87, a distribuição é a seguinte: A de sua boca (17b) B saía (17b) C fogo, fumaça e enxofre (17c) D destes três flagelos um terço da humanidade foi morta (18a). C pelo fogo, fumaça e enxofre (18b) B que saía (18c) A de sua boca (18c) A linha “D” não foi repetida e marca a transição para as formas paralelas. Em destaque na estrutura está a afirmação de que “um terço da humanidade foi morta”. A principal estrutura quiastica do Apocalipse, entretanto, é mais semântica ou temática do que sintática. Ela contribui grandemente para o enredo pretendido pelo autor. Refere-se ao modo como João trata do aparecimento e da destruição dos grandes inimigos de Cristo. O quadro a seguir é útil para ver isso88: 87 Segundo o texto grego: kai; ejk tw`n stomavtwn aujtw`n ejkporeuvetai pu`r kai; kapno;" kai; qei`on. 18ajpo; tw`n triw`n plhgw`n touvtwn ajpektavnqhsan to; trivton tw`n ajnqrwvpwn, ejk tou` puro;" kai; tou` kapnou` kai; tou` qeivou tou` ejkporeuomevnou ejk tw`n stomavtwn aujtw`n. (UBS).   88 Embora o referido quadro seja de nossa autoria, encontra-se algo semelhante em BAUCKHAM (1993b, p. 20). 115 9 - Estrutura de quiasmo semântico ou temático A E olhei, e eis um cavalo amarelo e o seu SURGIMENTO DO PRIMEIRO INIMIGO: cavaleiro, sendo este chamado Morte; e o A MORTE E O INFERNO (HADES) Inferno o estava seguindo, e foi-lhes dada autoridade sobre a quarta parte da terra (Ap 6.8). B Viu-se, também, outro sinal no céu, e eis um SURGIMENTO DO GRANDE INIMIGO: O dragão, grande, vermelho, com sete cabeças, dez DRAGÃO chifres e, nas cabeças, sete diademas (Ap 12.3). C Vi emergir do mar uma besta que tinha dez SURGIMENTO DOS DOIS ALIADOS DO chifres e sete cabeças e, sobre os chifres, dez DRAGÃO: AS DUAS BESTAS diademas (Ap 13.1). Vi ainda outra besta emergir da terra; possuía dois chifres (Ap 13.11). D Veio um dos sete anjos que têm as sete taças e SURGIMENTO DA GRANDE falou comigo, dizendo: Vem, mostrar-te-ei o PROSTITUTA (BABILÔNIA) julgamento da grande meretriz que se acha sentada sobre muitas águas (Ap 17.1). D Então, exclamou com potente voz, dizendo: DESTRUIÇÃO DA GRANDE Caiu! Caiu a grande Babilônia e se tornou PROSTITUTA (BABILÔNIA) morada de demônios, covil de toda espécie de espírito imundo e esconderijo de todo gênero de ave imunda e detestável (Ap 18.2). C Mas a besta foi aprisionada, e com ela o falso DESTRUIÇÃO DOS DOIS ALIADOS DO profeta (...). Os dois foram lançados vivos DRAGÃO AS DUAS BESTAS. dentro do lago de fogo que arde com enxofre (Ap 19.20). B O diabo, o sedutor deles, foi lançado para dentro DESTRUIÇÃO DO GRANDE INIMIGO: O do lago de fogo e enxofre, onde já se encontram DRAGÃO não só a besta como também o falso profeta; e serão atormentados de dia e de noite, pelos séculos dos séculos (Ap 20.10). A Então, a morte e o inferno foram lançados para DESTRUIÇÃO DO PRIMEIRO INIMIGO: dentro do lago de fogo. Esta é a segunda morte, A MORTE E O INFERNO (HADES) o lago de fogo (Ap 20.14). 116 O aparecimento e a destruição dos inimigos estão em ordem inversa: A Morte e Inferno (Ap 6) B Dragão (Ap 12) C As duas bestas (Ap 13) D Babilônia (Ap 17) D Babilônia (Ap 18) C As duas bestas (Ap 19) B Dragão (Ap 20.10) A Morte e Inferno (Ap 20.14) Para o leitor-ouvinte que viu esses inimigos sendo apresentados pela ordem, e vê os mesmos sendo destruídos pela ordem inversa de aparecimento, fica a impressão de que há um propósito específico, planejado. Os eventos finais não seguem um ritmo improvisado, ao contrário, há uma perfeita simetria previamente estabelecida: a simetria dos planos e propósitos de Deus. O destaque para Babilônia também se justifica. Ela representa Roma, a cidade que impunha sobre os cristãos as mais severas perseguições e, ao mesmo tempo, os seduzia através dos seus muitos convites para prazeres e dissoluções. O uso dos quiasmos sintáticos e semânticos no Apocalipse, portanto, reforçam que a arte literária utilizada por João tinha fins teológicos. Suas estruturas meticulosamente construídas destacam temas essenciais de sua teologia como a habitação futura de Deus com o seu povo e a destruição de todos os seus inimigos. 3.2. O enredo do Apocalipse As repetições do texto do Apocalipse não devem ser tomadas como referências sem conexão ou marcas revisionais descuidadas. Não são aleatórias ou mal empregadas, antes ajudam a formar o enredo do Apocalipse, e constroem-se em uma relação de causa e efeito, ou seja, de que um evento posterior não acontece apenas após o outro, mas em algum sentido por causa do outro (ARISTÓTELES, Poetics 1450a51, apud BARR, 2010, p. 12). 117 Entretanto, não se deve exigir que um autor faça conexões explícitas entre os eventos descritos, pois o autor espera a participação dos leitores. Como diz Barr: plotting—creating causal connections between events in a sequence—is a cooperative venture involving both author and audience. Sometimes authors make plots explicit, but at other times the relationship between incidents is left open and the reader must fill in the gap. One should not assume that there is only one possible plot, except in the simplest of stories (2010, p. 13)89. Isso significa que a construção do significado em um texto é tanto um processo objetivo quanto subjetivo. Toda leitura envolve uma interação dinâmica entre palavras objetivas disponíveis na página e o significado subjetivo dessas palavras que está na mente do leitor (BARR, 2010, p. 14). Isso nos faz ver que João pretendia que seu livro fosse analisado cuidadosamente, que seus enigmas fossem decifrados, com a participação do leitor. E a solução para os enigmas não estão necessariamente “fora do livro” em algum momento histórico específico a ser identificado no futuro, mas dentro do livro, nos detalhes literários. À luz do que já estudamos até aqui, especialmente dos padrões numéricos e das estruturas de repetição utilizadas na obra, a seguir, delimitaremos o enredo do Apocalipse. O trabalho aqui será mais no sentido de mostrar a estruturação do enredo, ou seja, o modo como João dispôs o material, prestando atenção às divisões principais do livro, que recapitulam a história da apresentação ao desfecho. No capítulo 4, quando tratarmos dos capítulos 12 e 13 do Apocalipse individualmente, analisaremos o enredo de forma específica, avançando também nas definições dos conceitos. 3.2.1. As quatro divisões do macroenredo David L. Barr (2003, p. 15-16) divide o enredo do Apocalipse em três partes. Segundo Barr, João inicialmente conduz o leitor até uma cena realística em uma ilha grega (um cenário fácil de imaginar). Então, o conduz para uma corte divina onde a adoração corresponde em alguma medida a adoração da igreja na terra (uma cena mais difícil de 89 “Fazer um enredo – criar conexões causais entre eventos em uma sequência – é uma aventura cooperativa, envolvendo o autor e a audiência. Algumas vezes os autores fazem marcas explícitas, mas outras vezes o relacionamento entre os incidentes é deixado aberto e o leitor precisa preencher o vazio. Ninguém deveria imaginar que há apenas um enredo possível, exceto na mais simples das histórias” (tradução nossa). 118 imaginar). Finalmente, mostra a batalha final entre o bem e o mal, uma guerra cósmica de dimensões impossíveis de imaginar. A seguir, ele o traz de volta para a terra, para o local conhecido, quando interpreta a visão dizendo: isso foi o que eu vi. Ou seja, “It is like we have gone on a journey, and the farther we get from home the more strange the territory becomes, until finally we return home again” (BARR, 2010, p 16)90. O quadro das três divisões de Barr (2010, p. 16) está reproduzido a seguir. 10 - As três divisões do enredo segundo Barr Estória um Estória dois Estória três Lugar Patmos Céu Terra Personagens Jesus como um Jesus como um Jesus como um Homem majestoso; cordeiro; anciãos e guerreiro celeste; o João; Igrejas. seres celestes. dragão; as bestas; a mulher e seus filhos. Ação Escrever cartas Adoração Guerra João apresentado Secretário Viajante celeste Visionário profeta como Paradigma mítico Teofania Visão do trono Guerra santa Capítulos 1-3 4-11 12-22 Todas essas cenas, portanto, não são meramente sequenciais. Não se trata apenas de recapitular uma história estática, há progresso também. Cada nova cena é uma descrição complementar da história anterior e da história como um todo. Como diz Barr, John’s three dramatic actions do not constitute a sequential, unified action. One action does not happen before or after the other. They represent alternative tellings of the story of Jesus with a common theme and overlapping characters. The dragon does not attack the woman’s children (ch. 12) after Jesus dictates the letters (chs. 2–3) or after the triumphant consummation of heavenly worship (ch. 11); in John’s story that attack is contemporaneous with the life of the church and is as old as Eve.18 The third action is a retelling of the story of the coming of God’s rule with a new focus. It is as if the narrator had finished the triumphant heavenly announcement that the kingdoms of this world had become the kingdom of God and of the Christ (11:15) and then turned to the audience and said, “Do you wonder how that came about? Well, let me tell you . . .” 90 “É como se nós tivéssemos partido em uma jornada, e quanto mais longe de casa mais estranho o território se torna, até que, finalmente, nós retornamos para casa” (tradução nossa). 119 The focus now is on the attack of the dragon and the en- suing cosmic war, with Jesus being presented (rather ironically) in the guise of the Divine Warrior. (2003, p. 18)91. Mesmo reconhecendo o valor do trabalho de Barr, propomos a divisão do enredo em quatro partes que, por sua vez, se subdividem em sete. Assim, os dois principais números (quatro e sete) do Apocalipse (conforme trabalhamos na seção de números) mostram a macro e a micro estrutura do enredo. Ao longo das quatro grandes partes, João conduz o leitor para uma viagem até as fronteiras do desconhecido. Nas sete partes menores, ele fornece os pormenores que ajudam o leitor a formar seu próprio quadro dos eventos intermediários. A seguir, apresentamos o quadro das quatro principais divisões temáticas, conforme nossa própria leitura da obra. 11 - O enredo principal em quatro cenas Cenas Primeira Cena Segunda Cena Terceira Cena Quarta Cena Capítulos 1-3 4-11 12-19 20-22 Cenário Terra (Patmos) Céu Céu e Terra Novo Céu e Nova Terra Protagonista Jesus glorioso no Jesus como Jesus como o rei Jesus glorioso meio das igrejas. cordeiro glorioso junto com seu sacrificado entre retornando para povo em perfeita os 4 seres vivente vingar sua igreja paz. e os 24 anciãos. de seus inimigos. Ação Comunhão Adoração Guerra Comunhão ameaçada. restaurada. 91 “As três ações dramáticas de João não constituem uma ação unificada, sequencial. Uma ação não acontece antes ou após a outra. Elas representam narrativas alternativas da história de Jesus com um tema comum e sobreposição de caracteres. O dragão não ataca o filho da mulher (cap. 12) depois de Jesus ditar as letras (caps. 2-3) ou após a consumação triunfante da adoração celestial (cap. 11); na história de João esse ataque é contemporâneo com a vida da Igreja e é tão antigo quanto Eva. A terceira ação é uma releitura da história da vinda do reino de Deus com um novo foco. É como se o narrador tivesse acabado o anúncio celestial triunfante de que o Reino do mundo tornou-se o Reino de Deus e de Cristo (11: 15) e, em seguida, virou-se para a plateia e disse: ‘você quer saber como que surgiu? Bem, deixe-me dizer-lhe...’. O foco agora é sobre o ataque do dragão e a subsequente guerra cósmica, com Jesus sendo apresentado (mais ironicamente) como um guerreiro divino” (tradução nossa). 120 Função de João Escritor Viajante Celeste Profeta/Visionário Portador do livro Paradigma Theofania Visão do Trono Guerra Santa Apoteose mítico Situação da Em luta na terra Gloriosa no céu, Gloriosa, porém Gloriosa Igreja contra a participando da em luta no céu e descendo do céu imoralidade e os adoração do na terra contra o para a eterna falsos ensinos. Cordeiro. dragão e seus felicidade junto aliados. com Deus. O vilão Agindo Apresentado Apresentado Banido para (Satanás) invisivelmente como o Anjo do como o dragão sempre no Lago entre as igrejas Abismo, que chama duas de Fogo. para conduzi-las liderando bestas para ajudá- ao erro. exércitos lo a perseguir a infernais. Igreja. Cena 1: Em Patmos, João tem uma visão de Jesus em estado de glória. Quando o vê, cai aos seus pés. Jesus é descrito de forma assustadora; todo-poderoso, porém, andando no meio dos sete candeeiros de ouro (que representam as sete igrejas da Ásia Menor). Jesus ordena que João escreva uma carta para cada igreja, onde se apresenta como o Senhor da Igreja, destaca as situações particulares de cada comunidade (lutas e perseguições), aponta qualidades e defeitos, e exige mudança e compromisso. Cena 2: João é convidado para subir até o céu (como Enoque) e se acha na presença do trono de Deus (como Isaías cap. 6). Enxerga a adoração ao Deus que se assenta num trono majestoso, louvado como o Criador. Na sequência, ele vê um livro (rolo) na mão direita de Deus, que está selado com sete selos. Há uma comoção no céu porque ninguém é considerado digno de abrir o livro, e isso é indutivamente considerado ruim, pois João chora atemorizado com a ideia de que isso não aconteça. Subitamente surge outro personagem diante do trono. É um cordeiro. Traz as marcas de seu sacrifício. Ele é considerado digno de abrir o livro. O cordeiro se aproxima, toma o livro, e céus e terra adoram-no como redentor. Então, vêm duas sequências de sete. Os sete selos do livro são abertos pelo Cordeiro, cada um libera acontecimentos abençoadores e julgadores para o mundo. O sétimo selo abre nova contagem de sete: são as sete trombetas que repercutem os julgamentos dos sete selos. Entre o sexto e o sétimo selo, e entre a sexta e a sétima trombeta há interlúdios descrevendo a igreja e sua missão no mundo. 121 Cena 3: A cena três começa com a descrição de uma mulher grávida e gloriosa no céu, diante dela está um dragão, esperando seu filho nascer para ser devorado. O filho nasce, mas é resgatado do dragão e levado até o céu. Uma batalha celeste expulsa o dragão do céu. Ele desce com seus anjos para perseguir a mulher e seus outros descendentes na terra. Para fazer isso, conta com três aliados: a besta que surge do mar, a besta que surge da terra, e a grande prostituta intitulada Babilônia. Em meio à perseguição do dragão, das duas bestas e da Babilônia, três séries de sete trazem julgamento contra o mundo. Sete vozes anunciam julgamentos contra esses inimigos. Sete flagelos acentuam ainda mais esses julgamentos. Sete cenas descrevem detalhadamente o julgamento da grande Babilônia e a vitória de Cristo. Cena 4: Os três aliados do dragão caíram na Cena 3, mas falta ainda narrar a derrota do próprio dragão. Esse é o assunto da abertura da quarta cena. Todas as atividades julgadoras de Deus ao longo das descrições anteriores são condensadas numa única cena de juízo: o Juízo Final diante do trono branco. Com a extirpação de todo o mal, surge a nova Jerusalém e, finalmente, os novos céus e nova terra. A descrição dos dois últimos capítulos aponta para a remoção de tudo aquilo que causa distúrbio na criação de Deus. Na viagem, João levou o leitor (no texto ele é levado pelo anjo) até o limite do inimaginável, mas de certo modo, é uma volta para casa, pois a existência na presença de Deus, livre de tudo aquilo que causa sofrimento, nada mais é do que a restauração do plano original do Gênesis, evocado tantas vezes no Apocalipse. Mesmo assim, não é uma simples volta: é um “ir além”, para uma esfera superior de absoluta comunhão com Deus descrita pela ausência de templo e de luz, pois Deus está presente (templo não é necessário) e é a própria luz. Assim, o Cristo que andava no meio dos candeeiros de ouro na cena 1, agora está presente de forma plena com sua igreja na cena 4. Mas no meio disso, os inimigos surgiram e foram destruídos. Mais do que um evento que se desenrola, o Apocalipse apresenta quatro narrativas inter-relacionadas da história de Jesus. A primeira conta a história do ponto de vista da presença de Jesus entre as igrejas na terra observando, julgando e recompensando. A segunda conta a história da perspectiva de que Jesus está entronizado no céu como o soberano dos acontecimentos do mundo. A terceira conta a história da perspectiva do combate de Jesus com as forças das trevas tanto no céu como na terra. E a quarta, narra a 122 vitória e a consumação dos propósitos de Deus prometidos às igrejas na união do novo céu e da nova terra. O enredo se constrói a partir de rompimentos, de retomadas, de elipses, prolepses e analepses que serão desenvolvidas nessa seção, mas especialmente da já mencionada técnica muito praticada na literatura hebraica: a técnica da repetição. 3.2.2. As sete seções paralelas do microenredo Tendo estabelecido o macroenredo do Apocalipse (quatro divisões), agora nos voltaremos para o microenredo. No nosso entendimento, são sete seções paralelas que compõem o microenredo. Devido ao seu caráter peculiar e a dificuldade de entender a sequência de eventos descritos no Apocalipse, sentimos a necessidade de apresentar uma exposição do livro cena após cena. Obviamente, a exposição é simplificada. Nosso objetivo é o de destacar as sete seções paralelas do livro e a proeminência do número sete nessa estrutura, cada vez que a história é recontada. Mas antes convém lembrar alguns aspectos básicos dessa proposta. Um dos recursos recorrentes na literatura bíblica (especialmente da poesia hebraica) é o chamado paralelismo. Consiste na técnica de repetir frases e expressões semelhantes em textos curtos para reforçar e ampliar um sentido proposto. Alter define como essa técnica surgiu na poesia e migrou para a prosa: a matriz conceitual desse modo de usar a repetição talvez deva ser procurada na poesia, que, na maioria das culturas, antecede a prosa como veículo de expressão literária. Essas associações só podem ser conjecturais, mas o que tenho em mente é, em essência, o seguinte: o paralelismo do verso bíblico constituiu uma estrutura na qual, por meio de hemistíquios aproximadamente sinônimos, havia uma repetição constante que, na realidade, nunca era efetivamente uma repetição (2007, p. 150). Um exemplo do paralelismo na poesia hebraica pode ser visto no seguinte texto: “Bem-aventurado o homem que não anda no conselho dos ímpios, não se detém no caminho dos pecadores, nem se assenta na roda dos escarnecedores” (Sl 1.1). Vê-se um paralelismo progressivo nas três declarações a respeito do homem bem aventurado do seguinte modo: 1) Não anda no conselho dos ímpios, 123 2) Não se detém no caminho dos pecadores, 3) Nem se assenta na roda dos escarnecedores. É evidente que as três declarações são paralelas, mas há explícito progresso semântico com a repetição. Por isso, a repetição na poesia hebraica além de fixar o conteúdo, aponta para um progresso cognitivo, pois a arte (consciente ou intuitiva) do paralelismo poético consistia em fazer avançar o argumento poético como se apenas o repetisse — intensificando, especificando, completando, qualificando, contrastando, expandindo o material semântico de cada hemistíquio inicial em sua aparente repetição (ALTER, 2007, p. 150) É bastante provável que, através do uso das repetições houvesse por parte dos autores bíblicos “a expectativa de que o leitor ideal (de início o ouvinte ideal) ficasse atento às diferenças que surgem a cada instante num meio que parece fundar-se na recorrência permanente” (ALTER, 2007, p. 150). No caso do Apocalipse, além das repetições sintáticas e de frases inteiras, seções completas são recapituladas, e a cada nova recapitulação, o leitor precisa completar as partes “em branco” do quadro. Só ao ouvir pela última vez a mesma história poderá ter uma noção do todo. Assim, a participação do leitor é essencial para o entendimento do livro. Essas repetições intencionais e programáticas do Apocalipse são intituladas de “teoria da recapitulação”. É importante que se entenda que é mais do que uma recapitulação sintática, pois compõe parte essencial do trabalho literário do autor no processo de constituição dos sentidos da narrativa. Como já observamos no primeiro capítulo, a teoria da recapitulação começou no século quarto, provavelmente com Vitorino de Pettovio, porém diversos autores modernos continuam defendendo de modos variados essa ideia. Entre eles A. Yarbro Collins, R. F. White e C. H. Giblin92. E também L. Berkhof, H. B. Swete, W. Milligan, S. L. Morris, B. Warfield (HENDRIKSEN, 1987, p. 31). William Hendriksen (1987) é um dos autores modernos que tem defendido a teoria da recapitulação. A exposição a seguir se baseia em muitos dos seus conceitos. Hendriksen divide o livro do Apocalipse em sete “seções” paralelas ou recapitulativas que descrevem a dispensação cristã inteira, ou o período desde a primeira até a segunda vinda de Cristo e a consumação de todas as coisas. Assim, a interpretação 92 Para uma análise das propostas desses autores ver: Aune, 1998 (Introdução – seção IV). 124 levaria em conta os elementos preteristas, ou seja, aquilo que se aplica aos cristãos do primeiro século, mas sem descartar os princípios de interpretação do agir de Deus ao longo da história, atentando para a consumação. Portanto, a ideia básica é que o livro não deve ser lido como uma descrição de eventos sucessivos. Muitos eventos são repetidos em cada seção, mas com novos detalhes acrescentados, sendo que somente quando a última é contada, o quebra-cabeça se completa. A divisão que HENDRIKSEN (1987, p. 26-35) propõe é a seguinte: • A Primeira Seção: “Cristo no meio dos sete candeeiros” (Ap 1-3). • A Segunda Seção: “A Visão do céu e dos Sete Selos” (Ap 4.1-7.17). • A Terceira Seção: “As Sete Trombetas” (Ap 8-11). • A Quarta Seção: “O Dragão Perseguidor” (Ap 12.2-14.20). • A Quinta Seção: “As Sete Taças” (Ap 15.1-16.21). • A Sexta Seção: “A queda da Babilônia” (Ap 17.1-19.21). • A Sétima Seção: “A Grande Consumação” (Ap 20.1-22.21)” Embora o modo como cada leitor intitule estas divisões seja diverso, todas, em conjunto, formam unidades de pensamento e de eventos. E mesmo reconhecendo as dificuldades com respeito à delimitação precisa dos eventos, seguindo a linha de Ticônio, Agostinho, Bede e Hendriksen (entre outros), propomos uma divisão em “seções” bastante semelhante a de Hendriksen, porém com o destaque para o padrão de sete em todas as partes: • Cristo e os sete candeeiros (1-3) • O Cordeiro e os sete selos (4-7) • As sete trombetas (8-11) • O dragão e as sete vozes (12-14) • As sete taças (15-16) • As sete visões de julgamento (17-19) • As sete visões da consumação (20-22) O quadro abaixo mostra a estrutura de macroenredo e microenredo da obra e o entrelaçamento das seções dentro do enredo principal, conforme a posição dessa tese. 125 12 - Entrelaçamento do macroenredo com o microenredo Cena 1 (1-3) Cena 2 (4-11) Cena 3 (12-19) Cena 4 (20-22) Jesus glorioso no Jesus como cordeiro Jesus como o rei glorioso Jesus glorioso meio das igrejas sacrificado entre os 4 retornando para vingar sua igreja junto com seu seres vivente e os 24 de seus inimigos. povo em perfeita anciãos. paz. Seção 1 Seção 2 Seção 3 Seção 4 Seção 5 Seção 6 Seção 7 (1-3) (4-7) (8-11) (12-14) (15-16) (17-19) (20-22) Cristo e os sete Os sete As sete O dragão As sete As sete As sete visões da candeeiros selos trombetas e as sete taças visões de consumação vozes julgamento A primeira seção recapituladora: Cristo e os sete candeeiros (Ap 1-3) O livro começa com as seguintes palavras: Revelação de Jesus Cristo, que Deus lhe deu para mostrar aos seus servos as coisas que em breve devem acontecer e que ele, enviando por intermédio do seu anjo, notificou ao seu servo João, o qual atestou a palavra de Deus e o testemunho de Jesus Cristo, quanto a tudo o que viu (Ap 1.1-2). Aqui estão praticamente todos os elementos da literatura apocalíptica. O livro é uma revelação direta de Deus, entregue por meio de um anjo, para um homem chamado João, dizendo respeito às coisas futuras. Em seguida, tem-se a primeira bem-aventurança do livro (ao todo serão sete, como já foi visto: 1,3; 14,13; 16,15; 19,9; 20,6; 22,7.14): “Bem-aventurados aqueles que leem e aqueles que ouvem as palavras da profecia e guardam as coisas nela escritas, pois o tempo está próximo” (Ap 1.3). Embora a tradução utilize o plural, o texto grego diz “bem aventurado aquele que lê”. É preciso lembrar que o livro deveria ser lido nas igrejas. Isso, como já demonstramos, traz implicações para a própria estrutura literária do livro. O verso 4 indica os destinatários: “João, às sete igrejas que se encontram na Ásia, graça e paz a vós outros”. Essas sete igrejas deveriam receber o livro inteiro, porém, cada 126 uma receberia também uma pequena carta, dentro do livro. Os capítulos 2 e 3 reproduzem essas pequenas cartas individuais. Os versos 9-11 explicitam as circunstâncias do livro: Eu, João, irmão vosso e companheiro na tribulação, no reino e na perseverança, em Jesus, achei-me na ilha chamada Patmos, por causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesus. Achei-me em espírito, no dia do Senhor, e ouvi, por detrás de mim, grande voz, como de trombeta, dizendo: O que vês escreve em livro e manda às sete igrejas: Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodicéia (Ap 1.9-11). Em seguida, o autor descreve a primeira cena do livro: “Voltei-me para ver quem falava comigo e, voltado, vi sete candeeiros de ouro e, no meio dos candeeiros, um semelhante a filho de homem, com vestes talares e cingido, à altura do peito, com uma cinta de ouro” (Ap 12.-13). Os sete candeeiros representam as sete igrejas da Ásia conforme as palavras do próprio Cristo (Ap 1.20). A figura do candeeiro sugere que a igreja tem a função de espalhar a luz. O candelabro era o símbolo de Israel. Então, João está dizendo que a igreja agora é o Israel de Deus. O ouro pode representar a dignidade e a preciosidade da igreja. A cena inicial é a de Cristo andando no meio dos candeeiros. João viu aquele que, segundo o relato bíblico, um dia ele se reclinou sobre o seu peito (Jo 13.25). Mas, agora ele estava muito diferente. O Cristo descrito na visão apocalíptica é o Cristo Vingador. Ele está no meio dos candeeiros, ou seja, no meio da sua igreja, controlando, vigiando, conhecendo tudo o que acontece, punindo e recompensando, conforme ele se revelará nas cartas para as igrejas. Sua roupa descreve sua dignidade de sacerdote e de rei. Seus cabelos brancos apontam para sua eternidade, seus olhos de fogo, o poder perscrutador; os pés de bronze, sua força esmagadora, e a voz de muitas águas, como as ondas que batiam nas rochas de Patmos, seu poder avassalador. Tinha na mão sete estrelas que são os pastores (anjos) das igrejas. A espada de dois gumes que saía da boca é o poder da Palavra, que vai destruir os inimigos no final (Ap 19.15,21). Seu rosto brilhante revela o esplendor divino (Ap 1.14- 16). As sete cartas foram endereçadas às sete igrejas da Ásia menor (Ap 2-3). Certamente havia muitas outras igrejas naquela região, mas a escolha deliberada tem como base o número sete. Éfeso era a metrópole da Ásia. Certamente a igreja mais importante daquela região (LADD, 1980, p. 30). Foi o lugar aonde Paulo pastoreou, e antes de ir embora, advertiu 127 contra os falsos mestres e falsos ensinos que poderiam vir após ele (At 20.28-31). Parece que os cristãos dessa igreja haviam seguido a advertência de Paulo, neste sentido. Mas, se o zelo doutrinário estava presente, o amor estava ausente. A falta de arrependimento causaria a “remoção do candeeiro”, ou seja, a destruição da própria igreja. Para a Igreja de Esmirna (Ap 2.8-11), Cristo se identificou como o primeiro e o último, que esteve morto, mas voltou a viver. Esmirna havia sido destruída no passado e reconstruída. Sua beleza rivalizava com a de Éfeso. A Igreja de Esmirna enfrentava grandes tribulações e era muito pobre, porém sua pobreza era apenas material, segundo Jesus, pois ela era rica espiritualmente. A oposição que os judeus lhe faziam na verdade era oposição do próprio Satanás. Há coisas que a Igreja precisava sofrer. O motivo: prova. Mas, a tribulação teria um tempo determinado e acabaria: 10 dias. Fidelidade até ao fim garantiria uma coroa nos céus. Assim, desde o início, o tema do sofrimento e da paciência aparece no livro. Ele será repetido e exemplificado em cada uma das seções. Pérgamo era a capital (Ap 2.12-17). Seu nome vem de Pergaminho. Lá ficava o mais antigo templo dedicado ao Imperador. Por isso era o trono de Satanás. Em Pérgamo havia uma grande biblioteca, além de um ministério de curas dos sacerdotes de Esculápio e um templo em honra a Zeus. Todas estas coisas indicavam um sistema de vida “viável” fora do reino de Deus (WILCOCK, 1993, p. 26). Assim, João introduz mais um de seus temas recorrentes: o crente deve se recusar a aceitar o padrão comportamental do mundo. Em Pérgamo havia uma igreja fiel, no sentido de não capitular diante da perspectiva do martírio, seu grande problema, contudo, estava no aspecto doutrinário. Os nicolaítas eram tolerados, bem como aqueles que ensinavam que se podia comer carne sacrificada aos ídolos. Cristo adverte que a espada está pronta para os que não se arrependerem. O vencedor receberá o maná escondido e o nome na pedrinha branca que pode significar um novo relacionamento com Cristo. O crente terá um novo nome, escrito numa pedra (durabilidade) branca (pureza). Ou talvez seja uma referência ao fato de que, no mundo antigo, uma pedra branca significava absolvição por um júri ou como convite para entrada em festivais públicos (LADD, 1980, p. 39). Em Tiatira, ao contrário de Pérgamo, a pressão era interna. Aparentemente em Pérgamo havia uma pequena igreja, enquanto que em Tiatira, uma grande igreja. Uma mulher semelhante a Jezabel (1Rs 16-21) pregava como se fosse autorizada por Deus, mas ela levava as pessoas para longe de Deus, induzindo-as a cometerem idolatria. Os cristãos estavam diante de um impasse: afastar-se de tudo e perder privilégios, ou participar e 128 incorrer em condenação? Aparentemente, Jezabel foi quem deu a “solução”, provavelmente uma mistura de fé e imoralidade. Ou seja, a lição dada à terceira igreja é que fidelidade não significa apenas resistir às ameaças externas, mas também às internas. Cristo adverte as pessoas daquela igreja com um julgamento terrível. Os vencedores recebem a promessa de possuir autoridade sobre as nações. Para todas as igrejas Cristo faz elogios, menos para a quinta igreja, localizada em Sardes (Ap 3.1-6). A glória da cidade de Sardes estava em seu passado (LADD, p. 1980, p. 44). Era chamada de “A Inexpugnável”. Sardes foi conquistada durante a noite por causa de uma brecha na muralha. Sardes possuía uma igreja muito atuante. Todos achavam que era uma boa igreja, mas estava morta. Suas obras não eram obras de amor. Seus cultos eram vazios de espiritualidade. Poucos naquela igreja haviam se mantido longe da contaminação. Ao contrário das outras igrejas, Cristo não promete grandes recompensas, eles apenas serão salvos, se houver arrependimento. Filadélfia (junto com Esmirna) não recebe repreensão (Ap 3.7-13). Filadélfia era um verdadeiro candeeiro: o significado do nome é “amor fraternal”. Cristo se dirige à Igreja como aquele que possui as chaves e que tem aberto uma porta. Apesar da pouca força, era uma igreja fiel, e Cristo não deixaria de recompensá-la: “Porque guardaste, eu te guardarei” (Ap 3.10). Ou seja, ser fiel é aguentar as ofensas do mundo. Eles já possuíam uma coroa, só precisavam conservá-la. Cristo promete uma recompensa quádrupla. Coluna no Santuário: permanência (Sl 27.4). Gravar o nome de Deus: símbolo de propriedade. Gravar o nome da nova Jerusalém: cidadania. Gravar o novo nome de Cristo: o poder de Cristo que o mundo não conhece. Laodicéia é a mais criticada das Igrejas (Ap 3.14-22). A cidade era um centro bancário e também produzia artigos têxteis (LADD, p. 1980, p. 50). Era famosa por produzir um tipo especial de colírio. Além disso, possuía uma estância de água mineral morna que vinha de fontes próximas da cidade. Não pode haver repreensão maior do que Cristo dizer que preferia uma igreja mais fria. O povo que se achava rico, não precisava de nada, mas na verdade, não tinha nada. Mornidão significa sem iniciativa, indiferença, despreocupação. Mas, apesar de tudo, Cristo ainda oferece uma chance para a igreja. Cristo quer entrar na Igreja, pois as atitudes dos cristãos o estavam deixando de fora, impossibilitando a comunhão verdadeira. Se Filadélfia era a igreja ideal, Laodicéia era o antítipo, a igreja corrupta que havia cedido às pressões e atrativos do mundo. O seguinte quadro comparativo ajuda a entender a estrutura planejada das cartas: 129 13 - Quadro comparativo entre as sete igrejas Igreja Elogio Crítica Recomendação Castigo Recompensa Éfeso Perseverança, Abandono do Arrependimento Candeeiro Alimentar–se da integridade primeiro e retorno ao removido. árvore da vida. doutrinária e amor primeiro amor. moral Esmirna Fidelidade Nenhuma. Não temer o Nenhuma Coroa da vida, apesar da sofrimento que livramento da pobreza. virá. segunda morte. Pérgamo Fidelidade e Impureza Arrependimento Enfrentar a Maná martírio doutrinária e espada que escondido, novo moral sai da boca nome numa de Cristo pedrinha. Tiatira Um grupo fiel e Tolerância a Aos infiéis: Morte. Autoridade abundância de uma falsa tarde demais. sobre as nações. boas obras. profetiza, um Aos fiéis: Estrela da grupo infiel. permanecer. manhã Sardes Poucas pessoas Aparência de Arrependimento. Enfrentar o Vestes brancas, fiéis. alguém vivo, Cristo. garantia do mas que está nome no livro morto. da vida. Filadélfia Fraca, mas fiel. Nenhuma Conservar o que Nenhuma. Quatro grandes tem. recompensas. Laodicéia Nenhum Mornidão Arrependimento, Disciplina. Cear com Jesus. espiritual, humilhação, Assentar no orgulho. abrir a porta trono dele. para Jesus Outra maneira de ver essa semelhança é, como aponta Kistemaker, perceber que na estrutura das sete cartas há sete partes (2004, p. 21). 1. A destinação a cada uma das sete igrejas da Ásia menor (2.1, 8, 12, 18; 3.1, 7, 14). 2. Um aspecto da aparição do Senhor a João em Patmos (2.1, 8, 12, 18; 3.1, 7, 14). 3. Uma avaliação da saúde espiritual de cada igreja (2.2, 3, 9, 13, 19; 3.1, 2, 8, 15). 130 4. Palavras de elogio ou reprovação (2,4–6, 9, 14, 15, 20; 3.1–4, 8–10, 16, 17). 5. Palavras de exortação diante das situações (2,5, 10, 16, 21–25; 3.2, 3, 11, 18– 20). 6. Ordem para que ouçam o que o Espírito diz (2.7, 11, 17, 29; 3.6, 13, 22). 7. Promessas aos vencedores nas dificuldades (2.7, 11, 17, 26–28; 3.5, 12, 21). Nas quatro últimas cartas, os itens 6 e 7 são invertidos, primeiramente são feitas as promessas e depois a referência para ouvir o que diz o Espírito (KISTEMAKER, 2004, p. 22). De algum modo, portanto, o autor estabeleceu uma divisão 3 X 4 na primeira seção. KISTEMAKER (2004, p. 22) nota ainda o cuidado do autor em repetir cada uma das descrições feitas no capítulo a respeito de Jesus para cada uma das igrejas. Na tabela abaixo, seguimos a ordem das descrições no primeiro capítulo. 14 - Quadro comparativo entre as sete igrejas Descrição de Cristo No primeiro capítulo Nas cartas Sete espíritos e sete estrelas 1.4, 16 3.1 (Sardes) Testemunha fiel 1.5 3.14 (Laodicéia) Castiçais de ouro 1.13 2.1 (Éfeso) Olhos como fogo, pés bronze 1.14–15 2.18 (Tiatira) Espada de dois gumes 1.16 2.12 (Pérgamo) O primeiro e o último 1.17–18 2.8 (Esmirna) O detentor das chaves 1.18 3.7 (Filadélfia) Isso aponta para a unidade literária desses capítulos. Além disso, diversas imagens evocadas pelas cartas só se aclaram à luz dos desenvolvimentos posteriores do Apocalipse (PRIGENT, 1993, p. 44–45). A árvore da vida citada em 2.7 é explicada em 22.2,14. A segunda morte citada em 2.11 é retomada em 21.8. O novo nome que ninguém conhece de 2.17 será explicado em 19.12. A Nova Jerusalém mencionada em 3.12 é descrita em 21.2ss. Todas essas inter-relações são fortes indícios da unidade literária do Apocalipse como um todo, da cuidadosa construção de cada parte do livro, e do acúmulo de significados que paulatinamente vai se estabelecendo a partir das recapitulações. A primeira seção descrita nos capítulos 1-3, portanto, localiza o começo da história na terra, o relacionamento de Cristo com as sete igrejas, estabelece o padrão sétuplo do livro, e antecipa diversos temas a serem desenvolvidos posteriormente. Esses temas 131 aparecem sem muita conexão nessa parte, mas o leitor atento perceberá que eles vão adquirir sentidos específicos ao longo da narrativa. A segunda seção recapituladora: O Cordeiro e os sete selos (4-7) Após estabelecer a base da história do livro e de enviar recados individuais para cada uma das sete igrejas, inicia-se a visão propriamente dita: Depois destas coisas, olhei, e eis não somente uma porta aberta no céu, como também a primeira voz que ouvi, como de trombeta ao falar comigo, dizendo: Sobe para aqui, e te mostrarei o que deve acontecer depois destas coisas (Ap 4.1). Essa “subida ao céu” é uma característica de alguns apocalipses como o de Enoque (14–15) e do Testamento de Levi (5). Levi vê abrir-se diante dele a porta que permite passar do segundo ao terceiro céu, onde Deus está sentado em seu trono (PRIGENT, 1993, p. 97). A própria literatura bíblica (não apocalíptica) tem alguns textos correlatos. Isaías disse que se achou na presença de Deus e o viu assentado num alto e sublime trono (Is 6.1ss). E o Apóstolo Paulo disse ter subido ao terceiro céu e visto coisas inefáveis que não lhe foram permitidas descrever (2Co 12.2-4). João, ao contrário, subiu e viu coisas que deveria descrever. O convite para subir e atravessar a porta aberta no céu demonstra que a visão se dá primordialmente no céu. A igreja está no mundo e sempre sofrerá oposição do inimigo (Satanás). Há coisas que ela tem que sofrer a fim de se purificar, entretanto, após ter visto a situação das Igrejas oprimidas pelos adversários, por heresias e divisões internas, João foi convidado para subir até o céu, onde veria outra realidade. Patmos era uma ilha prisão. De lá não havia “saídas” para lugar algum, mas João viu uma porta aberta que lhe dava acesso ao mais fantástico de todos os lugares existentes. Junto com a visão da porta aberta, ele recebeu um convite para subir e adentrar aquela esfera celeste. É bem evidente que tudo isto aconteceu “em espírito”, ou seja, João não foi levado fisicamente para o céu (Ap 4.2). A ideia é que Deus levou o profeta para ver algo que poderia devolver a esperança para ele e para toda a atribulada Igreja daqueles dias (Ap 4.1-11). A primeira imagem que João viu no céu, quando lá chegou em espírito, foi a do trono de Deus (Ap 4.2). O trono era radiante, porém ainda mais radiante era aquele que se achava assentado no trono. Em Patmos, o único trono reconhecido era o de César, que ditava os rumos do Império, e todos os habitantes sofriam as influências de suas decisões, 132 motivadas por vaidade ou ganância. O trono de César representava o maior poder que existia até então e a Igreja era impotente diante dele. Ao destacar o trono celeste, o objetivo da visão era minimizar o trono de César. Ao redor do trono celeste, havia algo como círculos sobrepostos (Ap 4.3-11). No centro a cor branca do jaspe, seria uma referência à santidade e a pureza de Deus. O trono de Deus é um trono de justiça. A próxima cor, o vermelho do sardônio, significaria, provavelmente, o sangue que purifica o pecado. Depois o arco-íris, e sua eterna evocação do alívio após a tempestade, e da estiagem após o dilúvio (Gn 9.8-17). Depois um círculo de quatro seres viventes, cheios de olhos, que podem ser criaturas angelicais celestes e que embora estejam mais próximas de Deus, são descritas como criaturas terrenas. Quatro é o número da criação. Ele viu também sete tochas que representavam o Espírito Santo. Ainda havia mais um círculo de 24 tronos, onde 24 anciãos se assentavam. Eram reis celestes, que representariam a totalidade da Igreja do Antigo (12 patriarcas) e do Novo Testamento (12 apóstolos). O Mar de Vidro que se estendia após os tronos, lembrava o lavatório do tabernáculo que era usado para purificação. E depois havia anjos incontáveis. Embora não seja possível decifrar o significado de todas estas imagens celestes, o sentido que elas produziram não é difícil de se perceber: o trono celeste era incomparável. Roma era insignificante diante de tal poder. E não podemos deixar de destacar que há sete círculos em redor do trono. Na sequência da visão, João viu um livro com sete selos na mão direita daquele que se assentava no trono (Ap 5.1-3). Imediatamente ele percebeu a importância daquele livro, pois todas as atenções estavam voltadas para ele. Isto ficou ainda mais evidente quando um anjo começou a perguntar sobre quem era digno de abrir o livro e desatar os selos. Não se podia achar uma única pessoa que fosse digna. E as esperanças de João novamente se diluíram: “E eu chorava muito, porque ninguém foi achado digno de abrir o livro, nem mesmo de olhar para ele” (Ap 5.4). O que representava este livro? No Apocalipse, como um todo, o livro selado representa os desígnios de Deus para este mundo; a consumação do plano da redenção e a instauração do reino definitivo de Deus entre os homens. Se o livro não for aberto, não haverá autoridade para a igreja, nem juízos sobre o mundo perseguidor; não haverá o supremo triunfo de Cristo, nem os novos céus e a nova terra. As esperanças de João reascenderam-se quando um dos anciãos o consolou: “Não chores; eis que o Leão da tribo de Judá, a Raiz de Davi, venceu para abrir o livro e os seus sete selos” (Ap 5.5). Quando João voltou o olhar para o trono, não viu um Leão, mas um Cordeiro. Note-se que 133 o Cordeiro tem sete chifres e sete olhos (Ap 5.6). Ali estava o Cordeiro-Leão, o Homem- Deus, que tinha a dignidade suficiente para abrir o livro e divulgar os supremos propósitos de Deus para este mundo. O Cordeiro saiu da região circular ao trono e se dirigiu ao próprio trono. Aquele foi o momento da coroação do Cordeiro como Rei do Universo (Mt 28.18) (HENDRIKSEN, 1987, p. 113). O que toda essa cena significava para João e seus leitores? Primeiramente devemos lembrar que a cena do Cordeiro era muito sugestiva. Desde o Antigo Testamento, o cordeiro era o animal sacrificado pelos pecados do povo. Quando Jesus se manifestou a Israel, muitos esperavam que ele fosse um libertador político-militar. Os discípulos compartilhavam desta esperança. Mas quando o Mestre morreu dependurado num madeiro, tendo se entregado sem qualquer resistência, as expectativas dos discípulos frustraram-se. No Calvário, João conheceu o caráter de Jesus como Cordeiro de Deus, agora no céu, viu que o Cordeiro não era tão inofensivo assim. Na verdade, o Cordeiro que foi morto, recebeu a responsabilidade de ditar todos os eventos do mundo até a consumação de todas as coisas. Até mesmo o sofrimento e a dor não fugiam ao controle de Deus. Nenhum evento sobreviria à Igreja sem a autorização deste amoroso pastor. Aquele que derramou o sangue pela Igreja é o que está no controle de tudo, e, portanto, a Igreja podia ter esperança. Assim que o Cordeiro tomou o Livro, o céu eclodiu em adoração que foi se estendendo até atingir todos os círculos sobrepostos ao redor do trono (Ap 5.8-14). Os primeiros a se prostrarem em adoração foram os que estavam mais próximos: os quatro seres viventes e os vinte e quatro anciãos. O cântico deles enalteceu a obra do Cordeiro, que ao morrer, resgatou, para Deus, as pessoas de todas as nações, constituindo-as em reis e sacerdotes. A base do governo e do louvor é a expiação. João vê o louvor celestial estendendo-se, contagiando cada vez mais seres celestes e terrenos. Ele descreve: vi e ouvi uma voz de muitos anjos ao redor do trono, dos seres viventes e dos anciãos, cujo número era de milhões de milhões e milhares de milhares, proclamando em grande voz: Digno é o Cordeiro que foi morto de receber o poder, e riqueza, e sabedoria, e força, e honra, e glória, e louvor (Ap 5.11-12). Por fim, este louvor contagia toda a criação: então, ouvi que toda criatura que há no céu e sobre a terra, debaixo da terra e sobre o mar, e tudo o que neles há, estava dizendo: Àquele que está sentado no trono e ao Cordeiro, seja o louvor, e a honra, e a glória, e o domínio pelos séculos dos séculos (Ap 5.13). 134 Dos quatro seres viventes até as criaturas incontáveis, a evolução dos números na cena mostra a grandeza do louvor celeste. De todos os lados, o louvor converge para o centro onde estão o Pai e o Filho, o Deus criador e redentor (HENDRIKSEN, 1987, p. 115). É o louvor a Deus por sua soberania, e porque os propósitos divinos para a criação e para a Igreja finalmente se cumprirão. O mal será extirpado da criação de Deus. Os salvos estarão livres de todas as suas tribulações. O propósito de Deus alcançará a plenitude, e isto significará um novo tempo de paz e prosperidade para o seu povo, e o cumprimento de tudo o que foi dito no Antigo Testamento. Quando o Cordeiro, pelo direito conquistado, começou a abrir os sete selos do livro, deu-se o início do desenrolar da história do mundo segundo a vontade de Deus (Ap 6). Essa história irá se repetir nas várias seções por vir. Ao abrir o primeiro selo, João vê um cavaleiro com um cavalo branco (Ap 6.1-2). Um conquistador. Sua arma é um arco. A primeira impressão que surge é que este cavaleiro é o próprio Cristo. Há uma descrição semelhante de Cristo no capítulo 19, mas sua arma é a espada. Além disso, foi o próprio Cristo quem abriu o selo, e a vitória final de Cristo não ocorre no início da história e sim no fim. Talvez, a melhor interpretação para o cavaleiro branco é a que se refere ao Evangelho de Cristo, ou seja, à primeira vinda de Jesus e a ordem para pregar o Evangelho, capacitado pelo Espírito, a toda criatura (interpretação de VITORINO, 1885, p. 351). Os argumentos para essa interpretação são: o primeiro cavaleiro é o único que não traz nenhum mal. O arco é uma arma atribuída a Deus (Cf. Hc 3.9). O Cordeiro que foi morto, que abriu o selo é o mesmo que disse: “Toda a autoridade me foi dada nos céus e na terra, ide e pregai o Evangelho a toda criatura” (Mt 28.18-20). O cavalo já saiu vitorioso. Dessa forma, o Evangelho se espalha pelo mundo. Se essa interpretação está correta, o primeiro selo começa a contar a história a partir do começo da pregação do Evangelho em todo o mundo. É a descrição simbólica de que o Cordeiro de Deus venceu a batalha contra a morte, expiou os pecados de seu povo, derrotou Satanás, e, agora, entronizado comanda a pregação da salvação a todas as nações. O cavalo vermelho do segundo selo vai tirar a paz da terra (Ap 6.3-4). Ele possui uma grande espada. Aqui estão descritos os conflitos entre os povos. Guerras e turbulências sempre estiveram presentes no caminho dos cristãos e se intensificarão no fim. No terceiro selo, há um cavalo preto que tem uma balança na mão (Ap 6.5-6). Ele representa a fome, pois os produtos ficaram muito caros. Um denário (salário de um dia de um trabalhador comum) poderia comprar 13 ou 14 vezes mais do que se tornou possível 135 após a passagem do cavaleiro. Ele representa, portanto, a fome. Vinho e azeite não devem ser danificados. É interessante que o cavaleiro exige isso aparentemente das pessoas, como se fosse um alerta contra a revolta social. São produtos de luxo, ou seja, alimento dos ricos. Há um destaque aqui, portanto, para a desigualdade social muito presente nos dias do Apocalipse, e ao mesmo tempo, uma chamada para que os cristãos não se coloquem contra a ordem social. Não à resistência, sim à resignação é um tema constante do livro. O cavalo amarelo do quarto selo chama-se Morte (Ap 6.7-8). Mortes por violência, fome, doenças e feras. O inferno (Hades) passa para coletar as vítimas. As pragas do quarto cavaleiro abatem-se tanto sobre crentes como sobre incrédulos. Três desses cavalos representam, claramente, o sofrimento infligido sobre o mundo e que muitas vezes atinge a própria Igreja. O efeito da visão demonstra que Deus é quem liberou a atividade dos cavaleiros na terra. Apesar dessas destruições serem incompreensíveis para os homens, são necessárias para que a consumação pretendida aconteça. No quinto selo, João viu as almas dos mortos (Ap 6.9-11). A situação dos mortos é um dos temas recorrentes nas várias seções. Muitos crentes das Igrejas para quem João escreveu haviam se convertido com o primeiro cavaleiro e mortos pelos três seguintes (HENDRIKSEN, 1987, p. 131). João vê as almas dos mortos. Eles estão na presença de Deus. Eles clamam, não por vingança em si, mas por justiça. Haviam sido mortos pelos que “habitam sobre a terra”. Esta frase refere-se aos que vivem em harmonia com o sistema mundano. A resposta divina é: “Esperem mais um pouco”. Ainda há muitos que precisam morrer. Quando o número exato se completar, virá o fim. Isto é ao mesmo tempo um consolo e um alerta para aqueles cristãos perseguidos, como se João dissesse que muitos realmente ainda teriam que morrer por Cristo. Ao mesmo tempo, João explica que aqueles que morreram por causa de Cristo estão descansando e que, um dia, eles serão vingados. O sexto selo descreve o juízo de Deus sobre os homens (Ap 6.12-17). O terror daquele dia cairá apenas sobre os ímpios. O que mais se destaca neste selo é o número 6. São seis objetos de terror: 1) Terremoto; 2) Sol escuro; 3) Lua cor de sangue; 4) Estrelas caem do céu; 5) O céu enrola-se como um pedaço de papel; 6) Montes e ilhas são movidos. O terror cairá sobre seis classes distintas: 1) Os reis da terra (ditadores, políticos, etc.); 2) Os grandes (príncipes, os que seguem os reis em autoridade); 3) Os comandantes (generais, militares); 4) Os ricos (líderes do comércio) 5) Os poderosos (homens fortes que exercem influência em qualquer reino); 6) Escravos e Livres (tanto os que ainda são escravos, quanto os que foram libertados, mas que ocupavam a mesma posição social naqueles dias). 136 Todos fugirão de algo terrível. Já não haverá diferenças entre eles, pois estarão apavorados. Desejarão morrer, mas não conseguirão. Não haverá onde se esconder. Será o Dia da Ira, pois o tempo da graça passou. Portanto, os seis selos narram resumidamente a história desde a morte-ressurreição- ascensão de Cristo e sua ordem para pregar o Evangelho a todas as nações até o advento do grande juízo que destruirá os ímpios. É, evidentemente, uma narração condensada. Uma importante informação é dada a respeito da situação dos mortos em Cristo: estão descansando. Na sequência se espera a abertura do sétimo selo, mas há um atraso (Ap 7), João vê quatro anjos nos quatro cantos da terra. É ordenado a eles que não danifiquem a terra até que os escolhidos de Deus sejam selados. Isso quer dizer que as pragas terríveis do julgamento divino não virão até que todos os escolhidos sejam marcados com o selo do Deus vivo. João ouviu o número dos que foram selados: 144.000. Em seguida, João vê outra multidão, incontável, de todas as nações e tribos e línguas. Foi explicado a João que aquela multidão vinha da grande tribulação e havia lavado suas vestiduras no sangue do cordeiro (v. 14). Por que João descreve duas multidões? Possivelmente para mostrar a salvação em ambos os aspectos, tanto do Velho quanto do Novo Testamento. A felicidade eterna dos salvos é evocada (Ap 7.13-17). Finalmente, em Apocalipse 8.1, há a abertura do sétimo selo. Era de se esperar algo estrondoso, em comparação com as coisas que aconteceram na abertura dos selos anteriores, mas surpreendentemente, a descrição é a seguinte: “Quando o Cordeiro abriu o sétimo selo, houve silêncio no céu cerca de meia hora” (Ap 8.1). É como se a consumação fosse retardada. Mas, em seguida, o texto diz: “Então, vi os sete anjos que se acham em pé diante de Deus, e lhes foram dadas sete trombetas” (Ap 8.2). O sétimo selo recomeça a contagem, ou seja, a das sete trombetas. Elas vão descrever outra vez, porém sob uma nova ótica, as destruições já descritas nos seis selos. Até porque, no sexto selo, todos os homens foram mortos (reis, comandantes, ricos, poderosos, todo escravo e todo livre), e claramente se anunciou a chegada do dia da Ira de Deus e do Cordeiro (Ap 7.15-17). As sete trombetas da terceira seção acrescentarão novos detalhes ao que já foi exposto nos seis selos, ou melhor, não há uma continuação cronológica e sim uma nova descrição dos mesmos eventos. 137 A terceira seção recapituladora: As sete trombetas (8-11) O silêncio na abertura do sétimo selo expõe o suspense que se originou no céu antes da liberação dos eventos finais. As orações dos santos são levadas até a presença de Deus, purificadas pelo incenso que simboliza a intercessão do Espírito Santo e de Cristo (Ap 8.3- 6). O significado desta visão é que os crentes perseguidos oram e Deus ouve e responde. O incensário atirado a terra é a prova de que Deus ouve as orações, e os juízos sobre a terra são a resposta. A primeira trombeta soa e a terça parte dos elementos terrenos é destruída (Ap 8.7). A segunda trombeta anuncia que o juízo de Deus é lançado sobre o mar e a terça parte do mar é comprometida pela terrível praga (Ap 8.8-9). Ao soar a terceira trombeta, a praga cai sobre os rios e as fontes de água e um terço delas se tornam contaminadas. O absinto é um material venenoso e amargo. As pessoas morrem por causa da água contaminada (Ap 8.10- 11). Na quarta trombeta, a praga atinge os astros celestes que, de alguma forma, são atingidos para advertir aos homens dos juízos de Deus (Ap 8.12). Aqui há uma indicação de que as trombetas descrevem os acontecimentos antes do sexto selo, pois no sexto selo, o Sol e a Lua já foram completamente escurecidos. Na sequência, João vê uma águia voando (Ap 8.13). Ela predisse três “ais” contra os homens, pois ainda há três trombetas e elas serão piores do que as quatro primeiras. Até aqui, ímpios e crentes sofrem juntamente, a partir daqui, apenas os ímpios. Na quinta trombeta, uma estrela caiu do céu (Ap 9.1), seu nome Abadon, ou Apolion significa “O Destruidor” (9.11). Essa é uma provável referência a Satanás, a estrela que caiu do céu (Is 14.12; Lc 10.18). Há um poço e o Destruidor recebeu a chave. Ele abre o Abismo e saem incontáveis gafanhotos (Ap 9.3-12), que parecem demônios usados por Deus para castigar os ímpios. A aparência deles é assustadora. O tempo da praga é de cinco meses. Em geral, os gafanhotos atacavam em alguns períodos da estação quente na Palestina, mas aqui é dito que esses gafanhotos permanecem durante os cinco meses inteiros (LADD, 1980, p. 98). Passou o primeiro “ai”. A sexta trombeta fala sobre guerras (Ap 9.13-21). Há quatro anjos maus presos junto ao rio Eufrates. O Eufrates é uma região da Babilônia e da Assíria, duas nações inimigas do povo de Deus e temidas até pelos poderosos romanos. Os anjos parecem ser demônios que esperam quando serão soltos para fazer mal aos homens da terra. Eles incitarão os exércitos para a batalha. Um terço dos homens morrerá e os demais, ainda 138 assim, não se arrependerão de suas obras ímpias, continuarão idólatras, assassinos, feiticeiros, prostitutos e ladrões. Esses seres terríveis devem matar um terço dos homens (o quarto cavaleiro matou um quarto, Ap 6.8). Novamente os homens desejam morrer, mas não conseguem, como no sexto selo (Ap 6.16 – Ap 9.20). Portanto, até aqui, podemos dizer que João apenas recapitulou, na terceira seção, as destruições anunciadas na segunda seção, especialmente o juízo de Deus sobre os homens ímpios. Houve progresso, entretanto, ao demonstrar os instrumentos divinos para essas punições. Entre a sexta e a sétima trombeta há novo um interlúdio (Ap 10), como houve entre o sexto e o sétimo selo. Esse interlúdio diz respeito ao testemunho que a Igreja deve dar durante o tempo de provação. João vê um anjo com um pé no meio do mar e o outro sobre a terra. É um anjo poderosíssimo, anunciando que não haverá demora em relação aos novos acontecimentos. As vozes dos sete trovões não são, contudo, descritas. Destaca-se outra vez o número sete. As sete vozes dos trovões indicam que, concomitantemente, outros fatos estão acontecendo segundo a vontade de Deus e ainda não são conhecidos. O livrinho que João comeu representa o Evangelho. Ele é doce ao paladar, pois o Evangelho é em si mesmo doce e glorioso, mas sua proclamação é sempre seguida de amarga perseguição (HENDRIKSEN, 1987, p. 153). A mensagem é clara: o cristão não deve experimentar apenas a doçura do Evangelho, mas também o sofrimento. Deus destruirá os ímpios, mas antes os crentes terão que testemunhar, e isso causará amargura. Em seguida, em expectativa da última trombeta, foi dito a João que medisse o santuário (Ap 11.1-2). A intenção é separar o sagrado do profano. Ele recebeu a ordem de não medir a parte externa, pois esta não pertence a Deus, nem ao seu povo, mas aos ímpios que a dominam por quarenta e dois meses. Muitas vezes, essa contagem de tempo será repetida, como 1260 dias, três anos e meio, ou como um tempo, dois tempos e metade de um tempo. Tal repetição indica, provavelmente, o tempo de espera entre a primeira e a segunda vinda de Cristo, ou ainda, o tempo específico de tribulação e perseguição. Durante todo o tempo da angústia Deus mantém duas testemunhas no mundo (Ap 11.3-12). Elas profetizam e estão vestidas com pano de saco. Quem são as duas testemunhas? Provavelmente representem a igreja. O candeeiro já foi aplicado à igreja em Apocalipse 1.20. Mas por que o número 2? Talvez porque os discípulos deveriam ir de dois em dois (Lc 10.1); ou seria uma referência ao Velho e ao Novo Testamento? De qualquer forma, essas testemunhas são invencíveis e intocáveis até o surgimento da Besta (primeira 139 referência à besta). Elas têm o poder, como Elias, de orar e fazer os céus se fecharem. Mas, a Besta que vai se levantar destruirá estas testemunhas. As pessoas se alegrarão por causa desta derrota. Sodoma, Egito, Jerusalém, representam o mundo em sua perversão, escravidão e perseguição (HENDRIKSEN, 1987, p 159). Quando tudo parecia que estava perdido, um espírito de vida, da parte de Deus, eleva novamente as testemunhas (Igreja). Seu testemunho triunfou apesar da morte, mas é muito tarde para arrependimento dos homens. Então, vem o anúncio do terceiro “ai” que será a sétima trombeta (Ap 11.14). Na sétima trombeta, há uma nova referência à consumação (Ap 11.15-19). Porém, mais uma vez o fim é apenas anunciado. É dito que o reino se tornou definitivamente do Senhor e de Cristo, que os redimidos se prostram e adoram a Deus, que os mortos são julgados, e o galardão foi dado aos salvos. A visão da Arca da Aliança fala da plena comunhão baseada no sangue de Cristo que os redimidos desfrutarão por todos os séculos na presença de Deus. A Aliança de Deus é plenamente revelada aos seus filhos, mas ao mesmo tempo os trovões, os relâmpagos e a saraiva falam da ira que permanece sobre os ímpios. Bauckham (1993b, p. 12) notou que entre o sexto e o sétimo selo (7.1–17) e entre a sexta e a sétima trombeta (10.1–11.13) as intercalações aparentemente não têm ligações literárias entre si. Entretanto, são colocadas em paralelo. São duas longas intercalações que têm a função de atrasar o sétimo ato (sétimo selo, sétima trombeta). A sétima parte é ligada às anteriores e à visão do trono de Deus, através de um procedimento literário composto de uma fórmula (4.5, 9.5, 11.19, 16.18.21) que é uma referência à manifestação divina no Sinai (BAUCKHAM, 1993b, p. 08). Por meio das três primeiras seções, João conseguiu pintar um quadro interessante para seus leitores. Na primeira seção, o quadro apresenta Cristo no meio das sete igrejas vendo todas as coisas que acontecem. As igrejas são mais ou menos fiéis, e há algumas infiéis, e Deus punirá e recompensará a cada uma. Há perseguições e provações, mas o povo de Deus terá que suportar até o momento em que Cristo executar seu juízo sobre o mundo, para então receber a recompensa. Na segunda seção, o quadro se amplia e se organiza com a revelação de que o Cordeiro (Jesus) foi entronizado nos céus, após sua morte, ressurreição e ascensão. Ele tomou o livro dos decretos divinos da mão direita de Deus e começou a abrir os sete selos. Assim, ordenou que o Evangelho fosse pregado vitoriosamente em todo o mundo, mas também liberou diversas calamidades. Permite que as forças do mal persigam a igreja e 140 muitos crentes sejam mortos. Suas almas sobem ao céu e lá ficam aguardando a justiça de Deus. Finalmente chega o dia quando todos os ímpios são destruídos, e os salvos desfrutam da presença de Deus. Na terceira seção, o quadro se reforça com a descrição das calamidades das sete trombetas e da destruição dos ímpios que são exemplificadas, e pela primeira vez se anuncia a chegada da besta. Enquanto isso, a igreja precisa testemunhar, e as duas testemunhas cumprem sua missão, mas ao final serão mortas. As duas testemunhas, contudo, ressuscitam e sobem ao céu. Assim, há um futuro de destruição reservado para a igreja, e também, um resgate quando os crentes sobem ao céu. Ao final, Deus destruirá todos os ímpios, como já havia ficado claro na segunda seção e pré-anunciado na primeira. A seguir, veremos como esse quadro se ampliará e se completará nas próximas quatro seções. A quarta seção recapituladora: O dragão e as sete vozes (12-14) A partir do capítulo 12, começa uma nova série de recapitulações, com a introdução de mais quatro seções. Três fazem parte da terceira divisão maior e a quarta faz parte da última divisão. Nesse sentido, a sequência das sete seções dentro do macroenredo é: 1-2-3- 1. O estilo descritivo do capítulo 12, com seus acréscimos de detalhes em relação à narrativa, é um marco divisor da obra. Até o fim do capítulo 11, João descreveu o conflito entre os homens, ou melhor, entre crentes e descrentes. Embora a visão seja no céu, os eventos remetiam a luta da Igreja no mundo e contra o mundo. No capítulo 12, dá-se a revelação do que está por detrás desta luta, ou seja, o ataque do dragão contra o Filho Varão, ou de Satanás contra Cristo. Portanto, o conflito entre a Igreja e o mundo é a manifestação visível da guerra entre Cristo e Satanás, pois “a pressuposição dos apocalipses do Antigo e Novo Testamento é que a desordem e pecado do mundo é somente uma parte da desordem e pecado que afeta o mundo espiritual” (CHARLES, 1920, Vol 1, p. 298). João vê uma mulher gloriosa vestida de sol, tendo a lua sob seus pés e sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas. A mulher está grávida e vai dar a luz (Ap 12.1-2). Subitamente, João vê um dragão poderoso e feroz que tenta devorar o Filho (Ap 12.3-4). Ele tem coroas usurpadas e arrasta um terço das estrelas do céu. Seus dez chifres remetem ao número do maligno, mas o fato de ter sete cabeças e sete diademas sugere o que há de 141 imitação do divino nessa criatura. A espera do dragão para devorar o filho da mulher, provavelmente, seja uma referência às diversas tentativas de Satanás de impedir com que Jesus viesse ao mundo. Sendo a última tentativa, a matança dos inocentes por Herodes em Belém. O dragão fracassou, o menino foi arrebatado de suas garras e a mulher fugiu para o deserto (Ap 12.5-6). Em seguida, João descreve uma batalha no céu (Ap 12.7-12). Dois exércitos lutam. O bem vence e o mal perde seu lugar no céu. É provável que a luta seja uma referência à Ascensão de Jesus, pois a batalha se deu quando o menino foi arrebatado para o trono de Deus. Um assunto importante do Novo Testamento é que a coroação de Jesus pôs fim ao domínio de Satanás. Quando o dragão perdeu seu lugar de Acusador, por causa da obra de Cristo, só lhe restou perseguir a Igreja. Por isso o texto diz: “Festejai, ó céus, e vós, os que neles habitais. Ai da terra e do mar, pois o diabo desceu até vós, cheio de grande cólera, sabendo que pouco tempo lhe resta” (Ap 12.12). Então, essa é a cena que recapitula a entronização de Cristo no céu, já descrita na segunda seção (capítulos 4-5 do Apocalipse), quando Cristo tomou o livro da mão direita de Deus e todas as criaturas celestes se prostraram diante dele. A perseguição do dragão é frustrada pela proteção divina (Ap 12.13-17). A mulher, que representa a Igreja, é mantida longe do alcance do dragão, sendo sustentada por Deus, como Israel o foi no deserto com o maná (Palavra de Deus) por 1260 dias (referência à dispensação cristã). Mas já foi dito que, no tempo final, a igreja na terra será entregue nas mãos do dragão. De várias formas o dragão tenta perseguir a Igreja. Como não consegue seu intento de evitar a vinda do Filho, passa a perseguir os descendentes da mulher, ou seja, os crentes, individualmente. Para isto, ele busca ajuda, chamando a besta do mar e a besta da terra (Ap 13). O dragão se coloca em pé sobre a areia do mar e chama uma besta (Ap 13.1-10). Lentamente, vai surgindo do mar um monstro horrível. Primeiro aparecem os chifres, depois o corpo todo. Parece-se com um leopardo, mas tem pés de urso e boca de leão. Estes são os três animais vistos por Daniel no capítulo 7. A besta é o quarto animal que Daniel descreve como sendo terrível. Segundo Daniel, os quatro animais representam quatro impérios mundiais (Is 17.12; Ap 17.15). A primeira besta do Apocalipse, portanto, simboliza o poder político, ou seja, Roma no sentido militar e econômico. O tempo de perseguição da besta é de quarenta e dois meses. A Igreja teve que suportar com paciência esta perseguição. 142 A segunda besta, que surge da terra, é semelhante ao Cordeiro de Deus (Ap 13.11- 18), mas fala como o dragão. Ela simboliza os falsos profetas a serviço de Satanás, que aparecem disfarçados de ovelhas, mas que são lobos vorazes (Mt 7.15; Mt 24.11). A segunda besta é a falsa religião que, de mãos dadas com o Estado, nos dias de João, impedia as pessoas de adorar ao Deus verdadeiro. As duas bestas trabalham em perfeita cooperação. Nos dias de João, o sacerdote pagão defendia e apoiava o poder secular do Estado em sua perseguição aos cristãos (HENDRIKSEN, 1987, p. 179-180). Os sacerdotes defendiam que “César era Senhor”, e recorriam até mesmo a embustes e pseudomilagres para enganar as pessoas, a fim de que adorassem a estátua do Imperador. Esta besta impôs uma marca sobre seus adoradores: o conhecido 666. Assim como os crentes foram selados com a marca de Deus (7.3), os ímpios foram marcados pelo diabo. Essa marca é um sinal de propriedade, e todas as vezes que aparece no Apocalipse está vinculado à adoração da besta (14.11; 20.4) (HENDRIKSEN, 1987, p. 181). A marca é posta na mão direita e na fronte. A fronte simboliza a mente, o intelecto da pessoa, enquanto que a mão representa a atividade física, a ocupação e o trabalho. Não obstante, toda a perseguição do dragão e das bestas, João vê os 144.000 homens junto ao Cordeiro (Ap 14.1-5). Esse é o número dos crentes que foram redimidos, que não se contaminaram com as mentiras do dragão e das Bestas. Depois disso, sete potentes vozes celestes anunciam salvação aos crentes e juízo aos ímpios (Ap 14.6-16.1). A primeira voz celeste é como voz de muitas águas, como grande trovão, ou como harpistas tangendo harpa, que entoa o cânticos dos redimidos (Ap 14.1-5). Mais uma vez, a salvação é proclamada no início da contagem de sete. A segunda voz celeste, semelhantemente ao primeiro cavaleiro da segunda seção, anuncia o Evangelho (Ap 14.6-7), porém, os homens estão sentados na terra e continuam despreocupados. A terceira voz anuncia a queda da Babilônia (Ap 14.8), introduzida pela primeira vez, mas que será descrita posteriormente. A quarta voz avisa que os adoradores da besta terão um castigo eterno (Ap 14.9-12). É a primeira vez que aparece, no livro, o tormento do inferno como algo definitivo. Os adoradores receberão vinho sem mistura, ou seja, punição absoluta. Já a quinta voz descreve o estado de bem-aventurança dos mortos: “Então, ouvi uma voz do céu, dizendo: Escreve: Bem-aventurados os mortos que, desde agora, morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, para que descansem das suas fadigas, pois as suas obras os acompanham” (Ap 14.13). Como já foi dito, a situação dos mortos é um dos assuntos 143 importantes do Apocalipse. No quinto selo da segunda seção foi dito que eles estavam no céu, esperando o julgamento dos ímpios. Agora, uma bem-aventurança é dada a eles. A sexta voz descreve a colheita (Ap 14.14-16). Aparentemente, o próprio Senhor Jesus recolhe seus escolhidos que são guardados no seu celeiro (Mt 3.12). E, por fim, a sétima voz descreve a vindima (Ap 14.17-20). As uvas serão esmagadas no lagar da ira de Deus. É a destruição de todos os ímpios, a consumação dos indescritíveis flagelos que cairão sobre o mundo perverso. Mais uma vez lembramos que isso já foi descrito no sexto selo da segunda seção, bem como na sexta e sétima trombeta da terceira seção. A quinta seção recapituladora: As sete taças (15-16) O novo ciclo de eventos que se inicia no capítulo 15 reconta toda a história, acrescentando novos detalhes. Enquanto os sete anjos se prepararam para derramar as sete taças que, segundo o autor, consumam a cólera de Deus (Ap 15.1), os redimidos cantam o cântico de Moisés e do Cordeiro (Ap 15.2-4). Esta descrição se parece muito com a dos israelitas depois de atravessarem o Mar Vermelho. Eles cantaram, pois os ímpios haviam sido destruídos. Por isso é o cântico de Moisés. Aquele cântico prefigurava o cântico dos redimidos no céu, dos que entenderam a obra de Jesus na cruz e creram que o sangue purifica dos pecados. E, quando da entronização do Cordeiro no céu, para começar a abrir os selos, também os fiéis cantaram. Em meio às sete potentes vozes celestes, Deus advertiu aos homens que se arrependessem a fim de que fossem poupados da condenação. Não obstante, eles continuaram adorando a besta e se divertindo com as coisas terrenas. Então, chegou a hora dos sete flagelos, que se assemelha à descrição da vindima (14.17-20), ou das trombetas da terceira seção. Os anjos com as taças saíram do santuário e ninguém mais pôde entrar lá; acabou o período de intercessão. Não há mais oportunidade para arrependimento. O Dia da Ira chegou. Quando a nova voz, vinda do santuário ordenou aos sete anjos: “Ide e derramai pela terra as sete taças da cólera de Deus” (Ap 16.1), em resposta, o primeiro anjo derramou sua taça na terra (Ap 16.2). Esse flagelo atinge os portadores da marca da besta com úlceras malignas. 144 O segundo atinge o mar onde morre todo ser vivente (Ap 16.3). Nas seções anteriores apenas partes da terra eram destruídas, mas agora todos os seres viventes morrem. Aqui está um forte elemento intensificador da recapitulação. Certamente o leitor- ouvinte de João perceberia a diferença e isso o faria perguntar a razão da mudança. O terceiro atinge as fontes das águas que se transformam em sangue (Ap 16.4). Um pequeno interlúdio enaltece a justiça de Deus ao derramar esses terríveis flagelos, pois os homens derramaram o sangue de santos e de profetas, portanto, são dignos de toda esta destruição (Ap 16.5-7). Na seção anterior, esse interlúdio foi entre a quarta e a quinta divisão, aqui é entre a terceira e a quarta. E na segunda e terceira, foi entre o sexto e o sétimo ato. Ou seja, em cada nova seção o interlúdio é relatado mais no início da história, causando uma sensação de que “está mais próximo”. Os próximos flagelos se concentram sobre os ímpios, especialmente sobre os adoradores do dragão. O quarto flagelo fez o sol queimar os homens com intenso calor (Ap 16.8-9). E mesmo assim eles não se arrependem. O quinto flagelo atinge o trono da besta (Ap 16.10-11). Os poderosos deste mundo sofrem com o juízo de Deus, mas continuam blasfemando. Esses mesmos poderosos já foram atacados nas seções anteriores, desejando inclusive a morte. O sexto flagelo descreve a batalha do Armagedom (Ap 16.12-16). Essa é a primeira referência a uma batalha final entre as forças do mal e o Cristo. O termo “Armagedom” vem do livro de Juízes capítulos 4 e 5. O povo de Deus era pequeno diante dos inimigos, mas na batalha que ocorreu no monte do Megido, os inimigos de Israel foram derrotados. Portanto, o Armagedom (literalmente: Monte do Megido) é o símbolo de todas as batalhas, onde os crentes oprimidos pelas forças do mal são libertos por uma intervenção sobrenatural divina que esmaga seus inimigos. O Apocalipse prevê uma grande batalha que terminará com a vinda de Cristo. O sexto flagelo secou as águas do rio Eufrates a fim de preparar o caminho para os reis do oriente. Esses reis são aliados da besta. Seus exércitos congregados vão lutar contra Cristo. Que chance eles têm? Segundo o autor, nenhuma, mas ainda assim, na loucura de sua idolatria, se lançam à batalha. Os dois próximos ciclos também evocarão o final em uma grande batalha. O sétimo flagelo, por sua vez, descreve o fim novamente em termos de uma evocação: “Então, derramou o sétimo anjo a sua taça pelo ar, e saiu grande voz do santuário, do lado do trono, dizendo: Feito está!” (Ap 16.17). Relâmpagos, trovões e um 145 terremoto inédito abalam a terra. O império do Anticristo é destruído, e uma saraivada de pedras de mais de trinta quilos cai sobre os homens, que continuam blasfemando contra Deus. No sétimo flagelo, é feita uma breve alusão à destruição de Babilônia que será descrita na próxima recapitulação. A sexta seção recapituladora: Babilônia e as sete visões de julgamento (17-19) Ao longo das recapitulações, foram descritos os vários inimigos de Cristo: o dragão, a besta do mar, e a besta da terra. Há também uma alusão à Babilônia. Neste ciclo de recapitulação, é enfocada a destruição de Babilônia, chamada de a grande meretriz. É possível também aqui ver uma divisão sétupla, embora, seja preciso admitir que esta divisão é mais subjetiva do que as demais. Mesmo que não fosse possível ver nessa seção o padrão exato do número sete, isso não invalidaria a estrutura como um todo. Há padrões de sete distribuídos no texto dessa seção, como a referência aos sete montes, aos sete reis, e às mercadorias de Babilônia. E a maioria dos elementos centrais das recapitulações está presente nessa parte também. De qualquer modo, sete vezes entre os capítulos 17-19, João diz algo como “eu vi” para iniciar a descrição de alguma cena ou a explicação de algum acontecimento, sempre em conexão com a atividade julgadora de Deus sobre os ímpios. A primeira visão é a descrição da própria meretriz: “Transportou-me o anjo, em espírito, a um deserto e vi uma mulher montada numa besta escarlate, besta repleta de nomes de blasfêmia, com sete cabeças e dez chifres” (Ap 17.3). É dito que ela é uma cidade rica e suntuosa, cheia de prazeres e diversões; um grande centro de comércio, de enriquecimento fácil, de artes, de cultura, etc. Babilônia simbolizava o espaço de concentração da luxúria, do vício, dos encantos terrenos. O verso 6 contém a segunda e a terceira descrição do que João “viu”: “Então, vi a mulher embriagada com o sangue dos santos e com o sangue das testemunhas de Jesus; e, quando a vi, admirei-me com grande espanto”. O espanto de João ao ver que a prostituta estava embriagada com o sangue dos mártires é justificável, pois para João e para os leitores do primeiro século, Roma era a cidade assentada sobre sete montes (Ap 17.9); local de prazeres e de diversões para os homens, mas de martírio e sacrifício para os cristãos. Não era incomum que cristãos fossem mortos em arenas em espetáculos públicos. O espanto de João deu margem para a longa explicação do anjo a respeito do significado de Babilônia (Ap 17.7-18). Roma era a prostituta, a Igreja, a noiva. O cálice da prostituta era 146 de ouro, mas a bebida contida nele era pura abominação. Os versos 9-11 (Ap 17) são muito misteriosos. As sete cabeças da besta têm um duplo significado. Em primeiro lugar, são os sete montes onde a meretriz se assenta, ou seja, a cidade de Roma. As cabeças também simbolizam sete reis, dos quais cinco caíram, um vive e outro ainda virá. Quem são estes cinco reis? Seguindo a lógica interpretativa do livro de Daniel, talvez seja uma referência à Babilônia, Medo-Pérsia, Grécia, Egito, Síria. Quem é o rei que ainda vive? Roma. O sétimo é um reino posterior a Roma. O Anticristo é o oitavo rei. Ainda que não possamos entender plenamente essas descrições, o sentido delas pode ser apreendido nas entrelinhas do discurso narrativo: o mal fará de tudo para prevalecer, mas será finalmente destruído; as forças do mal unidas “pelejarão contra o Cordeiro, e o Cordeiro os vencerá, pois é o Senhor dos senhores e o Rei dos reis; vencerão também os chamados, eleitos e fiéis que se acham com ele” (Ap 17.14). A quarta visão é a mais longa da seção (Ap 18.1-19.11). É o anúncio da queda de Babilônia e dos eventos relacionados: depois destas coisas, vi descer do céu outro anjo, que tinha grande autoridade, e a terra se iluminou com a sua glória. Então, exclamou com potente voz, dizendo: Caiu! Caiu a grande Babilônia e se tornou morada de demônios, covil de toda espécie de espírito imundo e esconderijo de todo gênero de ave imunda e detestável (Ap 18.1-2). O povo de Deus deve se retirar dela para não perecer junto (Ap 18.4-8). A descrição dos lamentos dos mercadores da terra diante da queda de Babilônia é dramática e, ao mesmo tempo, irônica: ora, chorarão e se lamentarão sobre ela os reis da terra, que com ela se prostituíram e viveram em luxúria, quando virem a fumaceira do seu incêndio, e, conservando-se de longe, pelo medo do seu tormento, dizem: Ai! Ai! Tu, grande cidade, Babilônia, tu, poderosa cidade! Pois, em uma só hora, chegou o teu juízo (Ap 18.9-10). Há uma descrição detalhada das mercadorias da cidade que se perderam com a destruição. É possível assinalar sete aspectos dessas mercadorias: pedras preciosas (ouro, prata, pedras preciosas, pérolas), roupas finas (linho finíssimo, púrpura, seda, escarlata); objetos de madeira (toda espécie de madeira odorífera, todo gênero de objeto de marfim, toda qualidade de móvel de madeira preciosíssima); materiais rústicos (bronze, ferro e mármore); especiarias (canela de cheiro, especiarias, incenso, unguento, bálsamo); produtos agrícolas (vinho, azeite, flor de farinha, trigo, gado, ovelhas, cavalos, carros); seres humanos (escravos, e até almas humanas). Em Babilônia, vendia-se e negociava-se 147 qualquer coisa para obter vantagens. Por isso, os homens, ao verem os bens materiais destruídos, se desesperaram. A certeza da queda de Babilônia é evocada com as seguintes palavras: “Então, um anjo forte levantou uma pedra como grande pedra de moinho e arrojou-a para dentro do mar, dizendo: Assim, com ímpeto, será arrojada Babilônia, a grande cidade, e nunca jamais será achada” (Ap 18.21). Enquanto os perdidos lamentam, os salvos são orientados a comemorar (Ap 18.20), pois Deus destruirá Babilônia de forma definitiva (Ap 18.21-23). As duas razões da destruição da cidade são mais uma vez lembradas: “pois os teus mercadores foram os grandes da terra, porque todas as nações foram seduzidas pela tua feitiçaria. E nela se achou sangue de profetas, de santos e de todos os que foram mortos sobre a terra” (Ap 18.23-24). Segue-se a descrição da comemoração no céu pela queda de Babilônia: depois destas coisas, ouvi no céu uma como grande voz de numerosa multidão, dizendo: Aleluia! A salvação, e a glória, e o poder são do nosso Deus, porquanto verdadeiros e justos são os seus juízos, pois julgou a grande meretriz que corrompia a terra com a sua prostituição e das mãos dela vingou o sangue dos seus servos (Ap 19.1–2). Com o decreto da queda de Babilônia começa o coro de aleluias (Ap 19.1-10). Em lugar algum da Bíblia se vê um júbilo tão grande, exceto, talvez, na comemoração celeste pela expulsão do dragão no capítulo 12. O coro de aleluias se espalha pelos céus e ecoa na terra. A salvação foi efetuada de forma definitiva. É dito que chegaram as “Bodas do Cordeiro”. Para entender o que significam as “Bodas do Cordeiro” é necessário abordar o sistema judaico de casamento. Segundo Hendriksen (1987, p. 211–213), primeiro tem-se os esponsais, que é o contrato de casamento propriamente dito; o noivo e a noiva são considerados legalmente marido e mulher. Depois, vem o intervalo. Neste período, o noivo paga ao pai da noiva o dote. Então, ocorre a procissão: quando os noivos se preparam vestindo suas melhores vestimentas. O noivo vai até a casa da noiva, recebe-a, e a seguir, a conduz para o novo lar, ou para o lar de seus pais. Por fim, há as bodas que inclui a ceia nupcial. Cristo desposou a igreja, ela é sua noiva e pagou o dote com seu próprio sangue. O intervalo é o período entre a primeira e a segunda vinda. Agora chegaram as bodas, ou seja, o momento do encontro. A quinta visão é a descrição da vinda de Cristo: “Vi o céu aberto, e eis um cavalo branco. O seu cavaleiro se chama Fiel e Verdadeiro e julga e peleja com justiça” (Ap 19.11). Em nenhum dos ciclos de recapitulação, a segunda vinda de Cristo foi descrita em 148 termos tão radiantes (Ap 19.11-16). O tom triunfalista é impressionante. Os céus se abrem, e aquele que desce montado num cavalo branco rouba a cena. Todos os olhos se voltam para ele, pois sua aparência é incrível. Ele possui uma espada e está coroado com incontáveis coroas reais, seu manto está tinto de sangue dos seus inimigos, o seu nome é Verbo de Deus, Rei dos reis e Senhor dos senhores. Seguem-no incontáveis cavaleiros celestiais, anjos poderosíssimos prontos para a Batalha, para o dia da ira do Deus Todo- Poderoso. Os mesmos anjos que expulsaram o dragão do céu, estão ao lado do Cordeiro para expulsar o mal da terra também. Na sexta visão, a descida do cavaleiro é interrompida por outra cena, aparentemente desconexa: então, vi um anjo posto em pé no sol, e clamou com grande voz, falando a todas as aves que voam pelo meio do céu: Vinde, reuni-vos para a grande ceia de Deus, para que comais carnes de reis, carnes de comandantes, carnes de poderosos, carnes de cavalos e seus cavaleiros, carnes de todos, quer livres, quer escravos, tanto pequenos como grandes (Ap 19.17-18). Fica explícito no texto de que haverá uma batalha: os corvos são chamados para comer as carnes dos exércitos que estão na terra esperando para guerrear com o cavaleiro. A vitória do cavaleiro é declarada antecipadamente com essa cena. Que Batalha é esta? O Armagedom já foi descrito no sexto flagelo. Possivelmente, têm-se uma nova descrição, com o acréscimo de outros detalhes. A sétima visão é a batalha rápida com a besta e o falso profeta (Ap 19.19-21). João diz que a besta e os reis da terra se congregam com seus exércitos poderosos para a guerra. No entanto, será uma batalha desigual. Não há chances para o inimigo. Os homens serão mortos e as duas bestas lançadas para o lago de fogo. Os inimigos de Deus não terão qualquer chance. As descrições das três batalhas (cap 16, 19 e 20) são concisas. Ao final da sexta seção, o quadro dos eventos que descrevem o período entre a primeira vinda de Jesus e sua segunda vinda, seguida da destruição das forças do mal, está bastante completo, mas faltam alguns detalhes cruciais. Eles aparecerão quando pela última vez João recapitular a história. A sétima seção recapituladora: As sete da consumação (20-22) Alguns inimigos de Cristo já encontraram o seu fim nas descrições anteriores: Babilônia, a primeira e a segunda besta; porém, ainda resta um, o pior de todos: o dragão. 149 Quando foi expulso do céu, sua derrota final foi decretada e anunciada anteriormente (Ap 12.12), mas não foi explicada. João deixou esta explicação para o final do discurso narrativo, ou seja, para a última seção. Novamente é possível detectar sete visões descritas nesses três últimos capítulos, todas contendo a expressão “Então vi”. A primeira visão descreve um anjo que amarra e lança Satanás no Abismo (Ap 20.1-3). Algum tipo de restrição é imposto sobre Satanás. Essa cena deve ser vista como uma recapitulação da expulsão do dragão dos céus realizada por Miguel. Não é uma plena destruição do dragão, apenas uma severa limitação, portanto, cabe ao início das descrições das seções e não ao final. A segunda visão descreve um reinado milenar: vi também tronos, e nestes sentaram-se aqueles aos quais foi dada autoridade de julgar. Vi ainda93 as almas dos decapitados por causa do testemunho de Jesus, bem como por causa da palavra de Deus, tantos quantos não adoraram a besta, nem tampouco a sua imagem, e não receberam a marca na fronte e na mão; e viveram e reinaram com Cristo durante mil anos (Ap 20.4). Mais uma vez João fala sobre a situação dos mortos. Eles estão reinando com Cristo durante todo o período do milênio, que pode ser visto como a dispensação cristã inteira. Vitorino já dizia que “those years wherein Satan is bound are in the first advent of Christ, even to the end of the age; and they are called a thousand, according to that mode of speaking, wherein a part is signified by the whole” (1985, p. 358)94. Ao final do reinado milenar, o dragão é solto e há outra descrição de uma batalha (Ap 20.7-10). É nessa batalha, que o grande inimigo do povo de Deus encontra o seu fim. Novamente não há luta, simplesmente desce fogo do céu e consome os homens, e o dragão é lançado para o Lago de Fogo. Assim, somente no último ciclo, João revelou como o dragão foi destruído, fechando-se essa parte do enredo. A terceira visão é a descrição do Trono Branco: “Vi um grande trono branco e aquele que nele se assenta, de cuja presença fugiram a terra e o céu, e não se achou lugar para eles” (Ap 20.11). Um trono foi visto no início do livro (cap. 4). Um trono maior que o de Cesar que, apesar de seu governo e soberania, estava permitindo o sofrimento do seu 93 No grego não há essa expressão “vi ainda”, mas simplesmente “e as almas”, pois se trata da mesma visão. 94 “Aqueles anos em que Satanás está preso estão no primeiro advento de Cristo, e vão até o fim dos tempos; e eles são chamados de mil de acordo com o modo de falar, onde uma parte significa o todo” (tradução nossa). Entretanto, é preciso lembrar que essa parte do comentário de Vitorino pode ter sido modificada por Jerônimo. Nesse caso, a frase atribui-se ao próprio Jerônimo. 150 povo, a fim de testá-lo e, depois, abençoá-lo. Agora, esse trono se apresenta para julgar. O branco da pureza e a presença daquele que nele se assenta (que jamais é descrito) faz com que a terra e o céu fujam de sua presença. A quarta visão é a do julgamento dos mortos (Ap 20.12-15). Todos ressuscitam e são julgados de acordo com o que está escrito nos livros, principalmente o Livro da Vida, e quem não foi achado inscrito nesse livro foi lançado ao Lago de Fogo, onde se encontram o dragão e seus aliados. Nesse lugar, simbolicamente, o inferno e a morte também foram lançados. Assim, o mundo se torna livre de toda forma de mal. A quinta visão descreve a renovação de todas as coisas (Ap 21.1). A terra, que havia sido destruída nos ciclos anteriores, é restaurada juntamente com os céus. Tudo é feito novo, e agora sem o impedimento do pecado, pois o dragão e todos os seus agentes malignos estão para sempre trancafiados no Lago de Fogo. A terra será plena, sem nenhuma limitação. Não há mais oceanos, pois eles representam tudo o que é conturbado, aquilo que divide e inquieta as pessoas, segundo a visão hebraica. Nesse lugar reina a paz. A sexta visão descreve a Nova Jerusalém (Ap 21.2-21). Babilônia, a prostituta, fora destruída; a cidade santa desce “da parte de Deus, ataviada como noiva adornada para o seu esposo” (Ap 21.2). Ela mede 12.000 estádios de comprimento, largura e altura, ou seja, é um cubo perfeito. 12.000 estádios equivalem a 2.219 km, o que evidentemente é uma descrição simbólica. Esta cidade não precisa de sol, nem de santuário, pois Deus está no meio dela. Não é necessário decifrar cada um dos simbolismos descritos no texto. João quer que os fiéis tenham uma impressão generalizada da grandeza do estado de bem-aventurança que lhes aguarda. A sétima visão é indireta (Ap 21.22-22.5). Na verdade João diz: “Nela, não vi santuário (Kai; nao;n oujk ei\don), porque o seu santuário é o Senhor, o Deus Todo-Poderoso, e o Cordeiro” (Ap 21.22). Portanto, indiretamente, é a visão do próprio Deus. Mas como Deus nunca foi descrito explicitamente, apenas é dito que ele está presente na cidade, pois ela não precisa de santuário, nem de sol ou outro tipo de luz, pois o Senhor está presente e brilha sobre todos (Ap 21.23). Destacam-se principalmente o rio da água da vida que escorre por canais em todos os lugares da cidade e a árvore da vida cujas fileiras estão de ambos os lados do rio. O Éden foi restaurado (e ampliado, pois lá havia uma árvore da vida, aqui há muitas), toda maldição foi removida. Em Gênesis 3.15 Deus disse: “maldita é a terra”. Agora, a descrição final é: 151 nunca mais haverá qualquer maldição. Nela, estará o trono de Deus e do Cordeiro. Os seus servos o servirão, contemplarão a sua face, e na sua fronte está o nome dele. Então, já não haverá noite, nem precisam eles de luz de candeia, nem da luz do sol, porque o Senhor Deus brilhará sobre eles, e reinarão pelos séculos dos séculos (Ap 22.3-5). Portanto, a última seção fechou o enredo que se desenvolveu através de diversas retomadas, intercalações, evocações do passado, anúncios do futuro, até chegar ao estado de eterna perfeição e bem-aventurança. Assim, todos os propósitos divinos abençoadores para seu povo finalmente se cumprem. O livro termina apontando para a genuinidade da Profecia (Ap 22.6-21). O livro não devia ser selado, pois as profecias já começariam a se cumprir (ao contrário de Daniel – Dn 12.4). A última bem-aventurança do livro diz respeito ao lavar-se no sangue do cordeiro. O Espírito e a Noiva oram juntos dizendo: “vem” (para Cristo). Essa deve ser a oração dos crentes, pois é a oração do Espírito. As profecias deste livro devem ser levadas muito a sério. Ninguém deve acrescentar ou decrescer nada, pois senão, as pragas do livro cairão sobre ele. Tudo acaba com a promessa de Jesus de que vem sem demora. “A graça do Senhor Jesus seja com todos” é a saudação final (Ap 22.21). Concluímos que, ao fazer uso de tantos padrões numéricos, bem como de temas e expressões repetidas, estabelecendo referências cruzadas, utilizando recurso de abertura e fechamento, aplicando textos como que em espelho e quiasmos sintáticos e semânticos, o autor deu sentido e coesão ao próprio texto. Um sentido que não se percebe numa leitura puramente histórica ou teológica, e que pode ser perdido ao se tomar esses detalhes por fontes e tradições desconexas. Mas ao se considerar esses elementos atentamente se vê o propósito de transmitir mensagens morais e teológicas aos seus leitores, além, é claro, da própria unidade do livro. A arte literária meticulosamente trabalhada por João pode não ser facilmente notada em uma leitura superficial, porém como diz Bauckham, this is not surprising. He was writing a book which he intended to have a status comparable to the Old Testament prophetic books, and he could expect some readers to study it with the same intensity with which he himself studied Old Testament prophetic books. (1993b, p. 30)95. 95 “Isto não é surpreendente. Ele estava escrevendo um livro que pretendia que tivesse um status comparável aos livros proféticos do Antigo Testamento, e ele poderia esperar que alguns leitores fossem estudá-lo com a mesma intensidade com que ele próprio estudou os livros proféticos do Antigo Testamento” (tradução nossa). 152 Assim, é possível ver que João planejou seu livro cuidadosamente. Dividiu-o em sete seções paralelas menores e quatro partes maiores. Ao fazer isso, ele demonstrou que a história (de Deus) não é desconexa, não é feita à base de improvisos; é harmoniosa, perfeitamente planejada, sendo que, mesmo os percalços, as oposições e o sofrimento do povo de Deus, não são aleatórios, pois, por mais terríveis que sejam, fazem parte do curso do rio, que parece andar em círculos (sete), mas que mesmo assim progride para o grande mar dos planos perfeitos do Criador. O seguinte quadro comparativo mostra como os principais temas do microenredo são mencionados ou recontados em cada seção. Consistentemente, há sete temas principais. 15 - Os principais temas do microenredo TEMA Seção 1 Seção 2 Seção 3 Seção 4 Seção 5 Seção 6 Seção 7 Entronização 1.18 4.1-5.14 8.1 12.5 15.5-8 17.14 22.16 de Cristo 3.7 16.1 19.1-6 Expulsão do 2.13 4.1-11 8.10-11 12.7-12 16.10 17.1-18 20.1-3 dragão, para 2.24 6.13 9.1-21 13.1-18 18.1-20 a terra Perseguição 2.9-10 6.3-8, 8.3-13 12.1-6 15.2-4 18.4 20.3, 6 da igreja e o 3.9-10 7.13-14 11.3-12 12.13-17 21.9-10 livramento Igreja 1.9-10 6.1-2 10.1-11 13.10 15.5 17.6 20.4 testemunha 2.2-3 11.1-7 14.6-7 22.17 3.8 Situação dos 1.17-18 6.9-11 11.11-12 14.13 15.2-3 18.20, 24 20.4-6 mortos 3.5 16.5-7 19.2 20.12-13 A volta de 1.7 6.15-17 11.13-18 14.14-20 16.12-21 19.11-21 20.7-15 Cristo e a 1.12-16 22.6-7, batalha final 2.7,16 22.12, 20 3.3, 11 Salvos na 1.5-6 7.9-17 11.18-19 14.1-5 15.1-4 19.7-10 21-22 presença de 3.5,12, 21 Deus 153 4.  Análise  literária  de  Apocalipse  12-­‐13   O estudo geral do Apocalipse deu-nos importantes informações sobre a constituição da obra, sobre a importância de uma análise literária para o entendimento dos ensinamentos morais e teológicos implícitos. Agora analisaremos a arte dos aspectos literários em um texto mais condensado do livro, os capítulos 12-13, que constituem a parte central da obra, a quarta seção recapitulativa no padrão de sete. Será possível ver, além dos aspectos já estudados, os detalhes da narrativa e do enredo, e o modo como o autor manteve certos padrões em relação a tais capítulos. Mostraremos a importância dessa análise para a compreensão do Apocalipse de João, lembrando do desafio de lidar com “um corpo literário antigo, soterrado sob comentários não literários” (ALTER, 2007, p. 80). O soar da sétima trombeta que havia sido tão esperado no capítulo 11 (terceira seção), revelou-se pouco substancial. Ao contrário de uma descrição detalhada a respeito da vitória de Cristo e de sua igreja sobre as forças do mal, há apenas uma descrição extremamente simplificada do fim do mundo: O sétimo anjo tocou a trombeta, e houve no céu grandes vozes, dizendo: O reino do mundo se tornou de nosso Senhor e do seu Cristo, e ele reinará pelos séculos dos séculos. E os vinte e quatro anciãos que se encontram sentados no seu trono, diante de Deus, prostraram-se sobre o seu rosto e adoraram a Deus, dizendo: Graças te damos, Senhor Deus, Todo- Poderoso, que és e que eras, porque assumiste o teu grande poder e passaste a reinar. Na verdade, as nações se enfureceram; chegou, porém, a tua ira, e o tempo determinado para serem julgados os mortos, para se dar o galardão aos teus servos, aos profetas, aos santos e aos que temem o teu nome, tanto aos pequenos como aos grandes, e para destruíres os que destroem a terra (Ap 11.15-18). Não há detalhes de como as forças do mal foram destruídas; há apenas um relato de “vozes” no céu sobre a vitória que já aconteceu. A descrição não surpreende, pois mantém o mesmo padrão de recapitulação: ao mesmo tempo em que antecipa os eventos, retarda as descrições completas para criar um efeito de suspense e expectativa em relação ao desfecho, sempre adiado. Ao anunciar o fim, sem descrevê-lo, João deixa o leitor ávido por mais detalhes e informações, enquanto paulatinamente vai introduzindo novos elementos. 154 O capítulo 12 inicia uma nova seção, a quarta, que é a central no padrão do capítulo sete. Essa seção é decisiva em termos de enredo, pois revela mais os detalhes sobre a batalha, enfatizando o que realmente está por trás do conflito entre a igreja e o mundo. O último verso do capítulo 11 descreve que após o soar da sétima trombeta: “Abriu- se, então, o santuário de Deus, que se acha no céu, e foi vista a arca da Aliança no seu santuário, e sobrevieram relâmpagos, vozes, trovões, terremoto e grande saraivada” (Ap 11.19). Como em Ap 4.5, 9.5, 16.18.21, a declaração antecipa algo grande, no caso, descrição central do livro do Apocalipse com os personagens principais da trama: a mulher, o filho, o dragão e as duas bestas. O que vem em seguida é uma transição abrupta, quando a cena muda da terra para o céu e se vê uma mulher e um dragão. Segundo Bauckham, “it seems we must accept that the abrupt transition is intentional. John has made it abrupt precisely in order to create the impression of a fresh start”. (1993b, p. 15)96. O capítulo 12 recapitula a história da redenção, porém não faz isso de forma repetitiva e monótona, e sim se utilizando de uma linguagem simbólica: o enfrentamento entre a mulher grávida e o dragão, e as consequências dessa batalha nos novo céu e nova terra. 4.1 Estrutura literária de Apocalipse 12-13   Para uma maior compreensão do escopo literário de Apocalipse 12-13, baseando- nos em Aune (1998, p. 657-660, 722-725), apresentamos, abaixo, como se estrutura a trama narrativa. Ao apresentar a estruturação do Apocalipse, o comentarista Aune separa os capítulos 12 e 13, pois considera o aparecimento das duas bestas como uma ruptura em relação ao conflito central. Entendemos que as bestas intensificam o conflito entre o dragão e o povo de Deus, descrevendo os instrumentos de que se utiliza o dragão para perseguir os descendentes da mulher. Os dois capítulos, formam, portanto, uma unidade literária. Por essa razão, embora faça parte da quarta seção, o capítulo 14 não será alvo de nossos estudos 96 “Parece que temos que aceitar que a transição abrupta é intencional. João a faz abruptamente com o objetivo de criar a impressão de um novo começo”. De fato, Apocalipse 12 é um novo começo na estrutura literária do Apocalipse” (tradução nossa). 155 aqui, pois a perspectiva da visão muda consideravelmente, bem como são introduzidos outros personagens. a. Introdução dos personagens: a mulher grávida e o dragão (12:1–4a) 1) O primeiro grande sinal no céu: a mulher (12:1–2) (a) Descrição (v 1) [1] Vestida com o sol [2] A lua debaixo dos pés [3] Coroa de doze estrelas na cabeça (b) Comportamento (v 2) [1] Ela está grávida [2] Ela grita pelo esforço [3] Ela está em trabalho de parto (2) O segundo grande sinal no céu: um grande dragão vermelho (v 3–4a) (a) Descrição (v 3) [1] Sete cabeças [2] Dez chifres [3] Sete diademas em suas cabeças (b) Comportamento (v 4a) [1] Sua cauda arrasta um terço das estrelas do céu [2] Ele lança as estrelas para a terra. b. O primeiro estágio do conflito: O nascimento e fuga da criança e a luta da mulher (v 4b–6) (1) O ataque do dragão (v 4b) (a) Ele permanece diante da mulher (b) Ela está prestes a dar a luz (c) Ele espera para devorar seu filho (2) A mulher dá a luz uma criança (v 5ab) (a) A criança é um filho macho (v 5a) (b) Ele dirigirá todas as nações (v 5b) (c) Ele usará um cetro de ferro (5b) (3) A criança escapa do dragão (v 5c) (a) Levado por Deus 156 (b) Para o trono de Deus (4) A mulher foge do dragão (v 6) (a) Para o deserto (v 6a) (b) Para um lugar preparado por Deus (v 6b) (c) Para ser alimentada lá (v 6c) (d) Pelo período de 1260 dias (v 6c) c. O Segundo estágio do conflito: a expulsão do dragão do céu (v 7–12) (1) A batalha no céu (v 7–9) (a) Miguel e seus anjos lutam contra o dragão (v 7b) (b) O dragão e seus anjos lutam (v 7b–8) [1] Eles são incapazes de prevalecer (v 8) [2] Não há lugar no céu para eles (v 8) (c) O dragão e seus anjos são expulsos do céu para a terra (v 9) [1] O dragão é lançado para baixo (v 9a) [2] Parêntesis: a identificação do dragão (v 9a–c) [a] A antiga serpente [b] O diabo [c] Satanás [d] O sedutor do mundo todo [3] A expulsão do dragão (v 9e) [a] O dragão é lançado para a terra [b] Seus anjos são lançados com ele (2) Comemoração celeste: um cântico de vitória (v 10–12) (a) Introdução: João ouve uma forte voz no céu (v 10a) (b) O cântico de vitória (v 10a–12) [1] Aspectos revelados pela vitória de Deus (v 10a) [a] Salvação, poder e reinado de Deus [b] A autoridade do Cristo de Deus [2] A base para a vitória de Deus (v 10bc) [a] Foi expulso o Acusador {1} Ele acusa nossos irmãos {2} Ele os acusa diante de Deus {3} Ele os acusa de dia e de noite 157 [b] “Nossos irmãos e irmãs” o venceram (v 11) {1} Instrumentos da vitória (v 11ab) {a} O sangue do Cordeiro {b} A palavra do seu testemunho {2} Razão: eles não amaram suas próprias vidas [3] Convocação para se alegrar (v 12a) [a] Para os céus [b] Para aqueles que habitam os céus [4] Anúncio do “Ai” (v 12b–c) [a] Objeto do “Ai” (v 12b) {1} A terra {2} O mar [b] Razão para o “ai” (v 12c) {1} O diabo desceu até vós com grande ira {2} Ele sabe que o tempo dele é curto d. O terceiro estágio do conflito: o dragão persegue a mulher e a descendência dela (v 13–17) (1) Introdução (v 13) (a) O dragão percebe que foi expulso do céu para a terra (b) O dragão persegue a mulher que deu a luz o filho varão (2) A segunda fuga da mulher (v 14) (a) A provisão divina: as duas asas da grande águia (v 14a) (b) Propósito: para voar ao seu lugar no deserto (v 14b) (c) Lá encontrará proteção temporária por um tempo, tempos e metade de um tempo (v 14c) (3) A serpente ataca a mulher (v 15) (a) Meio: ela arroja de sua boca água como um rio (v 15a) (b) Propósito: submergir a mulher (v 15b) (4) A terra socorre a mulher (v 16) (a) Abrindo a sua boca (v 16a) (b) Engolindo o rio que o dragão arrojou de sua boca (v 16b) (5) O dragão volta sua ira contra os descendentes da mulher (v 17) (a) Aqueles que guardam os mandamentos de Deus 158 (b) Aqueles que mantêm o testemunho de Jesus e. O quarto estágio do conflito: o dragão chama a besta do mar para lutar por ele (12.18-13.18) a. Transição introdutória: O dragão em pé sobre a areia do mar (12:18) b. A emergência da besta do mar (13:1–10) (1) Fórmula introdutória: “Então eu vi” (v 1a) (2) Objeto da visão: uma besta que emerge do mar (v 1a) (3) A descrição da besta (v 1b–2a) (a) Descrição inicial (v 1b) [1] Tem dez chifres [2] Tem sete cabeças (b) Descrição mais próxima (v 1c) [1] Dez diademas em seus chifres [2] Nomes de blasfêmias em suas cabeças (c) Descrição detalhada da besta (v 2a) [1] Como um leopardo [2] Pés como de um urso [3] Boca como de um leão (4) O dragão comissiona a besta (v 2b) (a) Ele lhe dá o seu poder (b) Ele lhe dá o seu trono (c) Ele lhe dá grande autoridade (5) A ferida cicatrizada da besta (v 3a) (a) Uma de suas cabeças é fatalmente ferida (b) O ferimento fatal é curado (6) As reações das pessoas em relação ao dragão e a besta (v 3b–4) (a) Elas estão maravilhadas com a besta (v 3b) (b) Elas adoram o dragão porque ele deu autoridade à besta (v 4a) (c) Espécie de hino de louvor à besta (v 4bc) [1] Quem é como a besta? (v 4b) [2] Quem pode lutar com a besta? (v 4c) (7) O programa da besta (v 5–10) (a) Concessões divinas para a besta (v 5) 159 [1] Recebeu habilidade de falar (v 5a) [a] Coisas arrogantes [b] Blasfêmias [2] Recebeu autoridade para agir por 42 meses (v 5b) (b) A atividade da besta (v 6–8) [1] Ela blasfema contra Deus (v 6) [a] Ela blasfema contra o nome de Deus [b] Ela blasfema contra aqueles que habitam no céu [2] Ações contra o povo de Deus (v 7a) [a] Recebeu permissão para lutar contra o povo de Deus [b] Recebeu permissão para vencer o povo de Deus [3] Recebeu autoridade sobre o mundo (v 7b) [a] Sobre toda tribo [b] Sobre todo povo [c] Sobre toda língua [d] Sobre toda nação [4] Aqueles que adoram a besta (v 8) [a] Descrição positiva: todos os habitantes da terra (v 8a) [b] Descrição negativa: aqueles cujos nomes não foram escritos no livro da vida (v 8b) {1} O Livro pertence ao Cordeiro {2} Foi escrito na fundação do mundo (c) Parêntesis: chamada à resistência dos santos (v 9–10) [1] Proclamação da fórmula: Se alguém tem ouvidos para ouvir, ouça (v 9) [2] Palavra profética: Quem leva para cativeiro, para cativeiro vai... (v 10ab) [3] Explicação da palavra profética: Aqui está a perseverança e a fidelidade dos santos (v 10c) f. O quinto estágio do conflito: o surgimento da besta da terra (12.18-13.18) a. Outra besta emerge da terra (v 11–18) (1) Fórmula introdutória: “Então eu vi” (v 11a) (2) Objeto da visão: outra besta ascendendo da terra (v 11a) 160 (3) Descrição da segunda besta (v 11b) (a) Dois chifres como um cordeiro (b) Ela fala como um dragão (4) Relacionamento com a primeira besta (v 12a) (a) Ela exerce a plena autoridade da primeira besta (b) Ela age em seu nome (5) O programa da segunda besta promove a adoração da primeira besta (v 12b–17) (a) Ela compele à adoração da primeira besta (v 12b–13) [1] Aqueles que são compelidos (v 12b) [a] A terra [b] Aqueles que habitam na terra [2] O que eles são compelidos a fazer: adorar (v 12b) [3] Objeto da adoração (v 12c) [a] A primeira besta [b] Aquela cuja ferida mortal foi curada [4] Meios de compelir à adoração (v 13) [a] Realiza milagres (v 13a) [b] Exemplo: faz cair fogo do céu diante das pessoas (v 13b) (b) Ela seduz as pessoas (v 14) [1] Os seduzidos: aqueles que habitam na terra [2] Meios de seduzir: os milagres que lhe foram permitido realizar [3] Natureza da sedução: ela fala para fazerem uma estátua de culto [a] Em honra da besta [b] A besta que tinha um ferimento mortal curado (c) O culto à estátua da primeira besta (v 15) [1] É permitido à segunda besta dar vida à estátua (v 15) [a] Para que possa falar (v 15b) [b] Para que possa ordenar a execução daqueles que não adoram a imagem (v 15c) 161 [2] A segunda besta obriga todos a serem marcados (v 16) [a] Todos os que são obrigados (v 16a) {1} Importantes e não importantes {2} Ricos e pobres {3} Livres e escravos [b] Localização da marca (v 16b) {1} Na mão direita {2} Ou na testa [c] O que não se pode fazer sem a marca (v 17a) {1} Não se pode comprar {2} Não se pode vender [d] Conteúdo da marca (v 17b) {1} O nome da besta {2} Ou o número do seu nome (6) O desafio numérico (v 18) (a) Introdução: “Aqui está a sabedoria!” (v 18a) (b) Desafio para decodificar o número da besta (v 18bc) [1] O número se refere a um ser humano (v 18b) [2] O número é 666 (v 18c) 4.2. O uso do Antigo Testamento em Apocalipse 12-13 Durante o estudo do Apocalipse feito no capítulo 3, percebeu-se grande dependência de temas que João demonstra em relação ao Antigo Testamento. Entretanto, essa dependência não se demonstra em citações diretas, mas pela evocação de imagens e passagens chaves, utilizadas livremente pelo autor do Apocalipse. Ele demonstrou um conhecimento abrangente do texto hebraico ao correlacioná-lo com o conteúdo da visão que pretendeu transmitir aos seus leitores. 162 Adela Yarbro Collins, em sua tese na Universidade de Harvard (2001, p. 58, 245- 261), procurou outro caminho para entender o uso do material mitológico no Apocalipse de João. Segundo Collins, o capítulo 12 de Apocalipse é baseado principalmente em fontes gregas. Sua tese é que a batalha entre a mulher e o dragão é uma recriação cristã do mito de Píton-Leto-Apolo97. Com base no estudo de Fonterose (1959, p. 262-264), Yarbro Collins demonstra que a versão grega do mito era bem conhecida nas regiões onde o Apocalipse circulou no final do primeiro século. A seguir, lista-se os oito aspectos desse estudo. Primeiro como aparecem em Ap 12 (YARBRO COLLINS , 2001, p. 66) A. O dragão (v 3) B. Caos e desordem (v 4a) C. O ataque (v 4b) D. O campeão (v 5a) E. A morte do campeão (v 5b) G. Redescoberta do campeão (v 7a) H. Nova batalha e vitória (v 7b–9) I. Restauração e confirmação da ordem (v 10–12a) F. O reinado do dragão (v 12b–17) Do seguinte modo a estudiosa de Harvard sumariza a versão do mito de Leto-Apolo: 1. Razão para o ataque de Píton: possessão de um oráculo 2. Zeus engravida Leto 3. Píton persegue Leto para matá-la 4.a. Zeus ordena que o vento norte resgate Leto 4.b. Poseidon socorre Leto 5. Nascimento de Apolo e Artemis 6. Apolo expulsa Píton 7. Apolo estabelece os jogos de Píton Yarbro Collins compara os aspectos similares entre as duas listas (2001, p. 66): 2. Uma mulher no momento do parto (v 2) 97 Embora a estudiosa de Harvard tenha ficado conhecida pela teoria, no início do século XX, R. H. Charles já a menciona como tendo sido proferida pela primeira vez em 1794 por Dupuis (CHARLES, 1920, p. 312). 163 3. Um dragão deseja devorar a criança (v 4) 5. Nascimento da criança (v 5) 7. Reinado da criança (v 5) 4.a. Mulher é socorrida por Deus (v 6) 4.b. Mulher é ajudada pela grande águia (v 14) 4.c. Mulher é ajudada pela terra (v 16) 6. Miguel expulsa o dragão (vv 7–9) Evidentemente, há semelhanças entre as duas descrições, mas também há muitas lacunas no estudo de Yarbro Collins, como por exemplo, o fato de que o clímax de Ap 12 não é a expulsão do dragão, porque ele continuará lutando na terra e só será expulso definitivamente em Ap 20.12. Outra diferença é o fato de que a mulher não voa para uma ilha, mas para um deserto. Além disso, a mulher dá à luz antes de voar, não depois. A motivação para Píton perseguir a mulher no mito grego é prevenir o nascimento dos gêmeos, enquanto que não há motivação óbvia para o dragão perseguir a mulher após ela ter dado à luz, em Ap 12. A designação da criança como o “campeão” é forçada, uma vez que a história da criança é passiva e resumida. Parece-nos impróprio, ainda, falar da morte do campeão referindo-se à criança, uma vez que no texto, ela é resgatada por Deus, e sua morte não é mencionada, antes a ênfase está no nascimento e ascensão. É possível que João tivesse conhecimento desse e de outros mitos98 e os tenha utilizado de algum modo para seus propósitos99, talvez para estabelecer algum diálogo com os leitores gregos. Porém, Yarbro Collins e outros estudiosos que enveredam pelo mesmo caminho, podem ter deixado de considerar algo essencial nos textos bíblicos. Referimo-nos àquilo que foi proposto por ALTER: Para compreender uma arte narrativa tão avessa a adornos e comentários, temos de estar constantemente alertas para duas características: o uso repetido da analogia bíblica, por meio da qual uma parte do texto faz um comentário indireto a outro; e a função ricamente expressiva da sintaxe (...) a atenção a esses atributos não conduz a uma leitura mais imaginativa das históricas bíblicas, mas a uma leitura mais precisa; e, uma vez que todas essas características estão ligadas a detalhes discerníveis no texto 98 Outros combates mitos lembrados são: O mito de Seth, Osiris e Horus. As fontes gnósticas do Apocalipse de Adão, o mito da criação babilônica acerca de Tiamat e o monstro de sete cabeças morto pelo deus Marduk, quando Tiamat arrastou um terço das estrelas do céu. (KISTEMAKER, 2004, p. 448). CHARLES (1920, p. 308) propôs a quase um século que parte do combate se baseava na religião Zend (persa) que destaca uma batalha entre anjos e demônios no céu, sendo que os demônios acabaram expulsos. 99 O mesmo João a quem é atribuído o quarto Evangelho também fez uso de termos conhecidos fora do judaísmo, como o conceito do Logos utilizado na filosofia neo-platônica e aplicado a Jesus em João 1.1-2,14. 164 hebraico, a abordagem literária acaba sendo menos conjectural do que a pesquisa histórica que se dedica a saber se um versículo contém palavras emprestadas do idioma acadiano, se reflete práticas sumérias de parentesco ou se foi alterado por um erro do copista (2007, p. 41). As imagens apocalípticas descritas por João baseiam-se, sobretudo, nas imagens do Antigo Testamento, por meio de uma vívida analogia, em relação ao Gênesis, no caso de Apocalipse 12, e em relação ao livro de Daniel, no caso de Apocalipse 13. Entretanto, o autor cria uma cosmologia própria a partir da reinterpretação dos símbolos de Gênesis e do livro de Daniel. Cosmologia que será foco de nossa análise a seguir, observando-se os procedimentos de construção do texto. 4.2.1. Intertextualidade: Gênesis 3/ Apocalipse 12 Bauckham notou que a narrativa da mulher e do dragão recorda a inimizade entre a mulher e a serpente (Gn 3.15) e retrata o povo de Deus (Israel) como mãe do Messias (1993b, p. 15). Na seguinte tabela comparativa, as cores destacam as semelhanças de temas e personagens entre esses dois textos bíblicos. 16 - Quadro comparativo Gênesis 3 e Apocalipse 12 Gn 3:14 Então, o SENHOR Deus disse à Ap 12:1 Viu-se grande sinal no céu, a saber, serpente: Visto que isso fizeste, maldita és entre uma mulher vestida do sol com a lua debaixo todos os animais domésticos e o és entre todos dos pés e uma coroa de doze estrelas na cabeça, os animais selváticos; rastejarás sobre o teu 2 que, achando-se grávida, grita com as dores ventre e comerás pó todos os dias da tua vida. 15 de parto, sofrendo tormentos para dar à luz. 3 Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua Viu-se, também, outro sinal no céu, e eis um descendência e o seu descendente. Este te ferirá dragão, grande, vermelho, com sete cabeças, dez a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar. 16 E à chifres e, nas cabeças, sete diademas. 4 A sua mulher disse: Multiplicarei sobremodo os cauda arrastava a terça parte das estrelas do céu, sofrimentos da tua gravidez; em meio de dores as quais lançou para a terra; e o dragão se deteve darás à luz filhos; o teu desejo será para o teu em frente da mulher que estava para dar à luz, a marido, e ele te governará. fim de lhe devorar o filho quando nascesse. 165 A partir da analogia joanina de Gênesis, a correlação de temas e personagens pode ser vista na seguinte estruturação, que se segue, pelo menos em termos de estilo, a proposta de Yarbro Collins, porém tendo como padrão comparativo o livro do Gênesis: GÊNESIS 3 A. Serpente (14a) B. Rebaixamento da serpente (14b) C. A mulher (15a) D. Inimizade da serpente com a mulher (15a) E. Descendente da mulher (15b) F. Inimizade entre a serpente e o descendente da mulher (15c) G. O sofrimento de parto da mulher (16a) APOCALIPSE 12 C. A mulher (1a) G. O sofrimento de parto da mulher (2a) A. O dragão (2-3) E. O descendente da mulher (5) D. Inimizade do dragão contra a mulher (4b) F. Inimizade entre o dragão e o descendente da mulher (4c) B. Expulsão (rebaixamento) do dragão (7-9) Nota-se que o capítulo 12 de Apocalipse reverbera, amplia e interpreta a antiga narrativa do capítulo 3 de Gênesis. Os dois textos falam sobre uma mulher grávida que sofre as dores do parto, sobre um filho (descendente) da mulher, mostram o inimigo (dragão-serpente), e, principalmente, mencionam uma inimizade. Até aqui as semelhanças ficam claras, mas não se pode deixar de notar a ampliação do sentido dado pelo texto do Apocalipse através de todo o seu simbolismo. A mulher (que estava nua em Gênesis) agora está vestida de sol, com a lua debaixo dos pés e uma coroa de doze estrelas. Aqui é possível ver a sobreposição das interpretações do Antigo Testamento na visão. Há outra cena no Antigo Testamento que fala em sol, lua e doze estrelas. Trata-se do sonho de José. O filho de Jacó relatou seu sonho para seu pai e irmãos do seguinte modo: “Sonhei também que o sol, a lua e onze estrelas se inclinavam perante mim” (Gn 37.9). José estava se referindo ao 166 seu pai, mãe e onze irmãos, sendo ele próprio o décimo segundo, ou a décima segunda estrela, ou seja, o núcleo da família de Jacó com as doze tribos de Israel representadas por seus patriarcas. Portanto, João está asseverando que a mulher gloriosa é realmente o povo de Israel, porém regredindo genealogicamente até Eva, que foi tentada pela serpente (dragão) em Gênesis. Diversas vezes, no Antigo Testamento, Israel é descrito como uma mulher, a esposa da Yahweh, porém, uma esposa muitas vezes infiel, como Eva de certo modo o foi (Jr 31.32, Ez 16.1ss, Os 3.1). Em contraste, no livro do Apocalipse, fica claro que o povo de Deus, redimido pelo Cordeiro, é uma esposa, mas é uma esposa fiel do Cordeiro (Ap 19.7, 21.9). Constata-se também a elevação do próprio dragão. Em Gn 3.15 ele é uma serpente enganadora e ardilosa, que age pela astúcia, tentando ludibriar com palavras; em Ap 12, o dragão arrasta um terço das estrelas do céu e guerreia com todo seu poder contra os anjos fiéis. Aqui vemos um dos aspectos intertextuais mais importantes que podem ser analisados no texto bíblico100. É importante notar que tanto João quanto seus leitores conheciam o texto do Gênesis. Entretanto, o modo como João lê o texto para seus leitores estabelece uma relação intrinsicamente intertextual. Lembrando que, a intertextualidade refere-se não só a relação de um texto com outro, mas ao curso de sua mútua influência (BARR, 2010, p. 640). Assim, Ap 12 interpreta a figura da serpente-dragão como o próprio Diabo, sendo essa interpretação explícita a única no texto bíblico. Com uma leitura apenas de Gn 3, seria muito difícil concluir que aquela serpente fosse, na verdade, um anjo decaído. Mas João não deixa dúvida: “E foi expulso o grande dragão, a antiga serpente, que se chama diabo e Satanás, o sedutor de todo o mundo, sim, foi atirado para a terra, e, com ele, os seus anjos” (Ap 12.9). João modificou o modo como seus leitores passariam a ler o texto de Gn 3. Eles não veriam apenas uma serpente ardilosa, mas também um terrível dragão disfarçado de serpente, o próprio Satanás, o anjo caído, responsável por todo o mal que há no mundo e por todo o sofrimento do povo de Deus. Segundo Barr, o leitor do Apocalipse precisa estar ciente dos muitos intercâmbios simbólicos, sendo que os símbolos permitem que os ouvintes reflitam novamente sobre o 100 O estudioso russo Mikhail Bakhtin estudou as manifestações da linguagem não no sistema fixo e abstrato da língua (Saussurre e o estruturalistas), mas como uma criação coletiva que se desenvolve no relacionamento ou diálogo cumulativo entre o “eu” e o “outro”, ou entre os “muitos eus” e os “muitos outros”. Um dos estudos realizados por Bakhtin concentra-se na forma como “as vozes dos outros - autores anteriores, destinatários hipotéticos - misturam-se à voz do sujeito explícito da enunciação” (TODOROV, 1979, 1992, p.15). No caso do Apocalipse, o diálogo com os antigos textos sagrados é marcante, especialmente com o texto do Gênesis. 167 mundo cotidiano e que o compreendam de uma forma nova (1998, p. 68). Logo, a leitura do antigo texto do Gênesis ganha novos significados a partir da leitura do Apocalipse, ao levar-se em consideração as relações intertextuais. Do mesmo modo, os leitores de João se veem dentro da história bíblica. A mesma serpente que tentou a mulher no Éden continua em ação tentando destruir a igreja. Em Gn 3.15, Deus anuncia à serpente que um descendente da mulher irá lhe esmagar a cabeça. Levando-se em conta o uso indireto que João faz do Antigo Testamento, é possível interpretar, que a referência do Apocalipse para o momento em que o dragão “espera” o nascimento do Filho para o devorar, tem relação com a própria promessa- maldição proferida por Deus para a serpente em Gn 3.15. Aqui está o motivo pelo qual, o dragão em Apocalipse emblematicamente se coloca diante da mulher a fim de aguardar o nascimento do seu descendente para destruí-lo. Foi dito a ele que um descendente da mulher esmagaria sua cabeça. É possível que João estivesse pensando nas diversas vezes que o Antigo Testamento revelou que a continuidade da “semente da mulher” estava ameaçada. Como aconteceram nas passagens do Gênesis, quando Caim assassinou seu irmão Abel, ou quando o próprio Deus decidiu destruir o mundo no Dilúvio. A cada passo, no Antigo Testamento narra-se que a descendência prometida da mulher está sob o risco de desaparecer, e sempre sendo resgatada por uma intervenção divina (HENDRIKSEN, 1987, p. 167-171). Por fim, sem conseguir impedir que o filho da mulher nascesse, restou ao dragão tentar matá-lo ainda criança. A matança dos meninos com menos de dois anos em Belém, ordenada por Herodes, por certo estava na mente de João no momento dessa descrição. Nota-se, porém, que o filho fora arrebatado. O Evangelho de Mateus diz que José, sabendo por meio dos magos que Herodes pretendia fazer algum mal à criança, fugiu para o Egito (Mt 2.13-18). Há também, na descrição, a elevação da cena de um jardim terreno para o céu. Toda a visão segundo João é “um grande sinal no céu”. Aune acredita que o “sinal” pode ser uma referência ao signo ou a uma constelação na astrologia greco-romana (1998, p. 678). A partir da narrativa, podemos apenas intuir que João estaria vendo estrelas se movendo no céu, formando novas constelações; ou ainda, que estaria visualizando as figuras da mulher e do dragão em destaque. Podemos dizer que se trata de uma cena gloriosa em comparação com a descrição de um jardim em Gênesis 3. A elevação do conflito entre uma serpente e uma mulher se dá no desenlace de uma guerra no céu. Tropas celestiais entram em conflito. Miguel que é reconhecido no Antigo 168 Testamento (Dn 10.13, 12.21) como o anjo que defende Israel (ou seja, a mulher), guerreia contra o dragão rodeado de anjos. A antiga serpente não mais está solitária. O dragão perde a batalha e é expulso do céu. No Jardim do Éden, a serpente foi rebaixada para rastejar no chão e comer pó; em Apocalipse o rebaixamento se dá pela expulsão do céu para a terra. Deve-se ainda considerar que há uma dupla derrota para o dragão: não consegue devorar a criança que acabara de nascer, e esta fora ainda arrebatada para o Egito (Mt 2.13-18). Ao dizer que Jesus fora arrebatado para o trono de Deus, a sua passagem pela terra praticamente é obliterada na narrativa de João. A segunda derrota ocorre no céu, quando os anjos liderados por Miguel (o protetor de Israel) defenestram o dragão. Bauckham diz que The defeat of the Dragon (12:7-9) is doubtless the same event as the victory of the Lamb (5:5-6), and both are to be historically located in the death and resurrection of Jesus Christ (continued in the witness and martyrdom of his followers: 12:11). (1993b, p. 186).101 Expulso do céu, o dragão passa a perseguir a mulher, porém ela conta com o socorro e a proteção divina. Resta ao dragão perseguir os seus descendentes, que são caracterizados como aqueles que “guardam os mandamentos de Deus e têm o testemunho de Jesus”, ou seja, os homens que estão em conformidade tanto com o Antigo Testamento (mandamentos) quanto com o Novo Testamento (Jesus). Teríamos, pois, uma possível referência aos judeus convertidos e aos demais cristãos gentios. A cena em questão tem, portanto, uma relação direta com a descrição de Gênesis 3 e os elementos literários encontrados a partir da analogia bíblica (Alter) apontam fortemente para tal conclusão. 4.2.2. Intertextualidade: o livro de Daniel/ Apocalipse 13   O texto de Gênesis 3.15 falava também sobre uma guerra de descendências, entre a mulher e a serpente. Se o dragão desceu para perseguir os descendentes da mulher, ao chamar seus aliados, parece que ele está chamando sua própria descendência para continuar a perseguição. É assim que Apocalipse 13 anuncia a chegada das duas bestas: o dragão 101 “A derrota do Dragão (12:7-9) é indubitavelmente o mesmo evento da vitória do Cordeiro (5:5-6), e ambos devem ser historicamente localizados na morte e ressurreição de Jesus Cristo (conduzindo ao testemunho e martírio de seus seguidores: 12:11)”. (tradução nossa). 169 colocou-se em pé sobre a areia do mar, e logo emergiu a primeira besta. Depois, da terra surgiu a segunda. Nesse momento, na narrativa apocalíptica de João, como já foi dito anteriormente, a simbologia vai se basear mais especificamente em Daniel. A seguir, uma tabela comparativa em que as cores mostram a correlação de temas e evocação de personagens entre as duas passagens. 17 - Quadro comparativo Daniel 7 e Apocalipse 13 Dn 7.2 Eis que os quatro ventos do céu agitavam Ap 13:1 ¶ Vi emergir do mar uma besta que o mar Grande. 3 Quatro animais, grandes, tinha dez chifres e sete cabeças e, sobre os diferentes uns dos outros, subiam do mar. 4 O chifres, dez diademas e, sobre as cabeças, nomes primeiro era como leão e tinha asas de águia; de blasfêmia. 2 A besta que vi era semelhante a enquanto eu olhava, foram-lhe arrancadas as leopardo, com pés como de urso e boca como de asas, foi levantado da terra e posto em dois pés, leão. E deu-lhe o dragão o seu poder, o seu trono como homem; e lhe foi dada mente de homem. 5 e grande autoridade. 3 Então, vi uma de suas Continuei olhando, e eis aqui o segundo animal, cabeças como golpeada de morte, mas essa semelhante a um urso, o qual se levantou sobre ferida mortal foi curada; e toda a terra se um dos seus lados; na boca, entre os dentes, maravilhou, seguindo a besta; 4 e adoraram o trazia três costelas; e lhe diziam: Levanta-te, dragão porque deu a sua autoridade à besta; devora muita carne. 6 Depois disto, continuei também adoraram a besta, dizendo: Quem é olhando, e eis aqui outro, semelhante a um semelhante à besta? Quem pode pelejar contra leopardo, e tinha nas costas quatro asas de ave; ela? 5 Foi-lhe dada uma boca que proferia tinha também este animal quatro cabeças, e foi- arrogâncias e blasfêmias e autoridade para agir lhe dado domínio. 7 Depois disto, eu continuava quarenta e dois meses; 6 e abriu a boca em olhando nas visões da noite, e eis aqui o quarto blasfêmias contra Deus, para lhe difamar o animal, terrível, espantoso e sobremodo forte, o nome e difamar o tabernáculo, a saber, os que qual tinha grandes dentes de ferro; ele devorava, habitam no céu. 7 Foi-lhe dado, também, que e fazia em pedaços, e pisava aos pés o que pelejasse contra os santos e os vencesse. Deu-se- sobejava; era diferente de todos os animais que lhe ainda autoridade sobre cada tribo, povo, apareceram antes dele e tinha dez chifres. 8 língua e nação; Estando eu a observar os chifres, eis que entre eles subiu outro pequeno, diante do qual três dos primeiros chifres foram arrancados; e eis que neste chifre havia olhos, como os de homem, e uma boca que falava com insolência. 170 A correlação de temas e personagens, mantendo o estilo de Yarbro Collins, pode ser vista igualmente na seguinte estruturação: DANIEL 7 A. Animais sobem do mar (2-3) B. Como o leão (4) C. Como um urso (5) D. Como um leopardo (6) E. Foi lhe dado domínio (7b) F. Um animal terrível (7a) G. Vitorioso e destruidor (7b) H. Com dez chifres (7c) I. Fala insolências (8) APOCALIPSE 13 A. Sobe do mar (1a) F. Uma besta terrível (1b) H. Tem dez chifres (1c) D. Como o leopardo (2a) C. Pés de urso (2b) B. Boca de leão (2c) G. Vitorioso e destruidor (4) E. Foi lhe dado autoridade (5, 7) I. Profere insolências (5, 6) Constata-se que as reminiscências que formam as imagens de Apocalipse 13 passaram maciçamente de Gênesis 3 para Daniel 7. Porém, do mesmo modo como os assuntos de Gênesis 3 foram transmutados e ampliados, em Apocalipse 13, os assuntos de Daniel 7 também são rearranjados. A explicação mais uma vez pode ser o uso livre que o autor faz do Antigo Testamento, sem uma preocupação com citações literais. A mescla de imagens tem uma função literária. O profeta Daniel viu quatro animais distintos subindo do mar. João, por sua vez, viu apenas um animal, mas que reunia as características dos quatro, porém na ordem inversa. 171 Em Daniel, os quatro animais representam, provavelmente, quatro impérios (Dn 7.17, Babilônico, Medo-Persa, Grego-Macedônio, Romano). A figura da besta é uma referência ao Império Romano. Para João, os quatro animais representam, ao mesmo tempo, Roma. Afinal, era o império que o aprisionara em Patmos e que estava devastando as igrejas. Assim, se fundem no Império Romano todas as imagens intertextuais dos impérios que prefiguraram perseguição ao povo de Deus e sofrimento. Algo importante que é mantido praticamente igual em ambos os textos é o ato de proferir insolência e blasfêmias por parte dos animais, e de perseguir e vencer ao povo de Deus. Porém, isso só acontece por um tempo definido e por determinação divina (Veja o “foi lhe dado”). Daniel 8 A segunda besta também é evocada a partir do livro de Daniel, conforme a descrição do capítulo 8: No ano terceiro do reinado do rei Belsazar, eu, Daniel, tive uma visão depois daquela que eu tivera a princípio. Quando a visão me veio, pareceu-me estar eu na cidadela de Susã, que é província de Elão, e vi que estava junto ao rio Ulai. Então, levantei os olhos e vi, e eis que, diante do rio, estava um carneiro, o qual tinha dois chifres, e os dois chifres eram altos, mas um, mais alto do que o outro; e o mais alto subiu por último (Dn 8.1-3). O carneiro, citado por Daniel, simbolizava o império Medo-Persa. A segunda besta no Apocalipse tem também dois chifres, mas representa algo novo e distinto, ou seja, provavelmente uma referência ao culto imperial. Portanto, aqui a correlação de imagens não produz correlação de temas. É preciso analisar ainda se João fez referência aos escritos rabínicos de um combate mítico entre forças primitivas no capítulo 13. Esses combates permeiam muitas cosmogonias antigas, como os conflitos gregos entre Zeus e Tifo, Apolo e Píton; ou o mito babilônico de Marduk e Tiamat. De acordo com a mitologia judaica, Deus criou dois grandes monstros no quinto dia da criação: Leviatã e Behemot (AUNE, 1998, p. 779-780). O macho Leviatã foi confinado ao mar, e a fêmea Behemot, ao deserto. De fato, nota-se que João descreve a primeira besta subindo do mar e a segunda, da terra. Porém, o Antigo Testamento descreve a vitória de Yahweh contra o Egito, na libertação do povo e travessia do Mar Vermelho como a vitória sobre Raave ou Leviatã, os conhecidos monstros marinhos do Antigo Testamento (Sl 89.10, Ez 29.3). Portanto, em concordância com o 172 Antigo Testamento, no enredo de João, as bestas não são monstros primitivos (mitologia hebraica); representam os impérios opressivos e as falsas religiões que, como aliados do grande dragão, oprimem e matam os cristãos. A segunda besta manda erigir uma imagem da primeira besta, que deve ser adorada por todos; caso contrário, serão punidos com a morte. Mais uma vez, a tela de fundo dessa cena vem do livro de Daniel (KISTEMAKER, 2004, p. 497): na Babilônia, Nabucodonosor mandou construir uma imagem de si mesmo, e todos os que não a adoraram, foram condenados a morte (Dn 3). O Apocalipse 12-13 é uma retomada de aspectos teológicos do livro de Gênesis e de Daniel. O autor, em sua apropriação dos textos antigos, criou criaturas híbridas, transgrediu as noções de espaço e tempo ordinários. Os acréscimos, as associações, as inversões ou as junções possibilitam-lhe a construção de novos significados e de uma cosmologia própria. Trata-se de uma narrativa singular baseada, contudo, nas tradições antigas. Como demonstramos em nossa análise, o texto fonte de Apocalipse 12-13 é, sobretudo, o do Antigo Testamento. Porém, não há dúvidas de que João modificou para sempre o modo como os cristãos passaram a ler o Antigo Testamento, especialmente Gênesis e Daniel. 4.3. Os principais padrões literários em Apocalipse 12-13 Agora, procuraremos identificar os principais aspectos da arte literária de João num texto mais condensado. Embora, pela própria estrutura coesa do livro do Apocalipse seja mais fácil ver esses detalhes no todo, uma análise de dois capítulos deixa ver que o estilo literário do autor sem mantém. 4.3.1 O padrão de números Nos capítulos 12-13, destacam-se vários números: 12, 7, 10, 1/3, 1260, 42 (meses), 2, 666. A quantidade de números impressiona, levando-se em consideração o texto em 173 questão, que é relativamente curto. A seguir, analisaremos cada um deles, com ênfase naqueles que não foram previamente analisados, especialmente o número 666. O número 12 Doze é no Apocalipse o número do povo de Deus (7.5, 21.12, 22.2). Por isso, a mulher tem uma coroa de 12 estrelas na cabeça. No Antigo Testamento havia, doze patriarcas (os doze filhos de Israel), e no Novo Testamento há doze Apóstolos. Portanto, as doze estrelas da mulher são uma forte indicação da sua identidade. Assim, pelo uso engenhoso do número, João não precisava dizer para seus leitores quem era a mulher. O número 7 Sete é o principal número do Apocalipse e está geralmente associado ao próprio Deus. Como já foi apontado, representa a plenitude, ao mesmo tempo é o elemento básico sobre o qual se estrutura a narrativa. Nos capítulos 12-13, o sete está relacionado ao número de cabeças tanto do dragão quanto da besta que sobe do mar. O Leviatã, um dragão que é mencionado várias vezes na Bíblia Hebraica, no Salmo 74.14 é descrito como um monstro de várias cabeças. Retomando a tradição bíblica, João também descreve os dois monstros, o dragão e a besta, com sete cabeças. Provavelmente, a sua intenção seja enfatizar a universalidade do domínio dessas criaturas (BOUNCE, 1977, p. 237, HENDRIKSEN, 1987, p. 166). O número 10 No Apocalipse (2.10, 9.16), dez é o número associado à tribulação da igreja e às atividades malignas. Assim, embora o número de cabeças seja sete, o número de chifres que aponta para o poder desses monstros (na língua hebraica, chifre e poder são uma mesma palavra) é o dez. O domínio é universal, mas o poder não é descrito com o número da perfeição, e sim com o número dez, ou seja, a origem do poder é maligna. A interpretação dos dez chifres da besta é dada mais tarde no próprio Apocalipse: “Os dez chifres que viste são dez reis, os quais ainda não receberam reino, mas recebem autoridade como reis, com a besta, durante uma hora” (Ap 17.12). Portanto, é um símbolo do poder humano potencializado por Satanás para perseguir a igreja. 174 O número 1/3 Um terço, ou a terça parte, é o número de estrelas do céu que são lançadas a terra pela cauda do dragão. No Apocalipse, um terço geralmente é o percentual da destruição permitida por Deus sobre a criação: água, rios, mar, terra, árvores, homens (Ap 8.8-12, 9.15). No capítulo 12, é provável que este seja uma referência aos anjos que seguiram o dragão em sua rebelião, pois logo após mencionar que ele arrastou um terço das estrelas, a guerra no céu é descrita como uma luta entre Miguel e seus anjos e o dragão e seus anjos (Ap 12.7). Em Judas 6, há uma referência aos anjos como estrelas. O número 1260 Mil duzentos e sessenta é o número de dias que define o tempo de sofrimento do povo de Deus. Ele é retratado no Apocalipse de quatro formas: 42 meses, três anos e meio, ou um tempo, dois tempos e a metade de um tempo. Exceto três anos e meio, os outros três aparecem em Ap 12-13. Portanto, há forte ênfase nesses capítulos, a respeito do sofrimento e tribulação inevitáveis para o povo de Deus. O número 42 Como já foi dito, é o número de meses equivalente aos 1260 dias. Reputava-se que havia 42 gerações antes da primeira vinda de Jesus (FORD, 1975, p. 192). A referência mais provável estaria relacionada ao período que os judeus sofreram sob o domínio do déspota Antíoco Epifânio, entre 167-164 A.C. Sendo que, a repetição das várias designações em que elas aparecem pode servir para apontar que o período final de testemunho, proteção divina e antagonismo pagão serão simultâneos (MOUNCE, 1977, p. 221). O número 2 O número dois corresponde aos chifres da segunda besta. No Apocalipse, está associado ao testemunho do povo de Deus na terra. São duas as testemunhas que serão mortas pela besta (Ap 11). Sendo assim, os dois chifres da segunda besta são uma paródia do Cordeiro, apontando para a religião imperial como uma falsa religião. 175 O número 666 Esse é o número mais misterioso do Apocalipse. Ele só aparece aqui (Ap 13.18), em forma de um enigma proposto: “Aqui está a sabedoria. Aquele que tem entendimento calcule o número da besta, pois é número de homem. Ora, esse número é seiscentos e sessenta e seis”. Inicialmente, João, de forma instigante, desafia o leitor a tentar descobrir a identidade da besta. A ausência do artigo definido antes da palavra homem na expressão “pois é número de homem” indica que se trata de uma pessoa histórica definida (MOUNCE, 1977, p. 264). Além disso, um exame do contexto histórico em que João escrevia a sua narrativa, nos revela que o apóstolo empregava um método bastante conhecido na época, o da gematria. Método que consistia em atribuir a cada letra do alfabeto hebraico um valor numérico, cuja soma das letras correspondia a um determinado nome. E, de acordo com a gematria do texto, 666 é o valor da soma das letras hebraicas que compunha o nome do “homem” que representava a “encarnação da maldade”. A solução do enigma que tem sido amplamente aceita desde que foi proposta a partir de 1831 por quatro estudiosos alemães (em 1831 O. F. Fritsche, em 1836 F. Benary e em 1837 F. Hitzig, E. Reuss), é que 666 é a soma das letras do nome Nero César escritas em caracteres hebraicos (BAUCKHAM, 1993b, p. 387)102. As principais objeções a essa interpretação são duas: chega-se a essa soma transliterando um nome latino, do grego para o hebraico, o que parece um exercício bastante complexo para os leitores de João. Além disso, Nero César transliterado para o Hebraico só soma 666 numa forma defectiva, omitindo um “yod”. Por outro lado, essa forma defectiva já foi encontrada em documentos de Qumran (BAUCKHAM, 1993b, p. 388). Entretanto, a indicação de que o 666 se refere a Nero soluciona apenas parcialmente o significado do enigma, talvez por isso João lance o desafio àqueles que têm inteligência, para que calculem. O fato é que João está escrevendo por volta do ano 96 e Nero morreu em 09 de junho de 68. Portanto, a besta não poderia ser Nero. Nesse ponto, fala-se a respeito do mito do retorno de Nero. O imperador romano suicidou-se, mas poucos viram seu corpo. Criou-se, assim, o mito de que ele não havia morrido, ou que retornaria. A afirmação de Ap 13 geralmente é entendida como uma referência ao mito: “Então, vi uma 102 É interessante que até mesmo uma variante do texto grego que traz o número 616 pode reforçar a ideia do significado de Nero Cesar para o 666. A forma latina do nome Nero Cesar transliterada para o Hebraico sem a letra “num” da forma grega transliterada (Neron), forma a soma 616. 176 de suas cabeças como golpeada de morte, mas essa ferida mortal foi curada; e toda a terra se maravilhou, seguindo a besta”. O fato de que os primeiros leitores de João, Ireneu e um discípulo de Policarpo, tiveram dificuldades para identificar o nome do “homem” (MOUNCE, 1977, p. 264) é um alerta para não fechar esta questão. É possível que o enigma envolva outros fatores, que uma simples somatória de número. Uma solução proposta desde os tempos de Vitorino e Irineu é que o nome seja Tito. A palavra grega “Teitan” forma o número 666. O primeiro nome de Domiciano era justamente Tito (Titus Flavius Domitianus). Mais importante do que o nome que está por trás do número, é o próprio número. João não diz: “descubra o nome da besta”, mas, sim, “calcule o número do seu nome”. É evidente que destaca o número 6. Até esse momento no livro há referências a dois “seis”, expostos na sequência recapitulativa: o sexto selo e a sexta trombeta. Quando o sexto selo foi aberto, pela primeira vez em suas seções recapituladoras, João anunciou o fim. A descrição de Ap 6.15-17 é sugestiva: Os reis da terra, os grandes, os comandantes, os ricos, os poderosos e todo escravo e todo livre se esconderam nas cavernas e nos penhascos dos montes e disseram aos montes e aos rochedos: Caí sobre nós e escondei- nos da face daquele que se assenta no trono e da ira do Cordeiro, porque chegou o grande Dia da ira deles; e quem é que pode suster-se? No sexto selo, João mostrou como os homens rebeldes a Deus, liderados pelos poderosos ( reis da terra) são destruídos. A cena se repete na recapitulação expressa na sexta trombeta: O sexto anjo tocou a trombeta, e ouvi uma voz procedente dos quatro ângulos do altar de ouro que se encontra na presença de Deus, dizendo ao sexto anjo, o mesmo que tem a trombeta: Solta os quatro anjos que se encontram atados junto ao grande rio Eufrates. Foram, então, soltos os quatro anjos que se achavam preparados para a hora, o dia, o mês e o ano, para que matassem a terça parte dos homens (Ap 9.13-15). Portanto, o que vem sendo evocado com o número 6, em Apocalipse, são as ações humanas consideradas “contra Deus”, pelas quais os homens serão julgados e condenados. O numero 666 representa tudo o que o homem consegue produzir potencializado pelo mal, distanciado da graça de Deus. No capítulo 16, há uma recapitulação desses mesmos fatos. João descreve o derramar da sexta taça da ira de Deus. Os flagelos descritos se abatem diretamente sobre uma espécie de trindade maligna: 177 Derramou o sexto a sua taça sobre o grande rio Eufrates, cujas águas secaram, para que se preparasse o caminho dos reis que vêm do lado do nascimento do sol. Então, vi sair da boca do dragão, da boca da besta e da boca do falso profeta três espíritos imundos semelhantes a rãs; porque eles são espíritos de demônios, operadores de sinais, e se dirigem aos reis do mundo inteiro com o fim de ajuntá-los para a peleja do grande Dia do Deus Todo-Poderoso (Ap 16.12-14). É preciso lembrar ainda, que João disse que as pessoas que não recebessem a marca ou o número do nome da besta, o 666, seriam impedidas de comprar ou vender (Ap 13.17). Talvez aqui esteja a solução do enigma: Não receber a marca significaria ser excluído da sociedade, das transações comerciais. Nos dias de João, quando os cristãos se recusavam a adorar o Imperador, ou a participar da vida social imoral, eram excluídos. Podiam perder tudo o que tinham e até mesmo serem mortos. Assim, a provável referência a Nero, ou a Domiciano, pode ser uma solução parcial para o desvendamento do enigma. Desvendar o enigma implica, pois em apreender o conjunto de significados que o número 666 envolve, tanto a referência ao imperador, quanto ao ser humano que se rebela contra Deus; e ainda, os sofrimentos, as perseguições, os sacrifícios e as resignações que sofreram os que permaneceram fiéis. O número 6 Esse número não aparece explicitamente nos capítulos 12 e 13. Entretanto, é o componente básico do número 666. Como vimos acima, o número seis tem uma conotação satânica no Apocalipse, talvez porque seja o que mais se aproxima do sete. Há alguns padrões envolvendo o número seis no capítulo 13 que são intrigantes. Primeiro notamos que há seis menções, no capítulo, ao fato de que a besta recebeu autoridade para agir103. 1) E deu-lhe o dragão o seu poder, o seu trono e grande autoridade (v. 2, repetido em 13.4). 2) Foi-lhe dada uma boca que proferia arrogâncias e blasfêmias e autoridade para agir quarenta e dois meses (v. 5). 3) Foi-lhe dado, também, que pelejasse contra os santos e os vencesse (v. 7a). 4) Deu-se-lhe ainda autoridade sobre cada tribo, povo, língua e nação (v. 7b) 5) por causa dos sinais que lhe foi dado executar diante da besta (v. 14) 6) e lhe foi dado comunicar fôlego à imagem da besta (v. 15). 103 Grifos nossos em todos os textos a seguir. 178 Há ainda seis menções ao fato de que sua principal atividade é “falar”, geralmente associada a blasfemar contra Deus: 1) também adoraram a besta, dizendo: Quem é semelhante à besta? Quem pode pelejar contra ela? (v. 4). 2) Foi-lhe dada uma boca que proferia arrogâncias e blasfêmias (v. 5) 3) e abriu a boca em blasfêmias contra Deus, para lhe difamar o nome e difamar o tabernáculo (v. 6). 4) possuía dois chifres, parecendo cordeiro, mas falava como dragão (v. 11). 5) dizendo aos que habitam sobre a terra que façam uma imagem à besta, àquela que, ferida à espada, sobreviveu (v. 14). 6) e lhe foi dado comunicar fôlego à imagem da besta, para que não só a imagem falasse (v. 15) Do mesmo modo, há seis referências à adoração e ao reconhecimento do dragão e da besta: 1) e toda a terra se maravilhou, seguindo a besta (v. 3). 2) e adoraram o dragão porque deu a sua autoridade à besta (v. 4) 3) também adoraram a besta, dizendo: Quem é semelhante à besta? (v. 4). 4) e adorá-la-ão todos os que habitam sobre a terra, (v. 8). 5) Faz com que a terra e os seus habitantes adorem a primeira besta (v. 12) 6) como ainda fizesse morrer quantos não adorassem a imagem da besta. (v. 15). Constatam-se também seis tipos de pessoas que recebem a marca da besta: “A todos, os pequenos e os grandes, os ricos e os pobres, os livres e os escravos, faz que lhes seja dada certa marca sobre a mão direita ou sobre a fronte” (Ap 13.16). Em conformidade com o restante do livro, os padrões numéricos desempenham importante papel no conteúdo dos capítulos 12-13 de Apocalipse. 179 4.3.2. Repetições João utiliza diversas repetições dentro da estrutura dos capítulos 12-13, seguindo sempre o mesmo padrão, para fixar e/ou desenvolver os temas na mente de seus leitores- ouvintes. Algumas repetições são bem literais e outras mais subjetivas. Por exemplo, duas vezes a mulher é socorrida por Deus e levada para o deserto longe do dragão. A primeira antes da batalha no céu e a segunda após a referida batalha. As frases são bem semelhantes: 18 - Quadro comparativo de repetição Ap 12 V. 6: “A mulher, porém, fugiu para o deserto, V. 13-14: “Quando, pois, o dragão se viu atirado onde lhe havia Deus preparado lugar para que para a terra, perseguiu a mulher que dera à luz o nele a sustentem durante mil duzentos e sessenta filho varão; e foram dadas à mulher as duas asas dias”. da grande águia, para que voasse até ao deserto, ao seu lugar, aí onde é sustentada durante um tempo, tempos e metade de um tempo, fora da vista da serpente”. Essa repetição é emblemática. Ela é frequentemente interpretada pelos estudiosos de linha crítica, como uma variante relacionada ao uso de fontes. Wellhausen considera os versos 1-6 e 7-9, 13-14 como duas variantes paralelas (AUNE, 1998, p. 666). Yarbro Collins (2001, p. 102), seguindo essa mesma linha, entende que a repetição literal no texto poderia ser um trabalho redacional, que dividiu uma fonte ao meio para interpolar outro material. Aune entende que a repetição da fuga da mulher para o deserto é uma revisão do v. 6ab, que serve para resumir a narrativa interrompida pela interpolação nos vs. 7-12 (1998, p. 705-706). Charles considera o verso 6 uma duplicação (doublet) dos versos 13-14, os quais ele considera como sendo do autor original do Apocalipse (1920, p. 301, 304). E Ford relega os versos 6-13 inteiros a alguma fonte diversa que interrompeu o fluxo da narrativa entre 12.5 e 12.14 (1975, p. 205) Alter descreveu a tendência dos estudos críticos da seguinte maneira: Episódios diferentes suscitaram explicações diversas, mas a estratégia mais comum entre os estudiosos da Bíblia é atribuir toda duplicação ostensiva das narrativas a uma duplicação das fontes, a uma espécie de 180 repetição espasmódica durante o processo de transmissão oral ou escrita, da história (2007, p. 83) Todorov mostra que essa lei da “não-repetição”, faria com que, “poder-se-ia cortar uma boa metade da Odisséia como suspeita ou então como uma repetição chocante” (2008, p. 107. No entanto, segundo Todorov, em relação à Odisséia, essas repetições “parecem ter um papel fundamental” (2008, p. 107). Exatamente o mesmo pode ser dito do texto bíblico. Por outro lado, ao analisarmos os comentários conservadores como o de Kistemaker, Hendriksen, Ladd e Wilcock encontramos um perturbador silêncio a respeito dessa repetição. Portanto, aqui podemos justificar mais uma vez a nossa tese. Qual é o propósito teológico do autor ao repetir praticamente a mesma cena? Alter defende que um dos recursos estilísticos dos escritores hebreus é a utilização das cenas padrões na Bíblia Hebraica que se repetem em vários livros, porque isso era uma convenção literária daqueles dias. Ora, o sustento da mulher no deserto é justamente a repetição de uma cena padrão do Antigo Testamento. O povo de Deus foi sustentado no deserto após a travessia do Mar Vermelho; Elias foi sustentado no deserto; e Cristo foi tentado no deserto, mas também sustentado por Deus. Segundo Alter, os antigos escritores hebreus, descobriram com grande astúcia que pequeníssimas variações estratégicas do padrão poderiam servir ao comentário, à análise, à antecipação e à afirmação temática, com efeitos admiráveis de insinuação e intensidade dramática” ( 2007, p. 141). Assim, a duplicação do texto de João pode ser entendida como um recurso estilístico que enfatiza uma realidade frequente para povo de Deus: ser sustentado pelo Criador em um ambiente hostil. Esse é justamente o grande tema desses dois capítulos. Um detalhe que aparece na segunda frase, que não estava na primeira, é a referência às duas asas da grande águia que foram dadas à mulher para que fugisse do dragão. Novamente, os estudiosos críticos vão buscar as fontes dessas asas nos mais diversos mitos, como os mitos gregos da metamorfose de pessoas em animais; ou em informações antigas, nas quais as aparências de diversas divindades tomavam a forma de pássaros (AUNE, 1998, p. 705). A maioria dos estudiosos parece se esquecer das palavras de Isaías 40.31: “os que esperam no SENHOR renovam as suas forças, sobem com asas como águias, correm e não se cansam, caminham e não se fatigam”. Assim, a repetição tem o propósito de destacar que, em meio a toda a perseguição do dragão, Deus fortalecerá o seu povo e o livrará 181 miraculosamente como já fez no passado. Pohl nota que já houve outra ocasião em que Deus livrou o seu povo quando este estava encurralado pelo inimigo (2001, p. 96). Foi na ocasião da travessia do Mar Vermelho. Posteriormente, aquela libertação foi contada da seguinte maneira: “Tendes visto o que fiz aos egípcios, como vos levei sobre asas de águia e vos cheguei a mim” (Êx 19.4). Utilizando-se sempre da mesma palavra na língua grega, a queda do dragão é também descrita de maneira bastante repetitiva: E foi expulso o grande dragão, a antiga serpente, que se chama diabo e Satanás, o sedutor de todo o mundo, sim, foi atirado para a terra, e, com ele, os seus anjos [atirados]. Então, ouvi grande voz do céu, proclamando: Agora, veio a salvação, o poder, o reino do nosso Deus e a autoridade do seu Cristo, pois foi expulso o acusador de nossos irmãos, o mesmo que os acusa de dia e de noite, diante do nosso Deus. Eles, pois, o venceram por causa do sangue do Cordeiro e por causa da palavra do testemunho que deram e, mesmo em face da morte, não amaram a própria vida. Por isso, festejai, ó céus, e vós, os que neles habitais. Ai da terra e do mar, pois o diabo desceu até vós, cheio de grande cólera, sabendo que pouco tempo lhe resta. Quando, pois, o dragão se viu atirado para a terra, perseguiu a mulher que dera à luz o filho varão (Ap 12.9-13). (grifos nossos). Um leitor moderno poderia imaginar que repetir tantas vezes a mesma palavra num texto tão curto implicaria falta de coesão (ALTER, 2007, p. 137). Mas qual efeito a repetição produziria na mente dos leitores-ouvintes? Apenas um efeito sonoro? A repetição enfatiza a irreversibilidade da expulsão do dragão do céu e a força irresistível do poder divino. Por outro lado, três vezes no capítulo 13 é mencionado que a besta recebeu uma ferida mortal, mas foi curada: v 3: “Então, vi uma de suas cabeças como golpeada de morte, mas essa ferida mortal foi curada”; v 12: “Exerce toda a autoridade da primeira besta na sua presença. Faz com que a terra e os seus habitantes adorem a primeira besta, cuja ferida mortal fora curada”; v 14: “Seduz os que habitam sobre a terra por causa dos sinais que lhe foi dado executar diante da besta, dizendo aos que habitam sobre a terra que façam uma imagem à besta, àquela que, ferida à espada, sobreviveu”. É possível identificar a tríplice repetição como uma paródia da ressurreição de Cristo que aconteceu ao terceiro dia. E também é possível ver a atitude do dragão de não desistir. Deus impôs sobre ele uma terrível derrota, ele perdeu seu trono e autoridade. Foi expulso, rebaixado, ferido. Mesmo assim, levanta-se, luta com todas as forças, e em desespero terá algumas curtas vitórias. Essa é a explicação teológica do Apocalipse para o sofrimento infligido por ele aos cristãos. 182 4.3.3. As paródias Um dos principais recursos literários empregado em Apocalipse 12-13 é o da paródia. Já foi visto o quanto o autor fez uso disso através do livro todo. As forças do mal geralmente são descritas como paródias das forças do bem. Retomamos o conceito de paródia que foi exposto nesse trabalho, ou seja, um processo de imitação textual com intenção de produzir um efeito de ironia e, às vezes, drama. A mulher vestida de sol tem uma coroa de doze estrelas na cabeça, já o dragão que arrasta um terço das estrelas e tem sete cabeças (talvez uma paródia no próprio número), tem também sete diademas sobre as cabeças. Kistemaker (2004, p. 452-453) vê nesses diademas, que não são exatamente coroas, uma imitação, “uma pretensa realeza”, uma paródia (imitação rebaixada) da verdadeira realeza pertencente a Deus e ao seu povo. A mensagem, portanto, é que o dragão só consegue imitar, porém é uma má imitação. O capítulo 13 é o que concentra o maior número de paródias. Kistemaker identifica sete paródias satânicas nos versos reproduzidos abaixo (2004, p. 475-476). 1) O dragão deu à besta seu poder, seu trono e grande autoridade (v. 2). 2) Uma de suas cabeças como golpeada de morte, mas essa ferida mortal foi curada (v. 3). 3) E toda a terra se maravilhou, seguindo a besta e adoraram o dragão (v. 3-4). 4) Vi ainda outra besta emergir da terra; possuía dois chifres, parecendo cordeiro, mas falava como dragão (v. 11). 5) Faz com que a terra e os seus habitantes adorem a primeira besta, cuja ferida mortal fora curada. (v. 12). 6) Seduz os que habitam sobre a terra por causa dos sinais que lhe foi dado executar diante da besta, 7) dizendo aos que habitam sobre a terra que façam uma imagem à besta, àquela que, ferida à espada, sobreviveu (v. 14). A besta que surge do mar é uma imitação de Cristo. Mas antes disso, é preciso notar que ela é uma espécie de paródia da paródia, ou seja, uma paródia do próprio dragão. O dragão foi descrito como tendo sete cabeças, dez chifres e sete diademas sobre as sete cabeças. A besta, por sua vez, tem sete cabeças, dez chifres e dez diademas sobre os dez chifres. É semelhante, mas ao mesmo tempo é diferente. O objetivo de João é demonstrar que a besta opera com o poder do dragão, mas ao mesmo tempo não é o dragão. 183 A investidura feita pelo dragão em relação à besta do mar, que se torna uma espécie de vice-regente do dragão na terra é certamente uma imitação da investidura divina nos capítulos 4-5 do Apocalipse, onde o Filho é investido vice-regente de Deus para governar os atos celestes e terrenos. A principal imitação associada à primeira besta está descrita nos versos 3-4: Então, vi uma de suas cabeças como golpeada de morte, mas essa ferida mortal foi curada; e toda a terra se maravilhou, seguindo a besta; e adoraram o dragão porque deu a sua autoridade à besta; também adoraram a besta, dizendo: Quem é semelhante à besta? Quem pode pelejar contra ela? Essa descrição é uma paródia explícita do que João relatou no capítulo 5, quando descreveu Jesus como Cordeiro: “Então, vi, no meio do trono e dos quatro seres viventes e entre os anciãos, de pé, um Cordeiro como tendo sido morto. Ele tinha sete chifres, bem como sete olhos, que são os sete Espíritos de Deus enviados por toda a terra” (Ap 5.6). No capítulo 13, João volta a relatar em termos de imitação essa “ressurreição” da besta dizendo que ela é “aquela que, ferida à espada, sobreviveu” (Ap 13.14). Ele usou termos parecidos anteriormente para descrever Cristo: “Estas coisas diz o primeiro e o último, que esteve morto e tornou a viver” (Ap 2.8, cf. 1.18). A grande proclamação do Cristianismo é a ressurreição de Cristo. A mensagem cristã proclama que Jesus morreu na cruz, mas ressuscitou vitorioso ao terceiro dia. João descreve que o dragão tem sua própria versão dessa história. Uma das cabeças (que representa um rei) foi ferida de morte, mas a ferida mortal foi curada. O resultado é a admiração de toda a terra que passa a adorar ao dragão por esse feito extraordinário. Entretanto, João descreve a ressurreição da besta de forma diferente da ressurreição de Cristo, pois Cristo morreu numa cruz, enquanto que a besta foi ferida pela espada. Em outra recapitulação da história, ele diz que a besta “era e não é, está para emergir do abismo e caminha para a destruição” (Ap 17.8). Cristo já foi descrito como aquele “que é, que era e que há de vir” (Ap 1.4, 8). Conclui-se que, com esse uso da paródia João é capaz de sugerir que a morte e a ressurreição da besta é uma enganosa imitação da morte e ressurreição de Cristo (BAUCKHAM, 1993b, p. 433). O reconhecimento da “ressurreição” da besta segue-se de adoração mundial (vs. 4, 8, 12, 15). Evidentemente isso também é uma paródia da adoração que o Cordeiro recebeu após ser entronizado nos céus (Ap 5.6ss). A segunda besta, a que surge da terra, também é descrita em forma de paródia: 184 Vi ainda outra besta emergir da terra; possuía dois chifres, parecendo cordeiro, mas falava como dragão. Exerce toda a autoridade da primeira besta na sua presença. Faz com que a terra e os seus habitantes adorem a primeira besta, cuja ferida mortal fora curada. Também opera grandes sinais, de maneira que até fogo do céu faz descer à terra, diante dos homens (Ap 13.11-13). Ela é uma imitação de um cordeiro. Talvez os leitores de João pudessem se lembrar do exemplo do lobo vestido em peles de ovelha com o qual Jesus identificou os falsos profetas (Mt 7.15). Esse cordeiro fala como dragão. O cordeiro em Apocalipse é a figura do próprio Cristo (Ap 5.6ss). Portanto, a segunda besta é uma paródia da pessoa de Cristo. A sugestão é que ela faz milagres como Cristo, mas está a serviço do dragão com o propósito de fazer as pessoas adorarem a primeira besta. É possível ver na primeira besta o poder do império romano, e na segunda, o poder sacerdotal que dava legitimidade ao culto do imperador. A própria marca que a segunda besta faz com que seja posta na fronte e na mão direita daqueles que adoram a primeira besta é uma imitação da marca de Deus sobre o seu povo (Ap 7.2-4, 9.4). Deus marcou seu povo para que não fosse atingido pelos flagelos que ele envia ao mundo, enquanto a besta marca seus servos para que fujam da sua ira contra a igreja (MOUNCE, 1977, p. 262). 4.3.4. Estrutura de quiasmo HUMPHREY (2003, p. 88) percebe que a estrutura das cenas no capítulo 12 forma a ideia de um quiasmo: A. A mulher e o dragão B. A perseguição e fuga da mulher C. Guerra no céu D. Declaração de vitória C. Guerra no céu B. A perseguição e fuga da mulher A. Guerra na terra Mas, provavelmente a melhor estrutura da passagem seja a seguinte: 185 A. A mulher e o dragão no céu B. A fuga da mulher para o deserto C. A guerra no céu D. O cântico de vitória A. A mulher e o dragão na terra B. A fuga da mulher para o deserto C. A guerra na terra Ainda que não seja uma estrutura de quiasmo tradicional, há uma correlação de ideias muito interessante na passagem, com destaque para a inversão de cenários entre terra, céu e deserto. Aune vê no verso um claro arranjo de quiasmo causado pela parentética menção dos aliados do dragão e a resolução que segue (1998, p. 695). A. E foi expulso o grande dragão, B. a antiga serpente, que se chama diabo e Satanás, B. o sedutor de todo o mundo, A. sim, foi atirado para a terra, e, com ele, os seus anjos. O versos 15 e 16 (Ap 12) certamente formam um quiasmo: Então, a serpente arrojou da sua boca, atrás da mulher, água como um rio, a fim de fazer com que ela fosse arrebatada pelo rio. A terra, porém, socorreu a mulher; e a terra abriu a boca e engoliu o rio que o dragão tinha arrojado de sua boca. Pode ser colocado da seguinte forma: A. Então, a serpente arrojou da sua boca, B. atrás da mulher, água como um rio, C. a fim de fazer com que ela fosse arrebatada pelo rio. C. A terra, porém, socorreu a mulher; B. e a terra abriu a boca e engoliu o rio A. que o dragão tinha arrojado de sua boca 186 Esses jogos de linguagem apontam para o cuidadoso estilo com que a obra foi composta. Indicaria que as cenas derradeiras do mundo continuavam seguindo um propósito harmonioso, quase cíclico, em que o Deus todo-poderoso dirige os eventos e elementos conduzindo cada ato, mesmo os realizados pelos inimigos e perseguidores, para o cumprimento de seus bons propósitos para seu povo. 4.3.5 Outros recursos literários   Apesar de ser um texto curto, João encontrou espaço para utilizar mais três gêneros literários dentro dos capítulos 12-13. Cântico A derrota do dragão e de seu exército é celebrada por uma proclamação celeste. Provavelmente, seja uma espécie de cântico celeste após a vitória. Esse tipo de gênero literário é comum no Antigo Testamento. Por exemplo, após a travessia do Mar Vermelho, Moisés e o povo de Israel celebraram a vitória sobre os exércitos de Faraó com um cântico (Êx 15). Do mesmo modo, Davi entoou um cântico ao Senhor quando Deus o livrou das mãos de todos os seus inimigos (2Sm 22). A estrutura do cântico como se encontra na 26ª edição do Nestle Aland, é a seguinte: Agora, veio a salvação, o poder, [e] o reino do nosso Deus e a autoridade do seu Cristo, pois foi expulso o acusador de nossos irmãos, o mesmo que os acusa de dia e de noite, diante do nosso Deus. Eles, pois, o venceram por causa do sangue do Cordeiro e por causa da palavra do testemunho que deram e, mesmo em face da morte, não amaram a própria vida. Por isso, festejai, ó céus, 187 e vós, os que neles habitais. Ai da terra e do mar, pois o diabo desceu até vós, cheio de grande cólera, sabendo que pouco tempo lhe resta. Ao estilo dos cânticos de vitória do Antigo Testamento, esse cântico repleto de poesia104 traz elementos descritivos da realidade mesclados com profundos ensinamentos teológicos. O primeiro destaque é para a palavra “agora”. Ao utilizar esse advérbio, João “aponta para a linha divisória na história humana, a morte e ressurreição de Cristo, a qual resultou na vitória sobre Satanás” (KISTEMAKER, 2004, p. 462). A vitória de Cristo sobre a morte e sua subida ao céu desencadeou a expulsão do dragão. Assim, o reino de Deus e a autoridade de seu Cristo se estabeleceram. A pergunta que precisa ser feita é: onde? Ao que tudo indica, no céu, que se vê livre daquele que tinha livre acesso antes e podia atuar como uma espécie de promotor da justiça, acusando os seres humanos de suas quebras da lei divina. Ao pagar todo o preço do resgate do ser humano, o Cristo destronou o acusador, que já não tem mais base para continuar acusando o povo de Deus. Por isso, o reino de Deus e a autoridade de seu Cristo se estabelecem primordialmente no céu (onde também as almas vão reinar em Ap 20.4). Entretanto, o reino de Deus no céu também migrará para a terra, mas antes, o dragão terá um período de tempo para agir no mundo. Por essa razão, a proclamação da vitória mescla elementos de alívio e apreensão. O alívio aparece na primeira estrofe, pela constatação de que Cristo conquistou sua posição no céu e o dragão perdeu a que lhe era de direito. Mas a apreensão se manifesta no final do cântico, porque o dragão descerá para terra cheio de grande cólera, sabendo do pouco tempo que lhe resta. O ponto alto do cântico pode ser considerado uma espécie de refrão entre as duas estrofes, com a explicação da vitória dos fiéis sobre as forças das trevas: “Eles, pois, o venceram por causa do sangue do Cordeiro e por causa da palavra do testemunho que deram e, mesmo em face da morte, não amaram a própria vida” (Ap 12.11). Essa declaração se reveste de grande importância, pois atesta que a vitória dos anjos no céu, na 104 YARBRO COLLINS encontrou inclusive rimas no texto grego do cântico (2001, p. 137), o que sem dúvida é um pouco estranho, afinal a poesia hebraica (mesmo João escrevendo em grego seu estilo é hebraico) não tem preocupação com rima, mas com o sentido e colocação das frases e palavras. 188 verdade é uma repercussão da vitória dos santos na terra que enfrentaram o martírio mantendo a fidelidade a Cristo, e que em última instância é a própria vitória de Cristo, que morreu, derramou seu sangue como resgate de seu povo, mas ressuscitou. A última estrofe antecipa expectativas negativas e contrasta os estados dos dois lugares (céus e terra) a partir da expulsão do dragão, ou seja, festa nos céus e horror na terra. Perdendo seu posto de acusador no céu, o dragão percebe que de nada lhe serve agir pelo caminho legal, ou seja, o de acusar os crentes diante de Deus com base no descumprimento da lei divina. Toda a sua base legal de acusação foi desmantelada pela obra do Cristo que ele tentou destruir, mas não conseguiu. Só lhe resta então lançar mão de toda a sua fúria e perseguir diretamente os cristãos na terra. Por isso, a terra se torna um lugar temporário de domínio do dragão enquanto os céus estão plenamente sob o domínio de Cristo. Provérbio Dentro da abundância de gêneros e subgêneros literários utilizados pelo autor na seção que estamos estudando, encontra-se também um provérbio. Os provérbios são ditos de sabedoria que transmitem verdades práticas através de frases curtas. O Antigo Testamento contém um livro inteiro de provérbios, intitulado Provérbios de Salomão, que foi considerado o rei mais sábio da antiguidade. O provérbio do texto de Ap 13:9-10 é o seguinte, conforme tradução nossa do texto grego: “Se alguém tem ouvidos, ouça. Se alguém leva para cativeiro, para cativeiro vai. Se alguém pela espada fizer morrer, Ele pela espada será morto. Aqui está a perseverança e a fidelidade dos santos”. Thompsom (1990, p. 49) nota que o uso das preposições nesse provérbio cria um jogo verbal: “para – para, pela – pela”. A colocação das preposições na frase adquire sentidos distintos. A repetição das frases dá a ideia de uma retribuição na mesma medida. Diante do sofrimento imposto pela besta que recebeu autoridade para guerrear contra os santos e os vencer, só resta ao povo de Deus a resignação. Lançar mão das mesmas armas 189 do inimigo é garantia de morrer sob as armas do inimigo. Se submeter ao sofrimento é a prova de perseverança e fidelidade, e, por fim, dá direito à recompensa divina. O referido provérbio é um incentivo para confiar inteiramente em Deus, deixar em suas mãos toda a vingança e retribuição. Outro antigo provérbio já dizia: “Porque a ira do homem não produz a justiça de Deus” (Tg 1.20). É preciso também lembrar que, diante do poderio do Império Romano, pouco poderia ser feito pelos cristãos durante o primeiro século, no sentido de contra-atacarem ou mesmo de se defenderem. Mas essa não é a razão principal. O estilo teológico do apocalíptico exige que se confie totalmente em Deus, pois o dragão já foi expulso do céu, e apesar de ainda estar relativamente livre para operar na terra, o seu fim já está decretado. Cabe aos cristãos esperar que o reino de Deus que já se consumou no céu, em breve se consuma na terra também. A palavra, portanto, é paciência. Com esse provérbio instigando paciência, o autor encerra a seção descritiva da besta do mar. Enigma A seção descritiva da besta da terra é finalizada com a proposição de um enigma: “Aqui está a sabedoria. Aquele que tem entendimento calcule o número da besta, pois é número de homem. Ora, esse número é seiscentos e sessenta e seis” (Ap 13.18). Qualquer que seja o significado, o próprio enigma impressiona pela estrutura simples e, ao mesmo tempo, misteriosa. E, talvez, esse seja o propósito literário maior. A história da besta nessa seção termina com um enigma, com um mistério até certo ponto insolúvel. Isso aponta para as ações misteriosas de Deus em permitir que o inimigo aja durante o tempo que lhe foi determinado. Ao mesmo tempo, serve para alertar o povo de Deus contra o engano da falsa religião, o qual poderia passar despercebido por muitos, se não usassem a inteligência para ver. Por isso, o enigma encerra a descrição da besta, chamando os cristãos para pensarem a respeito, e serem cautelosos, pois estão pisando em território usurpado pelo dragão. Conclui-se que os capítulos 12-13 que são o núcleo do texto do Apocalipse mantêm o padrão da arte literária do restante do livro. As repetições, os padrões numéricos, as estruturas poéticas e proverbiais aprofundam o significado do texto. Todos esses recursos não são apenas estéticos, ou seja, não foram planejados apenas para causar uma sensação de surpresa ou admiração nos leitores-ouvintes. Foram planejados para estruturar o enredo. Nossos próximos passos nesse trabalho nos conduzirão a ver como, na somatória de todos 190 esses elementos, João construiu o seu enredo, e assim concluiremos essa tese, estabelecendo a importância da análise da arte literária para a compreensão dos temas teológicos e morais do Apocalipse de João. 4.4. Análise do enredo na narrativa de Apocalipse 12-13 Através dos estudos no livro do Apocalipse encontramos um padrão que foi amplamente comprovado: a recapitulação. Ou seja, a narrativa de João não segue um padrão linear, mas cíclico. No entanto, não se trata apenas de repetir a mesma coisa, as seções recapitulativas são micro-enredos completos, e fazem progredir a história a cada ciclo, até o grande desfecho, no final do livro. Encontramos esse mesmo estilo dentro das seções. Especialmente, os capítulos 12-13, alvo de nosso estudo agora, mostram isso. A história que João quer contar nos capítulos 12-13 é a da perseguição do dragão à igreja. Ele faz isso quatro vezes criando pequenas unidades completas de enredo que se relacionam entre si e fazem a história progredir. A análise dessas quatro pequenas narrativas cíclicas e progressivas nos ajudará a ver que o padrão literário utilizado por João no todo, também foi utilizado nas partes. A narrativa, segundo Todorov, não se contenta apenas com ação ou com um estado, mas “exige o desenvolvimento de uma ação, isto é, a mudança, a diferença” (1980, p. 62)105. Os dois princípios que Todorov considera unidades essenciais das narrativas são: sucessão e transformação (1980, p. 64). Ou seja, o equilíbrio original de uma narrativa, ao passar pelo estado de desequilíbrio, não volta ao equilíbrio original, mas transforma-se em um novo estado, que é um novo equilíbrio. Yves Reuter resume essa ideia ao asseverar que “a narrativa se definiria como transformação de um estado em um outro estado” (1996, p. 49) Todo texto narrativo se constrói a partir da elaboração de fatores que dão sentido à narrativa. Entre esses fatores estão a construção de personagens, a definição do tempo da narrativa, a construção dos cenários ou a definição do espaço, o próprio modo como o 105 Genette afirma: “num primeiro sentido – que é hoje o mais evidente e o mais central no uso comum -, narrativa designa o enunciado narrativo, o discurso oral ou escrito que assume a relação de um acontecimento ou de uma série de acontecimentos” (1995, p. 23). 191 narrador contará a história, conduzindo tudo para o desenvolvimento do enredo. Por enredo, ou intriga, entendemos o que Todorov define do seguinte modo: Pode-se apresentar a intriga mínima completa como a passagem de um equilíbrio a outro. Esse termo equilíbrio, que tomo de empréstimo à psicologia genética, significa a existência de uma relação estável, mas dinâmica entre os membros de uma sociedade: é uma lei social, uma regra do jogo, um sistema particular de troca. Os dois momentos de equilíbrio, semelhantes e diferentes, estão separados por um período de desequilíbrio que será constituído de um processo de degradação e um processo de melhora (2008, p. 88). Todorov propõe essa definição como um padrão estrutural que pode ser encontrado na maioria das narrativas. Mesmo não compartilhando desta certeza, porém, considerando o aspecto da transformação como relevante para muitas narrativas, procuraremos a seguir ver a progressão da narrativa através das quatro curtas seções recapitulativas dentro dos capítulos 12 e 13 do Apocalipse. Mais do que considerar os textos apenas em seus aspectos históricos, ou buscar suas possíveis formas e, ou fontes, analisaremos o texto como ele se apresenta, entendendo que o texto bíblico é o resultado de “tensão existencial, seja ela comunitária ou pessoal” e que aborda os temas mais profundos e cruciais da existência humana em uma relação que se expressa no mais das vezes tensa por envolver as incertezas humanas de um lado, e o poder e a ação de Deus, que nem sempre são percebidos ou compreendidos, de outro (ZABATIERO & LEONEL, 2011, p. 127). Ao considerar o texto em si mesmo, essas tensões se tornam bem evidentes. A fim de entender a multiplicidade de ações de uma narrativa, muitos estudiosos literários têm insistido na delimitação de “funções” que possam “se reduzir a um conjunto finito, comum a todas as histórias” (REUTER, 1996, p. 47). Yves Reuter cita o estudo do russo Vladimir Propp que encontrou 31 “funções” que constituiriam a base comum de todas as narrativas, desenvolvendo-se da situação inicial de abertura, onde os personagens são apresentados, passando por diversas situações de afastamento, interdição, transgressão, interrogação, informação, reação, deslocamento, reparação, etc., até o desfecho, com a punição do falso herói e recompensa do verdadeiro (REUTER, 1996, p. 47-49). A dificuldade com uma estrutura tão grande de “funções” é óbvia, pois não se pode transferir tantos movimentos para outras narrativas, por isso, buscou-se reagrupar essas funções em subconjuntos. Com base nisso, chegou-se ao chamado “esquema quinário” (devido às suas cinco etapas), ou “esquema canônico da narrativa” (REUTER, 1996, p, 49; 2002, p. 35-36). 192 As cinco etapas são as seguintes: Estado Inicial – Complicação (ou força perturbadora) – Dinâmica – Resolução (ou força equilibradora) – Estado Final. Assim, a narrativa constitui-se essencialmente de transformação, em que um “estado inicial” de um elemento, passar por uma complicação que permite movimentar a história e fazê-la sair de um estado que poderia durar; sofrendo um encadeamento de ações ou dinâmica, que somado a outro elemento ou resolução, conclui o processo das ações, instaurando um novo estado, que vai perdurar até a ocorrência de uma nova complicação (REUTER, 2002, p. 36). Usaremos nesse trabalho, termos correlatos aos apresentados por Reuter.106 São eles: apresentação, complicação, desenvolvimento, clímax e desenlace. Entendendo que esse esquema deve ser utilizado de forma flexível, para não cair na generalização (REUTER, 2022, P. 48), procuraremos identificar os cinco aspectos nas narrativas dos capítulos 12-13 de Apocalipse. Durante a análise prestaremos atenção também às personagens, ao tempo, espaço ou cenário, e ao estilo do narrador, porém de forma bastante resumida a fim de não tornar o estudo repetitivo. 4.4.1. Ap 12.1-6: a mulher, o dragão e o filho 12:1 Viu-se grande sinal no céu, a saber, uma mulher vestida do sol com a lua debaixo dos pés e uma coroa de doze estrelas na cabeça, 2 que, achando-se grávida, grita com as dores de parto, sofrendo tormentos para dar à luz. 3 Viu-se, também, outro sinal no céu, e eis um dragão, grande, vermelho, com sete cabeças, dez chifres e, nas cabeças, sete diademas. 4 A sua cauda arrastava a terça parte das estrelas do céu, as quais lançou para a terra; e o dragão se deteve em frente da mulher que estava para dar à luz, a fim de lhe devorar o filho quando nascesse. 5 Nasceu-lhe, pois, um filho varão, que há de reger todas as nações com cetro de ferro. E o seu filho foi arrebatado para Deus até ao seu trono. 6 A mulher, porém, fugiu para o deserto, onde lhe havia Deus preparado lugar para que nele a sustentem durante mil duzentos e sessenta dias. Apresentação (vs.1-2) A cena começa com a apresentação onde é feita a descrição das personagens principais em conflito numa guerra cósmica. A Mulher de Apocalipse 12 é uma narrativa 106 Reuter cita Greimas e Larivaille como autores que tentaram resumir a intriga num modelo mais abstrato e simples (1996, p. 49). 193 em si mesma107. Seu surgimento no céu é revestido de grandes significados para os leitores- ouvintes de João. Alguns, talvez, pensassem em Maria, a mãe de Jesus; outros provavelmente a identificassem com a Igreja. Já argumentamos que a interpretação mais provável da Mulher seja como uma referência ao povo de Deus do Antigo Testamento. Algo importante a ser lembrado é que a figura da mulher na literatura bíblica e, principalmente, na literatura rabínica não está associada à virtude. O próprio texto de Eva é o grande exemplo disso. A mulher foi enganada pela serpente. Outras mulheres que tiveram deslizes na Bíblia foram Sara, a esposa de Abraão que o induziu a possuir a escrava Hagar, a fim de gerar um filho; e Bate-Seba que se envolveu com Davi em adultério. É evidente que há exceções, pois prostitutas como Raabe, a mulher samaritana e Maria Madalena recebem acolhimento dentro do povo da Aliança. No Novo Testamento, o Apóstolo Paulo escreveu a respeito da mulher: E não permito que a mulher ensine, nem exerça autoridade de homem; esteja, porém, em silêncio. Porque, primeiro, foi formado Adão, depois, Eva. E Adão não foi iludido, mas a mulher, sendo enganada, caiu em transgressão. Todavia, será preservada através de sua missão de mãe, se ela permanecer em fé, e amor, e santificação, com bom senso (1Tm 2.12- 15). É possível dizer, portanto, que em Apocalipse 12 há um resgate da figura da mulher, descrevendo-a como uma criação gloriosa de Deus, porém, fazendo eco com a passagem de Paulo acima citada, a glória da mulher se expressa pelo fato de ela estar grávida, desfrutando, portanto, de seu estado de maior bem aventurança (conforme a tradição hebraica), e também de seu maior momento de fragilidade. Ela é uma protagonista, mas apesar de toda a sua glória, evoca as lembranças de alguém que precisa de socorro e proteção, não conseguindo sobreviver sozinha. O cenário em que ela aparece é “no céu”. Segundo Router, “os lugares vão primeiramente definir a fixação realista ou não realista da história” (2002, p. 52). A preocupação com descrever o mais semelhantemente possível os cenários visa criar o efeito de real. No caso do Apocalipse, não há preocupação em descrever os cenários conforme os leitores do primeiro século poderiam visualizar, encaixando-se mais numa descrição não realista, porém, nem por isso os lugares deixavam de ser “reais”. A força da visão profética garante o “realismo” das cenas. Se a melhor interpretação para a Mulher é de fato a igreja, 107 Falando sobre a narrativa de encaixe, Todorov diz que “a personagem é uma história virtual que é a história de sua vida. Toda personagem significa uma nova intriga. Estamos no reino dos homens-narrativas” (2008, p. 123). 194 ou o povo de Deus, principalmente do Antigo Testamento que diversas vezes foi descrito como uma mulher sofrendo as dores do parto (Is 21.3, 26.17-18, Jr 4.31, 6.24, Mq 4.9-10), então de fato há um contraste pretendido na visão, um paradoxo, pois na terra, esta igreja pode parecer muito insignificante e exposta a escárnio e ridículo; mas, do aspecto celestial, esta mesma igreja é todo-gloriosa: o céu derrama sobre ela, com abundância, tudo quanto pode contribuir para sua glória e esplendor (HENDRIKSEN, 1987, p. 166). A Mulher adornada com os astros está “no céu”, mas ao mesmo tempo, sofrendo dores bem terrenas. É preciso lembrar que, no Gênesis, Deus havia ameaçado o homem e a mulher com a morte em caso de desobediência (Gn 2.17). Por isso, quando Deus assegurou que Eva continuaria a ter filhos, a dor e o sofrimento resultantes da concepção, não poderiam ser considerados uma plena maldição, antes uma maldição diminuída. O grande presente de Deus para a mulher é a concepção e o dar à luz. Isso garante a continuidade da vida. Portanto, os gritos da Mulher gloriosa que ecoam do céu evocam a concepção de esperança e expectativa pelo nascimento de seu filho. É o anúncio divino de que o Messias finalmente vai nascer e todas as promessas de libertação e paz vão se concretizar para a Mulher (Israel). Pode ser considerado o estágio de equilíbrio original (Todorov), evocando o próprio equilíbrio restaurado por Deus em Gênesis 3, após amaldiçoar a serpente. Porém, é mais do que isso, pois aponta para a expectativa de toda a Bíblia: a expectativa pela vinda do Messias que trará a benevolência de Deus para o mundo. Complicação (v. 3-4a) Justamente nesse estado de glória-fragilidade da Mulher, aparece o outro grande sinal também no céu. Nesse ponto, João chama a atenção dos leitores. Ele diz “olhe” (uma espécie de imperativo), aí está um dragão, grande, vermelho, com sete cabeças, dez chifres e sete diademas! (KISTEMAKER, 2004, p. 452). Assim, João faz a visão do leitor ser direcionada da beleza radiante da Mulher grávida para o poder e repugnância do dragão. Estabelece-se um forte contraste, e também começa-se a criar uma apreensão pelo que vai acontecer. O dragão é uma figura comum da mitologia de muitos povos. O dicionário de símbolos de Chevalier caracteriza a figura do dragão como: princípio ativo e demiúrgico; poder divino, sopro espiritual, símbolo celeste, potência e vida, aquele que fez parte do começo do mundo, saindo das águas primordiais (1986, p. 429). Ou seja, para a simbologia, 195 o dragão pode representar tanto o bem quanto o mal, a vida e a morte. Mas no texto de João, ele é inteiramente mau. Ele é o grande adversário da Mulher. A localização desse dragão no céu também aponta para algo paradoxal. Ele não deveria estar lá, pois o céu é o lugar da presença de Deus. Ao mesmo tempo, a fúria violenta dessa criatura se expressa num movimento com a cauda em que arrasta um terço das estrelas do céu (anjos), sendo uma demonstração ainda maior de sua ousadia e usurpação. Assim, o quadro terrível está exposto, um suspense ameaçador se estabeleceu. O que fará o dragão monstruoso em relação à gloriosa, porém frágil mulher grávida? Desenvolvimento (v. 4b) As piores suspeitas do leitor se confirmam quando o narrador diz que “o dragão se deteve em frente da Mulher que estava para dar à luz, a fim de lhe devorar o filho quando nascesse”. As intenções do dragão são reveladas nesse momento de ampliação da tensão. A criatura gigante e terrível está diante da Mulher com um propósito nefasto: devorar o filho. Ele quer devorar a criança que ela vai dar à luz, e assim frustrar todas as expectativas de vida e bênção prometidas ao povo de Deus. Assim o autor desenvolveu a grande tensão inicial da cena que se desdobrará em vários segmentos depois, mas que sempre será a realidade tensional última por detrás de todo o Apocalipse: a tentativa do dragão de destruir o Filho de Deus, e por conseguinte, sua “mãe”. Olhando para trás (Antigo Testamento) ou visualizando o futuro, esse sempre será o objetivo máximo do dragão, segundo o autor do Apocalipse. Clímax (v. 5a) Na sequência da cena, é feito o anúncio do nascimento do filho. É descrito nos termos do nascimento de um grande rei: “Nasceu-lhe, pois, um filho varão, que há de reger todas as nações com cetro de ferro” (Ap 12.5). Esse “filho” está no centro de todo o conflito cósmico registrado na Bíblia. Note que não há apresentação de nome. Ele é simplesmente chamado de “filho” ou “filho varão”. É seu epíteto que o descreve: ele vai governar as nações com cetro de ferro (referência messiânica do Salmo 2). Para os leitores de João, não há dúvidas sobre quem se refere. Trata-se de Jesus Cristo, o grande protagonista do Novo Testamento e, portanto, também o protagonista do Apocalipse. 196 Logo no início do Apocalipse, quando João recebeu a visão de Jesus na ilha de Patmos, descreveu-o de forma gloriosa, com olhos de fogo, pés de bronze, cabelos brancos como a neve e uma espada de dois gumes saindo de sua boca. Porém, outras descrições de Jesus no livro apontam para sua fragilidade humana, para sua morte como cordeiro (Ap 1.12-18, Ap 4.5-6). No final do Apocalipse, quando João o vê retornando vitorioso à terra, ele está montado num cavalo branco, então, novamente o descreve com olhos de fogo e a espada saindo de sua boca, mas o seu manto está tinto de sangue (Ap 19.11-15). Ele sempre vai ser descrito em fraqueza e vitória simultaneamente, porque sua fraqueza é sua vitória. Na cena do capítulo 12, ele é um bebê até certo ponto indefeso, mas já é dito que vai reger as nações com cetro de ferro. Assim, nesse personagem sempre estão entrelaçadas a fraqueza e a força, a humanidade e a divindade. Como é próprio do gênero apocalíptico, o tempo nas narrativas é indefinido e não muito importante para o significado das mesmas, por isso, não se justifica nessa análise preocupação com estabelecimento de uma “cronologia”, entretanto, importa observar como na narrativa, as mudanças, nas palavras de Todorov, “recortam o tempo em unidades descontínuas; o tempo, pura duração opõe-se ao tempo dos acontecimentos” (1980, p. 62). Na cena, o leitor cristão é remetido aos tempos do nascimento de Jesus e, por certo, a primeira lembrança que lhe vem é a de Herodes mandando matar os meninos em Belém. A “espera do dragão” já amplamente comentada nesse trabalho remete a um tempo histórico passado, a um momento específico em que o dragão ser viu frustrado em seu propósito. O bebê veio ao mundo. Ele é o filho esperado, aquele que foi profetizado desde a fundação do mundo, é o verdadeiro rei do mundo. Por isso, o dragão movimenta todo o seu poder a fim de destruí-lo. A tensão aumenta: o dragão alcançará seu intento de devorá-lo? Desenlace (v. 5b-6) O desfecho da narrativa é alcançado com a declaração de que o dragão fracassou em seu propósito nefasto: “E o seu filho foi arrebatado para Deus até ao seu trono” (Ap 12.5). Aqui há uma abreviação temporal, uma elipse, pois toda a vida de Jesus é descrita num só ato de nascer e ser arrebatado para o trono de Deus. Esse arrebatamento é uma referência simbólica à Ascensão de Jesus descrita em Atos 1.9. O efeito de abreviação temporal destaca os dois elementos menos considerados na obra redentiva de Jesus: seu nascimento e ascensão. É comum o Novo Testamento enfatizar a morte e a ressurreição de Cristo como fatores determinantes para a derrota de Satanás, mas através da omissão desses eventos, 197 João consegue um efeito duplo: fazer o leitor lembrar-se deles, ao mesmo tempo em que pensa na importância do nascimento e da ascensão. Enquanto o filho é arrebatado para o Trono, a Mulher foge para o deserto, onde será protegida. Assim, a história é conduzida para um novo equilíbrio. A Mulher gloriosa antes perseguida no céu, agora está no deserto, guardada por Deus. Seu filho está à salvo junto ao trono de Deus. Portanto, chega-se a um desfecho. Mas é um desfecho provisório. Tem-se, pois, a primeira referência temporal explícita ao tempo em que ela será sustentada no deserto: mil duzentos e sessenta dias. Embora seja uma referência temporal, não é, contudo, uma referência literal. É um tempo específico, porém indefinido em que Deus permitirá que seu povo seja testado pelas forças do mal. Importante notar que o “deserto” na Bíblia é o local da tentação e também o local da oportunidade de se encontrar com Deus. No deserto, Israel foi provado durante os quarenta anos após a saída do Egito. No deserto, Elias vagou e recuperou a fé após ser sustentado miraculosamente por Deus que ordenou que os corvos lhe trouxessem pão e carne (1Rs 17.6). Provavelmente, a cena da Mulher sustentada no deserto tem seu maior eco nessa cena do Antigo Testamento. É importante ainda destacar que foi para o “deserto” que o Espírito guiou Jesus para ser tentando pelo diabo (Mt 4.1ss). A respeito do narrador, podemos dizer que como a maioria dos narradores das histórias bíblicas, ele também é onisciente (ALTER, 2007, p. 234). A narrativa analisada até aqui é toda em terceira pessoa108. Podemos definir, conforme a instância narrativa, o narrador do Apocalipse, segundo a combinação de Yves Reuter, como “narrador heterodiegético e perspectiva passando pelo narrador” (2002, p. 75). O narrador utiliza duas vezes a expressão “viu-se” para indicar o surgimento tanto da Mulher quanto do dragão. Fazendo isso, ele está compartilhando a visão com os personagens do livro. Todos puderam ver. Ou seja, ele está se colocando de lado na narrativa (heterodiegético) e essa minimização da sua presença transforma-se em abertura para o leitor. Ao mesmo tempo, ele 108 Segundo Stanzel (1984, p. 47ss) há três elementos constitutivos das situações narrativas: a pessoa, a perspectiva e o modo. Por pessoa entende-se a pergunta simples: “quem está narrando?”. A questão chave em princípio é se o narrador aparece dentro da história como uma pessoa independente, ou se ele esconde-se por trás dos eventos até se tornar praticamente invisível para o leitor. Por modo entende-se a questão do envolvimento do narrador com a narrativa, polarizando-se em dois aspectos: o narrador existe como um personagem dentro do mundo da narrativa ficcional ou se ele existe fora desse mundo ficcional. Geralmente isso está associado com a narração em primeira pessoa (dentro do mundo ficcional) ou em terceira pessoa (fora do mundo ficcional). Mas Stanzel percebe que essa caracterização rígida é insuficiente, pois não é exatamente o uso do modo verbal que define o modo da narrativa, e sim o real envolvimento do narrador com a narrativa (1984, p. 49). A perspectiva se define como uma espécie de “ponto de vista” ou “focalização” do narrador, ou seja, se ele está focalizando a história de dentro dela mesma, ou se é de fora (1984, p. 49). 198 sabe todas as coisas, conhece os comportamentos e as intenções de todos os seus “atores”, bem como os significados misteriosos das cenas. O que fará o dragão agora? Ele, uma criatura tão terrível, tão feroz, tão gigantesca, não conseguiu devorar um pequeno bebê. Será que aceitará a derrota? Quem é seu alvo imediato, uma vez que o filho foi arrebatado para o céu? É a Mulher. Porém, a Mulher fugiu para o deserto. Subitamente, o dragão se vê sem qualquer possibilidade de alcançar suas presas. Porém, a resolução do conflito deixou muitas perguntas: o que vai acontecer com o dragão? Quão grande foi sua derrota? O que vai acontecer com a Mulher? No deserto o dragão poderá persegui-la? Portanto, é um desenlace que abre possibilidades para contar a história mais uma vez, respondendo as perguntas que ficaram sem resposta. 4.4.2. Ap 12.7-16: Miguel, o dragão e a mulher 7 Houve peleja no céu. Miguel e os seus anjos pelejaram contra o dragão. Também pelejaram o dragão e seus anjos; 8 todavia, não prevaleceram; nem mais se achou no céu o lugar deles. 9 E foi expulso o grande dragão, a antiga serpente, que se chama diabo e Satanás, o sedutor de todo o mundo, sim, foi atirado para a terra, e, com ele, os seus anjos. 10 Então, ouvi grande voz do céu, proclamando: Agora, veio a salvação, o poder, o reino do nosso Deus e a autoridade do seu Cristo, pois foi expulso o acusador de nossos irmãos, o mesmo que os acusa de dia e de noite, diante do nosso Deus. 11 Eles, pois, o venceram por causa do sangue do Cordeiro e por causa da palavra do testemunho que deram e, mesmo em face da morte, não amaram a própria vida. 12 Por isso, festejai, ó céus, e vós, os que neles habitais. Ai da terra e do mar, pois o diabo desceu até vós, cheio de grande cólera, sabendo que pouco tempo lhe resta. 13 Quando, pois, o dragão se viu atirado para a terra, perseguiu a mulher que dera à luz o filho varão; 14 e foram dadas à mulher as duas asas da grande águia, para que voasse até ao deserto, ao seu lugar, aí onde é sustentada durante um tempo, tempos e metade de um tempo, fora da vista da serpente. 15 Então, a serpente arrojou da sua boca, atrás da mulher, água como um rio, a fim de fazer com que ela fosse arrebatada pelo rio. 16 A terra, porém, socorreu a mulher; e a terra abriu a boca e engoliu o rio que o dragão tinha arrojado de sua boca. Em seu estudo sobre as estruturas narrativas, Todorov mostra como a intriga (enredo) nas narrativas primordiais tendem a ser mais estáticas do que nos romances modernos. O exemplo que ele dá é o da Odisséia, onde o enredo não comporta nenhuma surpresa, pois tudo é dito de antemão, até com indiferença, e tudo o que é dito acontece. A isso, Todorov chama de “intriga de predestinação” (2008, p. 117). Em contrapartida, nas narrativas ulteriores, a intriga representa um papel mais importante, onde nunca sabemos o 199 que vai acontecer (2008, p. 117). Analisando o Apocalipse, percebemos que, embora se trate de uma narrativa antiga, contendo os referidos aspectos “predestinados”, também exibe tensões, criando expectativas pela resolução dos conflitos. Apresentação (v. 7a) A segunda narrativa do capítulo 12 começa com a descrição de que “Houve peleja no céu”. A perseguição do dragão à mulher gloriosa já foi a descrição de um conflito celeste, mas agora João descreve essa batalha de um modo mais convencional: dois exércitos em conflito. O tema “batalha” é recorrente no Apocalipse. Importante aqui é o lugar dessa batalha. Os cristãos estão enfrentando terríveis lutas na terra, mas agora João diz que no céu também há uma luta. Na verdade, ele pretende dizer que a batalha no céu é a suprema batalha. Todos os acontecimentos na terra são decorrentes. A estrutura da narrativa é bastante parecida com a anterior. Tudo começa com uma batalha cósmica no céu. Novos personagens são introduzidos: Miguel e seus anjos, e também os anjos do dragão. Miguel é único personagem que recebe nome em toda a narrativa. No entanto, não há qualquer descrição a respeito dele. Nem se quer é dito que ele é um anjo, embora isso seja sugerido pelo fato de que lidera um exército de anjos. Os anjos, igualmente, não são descritos. Do livro de Daniel, sabe-se que Miguel é um protetor celeste de Israel (Dn 10.13, 21, 12.1), ou seja, da Mulher da narrativa anterior. Isso mostra como “recapitulação” faz parte não só da estrutura maior do livro, mas expressa-se também nas partes menores, pois ao apresentar Miguel para seus leitores, o autor os faz pensar outra vez na Mulher. Do Novo Testamento, sabe-se que Miguel é um Arcanjo (Jd 9, 1Ts 4.16), na verdade o único Arcanjo descrito nos textos canônicos. Porém, o fato de que Miguel, o capitão dos exércitos celeste, o Arcanjo bom, e seus anjos “pelejam” contra o dragão, sugere que o dragão também é um Arcanjo, ele é o capitão dos anjos caídos. Complicação (v. 7b-8) Em resposta à peleja de Miguel e seus anjos contra o dragão, este também peleja contra Miguel. Aqui vemos uma espécie de inversão. Na primeira narrativa, o dragão tomou a iniciativa de perseguir a Mulher. Nessa narrativa, o protetor da Mulher toma a iniciativa de expulsar o dragão. 200 O grande número de anjos que está envolvido na batalha, de ambos os lados, tanto de Miguel quanto do dragão, lembra o cenário antigo do céu como um lugar densamente povoado por seres celestes. O próprio João já descreveu a existência de milhões e milhões rodeando o Trono (Ap 5.11). O Antigo Testamento também descreveu a corte celeste como um local habitado por incontáveis seres (Sl 103.20, Sl 148.2, Is 6.1ss). O Salmo 89 descreve os céus como uma assembleia de celebração a Deus: Celebram os céus as tuas maravilhas, ó SENHOR, e, na assembleia dos santos, a tua fidelidade. Pois quem nos céus é comparável ao SENHOR? Entre os seres celestiais, quem é semelhante ao SENHOR? Deus é sobremodo tremendo na assembleia dos santos e temível sobre todos os que o rodeiam (Sl 89.5-7). Deus é chamado frequentemente no Antigo Testamento de “Senhor dos Exércitos”, numa referência aos exércitos celestes. No livro de Jó há a descrição de uma reunião dos seres celestes denominados “filhos de Deus”. Entre esses “filhos de Deus” estava também Satanás (Jó 1.6). E o profeta Isaías profetizou que um dia o Senhor castigaria “no céu as hostes celestes” (Is 24.21). Portanto, João culmina a narrativa bíblica de que os anjos estão em guerra, e uma parte deles, liderados pelo dragão, perde seu lugar no céu. Assim, o cenário celeste é purificado dos antigos traidores e estabelece-se uma festa, uma comemoração pela purificação do lugar onde Deus habita. Voltando ao início do enredo dessa segunda narrativa, lembramos que a razão dessa batalha celeste é a perseguição do dragão ao Filho e a consequente “subida” deste ao céu. O Filho da Mulher sempre foi o maior objetivo de destruição do dragão, portanto, ele ainda insiste, talvez já com um grande grau de desespero, dirigindo-se ao céu onde esse Filho está agora. Porém agirá não mais através de uma espera solitária, e sim de uma revolta celestial de grandes proporções. É desse modo que a história progride, apesar da recapitulação. Desenvolvimento (v. 9) É evidente que o narrador pretende estabelecer que a “subida” do Filho ao céu é que impôs a derrota decisiva sobre o dragão, pois o fez perder o direito a um lugar de destaque lá em cima. Por sua vitória na cruz, ressurreição e ascensão, o Filho defenestrou o dragão, que perdeu seu cargo de acusador. De posse da “decisão” celeste que fez o dragão perder seu lugar, o Arcanjo Miguel faz cumprir a ordem judicial, expulsando pela força o adversário dos domínios celestes. É interessante que não seja o próprio Filho que faz isso. A tarefa é relegada ao arcanjo. Isso pode ter três explicações: a primeira é que o Filho foi 201 quem conquistou o direito legal para que o dragão fosse expulso, o Arcanjo apenas cumpriu a ordem. A segunda é que o dragão não está realmente à altura do Filho, ele está à altura de um Arcanjo. E a terceira é que o confronto entre o dragão e o Filho está reservado para o futuro, quando o dragão não será apenas expulso do céu, mas destruído e lançado para dentro do lago de fogo. Embora, em princípio, a derrota e expulsão do dragão possa parecer uma resolução, é na verdade um aumento da tensão, pois uma resolução seria a destruição do dragão. Pensando da perspectiva dos leitores, a expulsão resolve apenas parcialmente o problema e cria outros maiores. O texto não diz, num primeiro momento, quais as consequências dessa expulsão. E é preciso lembrar que a Mulher continua lá no deserto. Isso significa que o dragão concentrará seus esforços em que tarefa agora? Na verdade, a expulsão do dragão do céu significa uma vitória estrondosa no céu, porém a expectação de terríveis conflitos na terra. Quanto ao estilo de narração, deve ser observado que não há descrição de detalhes secundários, por exemplo, como era o céu, para que lugar da terra o dragão foi lançado, quais eram as armas dos anjos, etc. Segundo Auerbach, isso é uma característica própria dos textos influenciados pela literatura hebraica. Não há informações adicionais além das necessárias. Os textos deixam margem para que o leitor preencha os campos necessários. (AUERBACH, 2001, p. 6-7). Clímax (10-12) O clímax da expulsão do dragão pode ser visto no cântico celeste que forma uma espécie de interlúdio entre os eventos vitoriosos no céu e a preparação para a continuação e intensificação do conflito na terra. Serve também como elemento de ligação entre o resultado da batalha no céu e o início das perseguições na terra. Assim, o autor amarra fortemente seu enredo. O cântico retumba em glória pela vitória de Cristo, explicando-a para o leitor. A terrível tarefa que Satanás exercia no céu de acusar os “nossos irmãos”, fazendo isso “de dia e de noite, diante do nosso Deus”, cessou. Não há descrição de alívio maior do que ver que aquela cadeira agora está vazia. O Apóstolo Paulo descreveu isso de outra forma em Romanos 8: Quem intentará acusação contra os eleitos de Deus? É Deus quem os justifica. Quem os condenará? É Cristo Jesus quem morreu ou, antes, 202 quem ressuscitou, o qual está à direita de Deus e também intercede por nós. (Rm 8.33-34). É por isso que os “nossos irmãos” venceram o dragão, o acusador. A vitória de Cristo é a vitória do Arcanjo, é a vitória da Mulher, mas também é a vitória de cada cristão, que agora tem assegurada sua salvação. A conexão feita no cântico entre o dragão e a antiga serpente, traz ao leitor-ouvinte uma nova e surpreendente revelação. Não apenas o fato de que aquela serpente era de fato Satanás, mas que a antiga derrota profetizada por Deus à própria serpente aconteceu de um modo absolutamente imprevisível. Ou seja, há aqui uma espécie de analepse do personagem dragão, resgatando sua antiga atividade como serpente. Aquilo que João propositadamente não registra em relação ao Filho, ou seja, sua morte e ressurreição, impôs ao dragão a derrota que Gênesis 3.15 havia anunciado: a cabeça da serpente seria esmagada. O resultado da batalha foi a derrota e a expulsão do dragão dos céus. Como consequência, ele foi lançado para a terra. Aqui está uma das mais importantes referências temporais do capítulo 12. É o “agora” do verso 10, que localiza o momento do estabelecimento do Reino de Deus e da autoridade de Cristo nos céus. Significativo é a mudança da perspectiva narrativa que acontece no verso 10: “Então, ouvi grande voz do céu, proclamando”. Há duas mudanças nesse momento, pois além de narrar em primeira pessoa, também a forma como recebe a revelação mudou. Antes era algo que se via, agora é algo que se ouve. A mudança é sugestiva e cria um destaque para o hino de louvor que será proclamado em resposta à estrondosa vitória dos anjos sobre os demônios. Por um momento, o narrador apresenta-se mais envolvido diretamente com a história (homodiegético – REUTER, 2002, p. 71). Passado o hino de louvor, ele retoma a narrativa em terceira pessoa. A nota de festa no céu antecipa os horrores que não só continuam na terra como aumentarão consideravelmente agora. Expulso do céu, o dragão desce para o único lugar que ainda pode transitar e agir: o mundo. Por isso a advertência: “Ai da terra e do mar, pois o diabo desceu até vós, cheio de grande cólera, sabendo que pouco tempo lhe resta” (Ap 12.12). O conflito na terra (e no mar) ainda não foi resolvido. No céu o dragão não tem mais legitimidade para agir, porém na terra (e no mar) ele ainda tem, e fará isso da pior maneira possível. 203 Nesse ponto, segue-se uma segunda importante referência temporal do texto. É dito que o dragão sabe que “pouco tempo lhe resta”. Reprimido de seu “direito” de acusar, só lhe resta perseguir diretamente os cristãos na terra. Fará isso com toda a fúria justamente porque seu tempo é curto. Qual é a duração desse tempo? O desenlace da cena dirá. Desenlace (vs. 13-16) Impedido de entrar no céu e literalmente expulso de lá por forças angélicas remanescentes, o dragão “se viu atirado para a terra”. Por isso, volta-se para seu primeiro alvo, a Mulher, que já dera à luz o Filho varão que ele não conseguiu devorar. Como o Filho está definitivamente fora de suas possibilidades, por vingança ele vai perseguir a Mulher. Entretanto, mais uma vez seus planos são frustrados. Mesmo ainda tendo legitimidade para agir na terra, isso não significa que ele tem toda a liberdade para fazer o que quiser. Há limites. E também há intervenções divinas protegendo os seus filhos na terra. Miraculosamente a Mulher recebe asas de grande águia e voa (outra vez) ao deserto, para ser sustentada por um período específico de tempo “fora da vista da serpente”. E assim, a posição de equilíbrio é mais uma vez alcançada, em termos quase idênticos aos utilizados na primeira narrativa. Porém, dessa vez, o dragão vai insistir um pouco mais (progresso da história). Sem poder alcançar a Mulher, lança atrás dela um rio, para tentar arrebatá-la. É preciso lembrar que lá no início, no Gênesis, essa mesma serpente abriu sua boca com palavras enganadoras e fez a mulher comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Agora, ela abre sua boca para lançar algo destrutivo contra a Mulher. Porém, mais uma vez seus intentos são frustrados. Seu próprio domínio, a terra, socorre a Mulher. Percebe-se que as duas narrativas têm estruturas bem parecidas nessa parte do capítulo 12 que foi analisada. Ao mesmo tempo em que a segunda narrativa dá prosseguimento à história, recapitula muitos aspectos da primeira. João sempre começa com a apresentação do conflito, desenvolve a cena até o clímax, porém o desenlace nunca é uma conclusão total, antes é sempre uma abertura para um recomeço. Esse é o padrão da narrativa do Apocalipse que pode ser encontrado no todo, mas que agora vimos também nas partes. 204 4.4.3. Ap 12.17-13.10: O dragão, os descendentes, e a besta 12:17 Irou-se o dragão contra a mulher e foi pelejar com os restantes da sua descendência, os que guardam os mandamentos de Deus e têm o testemunho de Jesus; e se pôs em pé sobre a areia do mar. 13:1 Vi emergir do mar uma besta que tinha dez chifres e sete cabeças e, sobre os chifres, dez diademas e, sobre as cabeças, nomes de blasfêmia. 2 A besta que vi era semelhante a leopardo, com pés como de urso e boca como de leão. E deu-lhe o dragão o seu poder, o seu trono e grande autoridade. 3 Então, vi uma de suas cabeças como golpeada de morte, mas essa ferida mortal foi curada; e toda a terra se maravilhou, seguindo a besta; 4 e adoraram o dragão porque deu a sua autoridade à besta; também adoraram a besta, dizendo: Quem é semelhante à besta? Quem pode pelejar contra ela? 5 Foi-lhe dada uma boca que proferia arrogâncias e blasfêmias e autoridade para agir quarenta e dois meses; 6 e abriu a boca em blasfêmias contra Deus, para lhe difamar o nome e difamar o tabernáculo, a saber, os que habitam no céu. 7 Foi-lhe dado, também, que pelejasse contra os santos e os vencesse. Deu-se-lhe ainda autoridade sobre cada tribo, povo, língua e nação; 8 e adorá-la-ão todos os que habitam sobre a terra, aqueles cujos nomes não foram escritos no Livro da Vida do Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo. 9 Se alguém tem ouvidos, ouça. 10 Se alguém leva para cativeiro, para cativeiro vai. Se alguém matar à espada, necessário é que seja morto à espada. Aqui está a perseverança e a fidelidade dos santos. Apresentação (12.17) Após ter sido expulso do céu e frustrado mais uma vez em sua tentativa de perseguir a Mulher, o dragão se voltou para o restante dos descendentes dela, chamados no texto de “os que guardam os mandamentos de Deus e têm o testemunho de Jesus” (Ap 12.17). O tema da descendência prometida é amplamente exposto na Bíblia Hebraica e no Novo Testamento. No Antigo Testamento, a descendência prometida faz alusão ao grupo fiel dentro de Israel que não se deixou contaminar pela idolatria (Is 6.13, 49.6, Jr 50.20). Paulo, no Novo Testamento, escreveu que Deus tem um remanescente fiel, o qual não descende do sangue, mas são os escolhidos de Deus (Rm 9.27). No texto do Apocalipse João parece mesclar ambas as descendências, pois as duas são perseguidas pelo dragão. Na terra, o cenário se desloca para outro lugar significativo: o mar. O dragão desistiu de perseguir a Mulher e foi perseguir os seus descendentes, e para fazer isso, ele se pôs sobre a areia do mar. Desse mar, ele fará subir um aliado terrível para perseguir o povo fiel. Pohl diz: a informação de que o dragão se pôs em pé sobre a areia do mar não deve nos levar a imaginar que, derrotado, ele se retira da terra. Pelo contrário, 205 ele se excede e toma impulso para o golpe destruidor contra a igreja testemunha e obediente. Ao se postar junto ao mar, ele assume o seu elemento, tornando-se integralmente um dragão terrível (2001, p. 98). Ou seja, mais uma vez a narrativa inicia com a perspectiva de uma grande batalha. O mar representa na literatura bíblica algo ameaçador para o povo de Deus. Ele representa as nações que tentam destruí-lo. Para que Israel deixasse o Egito, Deus precisou abrir o mar ao meio. Em alguns textos do Antigo Testamento o mar é um monstro, um dragão. O Salmo 89, provavelmente relembrando a vitória sobre o Egito e a travessia do Mar Vermelho descreve: Ó SENHOR, Deus dos Exércitos, quem é poderoso como tu és, SENHOR, com a tua fidelidade ao redor de ti?! Dominas a fúria do mar; quando as suas ondas se levantam, tu as amainas. Calcaste a Raabe, como um ferido de morte; com o teu poderoso braço dispersaste os teus inimigos. (Sl 89.8- 10). Raabe é um dragão mítico que nessa passagem do Salmo parece ser identificado com o próprio mar. Portanto, ao se colocar em pé sobre a areia do mar, cria-se o suspense de que algo terrível vai acontecer. Essa guerra está longe de terminar. O conflito no céu já chegou a uma resolução, mas na terra o conflito está apenas começando. A perseguição do dragão à Mulher deixará de ser algo “cósmico” lá no céu, para se tornar algo bem real e cruento aqui na terra. O capítulo 13 é todo em primeira pessoa. Talvez a mudança para a primeira pessoa tenha a intenção de aproximar a narrativa dos leitores. Os eventos descritos no céu (mulher, dragão, anjos) pareciam distantes das pessoas, mas o surgimento das duas bestas acontece na terra e tem relação bem mais direta com os leitores. Complicação (v. 13.1-2) Do mar, o dragão fez surgir um monstro terrível. Em tons dramáticos, João descreve que “viu” emergir do mar uma besta com dez chifres e sete cabeças. A descrição dos chifres antes das cabeças pode significar que ele viu o animal subir lentamente das águas, aparecendo primeiro os chifres e depois as cabeças. Para quem achava que o dragão estava derrotado, surge um monstro que veio fazer a vontade dele no mundo. Provavelmente, os leitores de João imaginariam que essa besta fosse o Leviatã. Já foi visto que João condensou num único animal os quatro que apareceram em Daniel e que representavam governos mundiais, ou seja, uma forma de contar a história do 206 mundo. Mas conquanto em Daniel o surgimento dos animais implica em alguma ordem ou sucessão de impérios, aqui no Apocalipse, a junção dos quatro num só aponta para uma grande deformidade, uma aberração. Surge, portanto, do mar, uma besta, um monstro aberrante, bastante semelhante ao próprio dragão, encarnando um governo mundial. Então acontece a espantosa declaração: “E deu-lhe o dragão o seu poder, o seu trono e grande autoridade” (Ap 13.2). A pergunta que fica aos leitores é: o que esse animal monstruoso e aberrante com toda a autoridade recebida do dragão vai fazer? Desenvolvimento (v. 3-6) Era de se esperar um ataque furioso e destruidor aos descendentes da mulher, ao invés disso, a primeira atitude é uma estranha simulação de morte e ressurreição. João diz: “Então, vi uma de suas cabeças como golpeada de morte, mas essa ferida mortal foi curada; e toda a terra se maravilhou, seguindo a besta” (Ap 13.3). Assim, percebe-se que o velho anseio do dragão é receber adoração. Expulso do céu, ele mostra que na terra será entronizado através da ação da besta. Ele quer a legitimidade que perdeu no céu quando foi expulso. Em Gênesis 3.15, texto que João sempre tem em mente, Deus havia dito que esmagaria a cabeça da serpente, ou seja, do próprio dragão. Mas agora, é uma das cabeças da besta que está ferida e, no entanto, logo é curada. Assim se manifesta mais uma vez a paródia do dragão. Simulando uma morte e ressurreição ele conquista reconhecimento dos homens. É importante lembrar que Jesus também morreu e ressuscitou, mas não para conquistar adeptos ou reconhecimento, e sim para libertar seu povo das garras do dragão e retirar o poder de acusação contra eles que ele detinha (Hb 2.14). O dragão, entretanto, está mais interessado no espetáculo. Ele consegue o que deseja, pois “adoraram o dragão porque deu a sua autoridade à besta; também adoraram a besta, dizendo: Quem é semelhante à besta? Quem pode pelejar contra ela?” (Ap 13.4). No céu, os anjos pelejaram contra o dragão e ele foi expulso. Aqui na terra, ele consegue que todos acreditem que é invencível. Talvez, esse seja o modo joanino de explicar por que, apesar de a serpente ter sua cabeça esmagada (através da vitória de Cristo em sua morte, ressurreição e entronização no céu), o dragão continua tendo tanto poder na terra. Uma cabeça ferida reviveu. Foi-lhe dada uma sobrevida na terra. A segunda atitude da besta é difamar a Deus. Ela já realizou um ato imitador de Deus que a colocou em evidência no mundo. Agora, volta-se diretamente para falar mal de 207 Deus, para blasfemar. A intensa propaganda negativa da besta em seu programa de difamar sistematicamente a Deus e o tabernáculo, ou seja, os que habitam no céus, deve-se, provavelmente, aos seus ressentimentos por ter sido o dragão expulso do céu. Talvez haja aqui algum resquício da presunção de direito que o dragão detinha, mas que lhe foi tirado. Antes ele possuía legitimidade para acusar os crentes lá no céu, pois a redenção ainda não havia sido consumada pelo Filho. Agora só lhe resta difamar. Revela-se, então, que isso sempre foi o que ele mais soube fazer. Não é sem razão que o título pelo qual é conhecido signifique “difamador” (diabo). A difamação e as blasfêmias se reforçam porque aparentemente não há qualquer ação divina na terra contra o dragão. Miguel e os anjos que o expulsaram do céu não descem para fazer o mesmo na terra. Assim, o dragão através da besta se sente o dono do mundo. Essa também é a impressão que os crentes têm. Mas é a realidade? Clímax (v. 7-8) Essa presunção se acentua pela vitória que ele obtém contra os cristãos. João faz questão de dizer que “Foi-lhe dado, também, que pelejasse contra os santos e os vencesse. Deu-se-lhe ainda autoridade sobre cada tribo, povo, língua e nação” (Ap 13.7, ênfase acrescentada). Finalmente, o dragão consegue realizar seu objetivo na terra que é perseguir e destruir os cristãos. Aqui chega-se ao momento mais dramático no enredo de Apocalipse 12-13. O dragão através da besta do mar estabelece seu domínio sobre toda a terra e persegue ferozmente os cristãos sem qualquer resistência. Ao mesmo tempo, recebe adoração através da besta por parte de “todos os que habitam sobre a terra”, porém trata-se daqueles “cujos nomes não foram escritos no Livro da Vida do Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo” (Ap 13.8). Desenlace (v. 9-10) Aos cristãos, os que têm seus nomes escritos no Livro da Vida, só resta a resignação e a perseverança em meio a todo o sofrimento imposto. Qualquer tentativa de revide será considerado infidelidade a Deus (Ap 13.9-10). Esse é o significado do provérbio que encerra a narrativa da primeira besta. E através dele, João fez o enredo ir um passo adiante. Ele recapitulou a batalha cósmica entre a Mulher e o dragão, trazendo-a para a realidade do dia a dia dos primeiros cristãos que, por sua fé, eram massacrados pelo Império Romano. Explicou a aparente invencibilidade do dragão aqui na terra como temporária. A mensagem 208 que pretende transmitir é que, no plano ideal o dragão já foi derrotado, porém, no plano do dia a dia, isso ainda não aconteceu. Resta aos cristãos perseverança e resignação, aguardando inteiramente no soberano e amoroso cuidado de Deus. 4.4.4. Ap 13.11-18: O dragão, a besta da terra e os marcados 11 Vi ainda outra besta emergir da terra; possuía dois chifres, parecendo cordeiro, mas falava como dragão. 12 Exerce toda a autoridade da primeira besta na sua presença. Faz com que a terra e os seus habitantes adorem a primeira besta, cuja ferida mortal fora curada. 13 Também opera grandes sinais, de maneira que até fogo do céu faz descer à terra, diante dos homens. 14 Seduz os que habitam sobre a terra por causa dos sinais que lhe foi dado executar diante da besta, dizendo aos que habitam sobre a terra que façam uma imagem à besta, àquela que, ferida à espada, sobreviveu; 15 e lhe foi dado comunicar fôlego à imagem da besta, para que não só a imagem falasse, como ainda fizesse morrer quantos não adorassem a imagem da besta. 16 A todos, os pequenos e os grandes, os ricos e os pobres, os livres e os escravos, faz que lhes seja dada certa marca sobre a mão direita ou sobre a fronte, 17 para que ninguém possa comprar ou vender, senão aquele que tem a marca, o nome da besta ou o número do seu nome. 18 Aqui está a sabedoria. Aquele que tem entendimento calcule o número da besta, pois é número de homem. Ora, esse número é seiscentos e sessenta e seis. Apresentação (v. 11) O que parece ser o maior momento de derrota do povo de Deus com a supremacia da besta do mar potencializada pelo dragão ainda não alcançou o ápice do tormento. Para incrementar o desespero, João descreve nova visão terrível: “Vi ainda outra besta emergir da terra” (Ap 13.11). A primeira besta já havia conseguido impor a supremacia sobre o mundo, perseguir e vencer os cristãos, recebendo adoração de toda a terra, mas o dragão ainda não está satisfeito. Ele quer ir até o ápice de seus propósitos malignos, e para isso chama outra besta. A transição do surgimento da primeira besta para a segunda besta se faz sem uma marca temporal explícita. O autor diz apenas “vi ainda outra besta emergir” (13.11). Em seguida as descrições destacam a simultaneidade das duas bestas. Elas agem em sincronia. Não são sucessivas, mas, de certo modo, recapitulativas. Os cenários dos capítulos 12-13 são os quatro maiores da Bíblia: céu, terra, deserto, mar. Cada um deles está carregado de simbolismos e referências para o povo de Deus. Para 209 os leitores-ouvintes, cada vez que aparecia uma dessas referências, um conjunto de imagens e significados poderiam se formar em suas mentes. Assim, há uma relação intrínseca entre o primeiro plano e o segundo plano dessas imagens, como é próprio de toda a literatura bíblica, pois “os acontecimentos delineados de modo rarefeito no primeiro plano da narrativa bíblica supõem, de certa maneira, um vasto segundo plano de densas possibilidades de interpretação” (ALTER, 2007, p. 175). Complicação (v. 12) O surgimento da segunda besta, da terra, poderia levar os leitores a pensar no Behemot. Sua semelhança é com um cordeiro, mas sua voz de dragão recebe destaque. A relação da segunda besta com a primeira é de coadjuvante. A segunda besta, a que sobe da terra, funciona como uma espécie de propaganda e culto da primeira. Ela trabalha para que a besta do mar seja glorificada na terra. Assim, todo o cenário final se dá na terra, onde o dragão, por meio das duas bestas, seduz os habitantes do mundo e persegue os cristãos. Nota-se que no capítulo 13, as descrições são mais detalhadas, as duas bestas são descritas fisicamente e também as ações e motivações delas. O Narrador sabe exatamente o que as duas bestas pretendem, e principalmente, o que a segunda besta pretende em relação à primeira, que é seduzir os homens para que a adorem. Ou seja, a história toda está mais “próxima” dos homens. Desenvolvimento (vs. 13-15) A segunda besta recebe duas descrições físicas e cinco de suas ações. Ela tem dois chifres como um cordeiro, mas fala como um dragão. É um ser enganador. Suas ações são: 1) exerce toda a autoridade da primeira besta e fazer com que toda a terra continue adorando a besta que teve a ferida mortal curada. 2) Opera sinais e prodígios diante dos homens, como fazer fogo do céu, a fim de legitimar a adoração à besta. 3) Trabalha de forma sedutora, cativando os homens pelos sinais realizados e usando-os para fazer uma grande estátua da primeira. 4) Faz com que essa estátua pareça adquirir vida, inclusive falando, para consolidar a adoração idolátrica. 5) Faz com que todos os que não adorem a imagem da besta sejam mortos. A sucessão de cenas e imposição de perseguições e tormentos a igreja descritas no capítulo 13 criam a ideia de uma avalanche de más notícias para os leitores ouvintes. Por 210 certo, começa-se a perguntar: quando virá o alívio? O dragão derrotado no céu, será vitorioso na terra até quando? Clímax (vs. 16-17) No processo de fazer com que todos os que não adoram a imagem sejam mortos é que a segunda besta impõe a marca sobre a mão e a fronte das pessoas, ou seja, é uma marca de identificação. Quem adora a imagem da besta é marcado e pode continuar levando uma vida normal, quem não é marcado se vê privado de todo tipo de negociação no mundo e, por fim, será morto. A referência de João a ser marcado pela besta, que está conectado a adorar a besta, e que por sua vez traz implicações para a vida cotidiana, como comprar e vender, é algo que os cristãos das cidades imperiais podiam entender muito bem. O culto ao imperador era uma imposição de Roma para as cidades. O imperador era adorado como deus. A recusa em reconhecer a divindade do imperador e participar da adoração pública trazia severas consequências. Para a maioria dos povos subjugados por Roma atender à exigência não representava problema algum. Eles já adoravam diversos deuses, não custava nada adorar mais um. Mas para os monoteístas isso era um problema. Porém, talvez muitos cristãos pensassem que podiam participar das obrigações “cívicas” sem corromper o coração. Fazer o que era exigido sem um verdadeiro envolvimento. Mas aqui João demonstra que isso significa se deixar marcar pela besta. É assim que o leitor-ouvinte de João é levado a entender toda a trama dessa cena. Na verdade, João sempre esteve falando sobre a fidelidade do cristão diante de todas as pressões seculares. Desenlace (v. 18) O desenlace é a proposição de um enigma para que os leitores possam identificar o significado dessa marca. O objetivo é o mesmo da narrativa anterior: diante do sofrimento imposto, só resta permanecer firme e fiel. A história termina assim, inacabada. Esse é o desfecho pretendido na trama da recapitulação. O conflito no céu se resolveu com a subida de Cristo, mas o conflito na terra continuará pelo tempo que Deus permitir que o dragão aja, e pelo tempo que ele achar que os cristãos devem ser testados em sua fé. A besta continuará marcando os seus. Aos cristãos só resta continuar confiando no livramento de Deus e, caso ele não faça isso, a morrer por Cristo. O que não podem fazer é se deixar marcar pela besta. Ao mesmo tempo, o desfecho 211 em forma de um enigma é sugestivo: há maneiras de não se deixar enganar. É preciso atenção e sabedoria. Os desatentos serão enganados. O seguinte quadro nos ajuda a ver esses aspectos do enredo nas quatro narrativas, mostrando tanto a recapitulação quanto o progresso temático. 20 - Quadro comparativo das quatro narrativas de Ap 12-13 Apresentação Complicação Desenvolvimento Clímax Desenlace Ciclo 1 A Mulher O dragão A espera do O nascimento A subida do grávida perseguidor dragão do Filho. Filho e o livramento da Mulher na terra Ciclo 2 Miguel e seus O dragão e Miguel expulsa o Os céus tornam- A mulher é anjos pelejam seus anjos dragão para a se livres do livrada da contra o pelejam terra. dragão, mas a perseguição do dragão no céu contra terra sofrerá. dragão na terra. Miguel Ciclo 3 A batalha na O surgimento A besta busca A besta do mar Os cristãos terra: o dragão da primeira legitimidade e persegue e mata precisam ser se põe junto besta difama os céus os cristãos perseverantes e ao mar resignados. Ciclo 4 Continua a Ela se parece Ela intensifica a A besta da terra Os cristãos batalha na com um legitimidade da impõe o 666 e precisam ficar terra: o dragão cordeiro, mas besta do mar mata os cristãos atentos e chama a fala como que não são calcular o segunda besta dragão marcados número da besta. Conclui-se que João utilizou de quatro pequenas narrativas com grandes semelhanças de estrutura entre si para contar sua história. Elas recapitulam fatos e, ao mesmo tempo, progridem na revelação de acontecimentos importantes para os cristãos. Sempre começam com uma apresentação da cena e da tensão inicial que envolve. Depois 212 essa tensão é desenvolvida até chegar ao clímax. Por fim, vem o desenlace que se configura numa abertura para um recomeço e para uma ampliação dos fatos narrados. Esse é o padrão narrativo utilizado por João não só nas sete grandes seções que dividem o livro inteiro, mas também em muitos momentos dentro das seções, nas partes. É uma espécie de espiral, os ciclos são interconectados, mas avançam em direção à revelação mais completa da história. A análise literária do texto como ele se apresenta em si mesmo, possibilita ver isso. Portanto, a análise literária torna-se uma ferramenta imprescindível para a compreensão dos ensinamentos teológicos e morais do Apocalipse de João. 213 Considerações  finais   O termo “Apocalipse” deu nome a todo um gênero de literatura desenvolvido desde pelo menos o segundo século antes de Cristo. Trata-se de um estilo literário bem específico que se utiliza de símbolos, de imagens fortes de morte e destruição, bem como de visões celestes e, ou, demoníacas, para transmitir uma mensagem teológica. No caso do Apocalipse, por fazer parte do Canon Bíblico, sendo o último livro deste, tornou-se sinônimo de mistérios (ao contrário do significado do termo), de prenúncios do fim do mundo, sempre associados a eventos catastróficos. Nessa linha, percebe-se que o fascínio que o Apocalipse causa está mais ligado às expectativas psicológicas das pessoas do que por uma apreciação das qualidades literárias do livro. Os estudiosos do Apocalipse também prestaram pouca atenção a essas qualidades. Tanto aqueles que o leem como uma verdadeira revelação de Deus, quanto aqueles que o estudam de uma perspectiva crítica. Os primeiros leram o Apocalipse em busca de respostas teológicas para as épocas em que viveram ou de subsídios para sustentar seus edifícios teológicos e, ou previsões do futuro. Os comentários antigos e as ilustrações medievais apontaram para isso. Os estudos críticos influenciados pelo Iluminismo aplicaram as técnicas de análise textual e histórica a fim de dizer quais foram suas fontes, formas, redações, etc., desacreditando de sua unidade literária, ou então se preocuparam em dizer como o texto foi utilizado em algum ritual religioso primitivo, ou como foi emprestado de outras tradições religiosas. O não entendimento do funcionamento de diversos aspectos literários do texto em si mesmo foi algo comum nas duas formas de abordagem. Nessa tese definimos os aspectos literários como os elementos internos constitutivos de sentido de um texto que, segundo Barr (2010, p. 647) incluem enredo (a relação entre os incidentes de uma história), caracterização (a apresentação dos atores), ponto de vista (como a história é focada) e distorções temporais (tais como anacronismos, repetição, presságio e duração); e, segundo Alter (2007, p. 28), as numerosas modalidades de exame do uso engenhoso da linguagem, das variações no jogo de ideias, das convenções, dicções e 214 sonoridades, do repertório de imagens, da sintaxe, dos pontos de vista narrativos, das unidades de composição. Levando em conta que a arte literária na conformação da narrativa bíblica possui “um papel finamente modulado a cada momento, quase sempre determinante na escolha exata de palavras e detalhes, no ritmo da narração, nos pequenos movimentos do diálogo e em toda uma teia de relações que se ramificam pelo texto” (ALTER, 2007, p. 15), defendemos que prestar atenção a esses detalhes artísticos é necessário para entender de forma mais completa o sentido do texto bíblico. Em busca da “fusão completa de uma arte literária com um modo teológico, moral ou histórico-filosófico de ver o mundo” (2007, p. 38), nos dispomos a estudar o texto do Apocalipse da perspectiva literária não apenas com preocupações estéticas, mas como uma necessidade para a real compreensão do mesmo. Também úteis se mostraram os conceitos bakhtinianos de intertextualidade (Kristeva) e dialogismo, pois o Apocalipse, como todo texto literário, faz uso da intertextualidade. Intertextualidade refere-se não só a relação de um texto com outro, mas ao curso de sua mútua influência. O entendimento de que a pesquisa histórica não é suficiente para a interpretação do livro não significa que se possa deixá-la de lado, pois a análise da evolução literária do gênero apocalíptico é crucial para entender o modo como os autores utilizaram os variados simbolismos, bem como quais foram seus propósitos com esse tipo de literatura. O Apocalipse não foi escrito num vácuo, é antes a consumação de todo um movimento literário. Assim, o estudo literário precisa ser feito a partir do estabelecimento do contexto histórico-literário da formação da obra. Os estudos críticos influenciados pelo Iluminismo, quando buscaram isso, aplicaram ao texto as metodologias científicas e análises textuais não para descobrir o sentido do texto, mas para fragmentá-lo. O método consistiu em tentar encontrar os documentos hipotéticos que teriam dado origem ao texto do Apocalipse, e estabelecer o modo como essas fontes foram “arranjadas” no texto final. Havia um pressuposto tão forte de que o texto não poderia ser uma unidade literária que os indícios contrários a isso foram completamente ignorados. A partir do estudo contextualizado da literatura apocalíptica é possível ver que há um diálogo entre o Apocalipse e outros textos da Bíblia Hebraica e também com outras obras consideradas apocalípticas. Na literatura apocalíptica que precedeu o Apocalipse como estágio final dessa longa história literária, o conceito do Deus Yahweh surgiu como o mais desenvolvido, apesar dos reveses a que Israel se submeteu. Deus é o senhor do tempo e da história. As forças malignas rebeladas subjugam o mundo através dos grande impérios 215 e oprimem o povo de Deus, e este deve permanecer resignado diante do sofrimento, porém, ao mesmo tempo, confiando na libertação que se manifestará numa “vinda” catastrófica de Deus ao mundo para destruir os inimigos da fé. A partir dessa análise, o Apocalipse se revela como um livro que construiu sua visão da realidade através de um extensivo e contextualizado uso de temas, figuras e interpretações teológicas do livro de Daniel, Gênesis, e também de outras fontes de literatura apocalíptica, como o livro de Enoque. Temas e figuras que foram adaptados para seus propósitos através de uma relação intertextual rica que se expressou em realização, transformação e transgressão. A não consideração desses fatores, por certo, obscurece o texto do Apocalipse. A análise da estrutura do livro do Apocalipse permitiu ver a que a complexidade e intensidade da trama e dos personagens foi construída de forma coesa e intencional. A partir do estudo da numerologia, das repetições, das paródias, das referências cruzadas e de outros mecanismos literários que estruturam o padrão de recapitulação, foi possível não apenas identificar a unidade literária do livro como também o conteúdo teológico e moral. O padrão sétuplo de referências atesta firmemente contra as noções críticas de subdividir a obra em edições ou insistir em interpolações. Tal padrão que pode ser encontrado ao longo de todo o texto do Apocalipse seria coincidência demais se fosse aleatório, e destaca a significativa arte literária empregada pelo autor, reforçando o sentido de que o livro foi escrito para transmitir esperança para os cristãos atribulados do primeiro século, e, por consequência, de todas as épocas. Os números servem para fixar sentidos na mente de seus leitores e/ou ouvintes. Sete para Deus, quatro para a terra que será conduzida aos propósitos de Deus. Dez para o mal e seis para seu julgamento. Doze para o povo de Deus que aguarda o seu retorno. Assim, o leitor se vê envolvido por esses números e é chamado a se identificar com eles ou rejeitá-los. Faz parte das sete igrejas? Inclui-se entre os 24 anciãos e fará parte da cidade com 12 fundamentos? Para isso precisa recusar o 666. A arte literária expressa na numerologia do Apocalipse não é apenas distinta pela capacidade de subdividir os temas e assuntos de forma padronizada, mas também pelo conteúdo teológico e moral que se deduz a partir dela. A principal característica literária do Apocalipse é a repetição. Números, esquemas, nomes e uma mesma história são repetidos continuamente. O método crítico de utilizar essas repetições para apontar uma suposta fragmentação do texto falha exatamente por não considerar a sua função na narrativa. Para o leitor moderno elas podem aparentar falta de coesão, mas são uma das maneiras frequentes utilizadas pelos escritores bíblicos em sua 216 arte literária, e a principal em João, que formou através de seu texto uma espécie de “malha” de referências cruzadas. Praticamente todos os assuntos abordados sumariamente nos capítulos 1 a 3 são levados à conclusão nos capítulos finais do livro. Frases inteiras são repetidas duas e até três vezes, em alguns momentos, ligeiramente modificadas, com o objetivo de suscitar não apenas memorização, mas análise por parte do ouvinte. Longe de serem interpolações descuidadas feitas por algum editor pouco hábil, são indícios fortes de unidade e propósito. A partir da análise dos dois principais números do Apocalipse, o sete e o quatro, propomos nossa divisão do enredo em quatro partes que, por sua vez, se subdividem em sete. Ao longo das quatro grandes partes, João conduz o leitor do encontro com Cristo na ilha de Patmos aos Novos Céus e Nova Terra. Nas sete partes menores, ele fornece os pormenores que ajudam o leitor a formar seu próprio quadro dos eventos intermediários. Nesse sentido, mais do que um evento que se desenrola, o Apocalipse apresenta quatro narrativas inter-relacionadas da história de Jesus. A primeira conta a história do ponto de vista da presença de Jesus entre as igrejas na terra observando, julgando e recompensando. Na segunda, Jesus está entronizado no céu como o soberano dos acontecimentos do mundo. A terceira traz a perspectiva do combate de Jesus com as forças das trevas tanto no céu como na terra. E a quarta, narra a vitória e a consumação dos propósitos de Deus prometidos às igrejas na união do novo céu e da nova terra. Nas sete divisões menores, o autor recapitula a mesma história, enquanto também avança em conceitos e significados. Destaca-se o planejamento minucioso que João fez de seu livro. A estrutura do livro demonstra que a história (de Deus) não é desconexa, feita à base de improvisos; é harmoniosa, perfeitamente planejada, cíclica, sendo que, mesmo os percalços, as oposições e o sofrimento do povo de Deus, não são aleatórios. Os diversos elementos literários como padrões numéricos, temas e expressões repetidas, referências cruzadas, recursos de abertura e fechamento, textos como que em espelho, quiasmos sintáticos e semânticos, dão sentido ao enredo. Esse sentido se perde parcialmente em uma leitura puramente histórica ou teológica. Do mesmo modo, a análise dos capítulos 12-13 revelou que o padrão do todo é mantido nas partes. Novamente a relação entre o texto e o Antigo Testamento, especialmente Gênesis e Daniel mostrou a rica intertextualidade que se estabelece entre essas obras. Os textos antigos influenciaram decisivamente a visão do autor e a construção 217 de sua cosmologia, porém o Apocalipse também impôs aos textos antigos significados que naturalmente não poderiam ser encontrados lá. Em total conformidade com o restante do livro, os padrões numéricos recebem destaque nos capítulos 12-13. Números escolhidos para transmitirem um conhecimento acessível apenas àqueles que entendem o significado deles. Também as repetições desempenham importante papel, confundindo os críticos que as interpretam como duplicação de fontes. Como no caso do duplo refúgio da Mulher ao deserto, em que os críticos não percebem o estilo recapitulativo do autor, e o uso da cena padrão do sustento divino ao seu povo em ambiente hostil. A teoria da recapitulação defendida por diversos autores antigos e modernos encontrou muitos subsídios na análise global (todo o livro) e também na específica (capítulos 12-13). Ou seja, a narrativa de João não segue um padrão linear, mas cíclico. Contudo, não se trata apenas de repetir a mesma coisa, as seções recapitulativas são micro- enredos completos, e fazem progredir a história a cada ciclo, até o grande desfecho. Encontramos esse mesmo estilo dentro das seções, como a análise dos capítulos 12-13 comprovou. João criou nesses capítulos quatro pequenas narrativas recapitulativas, que na somatória conduzem a história. A atenção dada às cinco fases do enredo revelou intencionalidade e padrão narrativo. A construção das personagens, as referências espaciais e temporais, bem como o estilo do narrador também se revelaram ricos e fundamentais para o entendimento do texto. Acreditamos que algo tenha ficado bem estabelecido com essa tese: A importância de analisar esses elementos literários no texto bíblico, especialmente as repetições. Assim Em vez de relegar toda repetição observada nos textos ao limbo das fontes duplicadas ou dos arquétipos folclóricos, podemos começar a entrever que a reiteração de certos padrões evidentes em momentos críticos da narrativa era ditada pela convenção e mesmo esperada pelo público, e que foi contra esse fundo de antecipação que os escritores bíblicos elegeram suas palavras, motivos, temas, personagens e ações, numa dança primorosa de inovações significativas (ALTER, 2007, p. 101). Tendo chegado ao final desse trabalho, é possível concluir que não se tratou de uma empreitada meramente subjetiva. Ao percebermos os detalhes do texto, pudemos ver a técnica apurada do autor, especialmente seu uso da recapitulação, que “prove that the 218 visionary part of Rev is by no mean a patchwork of unconnected traditions but an impressive coherent whole, the work indeed of a great mind” (LAMBRECHT, p. 103)109. Evidentemente que não é necessário para isso abandonar a pesquisa histórica, pois ela própria nos mostrou que o autor fez uso de diversas tradições, especialmente do Antigo Testamento, e utilizou o gênero apocalíptico vigente de seus dias para transmitir sua mensagem. O autor criou, contudo, sua própria cosmologia baseado nas antigas tradições. Não há necessidade igualmente de desconsiderar os elementos teológicos e o caráter sagrado do livro, pois cada tradição religiosa pode aproveitar os resultados dessa pesquisa e, em cima deles, construir seus próprios conceitos. Nosso ponto foi justamente tentar não inverter isso, ou seja, construir os conceitos sem considerar a literatura. ALTER assevera que, de um modo geral, a tradição religiosa posterior tem nos induzido antes a levar a Bíblia a sério do que a nos deleitar com ela, mas a verdade paradoxal pode muito bem ser que, ao aprendermos a apreciar as narrativas bíblicas como histórias, poderemos ver com mais nitidez o que elas querem nos dizer sobre Deus, o homem e o universo (ALTER, 2007, p. 278). Se o Apocalipse fosse mais considerado em seus elementos literários e menos como uma chave interpretativa da agenda dos últimos dias, seu valor poderia ser ainda maior. Pois que, a arte narrativa da Bíblia significa, portanto, mais que um empreendimento estético, e aprender a ler suas modulações mais finas pode nos aproximar, com mais precisão que os conceitos amplos da história das ideias e das religiões, de uma estrutura imaginativa a cuja sombra ainda vivemos (ALTER, 2007, p. 196). Portanto, compreender a arte narrativa do Apocalipse nos aproxima um pouco mais do sentido do livro. Outra vez deixaremos as palavras de Alter falarem por nós: Creio que essas modalidades são importantes não só para leitores interessados em questões relativas às técnicas narrativas antigas e modernas, mas também para todo leitor que deseja entender o significado da Bíblia. Não me atrevo a julgar se é possível que textos literários tenham um sentido fixo e absoluto, mas certamente rejeito o agnosticismo contemporâneo que refuta todo e qualquer sentido literário e penso que podemos chegar mais perto da gama de sentidos — teológicos, psicológicos, morais, e assim por diante — da narrativa bíblica se procurarmos compreender exatamente como essas histórias são contadas (2007, p. 264, grifos nossos). 109 “Prova que a parte visionária de Apocalipse não é uma junção de tradições desconexas, mas um impressionante e coerente todo, necessariamente a obra de uma grande mente” (tradução nossa). 219 Referências  Bibliográficas   A Confissão de Fé de Westminster, O Catecismo Maior, O Breve Catecismo. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1991. AGOSTINHO DE HIPONA. A Cidade de Deus: contra os pagãos. 5a. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. 2v. ALDEN, Robert L. The New American Commentary: Volume 11, Job. Broadman & Holman Publishers, 1993. 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